I. Nas comunicações com os tribunais, nomeadamente para envio de peças processuais, os intervenientes processuais, representados por advogado ou solicitador, podem utilizar o correio eletrónico, equivalendo essa comunicação à remessa por via postal registada, desde que a respetiva mensagem seja cronologicamente validada, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.
II. A apresentação de peças processuais por correio eletrónico simples ou sem validação cronológica pode também ser efetuada, mas nesse caso é aplicável o regime estabelecido para o envio através de telecópia, devendo apresentar-se os originais do remetido na secretaria judicial no prazo de 10 dias contado do envio por telecópia.
III. A falta de entrega dos originais do referido prazo constituiu omissão de uma formalidade, a qual, não poderá, só por si, impossibilitar o aproveitamento do ato praticado, pois tal preclusão, a mais de desproporcionada, contrariaria o princípio do processo equitativo.
IV. Considerando-se necessária a confirmação da autenticidade de tal envio, deverá convidar-se o requerente a, dentro de certo prazo, confirmá-lo e entregar na secretaria as peças remetidas.
I – RELATÓRIO 1. Nos presentes autos o arguido FA foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b) e § 2.º, al. a) e § 4.º do Código Penal. Por se não conformar com a acusação contra si deduzida o arguido requereu abertura de instrução. Apresentados os autos ao M.mo Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Faro, este proferiu o seguinte despacho: «O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2014 pronunciou-se no sentido de que «em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no art. 150 n.º 1 al. d) e n.º 2 do CPC e na Portaria n.º 624/2004, de 16/6, aplicáveis por força do disposto no art. 4.º do CPP.». Por sua vez, o art. 3.º, n.º 4 da Portaria n.º 624/2004, de 16 de junho, dispõe que «O envio de peças processuais por correio eletrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do art. 6.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, bastando para tal a aposição de assinatura eletrónica avançada.» e o n.º 6 do mesmo normativo assinala que «A expedição da mensagem de correio eletrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do art. 2.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, com a redação que lhe foi dada pelo DL n.º 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.».
Em complemento, o art. 10.º da aludida portaria sustenta que à apresentação de peças processuais através de correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.
Nos termos de tudo o exposto devidamente concatenado, firma-se que o envio de peças processuais via correio eletrónico só pode suceder em conformidade com o legalmente definido, ou seja, com aposição de assinatura eletrónica do subscritor, para que se possa garantir que a mesma foi elaborada pelo próprio e que se junta por mandatário judicial seja uma garantia ao mandante, arguido em processo penal.
O art. 4.º, do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27-02, delineia que «1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respectivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exactos, salvo prova em contrário. 2 - Tratando-se de actos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 54/90, de 13 de Fevereiro. 3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.» - sublinhado nosso. Em decorrência do plasmado no art. 6.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, o prazo para entrega dos originais deve ser de 10 dias e não de 7 dias.
Sucede que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido foi enviado por correio eletrónico, sem assinatura digital ou validação cronológica, gozando do valor da telecópia, sem que tenha carreado o original aos autos no prazo legalmente concedido, de 10 dias.
Este Tribunal segue o entendimento de que em tais situações não pode ser formulado um convite para juntar os originais, sob pena de se desvirtuar um dever imposto por lei e contornar o prazo legalmente concedido para requerer a abertura de instrução.
Salvo melhor entendimento, é de considerar que este tipo de convites não se compadece com o processo penal, com a celeridade processual que se impõe e não existe qualquer razão que os sustente, gerando um desequilíbrio injustificado entre os interesses em conflito.
Neste sentido veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-04-2021, relatora Maria Fernanda Palma, disponível em www.dgsi.pt
Perante o esquadrinhado, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 3 do CPP, enquanto legalmente inadmissível, mais não resta do que rejeitar o requerimento de abertura de instrução de fls. 235, por não respeitar as exigências de forma legalmente exigidas.
Tendo o requerimento de abertura de instrução sido apresentado pelo arguido, as custas serão fixadas a final, sendo considerada, em caso de condenação, a presente rejeição, nos termos do disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à correspondente tabela III.
Notifique.»
2. Inconformado com essa decisão, dela recorreu o arguido para este Tribunal, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: «(…) IV. Nos termos da lei em vigor, é admissível a remessa de peças processuais aos tribunais em processo crime, através de correio eletrónico, ao abrigo do disposto no art.º 150.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 do CPC e na Portaria n.º 624/2004, de 16 de junho e art.º 4.º do CPP.
V. A remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, carece dos requisitos, constantes do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto e da Portaria n.º 624/2004, de 16 de junho nomeadamente:
1. Que a mensagem de correio eletrónico do remetente seja do advogado com poderes para o ato;
2. Que a mensagem de correio eletrónico do remetente contenha a aposição de assinatura eletrónica avançada;
3. Que a mensagem de correio eletrónico do remetente seja cronologicamente certificada por terceira entidade idónea;
VI. A certificação cronológica por uma entidade idoneamente certificada por terceira entidade idónea, foi fornecido até 31 de janeiro de 2021, pelos CTT através da MDDE – Marca de Dia Eletrónica, data em que cessou o serviço.
VII. Sem que fosse substituído por outro, de acordo com a comunicação remetida aos advogados, pela referida entidade.
VIII. Para dar cumprimento ao disposto na Portaria n.º 624/2004, de 16/06, no Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, nomeadamente ao artigo 2.º, alínea u), ao artigo 26.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril, com a última alteração operada pelo DL n.º 73/2014, de 13 de Maio e o artigo 61.º do CPA, que dispõe que as comunicações digitais devem revestir a mesma natureza das tradicionais comunicações em papel, os advogados passaram a pedir recibo de entrega na caixa de email do destinatário, comunicação essa efetuada entre o servidor de correio eletrónico da Ordem dos Advogados e o servidor de correio eletrónico dos Tribunais, que ao que se sabe, são entidades idóneas, a primeira integrada na administração autónoma do Estado e a última integrada na administração direta do Estado.
IX. As comunicações efetuadas por quaisquer destas autoridades têm-se por autênticas, fazendo prova plena em tribunal dos factos que transmitem, nos termos do disposto nos art.ºs 525.º do CPC e 371.º do CC.
X. O requerimento de abertura de instrução, objeto de rejeição, foi remetido, como se referiu, no dia 8 de novembro de 2021, às 12:21h, pelo mandatário do arguido para o endereço de correio eletrónico loule.ministeriopublico@tribunais.org.pt , cuja confirmação foi emitida por terceira entidade idónea, o servidor de correio eletrónico da Ordem dos Advogados.
XI. O referido email seguiu com aposição de assinatura eletrónica.
XII. O mesmo email teve validação cronológica por terceira entidade idónea, neste caso, o servidor de email da Ordem dos Advogados.
XIII. Cumprindo na integra o disposto no artigo 150.º n.º 1 d) e n.º 2 do CPC, da Portaria n.º 624/2004, de 16/06, ex vi artigo 4.º CPP e ainda do artigo 2.º u) do dec lei 290-D/99, de 2 de agosto, com redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 62/2003 de 3 de abril.
XIV. Atravessamos atualmente uma pandemia em que o novo coronavírus se transmite pelo contacto.
XV. Deve-se privilegiar a utilização dos meios eletrónicos, de modo a reduzir o número de pessoas que acedem aos mais variados serviços, sendo o correio postal um dos mais críticos, pelo elevado número de pessoas que os utilizam (utentes e funcionários) e pelo facto de ser um serviço que envolve o constante manuseamento de objetos.
Pelo exposto e pelo demais de Direito que V. Exas. não deixarão de suprir, deve dar-se provimento ao recurso e por via dele ser o douto despacho, que rejeitou a abertura de instrução por correio eletrónico, revogado e substituído por um que dê procedência à abertura de instrução.»
3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público junto do Juízo de Instrução Criminal recorrido, secundando a decisão recorrida, nos seguintes termos:
«(…) o requerimento de abertura de instrução foi remetido a juízo por correio eletrónico mas sem a aposição de qualquer assinatura eletrónica, sem validação cronológica, e ademais, sem que tenha sido carreado o original aos autos no prazo legalmente concedido, de 10 dias.
Assim, o requerimento de abertura de instrução foi rejeitado por decisão judicial, a qual, desde já, entende-se que não merece qualquer reparo, e desta forma, salvo devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente.
Assim, prescreve o art. 3.º, n.º 4 da Portaria n.º 624/2004, de 16 de junho, dispõe que “O envio de peças processuais por correio eletrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do art. 6.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, bastando para tal a aposição de assinatura eletrónica avançada.” e o n.º 6 do mesmo normativo assinala que “A expedição da mensagem de correio eletrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do art. 2.º do DL n.º 290-D/99, de 2/8, com a redação que lhe foi dada pelo DL n.º 62/2003, de 3 de Abril, mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.”
Em complemento, o art. 10.º da aludida portaria sustenta que à apresentação de peças processuais através de correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.
Assim, da leitura dos preceitos legais indicados, conclui-se que o envio de peças processuais via correio eletrónico só pode suceder em conformidade com o legalmente definido, ou seja, com aposição de assinatura eletrónica do subscritor, para que se possa garantir que a mesma foi elaborada pelo próprio e que se junta por mandatário judicial seja uma garantia ao mandante, assistente ou arguido em processo penal.
Por sua vez, o art. 4.º, do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27-02, delineia que “1 - As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respetivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exatos, salvo prova em contrário. 2 - Tratando-se de atos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 54/90, de 13 de fevereiro. 3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de sete dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.”
Ademais, decorre do art. 6.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, o prazo para entrega dos originais deve ser de 10 dias e não de 7 dias.
Sucede que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente foi enviado por correio eletrónico, sem assinatura digital ou validação cronológica, gozando do valor da telecópia, sem que tenha carreado o original aos autos no prazo legalmente concedido, de 10 dias.
Entende-se e defende-se que em tais situações não pode ser formulado um convite para juntar os originais, sob pena de se desvirtuar um dever imposto por lei e contornar o prazo legalmente concedido para requerer a abertura de instrução.
Em conclusão, o convite pela junção aos autos dos originais, não se compadece com o processo penal, com a celeridade processual que se impõe e não existe qualquer razão que os sustente.»
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância de recurso, emitiu douto parecer concordante com a decisão recorrida, citando jurisprudência de Tribunais de Relação nesse exato sentido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º do CPP, veio o recorrente manifestar a sua discordância face ao parecer emitido pelo Ministério Público, pelas razões já expendidas nas suas motivações de recurso.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Âmbito do recurso
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.º CPP) (1).
De acordo com as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a questão aportada ao conhecimento desta instância é apenas a concernente à regularidade da apresentação do requerimento de abertura de instrução.
B. Da regularidade do requerimento de abertura de instrução
Nos artigos 98.º e 111.º a 117.º o CPP referem-se vários modos e aspetos relativos à apresentação de exposições, memoriais e requerimentos pelo arguido e outros participantes processuais e à comunicação pelo tribunal de atos processuais ou convocação para eles, ali se não contendo, porém, quaisquer regras próprias sobre o modo de apresentação a juízo dos requerimentos relativos a atos processuais das partes. Matéria esta que se encontra dispersa por outros diplomas legais, cuja aplicação em processo penal só se logrará por via da remissão para o direito subsidiário para integração de lacunas (artigo 4.º CPP).
No essencial o acervo normativo extravagante contendo os princípios e as regras sobre tais aspetos é o seguinte:
O artigo 3.º, § 1.º Portaria n.º 642/2004, de 16 junho, onde se dispõe que:
«1 - O envio de peças processuais por correio eletrónico equivale à remessa por via postal registada, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 62/2003, de 3 de abril, bastando para tal a aposição de assinatura eletrónica avançada.»
O artigo 6.º, § 3.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, que reza:
«A expedição da mensagem de correio eletrónico deve ser cronologicamente validada, nos termos da al. u) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2/8 (com a redação que lhe foi dada pelo DL n.º 62/2003, de 3 de abril), mediante a aposição de selo temporal por uma terceira entidade idónea.»
Para os fins previstos nesse diploma legal, entende-se por «validação cronológica» (conforme preceitua o seu artigo 2.º, al. u):
«declaração de entidade certificadora que atesta a data e hora da criação, expedição ou receção de um documento eletrónico;
(…)»
Por sua vez no artigo 10.º da Portaria n.º 642/2004, de 16 junho, refere-se que:
«À apresentação de peças processuais por correio eletrónico simples ou sem validação cronológica é aplicável, para todos os efeitos legais, o regime estabelecido para o envio através de telecópia.»
Em matéria de envio de peças processuais por telecópia, preceitua, por sua vez, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de fevereiro (na versão do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, quanto ao prazo do § 3.º), que:
«1. As telecópias dos articulados, alegações, requerimentos e respostas, assinados pelo advogado ou solicitador, os respetivos duplicados e os demais documentos que os acompanhem, quando provenientes do aparelho com o número constante da lista oficial, presumem-se verdadeiros e exatos, salvo prova em contrário.
2 - Tratando-se de atos praticados através do serviço público de telecópia, aplica-se o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 54/90, de 13 de fevereiro.
3 - Os originais dos articulados, bem como quaisquer documentos autênticos ou autenticados apresentados pela parte, devem ser remetidos ou entregues na secretaria judicial no prazo de 10 dias contado do envio por telecópia, incorporando-se nos próprios autos.»
Este sequencial evidencia a complexidade da «navegação» por todo este acervo normativo.
A densidade dessa complexidade ressalta também do facto de ter sido necessário, em menos de década e meia, prolatar dois acórdãos uniformizadores da jurisprudência, sequentes às conaturais divergências interpretativas: O assento n.º 2/2000 fixou o seguinte: «O n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo Civil é aplicável em processo penal, por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal».
Na sequência de alterações legislativas posteriores, que adensaram a teia já exposta, o Supremo Tribunal de Justiça voltou a fixar entendimento para os tribunais judiciais, através do Acórdão n.º 3/2014, com o seguinte teor: «Em processo penal, é admissível a remessa ajuízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código de Processo Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, 27 de dezembro e na Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal».
O Código de Processo Civil vigente já não tem norma exatamente equivalente à prevista no antigo «artigo 150.º, n.º 1, alínea d)», vendo-se assim esta matéria remetida para diplomas extravagantes!
Entretanto, todos os dias dão entrada nos serviços de justiça (dos Tribunais e do Ministério Público) largos milhares de peças processuais via eletrónica, diretamente através da plataforma CITIUS ou via correio eletrónico. Complementarmente continua a ser possível a remessa via telecópia, correio ordinário e registado e em mão.
Os profissionais que interagem no sistema de justiça, sejam eles magistrados, advogados, solicitadores, agentes de execução, administradores judiciários, oficiais de justiça, etc., têm o dever de conhecer os fios desta densa teia normativa, cuja interpretação, mercê das suas constantes alterações, nem sempre se mostra fácil.
No caso presente, na sequência de notificação da acusação, o arguido, dentro do prazo previsto no artigo 287.º, § 1.º CPP, remeteu para um endereço eletrónico dos serviços do Ministério Público de Loulé, requerimento para abertura de instrução. Fê-lo através do seu mandatário judicial, todavia sem a aposição de assinatura eletrónica nem validação cronológica do respetivo ato de expedição e aposição de selo temporal por entidade terceira e idónea. E por essa razão tal requerimento veio a ser rejeitado pelo despacho recorrido, nos termos nele constantes. Nas suas alegações de recurso o arguido informa que a entidade a quem o Estado havia deferido a responsabilidade da certificação da assinatura eletrónica dos profissionais forenses e a validação cronológica das comunicações eletrónicas, cessou essas funções de certificação, pelo que «os advogados passaram a pedir recibo de entrega na caixa de email do destinatário, comunicação essa efetuada entre o servidor de correio eletrónico da Ordem dos Advogados e o servidor de correio eletrónico dos Tribunais, que ao que se sabe, são entidades idóneas, a primeira integrada na administração autónoma do Estado e a última integrada na administração direta do Estado.»
Não está naturalmente em causa a idoneidade da Ordem dos Advogados nem dos serviços de não se integrem na «administração direta do Estado» - como por lapso refere o recorrente). O que está em causa, isso sim, é a fidedignidade das comunicações entre entidades do sistema. Neste caso a fidedignidade do requerimento do arguido, remetido pelo seu mandatário por correio eletrónico, para os serviços do Ministério Público, com a finalidade de abertura da fase de instrução no processo respetivo.
O referido envio do requerimento através de correio eletrónico, contrariamente ao que sustenta o recorrente, não observou as exigências formais previstas na lei. Justamente por, nos termos em que tal envio foi efetuado, não ser possível aferir da regularidade da assinatura eletrónica do remetente nem a validação cronológica do requerimento, nos termos previstos na al. u) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 62/2003, de 3 de abril.
A que acresce não haver base normativa que sustente o alegado deferimento (implícito!) pelo Estado à Ordem dos Advogados, do poder de certificar a assinatura eletrónica e a validação cronológica das comunicações eletrónicas dos seus membros. E nesta matéria as normas citadas do velho CPC (já revogado) e do Código Civil, nada contribuem para a boa solução do problema!
Seguro é que, não obstante o envio do requerimento do arguido através de correio eletrónico, não cumprir os requisitos legais previstos na al. u) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, tal comunicação, por estar assinada por advogado, não é desprovida de valor, tendo, no entanto, de ser complementada (em jeito de confirmação), nos termos previstos no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de fevereiro, i. e., com entrega das peças originais no prazo de 10 dias.
Sucede, porém, que isso não se verificou.
Debruçando-se sobre a citada base normativa o tribunal a quo seguiu o entendimento jurisprudencial conhecido (2), que vem confirmando as decisões de indeferimento dos requerimentos apresentados mediante tal procedimento (envio por correio eletrónico sem a aposição de assinatura eletrónica nem validação cronológica do respetivo ato de expedição e aposição de selo temporal por entidade terceira e idónea e sem a sequente entrega de originais no prazo de 10 dias).
Ressalvado o devido respeito pelo entendimento jurídico que se vem sufragando em tais arestos, consideramos que, mais que a densidade e complexidade normativa que se deixou referida, e a consequente incerteza que dela inexoravelmente decorre, a sanção prevista para o não cumprimento de uma mera formalidade secundária, consistente na (re)apresentação em juízo, num dado prazo (10 dias), do requerimento já ali entrado, tempestivamente e por meio legalmente admissível, se afigura desproporcionada.
E, nessa medida, tal sanção mostra-se desconforme ao standard mínimo imposto pelo princípio do processo equitativo (assente no artigo 20.º, § 4.º da Constituição da República; mas também no 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; no 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
Isto é, a preclusão de uma garantia processual (garantia de controlo judicial da decisão do inquérito) - pois que do artigo 308.º, § 1.º CPP decorre para o arguido o direito de não ser julgado senão quando haja motivo sério para tal (só quando os autos contêm prova consistente sustentadora de uma probabilidade razoável de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança - artigo 283.º, § 2.º CPP), - pelo não cumprimento de uma mera formalidade secundária, sem que ao requerente seja concedida uma oportunidade de comprovar a regularidade da comunicação eletrónica efetuada, convidando-o a juntar, nos moldes entendidos ajustados, o original da peça remetida por correio eletrónico, é desproporcionada.
Para que o procedimento seja efetivamente equitativo e ajustado à garantia da tutela jurisdicional efetiva, a mais do respeito pelos princípios da boa fé e da leal cooperação na relação entre as partes, e entre estas e o tribunal, as referidas circunstâncias implicam que a preclusão só possa operar se, afigurando-se necessária a junção de original, o arguido não corresponder a convite à (re)apresentação do requerimento que enviou por correio eletrónico.
Em circunstâncias que consideramos análoga (a propósito de requerimento de interposição de recurso), o Tribunal Constitucional (3) já considerou inconstitucional a dimensão interpretativa desse mesmo complexo normativo (respeitante às comunicações das partes com os serviços de justiça através de correio eletrónico, sem assinatura eletrónica e validação cronológica e sequente não apresentação das peças originais), se dele resultar a preclusão de um direito processual relevante. Ali, justamente, se sublinhou que: «em geral, e tendo por parâmetro o direito a um processo equitativo, “não beneficia de tutela constitucional um genérico, irrestrito e ilimitado ‘direito’ das partes à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo”, sendo certo que “o convite – que não tem que ser sucessivamente renovado ou reiterado – só tem sentido e justificação quando as deficiências notadas forem estritamente ‘formais’ ou de natureza secundária” e que “não será constitucionalmente exigível nos casos em que a deficiência formal se deva a um ‘erro manifestamente indesculpável do recorrente’” (Carlos Lopes do Rego, “O direito de acesso aos tribunais na jurisprudência recente do Tribunal Constitucional”, em Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 846-847)” (cfr. Acórdão n.º 215/2007, 2.ª Secção, ponto 2.4.).»
Interpretando os normativos citados supra, relativos ao envio de peças processuais aos serviços de justiça através de correio eletrónico (sem assinatura eletrónica e validação cronológica e sem sequente apresentação do original em 10 dias), em conformidade a Constituição (4), concretamente com os princípios ínsitos nos artigos 20.º, § 4.º e 18.º, § 2.º, deverá conceder-se ao requerente/recorrente a oportunidade de, em prazo e modo a fixar, poder confirmar a fidedignidade da peça processual oportuna e tempestivamente remetida.
Neste contexto o convite à apresentação do requerimento pela via considerada exigível, configura uma medida de adequação do processado, apta a suprir a omissão de uma mera formalidade, sem com isso comprometer o equilíbrio de obrigações e direitos dos intervenientes, como é pressuposto num processo justo e equitativo.
O recurso é, pois, merecedor de provimento.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto decide-se:
a) conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar a prolação de despacho fixador de prazo e modo de apresentação do original do requerimento anteriormente (mas tempestivamente) enviado pelo arguido (por correio eletrónico, sem assinatura eletrónica e validação cronológica).
b) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).
Évora, 5 de abril de 2022
J. F. Moreira das Neves (relator)
José Proença da Costa
Gilberto da Cunha
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1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
2 É o que se pode constatar, p. ex., nos seguintes casos: acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13dez2016, proc. 4069/13.0TACSC-5, Des. Cid Geraldo; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/5/2020, proc. 359/17.0GBFND.C1, Des. Elisa Sales; e deste Tribunal da Relação de Évora, os acórdãos, de 13/4/2021, proc. 914/18.1T9ABF-B.E1, Des. Maria Fernanda Palma; de 13/7/2021, proc. 914/18.1T9ABF-A.E1, Des. João Amaro; de 30nov2021, proc. 261/20.9T9EVR-A.E1, Des. Maria Margarida Bacelar; e de 8/2/2022, proc. 157/19.7T9RMZ-A.E1, Des. Nuno Garcia.
3 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 174/2020, de 11mar2020, Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200174.html
4 Sobre a interpretação em conformidade com a Constituição cfr. Lothar Kuhlen, La interpretación conforme a la Constituición de las leyes penales, 2012, Marcial Pons, pp. 34/35 e 38.