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SUSPENSÃO DE GERENTE
DESTITUIÇÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
PROCEDIMENTO CAUTELAR
AUDIÊNCIA DO REQUERIDO
DISPENSA
ARRESTO
CUMULAÇÃO
Sumário
“I - O processo especial de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais (gerente) previsto no art. 1055º do CPC comporta dois procedimentos autónomos e independentes entre si: -um procedimento de natureza cautelar, decretado a título provisório e antecipatório, que tem por objecto a pretensão de suspensão de funções do gerente e que é enxertado no próprio processo principal; - e uma acção, sujeita às regras dos processos de jurisdição voluntária, que tem por objecto a pretensão principal de destituição do cargo de gerente. II – Sabendo-se que, no âmbito dos procedimentos de natureza cautelar, o legislador sempre que pretendeu afastar a regra do contraditório prévio do requerido, nos termos do art. 366º, n.º 1 do CPC, fê-lo de forma expressa e inequívoca, deve-se entender que, no procedimento cautelar de suspensão de gerente, tal regra processual (do contraditório prévio ao decretamento da providência) deve ser ponderada; III - Resulta de uma forma clara do citado nº 1 do art. 366º do CPC que a regra geral é a de proceder à audição do requerido, sendo a excepção, a situação de não audição do requerido. Esta situação excepcional só deve ser atendida nos casos em que a audição do requerido possa colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência. Na avaliação do perigo deve-se ter em atenção o circunstancialismo que normalmente subjaz às providências de arresto e de restituição provisória da posse, de cuja análise empírica o legislador concluiu pela necessidade de se excluir a audição do requerido. Será para situações semelhantes que se deve ocultar ao requerido a pendência do procedimento cautelar. IV - Se o requerente alegar essa situação excepcional em termos conclusivos, não tendo apresentado quaisquer factos de onde se possa retirar que o fim ou a eficácia da providência estejam colocados em risco sério, deverá ser determinada a audiência do requerido. V - Pretendendo o requerente do processo especial previsto no art. 1055º do CPC cumular ainda no próprio processo uma pretensão cautelar de Arresto, deve tal pretensão ser considerada processualmente inadmissível, uma vez que não decorre do citado preceito legal, a possibilidade de (também) enxertar no processo de destituição dos titulares de órgãos sociais, um procedimento cautelar dessa natureza. VI - Se o requerente pretendia deduzir uma pretensão de Arresto dos bens do requerido só o poderia efectuar por dependência (e por apenso) de uma causa que tenha por fundamento o direito que pretendia acautelar (direito de crédito indemnizatório) – art. 364º do CPC –, causa essa que corresponderá às acções de responsabilidade previstas nos arts. 72º e ss. do Código das Sociedades Comerciais, e não ao processo especial de destituição de gerente. VII - Esta exigência legal constitui um limite material à possibilidade de cumulação das pretensões cautelares, pois que estas só poderão ser deduzidas em cumulação se ainda obedecerem a esta relação de dependência necessária que se exige em relação ao objecto da acção principal. Por força disso, não se pode alargar a admissibilidade de cumulação, a procedimentos cautelares que não tenham esta conexão objectiva com a causa principal (a cumulação de pretensões cautelares pressupõe este requisito de ordem material). VIII - Além disso, a legalidade da cumulação de pedidos impõe que não lhes corresponda tramitações processuais manifestamente incompatíveis e que seja constatada a existência de interesse relevante na cumulação ou a sua indispensabilidade para a justa composição do litigio (requisito formal) - cfr. art. 376º, nº 3 do CPC”.
Texto Integral
APELAÇÃO Nº 6159/21.6T8VNG.P1
Sumário ( elaborado pelo Relator- art.º 663º, nº 7 do CPC ):
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Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto. I. RELATÓRIO.
Recorrente(s): - B...;
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O recorrente B... veio intentar acção principal de destituição de gerente, precedida da imediata Suspensão de funções e do Arresto de bens do réu, pretendendo enxertar no âmbito da mesma dois procedimentos cautelares distintos, a saber, o de imediata suspensão das funções de gerente do aqui requerido, e o arresto de bens deste.
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De seguida, foi proferida a seguinte decisão liminar:
“Decisão:
(…) perante o tipo de acção intentada a lei permite, de facto, nos termos do art. 1055.º do CPC, cumular dois procedimentos autónomos e independentes entre si: um procedimento de natureza cautelar (decretado a título provisório e antecipatório que tem por objecto a suspensão das funções de gerente e um procedimento/acção sujeito às regras dos processos de jurisdição voluntária, que tem por objecto a pretensão principal de destituição do cargo de gerente).
Quanto à cumulação pretendida enxertar deste procedimento com o de arresto, terá tal pretensão que ser liminarmente indeferida, desde logo porque a cumulação de providências cautelares pressupõe requisitos de ordem material (conexão objectiva) e de natureza formal, salientando-se a compatibilização das formas de processo.
Esta referenciada “compatibilização das formas de processo” não se revela atingível “in casu”, pois que no procedimento admissível de suspensão das funções de gerente mantém-se a regra geral do contraditório (a qual apenas pode ser afastada se devidamente justificada), enquanto que no arresto a regra é a da prolação da decisão sem audição da parte contrária (art.º 393º./1, CPC)”
(…)
No caso dos autos, temos que dos factos alegados, não se vislumbra motivo suficiente para postergar o exercício do contraditório enquanto regra basilar dos procedimentos.
O princípio do contraditório, que constitui um dos pilares ou traves mestra do sistema processual civil, impondo-se em todas as fases de qualquer processo, encontra nos procedimentos cautelares as principais limitações decorrentes precisamente dos desideratos que através dele se pretendem alcançar.
Com efeito, devem ser tidas como excepcionais as situações em que a providência deva ser decidida e, eventualmente decretada sem audiência da parte contrária, o que acontece apenas obrigatoriamente no arresto e na restituição provisória da posse.
Assim, deve, em geral, ser facultado ao requerido a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão deduzida e respectivos fundamentos e de apresentar as provas que entenda por convenientes para infirmar os factos alegados pela parte contrária.
No caso dos autos, a requerente pretende destituir do cargo de gerente o requerido, alegando como facto justificativo da dispensa do contraditório a circunstância de o presente processo não se coadunar com qualquer delonga processual, e a audiência do requerido puder colocar em perigo a eficácia da providência, podendo contribuir para a própria insolvência da sociedade.
Desde já se clarifica que os prejuízos que eventualmente venham a ditar a manutenção da situação alegada poderão sempre ser salvaguardados em competente acção a instaurar.
Por outro lado, a requerida destituição de gerente, face aos impactos que inevitavelmente acarreta para a vida de uma sociedade, faz com que o Tribunal tenha que ser bem mais cauteloso, cautela essa que só pode ser atingida após conhecimento e apreciação das duas possíveis versões a apresentar em juízo.
Conclui-se, pois, que a requerente não alegou no seu requerimento inicial factos idóneos e suficientemente legitimadores para justificar a preterição daquela regra basilar.
Assim, entendemos não estar satisfeita a exigência da parte final do n.º 1 do art.º 366.º do CPC, e consequentemente não se vislumbra que a audição dos requeridos traga o alegado risco sério para o fim ou eficácia da presente providência, devendo, pois, manter-se a regra geral do cumprimento do contraditório.
Pelo exposto, indefiro o requerimento de dispensa da audição prévia dos requeridos.
Notifique, sendo ainda a requerente para proceder ao registo obrigatório da presente demanda (art.º 3.º, alínea m), e 15.º, n.º 1, ambos do C. R. Comercial).
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É justamente desta decisão que o Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES:
a. O recorrente alegou na petição inicial e provou, com os meios de prova a ela anexos (documentos e vídeos), factos que constituem violações graves, por parte do recorrido, dos seus deveres de gerente (quer os gerais, quer os específicos previstos na lei).
b. Alguns desses comportamentos constituem ilícitos penais, graves e perigosos, que atentam contra a integridade física e vida do recorrente, sua família e pessoas próximas (como a detenção ilícita de uma arma - bem visível nos vídeos anexos à p. i. - utilizada para fazer ameaças).
c. Dos factos alegados e indiciariamente provados, resulta, de forma inequívoca, a inidoneidade do recorrido para o exercício da gerência,
d. E a sua falta de escrúpulos para, citado previamente ao decretamento das providências ora requeridas, ser bem capaz adulterar provas com vista a alterar a verdade dos factos,
e. E a praticar actos que tornem as providências que vierem a ser ordenadas perfeitamente inúteis.
f. Designadamente, a dissipação das receitas e património da sociedade e a adulteração / falsificação das contas, as quais ainda não apresentou, nem permite que sejam consultadas pelo recorrente.
g. Assim, o recorrente alegou (e provou) factos bastantes que demonstram o risco sério para o fim ou eficácia das providências, caso o requerido seja previamente ouvido.
h. Contrariamente ao decidido pela Mma Juíza “a quo”, o arresto e a suspensão da gerência são pedidos cautelares cumuláveis pois que a sua tramitação é perfeitamente compatível,
i. E por maioria de razão quando está demonstrada, como se crê, a existência de fundamentos para as decretar sem audiência prévia do requerido.
j. Caso não procedam os motivos supra-referidos e a consequente revogação do despacho recorrido, sempre deverá ser decretada a sua nulidade por falta de fundamentação do indeferimento do pedido de dispensa de audiência prévia.
k. A decisão recorrida violou, assim, o disposto nos arts. 366º - 1, 555º e 615º - 1, alínea b) do CPC.
Nestes termos e nos mais que doutamente serão supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que admita a cumulação do arresto e da suspensão da gerência e que ordene o decretamento das mesmas sem a prévia audiência do requerido (…)”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente coloca as seguintes questões que aqui importa apreciar:
1. Nulidade da decisão proferida, por falta de fundamentação- art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.”
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2. saber se não devia ter sido deferida a pretensão de a providência ser decretada sem audição da parte contrária;
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3. saber se o procedimento cautelar de arresto pode ser enxertado no processo especial de destituição de gerente previsto no art. 1055º do CPC (em cumulação com o procedimento cautelar aí previsto de suspensão do cargo do gerente – nº 2).
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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É a seguinte a matéria de facto provada com interesse para a discussão do objecto do recurso:
1. Teor da decisão proferida que constitui o objecto do presente recurso que aqui se dá como reproduzida na integra.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Comecemos por apreciar a invocada nulidade da decisão proferida por falta de fundamentação (quanto à decisão proferida relativamente à dispensa de audição da parte contrária).
Compulsada a decisão aqui posta em crise pode-se afirmar, de uma forma inequívoca, que a mesma não se encontra viciada por falta de fundamentação, pois que a decisão recorrida, como decorre da transcrição atrás efectuada, mostra-se bem fundamentada seja em termos fácticos (denunciando a ausência de alegação de factos), seja em termos jurídicos (assinalando a regra geral de audição prévia e a excepcionalidade dessa audição não ocorrer – cfr. art. 366º do CPC).
De resto, como é sabido, este vício só se verifica quando se constata existir total ausência de fundamentação, o que não é seguramente o caso concreto da decisão aqui questionada.
É certo que compete ao juiz fundamentar todas as decisões tomadas: art. 154º nº 1 do CPC (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre justificadas”) – com excepção dos actos meramente ordenadores do processo e dos despachos de mero expediente.
Mesmo que o CPC não o referisse, essa necessidade de fundamentação resultaria por imposição directa do art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP): “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Será esta fundamentação que assegurará ao cidadão o controlo da decisão e permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado.
Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do acto.
Ora, no caso concreto, como já referimos, o Tribunal de Primeira Instância fundamentou a decisão proferida, quer em termos factuais, quer em termos jurídicos, permitindo essa fundamentação que as partes a controlassem e, consequentemente, que o presente Tribunal se pronunciasse sobre a decisão proferida.
Não há, assim, dúvidas que o Tribunal fundamentou a sua decisão, não se verificando o vício de falta de fundamentação que o Recorrente invoca.
Não pode, assim, o presente Tribunal reconhecer o vício imputado à decisão pelo recorrente.
Improcede, pois, a nulidade invocada.
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Avancemos agora para a segunda questão que diz respeito justamente à dispensa da audição da parte contrária indeferida pelo tribunal recorrido, com os aludidos fundamentos fácticos e jurídicos.
Julga-se que o recorrente não tem razão.
Como questão prévia (não colocada pelo recorrente), ter-se-ia de decidir se, efectivamente, no caso concreto (procedimento cautelar de suspensão do cargo de titulares de órgãos sociais previsto no nº 2 do art. 1055º do CPC), seria aplicável o disposto no art. 366º do CPC.
Tal questão foi ponderada, por ex. no acórdão desta Relação do Porto de 26.10.2017 (relator: Jorge Seabra – acórdão também subscrito pelo aqui Exma. Sra. Juíza Desembargadora Primeira Adjunta – disponível em dgsi.pt), tendo-se aí apresentado a seguinte conclusão – que merece a nossa concordância - que: “I - O processo especial de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais (gerente) previsto no art. 1055º do CPC comporta dois procedimentos autónomos e independentes entre si: -um procedimento de natureza cautelar, decretado a título provisório e antecipatório, que tem por objecto a pretensão de suspensão de funções do gerente; - um procedimento ou acção, sujeita às regras dos processos de jurisdição voluntária, que tem por objecto a pretensão principal de destituição do cargo de gerente. II - Entre ambos os procedimentos existe a relação que intercede, nos termos gerais, entre uma decisão cautelar e a posterior decisão da acção principal, com a particularidade de o procedimento cautelar correr termos e ser decidido, autonomamente, no próprio (e único) processo principal (…). IV - No âmbito dos procedimentos de natureza cautelar, o legislador sempre que pretendeu afastar a regra do contraditório prévio do requerido, nos termos do art. 366º, n.º 1 do CPC, fê-lo de forma expressa e inequívoca. V - A especialidade do procedimento cautelar de suspensão de gerente ou o seu caracter de procedimento urgente não constituem, de per si, razões bastantes para o afastamento do princípio estruturante do processo civil (e com expressão constitucional ao nível do princípio do Estado de Direito) do princípio do contraditório prévio ao decretamento da providência. VI - A expressão “imediatamente” empregue pelo legislador na redacção do n.º 2 do art. 1055º do CPC [oriunda do art. 1484º-B, n.º 2 do CPC, na versão introduzida pelo DL n.º 329-A/95] não traduz uma vontade inequívoca no sentido do estabelecimento da regra absoluta de exclusão da audiência prévia do requerido em procedimento de suspensão de funções de gerente, antes pretendendo enfatizar o caracter urgente do procedimento e a circunstância de o mesmo ser decidido autonomamente e em momento anterior à decisão do pedido principal de destituição. VII - Não excluindo o legislador o contraditório do requerido, o juiz apenas pode afastar a audiência prévia do requerido se a sua audição colocar «em risco sério o fim ou a eficácia da providência», nos termos consignados no art. 366º, n.º 1 do CPC (…)”.
Concluindo-se, pois, que ao caso concreto é aplicável o disposto no art. 366º do CPC, importa verificar se tal aplicação foi devidamente ponderada pelo tribunal recorrido.
Dispõe o art. 366º do CPC que o Tribunal ouvirá o requerido, “excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência... “.
Deste dispositivo legal resulta, assim, de uma forma clara que a regra geral é a de proceder à audição do requerido, sendo a excepção precisamente a situação de não audição pretendida pelo recorrente.
Esta situação excepcional, conforme decorre da lei, só deve ser atendida nos casos em que a audição do requerido possa colocar em risco sério o fimoua eficácia da providência.
Na avaliação do perigo deve-se ter em atenção “... o circunstancialismo que normalmente subjaz às providências de arresto e de restituição provisória da posse de cuja análise empírica o legislador concluiu pela necessidade de se excluir a audição do requerido... Será para situações semelhantes que se deve ocultar ao requerido a pendência do procedimento cautelar... “[1].
O recorrente, apesar de alegar esta situação excepcional em termos conclusivos, não apresentou quaisquer factos de onde se possa retirar que o fim ou a eficácia da providência esteja colocada em risco sério, se se determinar a audiência do requerido.
De qualquer forma, sempre se dirá que, tratando-se da reacção à prática de (f)actos passados, já concretizados, pode-se afirmar com segurança que, para além da inevitável menor celeridade, o facto de se determinar a audição do requerido, não põe em causa de uma forma séria, quer a eficácia, quer o fim (ou objectivo) da providência (que após a audição do requerido mantém toda a actualidade).
Isto é, face à concretização prática dos factos imputados ao requerido nos termos alegados pelo recorrente, não se vislumbra que a menor celeridade no eventual decretamento da providência ponha em causa a eficácia desta, nem que esteja aqui em ponderação a necessidade de decretar qualquer providência que deva beneficiar de um efeito surpresa.
De resto, o cumprimento do contraditório, como bem refere o tribunal recorrido, assegura uma maior garantia de segurança e acerto da própria decisão.
Neste âmbito, como salienta Abrantes Geraldes[2], “a observância do contraditório, mesmo em sede dos procedimentos, não deixa de constituir um elemento que potencia o melhor esclarecimento do litígio e confere mais segurança à decisão, uma vez que a parcialidade do requerente conduz naturalmente ao realce dos factos que lhe interessem, relacionados com o seu alegado direito e com o periculum in mora, deixando ocultos ou esbatidos aqueles que favorecem a parte contrária. A mesma tendência se verifica quanto à indicação dos meios de prova, com isso influenciando o julgador que pode ser induzido a decretar uma medida cautelar injusta, sem correspondência com a verdade material…».
E, ainda, prossegue o referido autor que, “mais do que atender simplesmente aos interesses do requerente, obviamente interessado na máxima celeridade e na ausência de intervenção do requerido, deve o juiz ter presente o texto legal e ajustá-lo às circunstâncias do caso concreto. Se nada for alegado pelo requerente a tal respeito, nem resultarem dos autos elementos que desaconselhem a audição do requerido, deve ser dada ao requerido a oportunidade de se pronunciar sobre os fundamentos e o conteúdo da providência solicitada (…). Na verdade, quando o legislador pretendeu que o procedimento corresse sem a presença do requerido, inequivocamente expressou essa vontade, conforme resulta do art. 394º (restituição provisória de posse) – actual art. 378º, n.º 1 – e do art. 408º (arresto – actual art. 393º, n.º 1), a que subjaz a percepção de que o efeito surpresa é fundamental para a eficácia da providência”.
Por isso, como já referimos, à semelhança do que ocorre nessas situações, é necessária a constatação de que existe sério risco “para o fim ou a eficácia da providência”, o que deve deduzir-se dos factos alegados no requerimento inicial que, face aos elementos constantes do processo, analisados à luz da experiência comum, permitam concluir pela desvantagem do respeito pelo contraditório.
Com efeito, como também refere Marco Gonçalves, op. e loc. cits., a dispensa de citação prévia do requerido agrava o risco de decretamento de uma providência injustificada por ter na base, não só uma “exposição unilateral e facciosa dos factos” por parte do requerente, mas ainda uma selecção dos meios de probatórios que apenas permitem corroborar a sua versão dos factos por si aduzidos em juízo, “omitindo toda a demais factualidade que, se fosse conhecida pelo tribunal, poderia determinar a improcedência da pretensão cautelar”, o que é ainda potenciado pela própria “rapidez de decisão que é exigida ao julgador”, tudo tornando elevada a probabilidade de erro de julgamento.
Nesta conformidade, não apenas pelas razões legais já antes aventadas, mas, ainda, por razões de segurança e de maior probabilidade de acerto na decisão cautelar, o juiz deve dispensar a citação prévia do requerido apenas quando a lei, de forma inequívoca e expressa, a exclua - o que, como se concluiu em cima, não sucede no presente procedimento cautelar.
Nessa medida, o tribunal para afastar a regra geral de audição prévia do requerido, teria que afastar, a título excepcional, essa citação prévia do requerido, justificando, pois, em que termos e sob cujas razões de facto e/ou de direito, essa citação poderia colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
Ora, conforme já referimos, o tribunal, no caso concreto, nunca poderia efectuar tal julgamento, porque o próprio recorrente, apesar de alegar esta situação excepcional em termos conclusivos, não apresentou quaisquer factos de onde se possa retirar que o fim ou a eficácia da providência estaria colocada em risco sério se se determinasse essa audiência do requerido.
Pode-se assim concluir que, no caso concreto, tendo em conta a alegação do requerente, a audição do requerido não tornará, na expressão de Abrantes Geraldes[3], a decisão que irá ser tomada “numa decisão, ainda que favorável ao requerente, mas meramente platónica ... “.
Pelo exposto, não se mostrando preenchidos os requisitos previstos no citado art. 366º, nº 1 do CPC, conclui-se que bem andou o tribunal recorrido em determinar que se proceda à audição do requerido.
Improcede esta parte do recurso.
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Aqui chegados, importa verificar se, contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, se pode aceitar que se seria admissível deduzir a pretensão de arresto enquanto procedimento cautelar enxertado no processo principal de destituição judicial do gerente – nº 1 do art. 1055º do CPC (além do mais, em cumulação com o procedimento cautelar de suspensão do cargo de gerente previsto no nº 2 o mesmo preceito legal).
Importa enquadrar devidamente as pretensões do recorrente (cautelares de suspensão do cargo de gerente e de arresto – e ainda, definitiva, de destituição do gerente), pois que se julga que desse enquadramento resultará, de uma forma clara, a impossibilidade processual de o recorrente poder deduzir a sua pretensão de Arresto, como pedido directamente enxertado no processo principal de destituição do gerente previsto no nº 1 do art. 1055º do CPC.
Não há dúvidas, em face deste preceito legal, que o legislador previu no mesmo - tal como no anterior art. 1484º-B do CPC 1961 (na redacção introduzida pelos citados DL n.º 329-A/95 e 180/96) - um processo principal e definitivo de destituição do gerente, que pode ter enxertado no mesmo (apenas) uma providência cautelar inominada de suspensão, como decorre do n.º 2 do art. 1055º do CPC (e como sucede no caso concreto).
Mas, obviamente, que não decorre do preceito legal em aplicação a possibilidade de (também) enxertar no processo de destituição do titular de órgão social um procedimento cautelar de arresto.
Nessa conformidade, uma primeira conclusão se pode, desde logo, retirar. Nunca o procedimento cautelar de arresto poderia ser enxertado no próprio processo de destituição do gerente, pois que aí se prevê apenas, a titulo especial, que, neste âmbito, possa ser enxertado um procedimento cautelar de suspensão do cargo de gerente (nº 2 do art. 1055º do CPC) – o que, como iremos ver, faz todo o sentido, atenta a conexão existente entre as duas pretensões.
Logo, se o recorrente pretendia deduzir uma pretensão de Arresto dos bens do requerido, em termos processuais, só o poderia efectuar por “dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente da acção declarativa” – art. 364º do CPC.
No primeiro caso (preliminar), o procedimento cautelar é apensado à acção principal, logo que esta seja instaurada (nº 2).
No segundo caso (se requerido depois de instaurada a acção), deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde corre a acção principal e será processado por apenso aessa mesma acção principal(nº 3). “Constituindo a providência cautelar … a antecipação duma providência definitiva, de natureza declarativa ou executiva … o procedimento que visa a sua obtenção está sempre na dependência duma acção em que o autor faz valer o direito – ou o interesse tutelado – que através dele visa tutelar”[4].
Assim, como decorre dos aludidos preceitos legais e desta consideração doutrinal, a pretensão de Arresto teria que necessariamente que ser deduzida nestes termos, ou seja, por apenso a uma acção (a instaurar ou já pendente) que tenha por fundamento o direito acautelado (que seria o alegado direito de crédito indemnizatório).
Esta exigência legal constitui obviamente um limite à possibilidade de cumulação das pretensões cautelares, pois que estas só poderão ser deduzidas se ainda obedecerem a esta relação de dependência necessária que existe em relação ao objecto da acção principal.
Não se pode alargar esta admissibilidade de cumulação a procedimentos cautelares que não tenham esta conexão objectiva com a causa principal. “Afinal, importa não olvidar a dependência e instrumentalidade do procedimento cautelar relativamente à acção principal, não podendo a amplitude daquele extravasar as regras que serão aplicáveis a esta”[5], pelo que a cumulação de pretensões cautelares pressupõe requisitos de ordem material (conexão material entre essas pretensões e a acção principal).
É por isso que, por ex. se decidiu no ac. da do STJ de 13.4.2010 (relator: Fonseca Ramos), in dgsi.pt que: “I. Sendo o arresto uma providência cautelar que, por natureza, visa uma tutela urgente baseada na aparência do direito para o qual se requer tutela provisória ou antecipatória, fundada no “bonus fumus juris” e numa prova perfunctória, a lei impõe para declaração definitiva do direito, a instauração da acção relativa ao direito acautelado no prazo de 30 dias, sob pena de caducidade. II) - A acção, visando firmar os efeitos da decisão cautelar, tem de coincidir na causa de pedir com a invocada no processo cautelar; no caso, a acção definitiva teria de ser uma acção em que o Autor (requerente cautelar) pedisse a condenação dos Réus no reconhecimento do seu crédito e pedisse a condenação no respectivo pagamento (a denominada “acção de dívida”). III) - Mas o que o Autor intentou foi uma acção de Inquérito Judicial à sociedade requerida, o que de modo algum é a acção declarativa a intentar na sequência do arresto, como emerge dos pedidos formulados nessa acção. IV) - Ante a decisão proferida no arresto, se a requerida peticiona a respectiva caducidade, a primeira apreciação que o Tribunal deve fazer, na perspectiva de saber se a “acção” é a acção a que corresponde a decisão cautelar [o que não carece de ser alegado e, portanto, não constitui sequer “questão nova” como o recorrente aduz]; essa apreciação, passa por saber, mormente, se há identidade da causa de pedir na acção e no processo cautelar, porquanto a acção terá que envolver as mesmas partes e a mesma causa de pedir, tudo correlacionado com o processo cautelar – “a acção da qual a providência depende” - (art.389º, nº 1, a) do Código de Processo Civil). V) - Assim sendo, desde logo há que concluir que os efeitos da propositura da acção que não vingou por motivos processuais, não aproveitam ao processo especial de inquérito judicial à sociedade – art. 67º do CSC e 1479º do Código de Processo Civil – ocorrendo caducidade da decisão cautelar, por, no prazo legal, não ter sido intentada pelo requerente a acção pertinente à decisão definitiva do litígio objecto do arresto”.
Não há dúvidas, assim, que a pretensão de Arresto teria que necessariamente que ser deduzida nestes termos, ou seja, por apenso a uma acção (a instaurar ou já pendente) que tenha por fundamento o direito acautelado (que seria o alegado direito de crédito indemnizatório) – e não, enxertado no presente processo especial de destituição do gerente onde a pretensão (e causa de pedir) não coincide com tal direito de crédito (e com a respectiva causa de pedir).
Além disso, a pretensão cautelar tem que, obviamente, obedecer a certos requisitos formais (por ex. pressupostos de competência absoluta, compatibilização das formas do processo) – cfr. art. 37º do CPC, aplicável por força do nº 3 do art. 376º do CPC.
Ora, como é óbvio, a acção principal aqui em discussão (Processo Especial de destituição de gerente), não é a forma processual própria para deduzir tal pretensão (arts. 546º e ss. do CPC; cfr., também, art. 193º do CPC), uma vez que se trata de um Processo Especial - que, aliás, também tem a natureza de Processo de Jurisdição Voluntária – onde apenas se mostra prevista a hipótese de ser enxertado o procedimento cautelar de suspensão do cargo do gerente.
Como é sabido, à semelhança do erro na forma do processo, também pode ocorrer erro na forma de procedimento cautelar[6], erro esse susceptível de ser corrigido oficiosamente, se tal correcção for possível (ordenando-se o prosseguimento de acordo com a tramitação procedimental idónea).
No entanto, no caso concreto, tal correcção não é possível, pois que o Arresto não pode, a nosso ver, correr por apenso ao presente Processo Especial de destituição de gerente, pois que, conforme já referimos por mais do que uma vez, o direito que vai ser acautelado neste processo (direito a pedir a destituição do gerente) não tem qualquer conexão material com o direito que o recorrente pretenderá acautelar com o arresto - que, como decorre do art. 391º do CPC, coincidirá com um alegado direito de crédito indemnizatório do requerente/sócio (e/ou da sociedade, como alega também o recorrente) relativamente a alegados (f)actos ilícitos praticados pelo requerido, direito que deverá, sendo caso disso, ser exercido em acção autónoma (cfr. arts. 72º e ss. do Código das Sociedades Comerciais (CSC) – acções de responsabilidade – v. por ex. sobre esta matéria, Coutinho de Abreu, in “Responsabilidade civil dos administradores de sociedade” – não sendo também despiciendo ponderar os termos em que a legitimidade activa e passiva aí se mostra prevista, quanto a essas acções).
Importa ainda dizer que à aplicação estrita destas regras processuais não obsta, obviamente, a invocação dos princípios da gestão processual e adequação formal (arts. 6º e 547º do CPC) por parte do recorrente.
Como é sabido, o princípio da adequação formal previsto no art. 547º do CPC, estabelece que “O juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”, em cumprimento de um dever de gestão processual, nos termos do art. 6º do CPC.
Todavia, este relevante instrumento processual não serve para resolver situações como as dos autos em que o recorrente deduziu pretensões processualmente inadmissíveis (seja tendo em consta as regras processuais dos procedimentos cautelares, seja em termos de enxertar no processo principal de destituição de gerente, um procedimento cautelar que o legislador não admite que siga tal tramitação, seja ainda com a dedução de pretensões indemnizatórias que não poderão, em princípio, ser exercidas no processo especial de destituição de titulares de órgãos sociais).
Aliás, este poder de adequação formal é “um poder a usar só quando o modelo legal se mostre de todo inadequado às especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo” - ac. da RC de 14.10.2014, (relator: Carvalho Martins, in dgsi.pt.)
Assim, nunca se poderia exigir ao tribunal recorrido que admitisse tal pretensão (de Arresto) na tramitação seguida pelo recorrente, não podendo tal desiderato ser atingido pela invocação do princípio da gestão processual ou da adequação formal, pois que “o modelo legal” assegura na sua plenitude os direitos do recorrente (se ele os quiser exercer no seu âmbito próprio – que seria na aludida acção de responsabilidade do administrador e no eventual procedimento cautelar de arresto (por apenso) que tivesse por escopo acautelar a eventual indemnização – direito de crédito – que aí pudesse ser reconhecido).
Ou seja, nenhum dos normativos legais e princípios processuais invocados pelo recorrente, impunha essa solução no caso concreto.
Também não tem qualquer relevância a invocação do art. 555º do CPC, pois que, além de ser um preceito processual geral, também não poderia ser aplicável, já que não se mostram verificados os respectivos requisitos legais – a tramitação processual dos dois procedimentos cautelares é manifestamente incompatível (desde logo, como se viu, quanto ao princípio do contraditório, mas também quanto às diligências de arresto que, em caso de ser decretado, teriam que ser realizadas de uma forma enxertada no próprio processo principal de destituição do gerente!) e não existe qualquer interesse relevante em cumular as pretensões deduzidas pelo recorrente ou que torne indispensável a apreciação conjunta das duas (ou mesmo três) pretensões no mesmo processo – cfr. art. 555º que remete para o disposto nos nºs 2 e 3 do art. 37º do CPC.
De resto, existe, como já referimos, um preceito processual especial aplicável aos procedimentos cautelares que se encontra previsto no nº 3 do art. 376º do CPC, que consagra estas mesmas regras (remetendo para os nºs 2 e 3 do art. 37º do CPC), mas que, pelas mesmas razões já invocadas, não tem potencial de aplicação no caso concreto.
É que “a legalidade da cumulação impõe, assim, que não lhes corresponda tramitações processuais manifestamente incompatíveis e que seja constatada a existência de interesse relevante na cumulação ou a sua indispensabilidade para a justa composição do litigio”[7] .
Por isso é que já se decidiu que não é admissível a cumulação de um arresto ou de uma restituição provisória da posse com uma providência cautelar não especificada (comum) – v. por ex. os acs. da RL de 23.9.1992, in CJ, T. IV, pág. 149 e ac. da RE de 21.3.1985, in CJ, T. II, pág. 281, respectivamente.
Daí que Abrantes Geraldes tenha concluído que [8] “um exemplo de incompatibilidade manifesta verifica-se quando se cumulam providências cuja decisão deve ser necessariamente antecedida do cumprimento do princípio do contraditório com outras em que está vedada a audição prévia do requerido (arresto e restituição provisória da posse)” – situação que, como decorre do exposto, corresponde à dos presentes autos, uma vez que foi decidida a aplicação do art. 366º do CPC ao procedimento cautelar de suspensão do cargo de gerente (e se determinou a audição do requerido).
Afastada esta argumentação, avancemos, então, para o esclarecimento de quais são as pretensões que estão em jogo no art. 1055º do CPC (seguindo de perto o citado ac. da RP de 26.10.2017).
Ora, como já decorre do exposto, este Processo Especial tem por objecto apenas os pedidos de suspensão (cautelar) e de destituição (definitiva) do titular de órgão social (e não qualquer pedido de indemnização).
Além disso, estas decisões de suspensão e de destituição são autónomas entre si; apreciando a primeira, a título cautelar e provisório, tal pretensão cautelar do requerente e, em caso afirmativo, decretando a suspensão; e apreciando a segunda, definitivamente, a pretensão principal, seja, na afirmativa, decretando a destituição, seja, na negativa, indeferindo essa destituição, o que afastará, necessariamente, a suspensão antes decretada, a título provisório e antecipatório.
Assim, o processo previsto no citado art. 1055º do CPC, sob a aparência formal de um único processo, desdobra-se, de facto, em dois processos distintos, com tramitação própria e, ainda, com duas decisões de natureza e objecto diversos.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 30.10.2012, (in dgsi.pt, tirado ainda sob o domínio do art. 1484º-B do CPC 1961), sob a aparência de uma única acção, o processo de destituição e suspensão de titular de órgão social compreende dois pedidos que seguem distinta tramitação: o de suspensão do cargo gerente, que é um incidente cautelar semelhante ao procedimento cautelar comum previsto nos arts. 381º a 392º do CPC[9]; e o de destituição de gerência, que é uma acção declarativa com as especificidades dos processos de jurisdição voluntária[10].
Destarte, ao juiz cabe, em sede cautelar e a título provisório, conhecer e decidir, em primeiro lugar, do pedido de suspensão imediata do gerente (se tal pedido for formulado) e, a final, nos termos aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária, conhecer e decidir do pedido de destituição do mesmo cargo, sendo certo que a factualidade integradora da “ justa causa“ que subjaz ao decretamento da suspensão será, regra geral, a mesma que subjaz, a final, ao decretamento definitivo da suspensão.
Com efeito, como faz notar Solange Jesus[11] , sem prejuízo da autonomia de cada uma das decisões a proferir (de suspensão e, a final, de destituição), a condensação de ambos os pedidos num único processo tem a indiscutível vantagem de concentrar no mesmo requerimento toda a factualidade relevante; e ao impedir que a alegação quanto à suspensão ocorra num requerimento separado (como acontecia ao utilizar-se o procedimento cautelar comum, antes da introdução do anterior art. 1484º-B, n.º 2 com a reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95), “evita-se que a factualidade-fundamento seja apreendida de forma estanque e descontextualizada, permitindo ao julgador uma apreciação global e uma decisão mais rigorosa e concertada”.
Relativamente à razão de ser do incidente cautelar de suspensão mostra-se a mesma perfeitamente evidenciada pelo Prof. Raúl Ventura quando escreve, em anotação ao art. 257º, n.º 3 do CSC, que “o legislador reparou em que o sistema por ele criado [acção de destituição do gerente] tinha um grave inconveniente: a manutenção do gerente, apesar da justa causa, até ao trânsito em julgado da sentença que o destitua e que produz efeito ex nunc”.
Como assim, para mitigar tal inconveniente, a título cautelar, tendo por base a violação dos deveres funcionais a cargo do gerente ou a sua incapacidade para o exercício de tais funções (arts. 64º e 257º, n.º 6, ambos do CSC), ou seja, a existência de “justa causa “, sujeita a demonstração pela via judicial, e, portanto, à ponderação e crivo do julgador, conferiu a lei ao sócio o direito de requerer não só a destituição do gerente, mas, ainda, a título provisório antecipatório, o direito de requerer a própria suspensão de tal cargo.
Na verdade, comprovada, ainda que a título indiciário, a existência de “justa causa “, e quebrado, assim, o vínculo de confiança que deve existir entre o gerente da sociedade, seu representante, e os sócios, tornando inexigível a permanência deste na gestão da sociedade, dificilmente se justificará que seja tolerado na sociedade um gerente, alegada e potencialmente incumpridor, até ao trânsito em julgado da decisão de destituição.
Dito isto, importa ainda referir que o processo de suspensão e destituição de gerente previsto no art. 1055º traduz justamente a adjectivação do regime substantivo previsto no art. 257º do CSC, que confere ao sócio o direito de, existindo justa causa, requerer a suspensão e a destituição do gerente. “A deliberação dos sócios não é a única via para destituir gerentes. Havendo justa causa, é possível a destituição judicial; via facultativa nalguns casos (nº 4 do art. 257º), via obrigatória em outros (art. nº 3 e 5 do art. 257º). Quando se pede a destituição judicial, é possível, aconselhável e normal que se peça em simultâneo também a suspensão do gerente … O requerimento de suspensão é incidente de natureza cautelar (não procedimento cautelar autónomo) enxertado naquele (único) processo”[12].
É assim evidente que para o decretamento da providência cautelar de suspensão de gerente, e, posteriormente, para o decretamento da própria destituição, é necessária a demonstração de justa causa, a qual se afere pela violação grave dos deveres de conduta (art. 64º do CSC) e dos deveres funcionais (dispersos pelo código) impostos ao gerente ou pela grave incapacidade objectiva para o exercício normal das respectivas funções.
Mas importa ter em atenção que, no âmbito deste Processo Especial, o direito que se pretende acautelar não é qualquer direito de crédito dos demais sócios ou da sociedade sobre o gerente, mas antes o direito a destituir o gerente, fundado na grave violação dos seus deveres legais de conduta ou funcionais ou, ainda, na incapacidade para o exercício das funções de gerente, tornando inexigível à sociedade ou aos demais sócios a manutenção do vínculo de confiança que é suposto existir com quem exerce o cargo de gerente.
Nesta conformidade, revertendo novamente para a questão que nos era colocada, surge como uma evidência que a pretensão de Arresto deduzida pelo recorrente não tem campo de aplicação no âmbito do presente Processo Especial, porque o direito que o recorrente pretenderá acautelar com o arresto não é aquele que a presente Acção Especial poderá vir a acautelar.
Tal acção, que tem por fundamento o direito que o recorrente pretenderá ver acautelado com o arresto, será antes a eventual acção de responsabilidade do gerente que possa vir a ser intentada nos termos dos arts. 72º e ss. do Código das Sociedades Comerciais.
Aqui chegados, podemos assim concluir que:
- não decorre do art. 1055º do CPC a possibilidade de (também) enxertar no processo de destituição do titular de órgão social um procedimento cautelar de arresto.
- se o recorrente pretendia deduzir uma pretensão de Arresto dos bens do requerido em termos processuais só o poderia efectuar por “dependência (e por apenso) de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado” – art. 364º do CPC –, causa essa que corresponderá à acção de responsabilidade prevista nos arts. 72º e ss. do CSC
- a legalidade da cumulação impõe que não lhes corresponda tramitações processuais manifestamente incompatíveis e que seja constatada a existência de interesse relevante na cumulação ou a sua indispensabilidade para a justa composição do litigio, por isso um dos exemplos de incompatibilidade manifesta verifica-se quando se cumulam providências cuja decisão deve ser necessariamente antecedida do cumprimento do princípio do contraditório com outras em que está vedada a audição prévia do requerido – situação que, como decorre do exposto, corresponde à dos presentes autos, uma vez que foi decidida a aplicação do art. 366º do CPC ao procedimento cautelar de suspensão do cargo de gerente (e se determinou a audição do requerido).
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Independentemente de todas estas considerações, sempre se dirá que, mesmo que fosse admissível que o arresto fosse requerido por incidente enxertado na presente acção especial, sempre tal pretensão teria que ser liminarmente indeferida por falta de alegação dos correspondentes factos exigíveis.
Com efeito, estabelece o nº 1 do art. 391º do CPC que “… o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor …”.
Assim, o requerente do procedimento cautelar de Arresto terá que alegar, por um lado, factos que:
- “… tornam provável a existência do crédito”
- “e justificam o receio invocado (...) “- cfr. art. 392º, nº 1 do CPC.
Interessa-nos, neste âmbito liminar, o segundo requisito, nomeadamente, no sentido de verificar se o requerente preencheu o mesmo, alegando, de uma forma suficiente, os factos que lhe permitam poder afirmar a existência de “justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito”.
Ora, no que diz respeito ao requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial, conforme tem vindo a ser pacificamente afirmado pela jurisprudência, esse receio por parte do credor, para ser considerado justo, há-de assentar em factos concretos, que o revelem à luz de uma prudente apreciação, isto é, tem de assentar em dados objectivos (factos, atitudes ou, pelo menos, certa maneira de ser) que denunciem uma disposição do devedor de subtrair o património à acção dos credores.
Ou seja, para ser justo, o receio, não pode ter como suporte uma mera suspeita do credor, de ordem subjectiva, ou simples conjecturas.
Logo, não basta o receio subjectivo, porventura exagerado, do credor, de ver satisfeita a prestação a que tem direito.
O justo receio da perda da garantia patrimonial pressupõe a alegação (e prova) de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.
O critério de avaliação deste requisito, como já se referiu, não deve assentar em simples conjecturas, antes deve basear-se em factos concretos, e em circunstâncias específicas e determinadas, que, de acordo com as regras da experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção pendente ou a instaurar posteriormente.
Tal juízo a respeito do justo receio da perda da garantia patrimonial do crédito não pode, portanto, ser fruto da mera arbitrariedade, antes deve ser tomado a partir de factos.
Importante é que existam indícios da existência de uma situação de perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito e de onde decorra que só a apreensão imediata de bens permita prevenir os riscos de insatisfação do direito de crédito, como acontece quando se verifica a dissipação ou o extravio de bens, a constituição fictícia de créditos ou a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir.
Em conclusão, o decretamento do arresto pressupõe a alegação e prova de factos que traduzam, de acordo com um critério de verosimilhança, uma situação de justo receio de perda da garantia patrimonial, o que não se confunde com meras conjecturas ou receios subjectivos[13] .
No caso concreto, o requerente propõe-se demonstrar a existência de um alegado crédito sobre o requerido, em montante a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização no âmbito da eventual responsabilização do requerido, na qualidade de gerente.
Mas, além dessa falta de concretização do pedido, acresce que o requerente nem sequer alegou, conforme lhe competia, os factos subjacentes (para, posteriormente, os poder provar), de onde se possa retirar a existência de justo receio de perda de garantia patrimonial de tal alegado crédito.
Na verdade, neste âmbito, o que interessaria alegar, do ponto de vista deste requisito, seria a actuação do requerido conexionada com o seu património, que denunciasse a sua disposição, de dissipar, de ocultar ou de subtrair os bens que integram o seu património à acção dos credores (nomeadamente, ao requerente).
Sucede que o requerente não alega factos concretos e circunstâncias específicas e determinadas, donde possa emergir o justo receio de perda de garantia patrimonial do crédito cuja existência aqui se propôs demonstrar.
Na verdade, neste capítulo, o requerente limitou-se a afirmar, que “…caberá ao réu responder pelos prejuízos causados, quer à sociedade, quer ao autor, com o seu património pessoal”; “que não é muito e não será suficiente para cobrir todos os prejuízos dado que o réu tem já outras dívidas, conforme alegado no art. 8, supra, pelas quais parte do seu património já está penhorado”. “Por fim, existe o perigo iminente de fuga para o Brasil, pelo que, por mais esse motivo se mostra fundado o justo receio de perda da garantia patrimonial”; “O qual se agrava de dia para dia e com a normal demora do decurso da acção principal (…)”.
E é destes factos que, de modo absolutamente conclusivo, vago e genérico, acaba por afirmar que existe um justo receio da perda da garantia patrimonial do seu alegado crédito.
Ora, o receio alegado pelo requerente – que se afigura ao Tribunal nem sequer receio chega a ser – não pode considerar-se, pois, justo, dado que não é revelado, à luz de uma prudente apreciação, por quaisquer factos concretos.
Assenta, por um lado, em meros temores, conjecturas e suspeitas do requerente, cujo conteúdo, além de não ter sido clarificado, não tem qualquer base fáctica, na medida em que não se fundamentam em quaisquer dados, razões e critérios de natureza objectiva.
E assenta, por outro lado, em vagas informações e conhecimentos, alegadamente obtidos pelo requerente em contexto e em circunstâncias que não foram minimamente explicitados, sendo certo que os mesmos se apresentam desprovidos de toda e qualquer facticidade concreta e fundamentada.
Trata-se, pois, de meras afirmações opinativas e conclusivas por parte do requerente, estribadas em simples conjecturas e receios subjectivos, sem qualquer suporte factual que traduza, de acordo com um critério de verosimilhança, uma situação de justo receio de perda da garantia patrimonial do seu alegado crédito.
E que assim é decorre, de uma forma linear, do facto de o requerente, contrariamente àquilo que impõe a lei, não invocar quaisquer comportamentos, atitudes ou condutas por parte do requerido em relação ao seu património, que denunciem a sua disposição de dissipar, de ocultar, de extraviar ou de subtrair o seu património à acção dos credores.
É certo que o requerente referiu que tem justo e fundado receio que o requerido se desfaça do seu património, mas, mais uma vez, não concretiza esse receio já que não indica qualquer procedimento ou ocorrência que revelem o propósito daquele dissipar ou extraviar quaisquer dos bens.
Mas daí não pode concluir-se, de todo em todo, de acordo com as regras da experiência, pela verificação de uma situação de justo e fundado receio de perda da garantia patrimonial do alegado crédito detido pelo requerente sobre o requerido.
Em conclusão, o requerente não alega – para posteriormente poder provar, como lhe competia – factos concretos e circunstâncias específicas e determinadas, susceptíveis de traduzirem, de acordo com um critério de verosimilhança, uma situação de justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito que se propôs demonstrar deter sobre o requerido.
Em consequência, estaria a pretensão de natureza cautelar aqui formulada pelo requerente manifestamente votada ao insucesso, pelo que, independentemente dos assinalados obstáculos processuais, sempre se imporia o indeferimento liminar do presente procedimento cautelar de arresto - ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, ambos do CPC.
Por todo o exposto, improcede totalmente o recurso.
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III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o Recurso apresentado pelo recorrente.
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Custas pelo recorrente.
Notifique.
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Porto, 10 de Janeiro de 2022
(assinado digitalmente)
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
___________________________________ [1] Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, Vol. III, pág. 163. [2] Obra citada, pág. 188-189. Vide, no mesmo sentido, ainda, MARCO C. GONÇALVES, “Providências Cautelares”, pág. 368-370. [3] Obra citada, pág. 163 [4] Profs. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in “CPC anotado”, Vol. II, pág. 19. [5] A. Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Sousa, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 444. [6] V. Abrantes Geraldes, Ob. Cit, pág. 279 assinalando que “à semelhança do erro na forma do processo, também o erro na forma de procedimento cautelar deve ser remediado, se possível…”. [7] Abrantes Geraldes, Ob. cit., pág. 281. [8] Ob. cit., pág. 282. [9] Segundo o ac. da RC de 19.6.2013 (relator: Albertina Pedroso), in dgsi.pt “(…) 6 - O processo previsto no artigo 1484.º-B do CPC - suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais -, configura o processo principal e definitivo de destituição, e pode ter enxertada uma providência cautelar de suspensão de titulares de órgãos sociais, por via do disposto no n.º 2 do referido preceito, que expressamente prevê tal possibilidade. 7 - O decretamento de tal providência cautelar inominada depende da verificação cumulativa dos requisitos previstos para as providências cautelares comuns e da prova sumária da existência de “justa causa” para a destituição”. [10] Vide, neste sentido, AC RP de 10.02.2015, AC RP de 28.5.2009, ou, ainda, AC RP de 12.05.2008, Processo n.º 0850755, relator FERNANDES do VALE, AC RC de 26.05.2009, Processo n.º 30/08.4TBVLF-C.C1, relator TELES PEREIRA, AC RE de 20.03.2017, Processo n.º 837/16.9T8OLH.E1, relator MÁRIO SERRANO, todos in www.dgsi.pt. [11] In “O Processo Especial de Destituição e Suspensão dos Gerentes”, IDET, n.º 7, Almedina, 2011, pág. 187. [12]Coutinho de Abreu, in “Código das Sociedades Comerciais em comentário”, Vol. IV, pág. 122. [13] Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 10 e 18 e segs., Pires de Lima/Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 637, Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. IV, 2ª edição, págs. 186/188, e, entre muitos, os Acs. do STJ de 03/03/98, CJSTJ, tomo VI, 1º, pág. 116, e da RL de 09/03/2004 (Relator :Abrantes Geraldes ), in www.dgsi.pt ;