CRIME DE EXTORSÃO
TENTATIVA
SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO DA PENA
CUMPRIMENTO DE PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Sumário

–A existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão da execução da pena, embora o prognóstico favorável esteja nesses casos dificultado e exija uma particular fundamentação.

–Importa, contudo, não perder de vista que a finalidade primordial das penas é a de protecção dos bens jurídicos e que, do juízo de prognose favorável, deve resultar que ficará acautelada essa finalidade.

–Embora constituindo o crime de extorsão, em causa nos autos, um desvio ao processo de ressocialização, a exigir cautelas acrescidas em termos de prevenção especial, o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art.º 43.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, permitirá mais facilmente retomar tal processo de ressocialização, designadamente ao nível laboral, se entretanto o arguido conseguiu arranjar trabalho e permitirá, por outro lado, que o arguido possa continuar a prestar apoio à sua namorada na situação de doença que a mesma atravessa, acautelando também as demais finalidades da punição.

–O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, que é de dois anos, sem prejuízo de, desde já, se autorizar a sua ausência para o exercício da atividade profissional, apenas durante o horário laboral e o tempo necessário à sua deslocação para o trabalho e para acompanhar a namorada aos tratamentos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção no Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.–No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal singular supra identificado, foi proferida sentença, a 8 de Novembro de 2021, mediante a qual foi o arguido JB condenado pela prática de um crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 223°, n.ºs 1 e 2, 22.º, 23º e 73.º, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão efetiva.

2.–O arguido interpôs recurso dessa decisão nos termos constantes da motivação de fls. 329 a 339, da qual extrai as seguintes conclusões (transcrição):

a)-O recorrente JB apenas discorda da decisão condenatória, proferida pela douta sentença na parte em que o Tribunal “ a quo”, aplicou uma pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, e não inferior a 2 (dois) anos, por um lado, e a não suspendeu, na sua execução, por igual período.
b)-Com efeito, em autoria material e na forma tentada, de um crime de extorsão, previsto e punido pelos artigos 223.º, n.º1e 2, 23.º,n.º 2 e 73.º, n.º1, als. a)e b),todos do Código Penal, numa pena de prisão de 1 (um) mês a 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do supracitado crime de extorsão, na forma tentada, correspondente à pena aplicada ao crime consumado, especialmente atenuada;
c)-O recorrente confessou a veracidade e autoria dos factos da acusação;
d)-Pese embora serem elevadas exigências em sede de prevenção geral, as necessidades de prevenção especial não são elevadas, atento o hiato temporal entre os factos pelos quais já havia sido condenado e os factos a que reportam os presentes autos, por um lado, e o facto de, como resulta da atéria de facto provada, ter
cumprido todas as obrigações determinadas judicialmente no âmbito da Liberdade Condicional,
e)-E, ainda, em virtude do facto porque veio condenado nestes autos ter ocorrido cerca de dois anos após a reclusão;
f)-Ademais, são medianas a ilicitude da conduta do recorrente, atento o meio empregue e o resultado alcançado, resultando igualmente da matéria provada que aquele “reconhece a ilicitude da natureza dos factos, em relação aos quais apresenta crítica
e censura”;
g)-Acresce que, conforme resulta igualmente da matéria de facto julgada provado, o recorrente encontrava-se, à data dos factos subjacentes aos autos, inserido em termos sociais e enquadrado em termos familiares e profissionais,
h)-Situação que subsiste, pois, como consta igualmente da matéria de facto julgada provada, “integra um agregado cuja situação económica é estável, contribuindo todos os elementos para assegurar as condições de subsistência, que decorrem dos rendimentos das atividades indiferenciadas, nomeadamente na venda ambulante, na restauração, como segurança e funcionário na Câmara;” e está formalmente desempregado e a beneficiar de subsídio de desemprego, mas ajuda a mãe na venda ambulante de produtos hortícolas e vai desenvolvendo trabalhos na construção civil e na recolha e venda de ferro-velho, contribuindo para a economia do agregado;
i)-Não obstante tal facto, vertido ao nível de factualidade julgada provada, o tribunal a quo, em cristalina contradição, conclui, em sede da análise das exigências da prevenção especial, que “portanto, não é pessoa socialmente inserida”, e, mais adiante, que“depõem contra o arguido os seus antecedentes criminais e a sua falta de inserção social”;
j)-Ora, se se pode afirmar, com razão, que depõem contra o arguido os seus antecedentes criminais, já não assiste razão quanto a sua falta de inserção social, não só mais também quando a decisão recorrida julgou provado que o mesmo encontra-se familiar e socialmente integrado;
k)-Assim, e ao não tomar efectivamente em consideração os factos supra referidos e dados como provados nos autos, ou até ao decidir em manifesta contradição àqueles, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 71.º, do CP relativamente à determinação da medida da pena que lhe foi aplicada, de dois anos e dois meses, ao invés da pena de não superior a dois anos;
l)-Ora, detendo uma imagem positiva junto da vizinhança, não sendo referidas situações desadequadas, com exceção da julgada nos presentes autos;
m)-Apesar de formalmente desempregado, ajuda a mãe na venda ambulante de produtos hortícolas e vai desenvolvendo trabalhos na construção civil e na recolha e venda de ferro-velho;
n)-Encontra-se em procura activa de emprego, com auxílio de entidades oficiais, participando não só mas também em concursos públicos, tendo sido, inclusive, notificado, por ofício datado de 3 dias anterior ao da prolação da sentença, notificado no âmbito de um procedimento concursal organizado pelo município de Oeiras;
o)- O recorrente mantém uma relação de namoro com MS desde 2018, com quem vivia e com quem voltou a viver após o falecimento do pai desta, sendo, a vários títulos, um referencial de apoio e auxílio daquela, que sofre de doença oncológica e para quem o suporte do recorrente é fundamental;
p)-O recorrente apoia a mãe, pois, apesar de formalmente desempregado, encontra-se em busca activa de enquadramento profissional estável e regular, inclusive com apoio entidades oficiais;
q)-Ademais, o recorrente auxilia a sua mãe, efectua trabalhos para os quais é chamado,
r)-O recorrente já cumpriu pena de prisão efectiva mas não pela prática de crime de extorsão.
s)-O recorrente merece, no nosso modesto entender, ainda, uma oportunidade de vida de modo a adequar todo o seu comportamento com o cumprimento dos seus deveres perante a lei como um cidadão responsável que pretende ser.
t)-O recorrente mantém há já dois anos uma relação de namoro com MS, cujo pai faleceu recentemente de doença oncológica, sendo aquela igualmente uma doente oncológica e que tem no recorrente um referencial, a vários níveis, de e para estabilidade, auxílio e suporte, inclusive nas frequentes deslocações às consultas e aos exames médicos;
u)-Facto que, de per si, demonstra a firma e efectiva vontade de que o recorrente não apenas pretende como também está realmente a mudar de vida, a auxiliar, trabalhar e proporcionar estabilidade familiar e melhores boas condições de vida.
v)-No presente caso, entendemos ser ajustado e adequado dar uma última oportunidade ao recorrente oportunidade de se consciencializar e arrepiar caminho longe de condutas como aquela que espelha os autos.
w)-Neste entendimento, deve ainda ser revogada a decisão recorrida na parte em que aplicou ao recorrente uma pena de prisão não inferior a 2 (dois) anos, e, condenando o recorrente numa pena de prisão inferior a dois anos, porquanto ainda conforme com disposto no artigo 71.º do CP, respeitante aos critério da determinação da medida concreta da pena, todavia executada no regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 44.º, n.º 2, al. c) do CP, isto é, em virtude da circunstância de natureza familiar do recorrente, nomeadamente a doença oncológica da companheira, com quem vive em condições análogas às de cônjuge, e para qual o recorrente já havia dado o seu consentimento aquando das declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento,
x)-Ou, caso assim não entenda este Venerando Tribunal, ser então revogada a sentença recorrida na parte em que não suspendeu a execução da pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, aplicada ao arguido ora recorrente, por igual período de tempo, nos termos do artigo 50.º, n.º1 do CP.
y)-No caso, a suspensão da execução da pena de prisão enquanto pena, ainda que substitutiva, mostrar-se-á mais de acordo com as finalidades da punição previstas no artigo 40.º CP, pelo que a sua não aplicação, pelo tribunal a quo, é violadora quer daquelas finalidades referidas naquele artigo quer do previsto no artigo 50.º, n.º 1 do CP;
z)-Por conseguinte, a sentença recorrida violou as normas dos artigos 223.º, n.º 1 e 2, 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, als. a) e b), 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, todos do CP.

Termina pedindo que seja:

a)-Aplicada uma pena de prisão não superior a 2 (dois) anos, suspensa na sua execução por igual período, 50.º, n.º1 do CP;
ou
b)-Aplicada uma pena de prisão não superior a 2 (dois) anos, substituída pelo regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 44.º, n.º 2, al. c) do CP,
ou ainda
c)-Seja suspensa na sua execução por igual período, nos termos do artigo 50.º, n.º1, do CP, a pena de prisão de 2 (dois) anos, e 2 (dois) meses aplicada pelo tribunal a quo.

3.–Uma vez admitido o recurso, o Ministério Público respondeu ao mesmo, nos termos constantes de fls. 344 a 355, pedindo a sua improcedência, para o que apresenta as seguintes conclusões: (transcrição)

1.-Os documentos juntos com a motivação do recurso são extemporâneos, pois foram juntos após o encerramento da audiência de julgamento. Por outro lado, os recursos destinam-se exclusivamente ao reexame das questões decididas na decisão recorrida e não a apreciar questões novas, razão, pela qual, deve, a sua junção, ser indeferida, por ser vedado o seu conhecimento pelo tribunal de recurso.
2.-O arguido, JB, interpôs recurso da sentença que o condenou, pela prática, como autor material, de 1 (um) crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 223°, n.°s 1 e 2, 22.° e 23.°, todos do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão efectiva.
3.-É entendimento do Recorrente que o arguido deveria ser condenado numa pena inferior a 2 anos, de acordo com o disposto no artigo 71.° do Código Penal, e suspensa na sua execução, por entender que deste modo se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a protecção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do agente na sociedade.
4.-A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido - cfr. art. 71°, n° 1 do Código Penal. São considerações de prevenção especial - de ressocialização e integração do agente -, que dentro daqueles limites e, num último momento, acabam por determinar a pena concreta a aplicar.
5.-No caso em apreço, são muito elevadas as exigências de prevenção geral, na medida em que, a conduta do arguido é merecedora de um intenso juízo de censurabilidade, pois atitudes agressivas e violentas que atemorizam e geram medo e receio nos visados são repudiadas pela sociedade.
6.-Ademais, o arguido foi motivado por um intuito de pressionar a sua ex-namorada, pelo medo e receio, a efectuar o pagamento de uma quantia monetária, quando, à data dos factos, o arguido exercia actividade remunerada e, portanto, torna-se difícil entender as razões que o levaram à prática de tais factos.
7.-Já as exigências de prevenção especial são elevadíssimas, porquanto o arguido agiu com dolo directo e tem antecedentes criminais pela prática de diversos crimes distintos, violentos e graves, encontrando-se em liberdade, há pouco mais de 2 anos, quando cometeu o crime pelo qual foi condenado nos presentes autos.
8.-De acordo com o acervo fáctico provado, a decisão recorrida, quanto à medida da pena, não merece qualquer reparo e mostra-se adequada às finalidades de prevenção e de reintegração do agente pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido-recorrente na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, nos termos melhor explicitados na sentença condenatória.
9.-Dadas as demais circunstâncias acima enunciadas, situar tal pena em medida inferior colocaria em causa as elevadíssimas exigências de prevenção que se fazem sentir no caso concreto.
10.-Com efeito, pese embora o arguido se encontre inserido familiarmente, não exerce uma actividade profissional, o registo criminal do arguido demonstra que este apresenta duas condenações, pela prática de 8 crimes violentos e graves, pelos quais cumpriu pena de prisão efectiva de longa duração.
11.-Todas as circunstâncias relevantes para a avaliação da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, elencadas no artigo 50.° do Código Penal, são absolutamente desfavoráveis a tal opção e nenhuma permite formular um juízo de prognose favorável.
12.-Quanto à personalidade do arguido há que atender, designadamente, ao desvio de carácter patente no teor do seu registo criminal. No que respeita às condições de vida não exerce uma actividade profissional e no que concerne à conduta anterior e posterior ao facto revela ter crescente dificuldade em manter uma conduta fiel ao direito e consentânea com as regras sociais.
13.-O juízo de prognose exige a valoração conjunta de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.
14.-O arguido praticou os factos em causa pouco mais de 2 anos após a sua libertação, do cumprimento de uma pena de 9 anos de prisão, o que deixa claro que o mesmo não se deixa intimidar com penas de substituição que agora pretende beneficiar.
15.-Conclui-se, pois, que o Tribunal a quo fez uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto em apreciação, nomeadamente as dos citados artigos 50.° e 71.°, do Código Penal, não merecendo qualquer censura a douta sentença sob apreciação.

4.–Uma vez remetido o processo a este tribunal, o Ministério Público, no âmbito da vista prevista no artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.), pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, ao que o recorrente respondeu reiterando os argumentos já apresentados na sua motivação.

5.–Procedeu-se a exame preliminar, após o que foram os autos aos vistos e, de seguida, à conferência, a fim de o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419.º, n.º 2, al. c) do C.P.P., cumprindo agora decidir.

II–Fundamentação

1.–Do objecto do recurso
É pacífico o entendimento de que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que, nos termos do art.º 412º do CPP, delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Das conclusões apresentadas resulta que o recorrente questiona a medida da pena aplicada e a sua execução.

2.–Apreciação

Questão prévia

Com a sua motivação o recorrente juntou dois documentos, um dos quais  respeitante a um procedimento concursal para a Câmara de Oeiras e outro referente a um relatório médico quanto ao estado de saúde da sua actual companheira.
É de há muito pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que os recursos estão configurados no nosso sistema processual penal como remédios jurídicos, visando apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido.
O objecto do recurso é a decisão proferida, pelo que, para apreciar se esta foi justa ou injusta, não interessa senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía.
Deste modo, não é possível juntar nas motivações de recurso ordinário novos elementos de prova que não tiverem sido considerados na decisão recorrida (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª edição, Vol. III. pág. 315).
Como se diz no Acórdão do S.T.J., de 12/10/2011, proferido no processo 484/02.2TATMR.C2.S1 (in www.dgsi.pt):
“Após o encerramento do contraditório e a subsequente prolação da sentença, com a fixação da matéria de facto, torna-se inútil e despropositada a apresentação de prova de qualquer natureza, incluindo a documental, tanto mais que nos raros casos em que a lei admite a renovação da prova – artigo 430.º –, como o próprio instituto sugere, o tribunal de recurso limita-se a reanalisar os meios de prova (já) apresentados e produzidos, ou seja, não podem ser requeridos, nem ordenados oficiosamente novos meios de prova, isto é, meios de prova distintos dos apresentados e produzidos na 1ª instância.”

Se a Relação atendesse aos documentos agora juntos e aos factos novos agora invocados, não formularia um juízo sobre a justeza da decisão recorrida, reportada ao tempo em que foi proferida e considerando os elementos então ao dispor do tribunal a quo, mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão.

Por conseguinte, não poderão ser atendidos os documentos juntos pelo recorrente nem considerados os novos factos por ele invocados, havendo que apreciar a sua pretensão face ao direito aplicável ao caso e tendo em conta os elementos existentes nos autos aquando da prolação da sentença recorrida e a que o tribunal recorrido teve acesso e examinou. De todo o modo, a situação de doença da namorada do recorrente, agora invocada, já é assinalada nos factos dados como provados pelo tribunal recorrido.

Feita esta limitação importa então debruçarmo-nos sobre a questão suscitada pelo recorrente.

Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1 do artigo 410.º do mesmo diploma).

Por isso, poderia o recorrente, se considerasse ter existido qualquer erro na apreciação da matéria de facto, impugnar esse segmento da decisão.

Não tendo o recorrente impugnado a matéria de facto, nem se vislumbrando no texto da decisão recorrida qualquer um dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, cujo conhecimento é oficioso, tem-se por definitivamente assente a mesma, havendo que apreciar a sua pretensão, com base nos factos que o tribunal considerou como provados e que são os seguintes: (transcrição da sentença)

1.–JB e a ofendida mantiveram uma relação amorosa até Maio de 2018.
2.–No dia 14/05/2019, entre as 11.00h e as 11.30h, a ofendida perdeu o seu telemóvel no autocarro, através do qual era possível aceder a fotografias e vídeos de cariz sexual entre esta e o seu ex-namorado.
3.–Em Outubro de 2019, JB teve conhecimento desse facto e elaborou um plano para determinar a ofendida a entregar-lhe dinheiro mediante o anúncio de divulgação nas redes sociais do vídeo sexual no qual participava e que estava no telemóvel perdido.
4.–Para tal, em data não concretamente apurada, comprou cartões de telemóvel pré-pagos e pediu ao amigo BM que lhe indicasse o número da sua conta com a intenção de receber através daquela conta as transferências monetárias.
5.–Assim, entre os dias 22/10/2019 e 01/11/2019, JB, através dos telemóveis n.°s 926...... e 920...... remeteu para o telemóvel n.° 962...... pertencente à ofendida as seguintes mensagens (SMS):
- No dia 22/10/2019, pelas 21.39h: “Não sei como te chamas perdeste um móvel não foi, pois fiquei com o móvel i eu comprei, visto k reparei que continha contiudos impropias, o vídeo i mais algumas coisas. Contem um vídeo seu"
- No dia 22/10/2019, pelas 21.54h: “Tenho um vídeo tua a foderes”
- No dia 22/10/2019, pelas 23.21h: “N tou interessado n telemóvel pk tenho o vídeo n ficheiro e uma questão de negociar.”
- No dia 22/10/2019, pelas 23.33h: “Vou te dar um prazo de dez dias ok”
- No dia 22/10/2019, pelas 23.36h: “Combinamos i vc deixa num sitio aí".
- No dia 22/10/2019, pelas 23.42h: “Vc sabe k transou i tenho o vídeo ou então n temos negocio e como eu quero”
- No dia 22/10/2019, pelas 23.43h: “Dou para vc a minha palavra k o assunto morre a partir k vc me pagar”.
- No dia 22/10/2019, pelas 23.55h: “Xau pra vc n temos negocio o vídeo vai ser exposto.” 
- No dia 22/10/2019, pelas 23.58h: “Ate dia um vc arranja duzentos euros o digo pra vc ir meter no local combinado, ou se não ardeu.”
- No dia 23/10/2019, pelas 14.06h: “Vc mama bem nesse vídeo, vc tem que me dar trezentos euros ou então o vídeo vai a nete, tamos entendidos, tou aguardando vc me diga alguma coisa i nem tente dizer pra alguém ok.”
- No dia 23/10/2019, pelas 16.56h: “ Tenho o seu telefone i tou procurando mais coisas sobre vc, teu facebook”
- No dia 23/10/2019, pelas 17.17h: “Já encontrei vc”
- No dia 23/10/2019, pelas 17.20h: “TC já encontrei vc i agora o que vou fazer com o vídeo alias vc”
- No dia 24/10/2019, pelas 11.30h: “N vídeo ta vem feito vc fode, quero o dinheiro em troca”
- No dia 25/10/2019, pelas 23.11h: “vc vai levar n u digo pra vc aonde deixar o dinheiro k a pessoa pegar, vc vai fazer o seguinte esta quinta feira k vem vc vai me deixar duzentos euros tamos entendidos quanto mais tempo demorar sera a dobrar, i pior pra vc e que tenho o seu facebook i tens amigos i irmãos, posso mandar o vídeo um po”
- No dia 28/10/2019, pelas 08.20h: “vc ai sua cadela vc vai me dar os duzentos euros hoje sem falta assim k vc sair, se não vou na tua zona de talaide i mostro o vídeo”
- No dia 28/10/2019, pelas 23.35h: “vc ta trabalhando uma porra, já sei td sobre vc, vc pensa que sou otario já sei a sua rotina vi o contacto das pessoas no seu telemóvel, sei que vc trabalha n pingo doce vc ta nas minhas mãos se vc n me pagar”
- No dia 29/10/2019, pelas 18.31h: “nib 0035 0549 0006 9629 80042 vc manda pra nib ok i assunto encerrado...”
- No dia 31/10/2019, pelas 19.10h: “vc me transfere 150 euros hoje vc vai fazer sem falta”
- No dia 01/11/2019, pelas 11.12h: “Se vc n pagar hoje vou meter o seu nr no chat do convívio e o vídeo para as pessoas verem.”
- No dia 01/11/2019, pelas 22.20h: “tenho o vídeo de vc guardado vou passar para pen caso vc mudar de ideias de não reaver o meu dinheiro vc ta jogando sujo cmg se me der na cabeca desgraço a sua vida neste instante espera para ver.”

6.–JB sabia que ao ameaçar divulgar o vídeo de cariz sexual atentatório da sua imagem social constrangia a ofendida na sua liberdade de determinação, na sua vida privada e obrigava-a a entregar-lhe quantias monetárias.
7.–Contudo, a ofendida não realizou qualquer pagamento ao arguido e apresentou queixa na P.S.P..
8.–JB sabia que ao enviar mensagens anónimas obstava à sua identificação pela ofendida.
9.–Agiu de forma livre e com o propósito de, utilizando um plano previamente traçado, determinar a ofendida a entregar-lhe diversas quantias em dinheiro, querendo causar-lhe prejuízo patrimonial, o que representou, apenas não logrando tal intento pela resistência da ofendida.
10.–Ao enviar tais mensagens escritas, agiu ainda com o propósito de produzir receio, medo e inquietação à ofendida, resultado esse que representou.
11.–JB agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

12.–O arguido
a.-mantinha-se na data da prática dos factos inserido em termos sociais e enquadrado em termos familiares e profissionais;
b.-residia na morada dos autos e integrava o agregado de origem, junto da mãe e de três irmãos, desempenhando atividade laboral como ajudante de jardinagem com vínculo contratual;
c.-mantinha um relacionamento afetivo estável, iniciado em janeiro/2018, que perdura no presente, e rotinas estruturadas assentes no exercício de funções profissionais e convívio com familiares e com amigos referidos como pró- sociais;
d.-cumpriu as obrigações determinadas judicialmente no âmbito da Liberdade Condicional, nomeadamente a comparência regular nas entrevistas de acompanhamento na equipa de reinserção social e o acompanhamento psicológico;
e.-tendo ascendência cabo-verdiana e tendo nascido em Portugal, é o primeiro de uma fratria de seis, decorrendo o seu processo de desenvolvimento num contexto familiar com valores socialmente aceites e coeso afetivamente, embora de condição financeira desfavorável;
f.- viveu durante vários anos numa barraca no bairro da P..... dos H....., em A_____, zona caracterizada por um ambiente de pobreza e de marginalidade, sendo realojados em 1999 na morada atual;
g.-teve um percurso escolar com algumas retenções devido à falta de motivação e dificuldades de aprendizagem, concluindo com aproveitamento um curso profissional de serralharia na Casa Pia de Lisboa que lhe conferiu equivalência ao 9° ano de escolaridade, contava cerca de dezoito anos;
h.-foi profissionalmente desenvolvendo atividades indiferenciadas nas áreas da construção civil como servente de pedreiro e na jardinagem de acordo com a disponibilidade de oferta, embora por vezes com alguma precariedade, registando algumas dificuldades em termos económicos que motivou o apoio dos serviços sociais;
i.-iniciou uma relação de namoro na adolescência com uma jovem do mesmo meio comunitário, que viria, entretanto, a terminar, tendo uma filha, atualmente com 12 anos, que se
j.-encontra à guarda da avó materna no Luxemburgo;
k.-sente-se pesaroso por estar privado do convívio com a descendente, o que contraria a determinação judicial relativa às responsabilidades parentais, estando a encetar diligências no sentido de inverter esta situação.
l.-passou pelo falecimento do pai no decurso do cumprimento da referida pena;
m.-tem fragilidades emocionais e psicológicas que parecem ter condicionado a organização das suas vivências internas e provocado a tendência para agir impulsivamente perante situações sentidas como frustrantes ou stressantes, tendo no passado tentado o suicídio.
n.-frequentou na prisão o programa para Agressores Sexuais e em liberdade beneficiou de um acompanhamento psicológico na Associação Portuguesa de Solidariedade e Desenvolvimento;
o.-iniciou uma relação de namoro após o seu regresso à liberdade, que se mantém até ao presente, constituindo-se num presente um apoio significativo à namorada, que se encontra em tratamento médico devido a doença oncológica;
p.-viveu na habitação da namorada no Barreiro durante algum tempo e posteriormente no seu agregado de origem na morada dos autos, tendo a namorada, entretanto regressado à sua morada para acompanhar o seu pai, também doente oncológico;
q.-veio posteriormente a residir na morada dos autos no agregado composto pela mãe, por três irmãos e por dois sobrinhos, num contexto familiar adequado e de proximidade afetiva, sendo o arguido descrito positivamente pelos familiares, sem registo de qualquer incidente no agregado;
r.-tem mais dois irmãos autonomizados e inseridos, uma delas emigrada em Londres;
s.-detém uma imagem positiva junto da vizinhança, não sendo referidas situações desadequadas, com exceção da alegadamente ocorrida com a vítima nos autos, sua vizinha;
t.-integra um agregado cuja situação económica é estável, contribuindo todos os elementos para assegurar as condições de subsistência, que decorrem dos rendimentos das atividades indiferenciadas, nomeadamente na venda ambulante, na restauração, como segurança e funcionário na Câmara;
u.-está formalmente desempregado e a beneficiar de subsídio de desemprego, mas ajuda a mãe na venda ambulante de produtos hortícolas e vai desenvolvendo trabalhos na construção civil e na recolha e venda de ferro-velho, contribuindo para a economia do agregado;
v.- esteve a desenvolver funções na área da jardinagem na empresa “FS, S.A” como ajudante de jardineiro, com vínculo contratual, a partir de maio/2017, que não viria a ser renovado encontrando-se desempregado há cerca de dois anos;
w.-encontra-se inscrito no Centro de Emprego de Cascais, estando agendada entrevista naqueles serviços para 13/10/2021;
x.-no âmbito da articulação desta equipa de reinserção social com a empresa de construção civil “DC …, Lda” foi também agendada uma entrevista no sentido da sua eventual reintegração laboral na área da construção civil;
y.-reconhece a ilicitude da natureza dos factos, em relação aos quais apresenta crítica e censura, receando o desfecho do mesmo;
z.-mostra-se cordato e adequado na interação, embora sobressaia algum nervosismo e pessimismo que decorre das suas fragilidades pessoais que traduzem insegurança interna e comprometida tolerância e sofrimento em situações potenciadoras de tensão e stress que pode gerar comportamentos de impulsividade;
aa.-tende a reconhecer alguma dificuldade em compreender as motivações dos seus comportamentos de desadequação;
bb.-cometeu dois crimes de roubo em 24.02.2008, pelos quais foi condenado em pena de 1 ano de prisão suspensa por igual período de tempo, por sentença proferida em 10.10.2008 nos autos 16/08.9PJOER, do 3.° Juízo Criminal de Cascais (Tribunal Colectivo), a qual transitou em julgado em 30.10.2008; tal pena foi extinta pelo cumprimento;
cc.-cometeu em 08.11.2009 dois crimes de roubo qualificado, um crime de violação e um crime de roubo e cometeu em 06.10.2008 um crime de roubo e um crime de sequestro, pelos quais foi condenado numa pena única de 9 anos de prisão, por acórdão de cúmulo superveniente de penas de prisão efectiva aplicadas nos autos P.° 137/09.0PJAMD e 1460/08.7JDLSB, que foi proferido em 10.07.2012 nos autos 1460/08.7JDLSB, do 3.° Juízo Criminal de Oeiras (Tribunal Colectivo), o qual transitou em julgado em 14.01.2013;
dd.-foi libertado condicionalmente em 10.03.2017 e definitivamente em 10.09.2018.

Com base nestes factos, o tribunal recorrido condenou o recorrente na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 223.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.º2 e 73.º n.º1 alíneas a) e b), todos do Código Penal, tendo para o efeito considerado: (transcrição da sentença)
«i.-as necessidades de prevenção geral a satisfazer com a sua punição, visando o reforço da consciência jurídica comunitária na validade e efetividade das normas jurídicas violadas, são muito elevadas, considerando a gravidade do crime de extorsão;
ii.-as necessidades de prevenção especial a satisfazer com a sua punição, visando a ressocialização, são muito elevadas, considerando que conta com vasto rol de antecedentes criminais pela prática de crimes graves e violentos (violação, sequestro, roubos, simples e qualificados) e, portanto, não é pessoa socialmente inserida, pois vem cometendo crimes mesmo depois do cumprimento de penas de prisão, suspensa e efectiva .
iii.-a sua culpa é intensa, atendendo a que agiu com dolo direto;
iv.-a ilicitude da sua conduta é, atento o desvalor da ação e do resultado, mediana, considerando o modo de actuação;
v.-depõem contra o arguido os seus antecedentes criminais e a sua falta de inserção social.»
O recorrente alega, no essencial, que a pena é excessiva e que deverá ser inferior a dois anos de prisão e ser suspensa na sua execução ou executada em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 44.º n.º2, alínea c) do Código Penal, ou, a manter-se a pena aplicada, deverá ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal. Invoca a seu favor: a confissão que fez dos factos, não serem elevadas as exigências de prevenção especial, atento o hiato temporal entre estes factos e aqueles pelos quais já foi condenado e cumpriu pena de prisão, ser mediana a ilicitude dos factos atento o meio empregue e o seu resultado, existir uma postura crítica do recorrente quanto aos factos e a circunstância de o mesmo se encontrar inserido em termos familiares e profissionais e de necessitar de dar apoio à sua namorada, que sofre doença de foro oncológico.

Vejamos:

Está em causa a prática de um crime tentado cuja moldura penal aplicável é, por força do artigo 73.º e 223.º, n.º 2 do Código Penal, de um mês a três anos e quatro meses de prisão.
Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena é feita, dentro da moldura legal, «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Como é sabido, as finalidades das penas são, nos termos do artigo 40º, nº1 do Código Penal, “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Na protecção de bens jurídicos vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem os bens e valores sociais pela prática de um crime, ou seja, de prevenção geral e, também, de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes, ou seja uma finalidade de prevenção especial.
A culpa, pressuposto sem o qual não é possível a punição, assenta na consciencialização por parte do agente de que a sua conduta é contrária à lei e, como tal, ilícita, e na não determinação consciente do agente de acordo com a ordem social, tendo ele liberdade para o fazer.
Nas palavras do acórdão do STJ de 20/02/2008 (proferido no Proc.4724/07, acessível em http://www.dgsi.pt/jstj) «a medida da prevenção (protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção – e reforço – da validade da norma violada), que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal) o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresente, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa».

Na determinação da medida concreta da pena manda o n.º 2 do referido artigo 71.º  que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente as aí elencadas.
O dolo com que o arguido actuou é intenso, porque directo e persistente durante vários dias, o grau de ilicitude dos factos não é acentuado em termos de resultado mas é-o em termos de desvalor da acção na medida em que atentou contra a dignidade da ofendida, pessoa com a qual o arguido tinha tido um relacionamento no âmbito do qual, num espírito de confiança gravaram o que quiseram, como adultos, que ele trai de forma ostensiva só por dinheiro, como se fosse dono daquela e da sua dignidade e a culpa do arguido é acentuada, tendo em conta o facto de o mesmo já ter estado preso e por isso bem saber da censurabilidade do seu comportamento e lhe ser exigível uma outra determinação e os sentimentos por ele revelados com a prática do crime, de desprezo pela ofendida, a acentuar uma deformação ao nível da sua personalidade. São também intensas as exigências de prevenção especial, tendo em conta os antecedentes criminais do arguido.
Na ponderação do binómio culpa do agente, que é o limite abaixo do qual a pena não pode descer, e das exigências de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor, ponderados os demais factores de determinação da medida da pena e tendo presente a moldura penal aplicável consideramos um pouco excessiva a  pena aplicada pelo tribunal recorrido que se fixa agora em dois anos de prisão.
A pena aplicada, porque inferior a cinco anos de prisão, admite a suspensão da sua execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal ou a sua execução em regime de permanência na habitação com fiscalização por meio de controlo à distância, nos termos do artigo 43.º do Código Penal.
O Tribunal recorrido entendeu «não estarem no caso reunidas as condições necessárias para suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido por se entender, mediante um juízo de prognose desfavorável, que a vida sob ameaça do cumprimento de prisão não será suficiente para que o mesmo não cometa outros crimes. Com efeito, o arguido só não comete crimes quando está preso, tanto assim que cometeu o crime sob apreço, o qual é grave e muito censurável, menos de um ano decorrido desde a sua libertação definitiva e menos de dois anos decorridos desde a sua libertação condicional do cumprimento de uma pena de 9 anos de prisão.
Destarte, toda e qualquer pena não privativa da liberdade não satisfaria as elevadíssimas necessidades de prevenção geral e especial que são visadas pela punição do arguido, sendo necessário, adequado e proporcional aplicar-lhe pena de prisão efetiva».

Vejamos:
Determina o artigo 50º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial.

Essa adequação pressupõe um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, em função da sua personalidade, das circunstâncias do crime, das condições da sua vida e da sua conduta anterior e posterior ao facto, de que o mesmo sentirá a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir.

Na formulação desse prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto” e por isso podem ser tidas em conta circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração em sede de medida da pena” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518 p. 343).

Em todo o caso, essas circunstâncias posteriores ao facto estão balizadas pela realização do julgamento em primeira instância - se não existiam à data do julgamento, não podem ser tidas em conta em sede de recurso.

A finalidade politico-criminal da suspensão da execução da pena de prisão é, citando Figueiredo Dias “o afastamento do delinquente, no futuro, da pratica de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo... decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência» (Ob. citada, 1993, § 519 p. 343).

O mesmo autor considera que a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão embora o prognóstico favorável esteja nesses casos dificultado e exija uma particular fundamentação (Ob. citada p. 344).

Importa, contudo, não perder de vista que a finalidade primordial das penas é a de protecção dos bens jurídicos e que do juízo de prognose favorável resulte que ficará acautelada essa finalidade. Citando o acórdão do STJ de 27/11/08 (Proc. 1773/08, relatado pelo Cons. Souto de Moura, acessível em www.dgsi.pt), importa assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado; por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal”.
Em caso algum, porém, se deve afastar a suspensão da execução da pena com base em considerações assentes na culpa grave do arguido e a mesma não deve ser decretada quando houver razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade.

No caso dos autos, não obstante estar verificado o pressuposto formal da suspensão da execução (em função da medida da pena), a dúvida coloca-se quanto à verificação do respectivo pressuposto material.

No plano das exigências de prevenção especial, assume especial relevo o passado criminal do arguido, que foi já condenado em 2008, por dois crimes de roubo numa pena suspensa que foi declarada extinta pelo cumprimento, e em 2009 por vários crimes, numa pena de 9 anos de prisão, que cumpriu até 10.03.2017, data em que beneficiou de liberdade condicional, pena que foi declarada extinta em 10.09.2018.

Não obstante ter cumprido uma pena longa de prisão por crimes graves e de ter frequentado na prisão o programa para Agressores Sexuais e em liberdade ter beneficiado de um acompanhamento psicológico na Associação Portuguesa de Solidariedade e Desenvolvimento, veio o arguido a praticar, decorrido apenas um ano da concessão da liberdade definitiva, o crime dos autos, com contornos que revelam a falta de interiorização pelo arguido dos valores que deveria ter aprendido naquela formação, designadamente o respeito pela dignidade da ex-companheira.

O que associado à personalidade do arguido, com “fragilidades pessoais que traduzem insegurança interna e comprometida tolerância e sofrimento em situações potenciadoras de tensão e stress que pode gerar comportamentos de impulsividade” não permite, sem riscos elevados, um prognóstico favorável, de que o arguido não voltará a cometer a crimes, se continuar em liberdade. Nem seria um sinal positivo, tendo em conta o passado criminal do arguido, para o restabelecimento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens jurídicos violados e da confiança na Justiça.

Entendemos por isso não ser possível a suspensão da pena.

Os factos provados respeitantes às condições de vida do arguido revelam que, quando da prática dos factos, o mesmo “estava inserido em termos sociais e enquadrado em termos familiares e profissionais, integrando o seu agregado de origem” (mãe e três irmãos) e “desempenhando atividade laboral como ajudante de jardinagem com vínculo contratual, mantendo um relacionamento afetivo estável, iniciado em janeiro/2018, que se mantém até ao presente, constituindo-se no presente um apoio significativo à namorada, que se encontra em tratamento médico devido a doença oncológica”. Entretanto, ficou o mesmo desempregado e a beneficiar de subsídio de desemprego, mas ajuda a mãe na venda ambulante de produtos hortícolas e vai desenvolvendo trabalhos na construção civil e na recolha e venda de ferro-velho, contribuindo para a economia do agregado”, “encontra-se inscrito no Centro de Emprego de Cascais, estando agendada entrevista naqueles serviços para 13/10/2021” e no âmbito da articulação da equipa de reinserção social com a empresa de construção civil “DCHJ - Construções, Lda.” foi também agendada uma entrevista no sentido da sua eventual reintegração laboral na área da construção civil”.

Constituindo o crime em causa nos autos, um desvio a tal processo ressocialização, a exigir cautelas acrescidas em termos de prevenção especial, entendemos, contudo, que o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art.º 43.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, permitirá mais facilmente retomar tal processo de ressocialização, designadamente ao nível laboral, se entretanto o arguido conseguiu arranjar trabalho através daquela entrevista ou do Centro de Emprego, e permitirá, por outro lado, que o arguido possa continuar a prestar apoio à sua namorada na situação de doença que a mesma atravessa, acautelando também as demais finalidades da punição.

O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, que é de dois anos, sem prejuízo de, desde já, se autorizar a sua ausência para o exercício da atividade profissional, apenas durante o horário laboral e o tempo necessário à sua deslocação para o trabalho e para acompanhar a namorada aos tratamentos.
Termos em que o recurso interposto pelo arguido merece provimento.

III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em, no provimento do recurso interposto pelo arguido, alterar a pena em que o mesmo foi condenado pela 1ª instância, pela prática de um crime de extorsão na forma tentada, p. e p. pelos artigos 223.º, n.ºs 1 e 2, 23.º e 73.º do Código Penal e, em consequência, condenar o arguido na pena de 2 (dois) anos de prisão, em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, podendo sair para acompanhar a namorada aos tratamentos e para trabalhar.
Sem custas.



Lisboa, 22 de Março de 2022


(Texto processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2 do C.P.P.)



(Maria José Costa Machado)
(Paulo Duarte Barreto Ferreira)