DIVÓRCIO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
BEM COMUM
ACORDO
DIREITO À COMPENSAÇÃO POR PARTE DO OUTRO CÔNJUGE
Sumário

Dissolvido o casamento, por divórcio e até conclusão da partilha, mantendo-se um dos elementos do casal a habitar a casa de morada de família adquirida na pendência do casamento, assiste ao outro o direito a reclamar uma compensação, se provar que foi desrespeitado o acordo firmado entre ambos quanto à utilização do imóvel, se for impedido pelo outro de usar e fruir o imóvel, ou, se antes tivesse reclamado esse direito em processo e procedimento próprio (art. 1406º/1 CC, Art. 931º, 990º CPC, Art. 1793º CC).

Texto Integral

Comunhão-Uso-164/20.7T8AND.P1

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTOR: B…, divorciado, soldador, residente na Rua …, nº …, 2º Esq., …, ….-… Anadia, portador do Cc nº ………… e do NIF ………; e
- RÉ: C…, divorciada, residente na Rua …, nº .., ….-… …, Anadia,
pede o autor a condenação da ré:
- a pagar ao autor uma indemnização/compensação no montante de 11.400,00 € (onze mil e quatrocentos euros), por ter ocupado a casa do dissolvido casal em exclusivo, impedindo o autor de o fazer, desde 07/08/2015 (data da separação de facto/data à qual se retratem os efeitos patrimoniais do divórcio) até 05/05/2020 e, a partir daí, 200,00 € por cada mês que continue a ocupar a casa até a desocupar e entregar ao cabeça de casal ou até à partilha dos bens do dissolvido casal, por o prédio se não estivesse a ser ocupado pela ré, rendia no mercado do arrendamento, pelo menos 400,00 € (quatrocentos euros) ao dissolvido casal, pertencendo metade desse valor a cada um;
- ser a ré condenada a pagar ao autor os juros legais vencidos e vincendos até integral pagamento;
- subsidiariamente, deverá a ré ser condenada a pagar ao autor uma indemnização no valor de 11.400,00 € (onze mil e quatrocentos euros) até 05/05/2020 e, a partir daí 200,00 € por cada mês que continue a ocupar a casa, a título de enriquecimento sem causa, correspondente ao valor que se locupletou à custa do A. e que este ficou prejudicado, e ainda, juros legais vencidos e vincendos até integral pagamento.”
Alegou para o efeito e em síntese, que autor e ré foram casados entre si, tendo o matrimónio cessado por divórcio por sentença transitada em 24 de novembro de 2017, sendo certo que nessa decisão ficou demonstrado que a separação de facto do dissolvido casal ocorreu em 07 de agosto de 2015. Sucede que após a separação de facto, a ré não se dispôs a sair da casa construída por ambos, o que determinou que o autor fosse viver para outro local, tendo efetuado contrato de arrendamento de imóvel, mediante o pagamento da renda mensal, inicialmente no valor de €250,00, depois no valor de €300,00 e mais recentemente no valor de €380,00. Sublinha o autor que a casa do dissolvido casal podia assumir um valor mensal de arrendamento de €400,00, possibilidade que foi sendo adiada porquanto a ré nunca mostrou abertura para o arrendamento daquele imóvel, inclusive impossibilitando a entrada do autor no imóvel, tendo mudado as fechaduras de acesso, o que sucede desde o ano de 2015.
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Regularmente citada, contestou a ré, defendendo-se por impugnação.
Alegou para o efeito, que o réu saiu de casa, por sua livre iniciativa, sem nunca lhe ser vedado o acesso à casa. Nunca demonstrou interesse no destino a dar à casa de morada de família do casal, tanto mais que só passados quatro anos decidiu intentar inventário para partilha de bens do dissolvido casal.
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O Autor veio pronunciar-se sobre os documentos juntos pela ré com a contestação, suscitando a nulidade por se mostrarem ilegíveis.
A irregularidade foi ultrapassada com a junção de novas cópias dos documentos em formato digital e outros, no original, através do correio, por se mostrar inviável a digitalização.
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Dispensou-se a realização de audiência prévia e proferiu-se despacho saneador, com agendamento dos atos a realizar em audiência de julgamento.
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Proferiu-se despacho que indeferiu a nulidade suscitada pelo autor com fundamento na omissão de despacho com indicação do objeto do processo e seleção dos temas de prova.
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Procedeu-se a audiência final, tendo esta decorrido com observância do competente formalismo legal.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de Direito invocados, julga-se a presente ação totalmente improcedente por não provada, em consequência do que se absolve a ré do pedido contra si deduzido pelo autor.
Valor da ação: o fixado em despacho saneador.
Custas pelo autor”.
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O Autor veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso, com revogação da decisão recorrida e substituição por outra que condene a recorrida nos termos peticionados na petição inicial.
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A Ré apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- da deficiente formulação das conclusões de recurso;
- da alegação de factos novos;
- da indemnização ou compensação devida pela privação do uso da casa de morada de família, depois de decretado o divórcio e encontrando-se pendente inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1.Autor e ré celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 13 de Julho de 1985, na Capela …, Paróquia …, Concelho de Anadia.
2. No dia 14 de Novembro de 2016, o autor instaurou contra a ré ação de Divórcio, Sem Consentimento do outro Cônjuge, no Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro, à qual foi atribuído o n.º 569/16.8T8OBR.
3. Por sentença de 24/11/2017, proferida naquele processo, foi decretado o divórcio entre o aqui autor e a aqui ré.
4. Nessa sede, o Tribunal considerou que a separação de facto do casal ocorreu a 07 de Agosto de 2015.
5. Essa sentença transitou em julgado em 12.01.2018.
6. Em sede da predita sentença, foi considerado provado, para além do mais, que: “2 - No dia 07 de Agosto de 2015, o autor saiu da casa de morada de família e desde então, apenas aí regressou, nos sábados, para visitar os filhos e neto. 3 – Após o referido em 2., o autor foi residir para … e, posteriormente, para …, onde permanece.”
7. Autor e ré, após o casamento, começaram por viver em …, posteriormente foram viver para as … e, mais tarde, edificaram casa em …, onde passaram a viver até à separação do casal, em 07/08/2015.
8. Sempre foi intenção do autor e da ré, depois de casados, construírem casa para viverem.
9. O casal construiu uma casa de habitação, de rés-do-chão, sita na Rua …, n.º .., Freguesia …, hoje, União de Freguesias …, composta por cozinha, duas salas, hall, dois corredores, 4 quartos, duas casas de banho, um bar e lavandaria.
10. A casa do casal é uma moradia relativamente grande, com boas condições de habitabilidade.
11. O autor é o cônjuge mais velho do dissolvido casal.
12. Em 18/04/2019 o autor requereu o inventário para separação de meações, no Cartório Notarial de Anadia, ao qual foi atribuído o n.º 2316/19.
13. Nesse processo foi o aqui autor nomeado cabeça-de-casal.
14. A 26.04.2019 o autor remeteu à ré a correspondência junta com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, correspondência essa que a ré recebeu.
» Mais se provou:
15. Para além do imóvel referido em 9. supra, o casal não possuía outra habitação.
16. Em 09/08/2015 o autor arrendou uma casa, em …, para onde foi morar mediante o pagamento da renda mensal de €250,00.
17. Em 7 de Julho de 2016 veio viver para …, tendo arrendado um apartamento mediante o pagamento da renda mensal de €300,00.
18. Em 10 de Setembro de 2018, arrendou, no mesmo local, outro apartamento, mediante o pagamento da renda mensal de €380,00.
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- FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente, não se provou:
a)Que a casa referida em 9. não tem condições para duas pessoas viverem de modo independente e sem interferência entre eles, dado que para que tal acontecesse seria necessário partilhar compartimentos em comum.
b) A ré não se dispôs a sair da casa.
c) O autor viu-se forçado a sair da casa em 07.08.2015 por não existirem condições mínimas para viverem ambos naquela casa.
d) A casa referida em 9. tem um valor locatício mensal de, pelo menos, €400,00.
e) Se a ré não continuasse a habitar a casa desde a separação do casal, facilmente o dissolvido casal arrendaria aquele imóvel por aquele valor locativo ou mesmo um valor superior.
f) Tanto mais que naquela localidade tem havido uma grande procura de casas para arrendar, não as havendo para o efeito, tendo os preços sido inflacionados, podendo a casa se fosse arrendada proporcionar um rendimento superior àquele ao património do dissolvido casal.
g) Por diversas vezes o autor comunicou à ré que pretendia arrendar aquela casa até à partilha dos bens do dissolvido casal, recebendo cada um metade da renda.
h) A ré nunca mostrou abertura para arrendar a casa.
i) Perante a atitude da ré, o autor referiu-lhe, diversas vezes, caso ela continuasse a viver na casa, teria de o compensar com metade do valor locativo da casa, para o ajudar a pagar a renda da casa que tinha e tem de pagar para viver, desde a separação até aos dias de hoje.
j) A ré, sem nada dizer ao autor e contra a vontade deste, pouco tempo após o autor deixar de lá habitar, mudou as fechaduras das portas para este lá não entrar, tendo ficado impedido de o fazer.
k) Isso terá acontecido cerca de 3 meses após ter deixado de lá habitar.
l) O autor nunca mais lá pode entrar em casa, nem entrou.
m) O autor sempre se opôs a que a ré ocupasse o prédio do casal, sem que lhe pagasse metade do valor locativo da moradia, ou o deixasse ocupar o prédio por período idêntico ao que ela já tinha ocupado.
n) A ré, após a separação do casal, sempre se opôs a que o autor entrasse na casa, ou a ocupasse, a arrendasse, nem nunca se disponibilizou em pagar-lhe uma compensação correspondente a metade do valor locativo, para comparticipar na renda que ele tinha de pagar mensalmente para ter uma habitação.
o) Se a ré tivesse permitido que a casa fosse arrendada, o dissolvido casal receberia, em conjunto, um valor igual ou superior a 400,00 €/mês de renda.
p) Assim não tendo sucedido, a massa patrimonial do dissolvido casal está empobrecida no valor correspondente a €400,00 por cada mês desde a data de separação de facto até aos presentes dias.
q) A ré não permitiu que o autor procedesse à administração dos bens da herança do dissolvido casal, o que aquele sempre quis fazer.
r) O autor sempre quis arrendar a casa referida em 9., só não o tendo efetuado devido à oposição da ré.
s) A ré ocupa a casa referida em 9 desde 07 de Agosto de 2015 contra a vontade do autor.
t) O autor esteve privado do uso e fruição dos proveitos dessa casa desde essa data e até à propositura da presente ação, devido à ocupação efetuada pela ré quanto a essa casa, sem a concordância daquele.
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3. O direito
- Da deficiente formulação das conclusões de recurso -
A apelada considera, sob os pontos III, IV, V, VI das conclusões na resposta ao recurso, que o apelante não deu cumprimento ao disposto no art. 639º/b) e c) do CPC, por não indicar o sentido com que deviam ser interpretadas as normas, nem o erro cometido na sentença, nem as normas que deviam ter sido aplicadas.
O art. 639º CPC estabelece os ónus a que obedece o recurso.
Prevê-se no art. 639º/2 CPC que versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: (a)) as normas jurídicas violadas; (b)) o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; (c)) invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
Omitidas tais formalidades cumpre ao relator convidar a parte a completar a sua alegação, com cominação de rejeição imediata do recurso (art.639º/3 CPC).
A falta de qualquer dos indicados requisitos não importa a rejeição imediata do recurso.
No caso presente não se procedeu ao convite a que se alude na lei, por se entender que as conclusões respeitam o critério legal e por constituir um ato inútil.
As conclusões de recurso não são completamente omissas quanto à indicação das normas jurídicas violadas, como se constata pela leitura do ponto 35 das conclusões de recurso, onde se enunciam as normas violadas, as quais também são referidas ao longo da peça processual.
De igual forma, o apelante indica no mesmo ponto as normas a aplicar.
Ao longo das conclusões de recurso, o apelante tece considerações de direito sobre as normas a aplicar, indicando o sentido interpretativo que defende, em relação à privação do uso da casa de morada de família e enriquecimento sem causa da apelada-ré.
Mesmo que se admita que o apelante não se expressou da melhor forma quanto à interpretação das normas jurídicas a aplicar, tal circunstância não impediu a apelada de compreender o alcance o recurso, rebatendo os argumentos apresentados pelo apelante no contexto da questão jurídica apreciada na sentença recorrida.
Por fim, resta referir que tal como decorre do art. 5º/3 CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito e visando o recurso a reapreciação da decisão, a questão jurídica a reapreciar está circunscrita à correta aplicação do direito, daí que a omissão de indicação da norma jurídica violada não impede a apreciação do recurso.
Considera-se, assim, que as conclusões reúnem os requisitos necessários para a apreciação do recurso, sem se mostrar necessário proceder ao seu aperfeiçoamento.
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- Da alegação de factos novos -
No ponto II da resposta ao recurso, a apelada considera que traz à ação factos novos sobre os quais não foi produzida prova, nem fundamentação de facto e por isso, não têm qualquer interesse na apreciação do mérito do recurso.
Efetivamente, sob os pontos 10, 14, 19, 20, 21 e 22 das conclusões de recurso, o apelante para sustentar a impugnação da sentença veio alegar um conjunto de factos que não foram oportunamente articulados na petição, nem em articulado superveniente. Reporta-se, em síntese, ao facto de ter constituído uma nova família e a casa de morada de família não reunir condições para albergar as duas famílias, motivo pelo qual estaria impedido de passar a ocupar tal casa juntamente com a ré-apelada.
O recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer[2]. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[3]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[4] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.
Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 272º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.
No caso presente não se verifica qualquer das situações de exceção.
Verifica-se que o apelante alegou um conjunto de factos novos e novos argumentos que não constam da petição. Se os mesmos decorrem da discussão da causa não foram oportunamente submetidos à apreciação do tribunal, pelo meio próprio previsto no art. 5º CPC.
Conclui-se, assim, nos termos do art. 627º CPC, que nenhuma relevância merece os novos factos e fundamentos de sustentação da sua defesa, pois os mesmos não foram considerados na decisão objeto de recurso e não são de conhecimento oficioso, sendo certo que ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal “a quo” ficando por isso vedado a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada). Tal como o juiz da 1ª instância, em sede de recurso, o tribunal “ad quem“ está limitado pelo pedido e seus fundamentos e pela defesa tal como configurados na ação, motivo pelo qual está impedido de conhecer do objeto do recurso nesta parte.
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- Da indemnização devida pelo privação do uso da casa de morada de família -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 33, insurge-se o apelante contra o segmento da sentença que julgou improcedente a ação e não reconheceu o direito à atribuição de uma quantia como compensação pela privação do uso da casa que constituiu a casa de morada de família, propriedade de autor e ré.
Considera o apelante que lhe assiste o direito a ser compensado pela privação do uso do prédio, o qual no mercado de arrendamento permitiria obter um rendimento mensal equivalente a € 400,00, motivo pelo qual deve ser compensado no valor equivalente.
Na sentença não se reconheceu o direito do réu a uma compensação pela utilização em exclusivo pela autora do imóvel que pertence em comum ao autor e ré.
Trata-se, assim, de apurar se decretado o divórcio e encontrando-se pendente processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, o mero uso, em exclusividade, por um dos cônjuges de imóvel que pertence em comum ao casal, confere ao outro o direito a obter uma indemnização ou compensação.
Resulta dos factos provados que autor e ré celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 13 de Julho de 1985, na Capela …, Paróquia …, Concelho de Anadia (ponto 1 dos factos provados).
No dia 14 de Novembro de 2016, o autor instaurou contra a ré ação de Divórcio, Sem Consentimento do outro Cônjuge, no Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro, à qual foi atribuído o n.º 569/16.8T8OBR (ponto 2 dos factos provados).
Por sentença de 24/11/2017, proferida naquele processo, foi decretado o divórcio entre o aqui autor e a aqui ré (ponto 3 dos factos provados).
Nessa sede, o Tribunal considerou que a separação de facto do casal ocorreu a 07 de Agosto de 2015 (ponto 4 dos factos provados).
Essa sentença transitou em julgado em 12.01.2018 (ponto 5 dos factos provados).
Autor e ré, após o casamento, começaram por viver em …, posteriormente foram viver para as … e, mais tarde, edificaram casa em …, onde passaram a viver até à separação do casal, em 07/08/2015 (ponto 7 dos factos provados).
O casal construiu uma casa de habitação, de rés-do-chão, sita na Rua …, n.º .., Freguesia …, hoje, União de Freguesias …, composta por cozinha, duas salas, hall, dois corredores, 4 quartos, duas casas de banho, um bar e lavandaria ( ponto 9 dos factos provados).
Em 18/04/2019 o autor requereu o inventário para separação de meações, no Cartório Notarial de Anadia, ao qual foi atribuído o n.º 2316/19.Nesse processo foi o aqui autor nomeado cabeça-de-casal (pontos 12 e 13 dos factos provados).
O imóvel em causa, adquirido na constância do matrimónio, constitui um bem comum do casal, por efeito do regime de bens que vigorava no casamento, a comunhão de adquiridos (art. 1721º, 1724ºb) CC). Tais factos não são questionados nos autos.
Apesar de estar pendente processo de inventário para partilha, subsequente a divórcio, não resulta provado que se tenha concluído a partilha. Sendo assim, o imóvel mantém a natureza de bem comum do casal, passando a aplicar-se o regime da compropriedade, nos termos do art. 1404ºCC[5].
De acordo com o artº 1405º nº 1 do Código Civil, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes.
Dispõe o artº 1406º nº 1 do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Uso da Coisa Comum” que na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Como ensinam os Professores PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[6], “[a] possibilidade de uso integral da coisa, como se, nesse aspeto, o contitular da propriedade fosse titular único da coisa, vale apenas como princípio supletivo e nos termos que adiante se desenvolvem. Em primeiro lugar, há que respeitar o que houver sido acordado entre os interessados. Este acordo tanto pode constar do título constitutivo da compropriedade, como resultar de acordo posterior, ditado pelo consenso unânime dos interessados ou pela simples maioria dos consortes, nos termos em que esta decide sobre a administração da coisa. A maioria, porém, nunca poderá privar qualquer dos consortes, sem o respetivo consentimento, do uso da coisa a que tem direito. Apenas lhe será lícito disciplinar esse uso, de modo a evitar conflitos e choques de interesses entre os vários comproprietários”.
“Há – continuam os mesmos autores – casos em que os comproprietários harmonizam os seus interesses conflituantes no uso da coisa comum, mediante uma divisão material do gozo dela. Sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade, os condóminos podem acordar em usar, separadamente, as dependências em que dividem a casa comum, ou os vários lotes de terreno em que repartem para o efeito o prédio rústico comum”.
Ainda, segundo a lição daqueles autores, “nos casos em que não é possível ou conveniente o uso por partes ou frações da coisa, ou o uso por turnos, os interessados acordam por vezes no uso direto promíscuo ou simultâneo. Este é perfeitamente exequível em muitos casos de propriedade comum (couto de caça, lago para pescar, jardim de recreio, pátio ou logradouro que sirva várias casas, etc.). Podem todavia, levantar-se dificuldades práticas e teóricas, quanto ao uso direto promíscuo de prédios urbanos, que não se prestem a divisão”.
No caso de compropriedade de uma casa de habitação, não podendo aos comproprietários ser imposto o dever de coabitarem uns com os outros, ou é materialmente possível dividir o uso, habitando cada um uma parte determinada da casa, ou a única alternativa será o gozo indireto, que se traduzirá, em regra, na locação do imóvel, a terceiro ou a um dos consortes, conforme decidir a maioria, no exercício dos poderes de administração que o artº 1407º lhe confere.
Porém, na falta de acordo, vigora a regra supletiva prevista no preceito, que estabelece o princípio do uso integral da coisa, princípio este que está sujeito a duas limitações: a que é imposta pelo fim da coisa e a que resulta da concorrência do direito dos demais consortes[7].
O que nenhum comproprietário pode é, a pretexto de que a lei lhe faculta o uso integral da coisa, comportar-se como se fosse proprietário exclusivo, privando os demais consortes do uso a que, tal como ele, têm direito[8].
No caso presente, no confronto com os factos provados, não resulta provado que entre autor e ré foi estabelecido um acordo sobre o uso do imóvel que lhes pertence em comum, pelo que, por aplicação do regime do art. 1406º/1 CC, assiste à ré-apelada, na qualidade de proprietária, em comum, o direito de usar de forma integral o imóvel.
Com efeito, o apelante-autor não logrou provar, que propôs à ré o arrendamento do imóvel, dividindo o rendimento proveniente das rendas (cfr. alíneas g) e h) dos factos julgados não provados).
Por outro lado, verifica-se que o uso que a ré faz e tem feito do imóvel desde a data em que o réu livremente se ausentou - agosto de 2015 – (cfr. ponto 6 dos factos provados), respeita o fim da coisa, a habitação, e não resulta demonstrado que tenha privado o réu do seu uso (cfr. alínea j), k), n) dos factos julgados não provados).
Aliás, decorre dos factos provados que o apelante se ausentou e passou a residir em casas que arrendou (pontos 6, 16, 17, 18 dos factos provados).
Provou-se que o autor deixou de residir no imóvel em agosto de 2015, sendo que a ré ali permaneceu a residir e esporadicamente o autor continuou a frequentar o imóvel para visitar filhos e neto (ponto 6 dos factos provados).
O apelante-réu não logrou provar que a casa não dispunha de condições para ali continuar a habitar, apesar de não viver em comunhão de vida com a ré, pois não se provou que não tem condições para duas pessoas viverem de modo independente e sem interferência entre eles, dado que para que tal acontecesse seria necessário partilhar compartimentos em comum (alínea a) dos factos julgados não provados).
O autor não logrou provar que abandonou o imóvel por ato imputável a título de culpa à ré (ponto 6 dos factos provados e alínea b), c), j), k), n) dos factos não provados), sendo sobre o réu que recaía o ónus da prova de tal facto (art. 342º/1 CC).
Sobre o ónus da prova de tais factos, pronunciou-se, entre outros, Ac. Rel. Lisboa 24 de fevereiro de 2015, Proc. 4548/08.0TBCSC.L1-7 (acessível em www.dgsi.pt), quando afirma: “[n]ão tem o comproprietário direito a reclamar qualquer compensação do outro comproprietário que, em exclusivo, tenha usado a fração respetiva durante determinado período, se não provar que foi desrespeitado qualquer acordo firmado entre ambos quanto a essa utilização, que foi impedido pelo outro de usar e fruir o imóvel, porque razão terá deixado de o fazer, ou que antes tivesse reclamado esse direito”.
Mostra-se, assim, lícita a ocupação do imóvel pela ré, como proprietária que é em comum com o autor-apelante, não sendo exigível o pagamento de uma contrapartida ao apelante-autor que não ficou privado da sua utilização.
Acresce ao exposto que pelo facto da fração em causa constituir a casa de morada de família, não confere, só por si, ao outro cônjuge o direito a reclamar uma contrapartida pela ocupação em exclusivo da habitação pelo outro cônjuge.
No âmbito do processo de divórcio, prosseguindo como processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge para fixar os efeitos do divórcio, por não se obter o acordo quanto à utilização da casa de morada de família, pode vir a fixar-se um regime provisório nos termos do art. 931º/7 CPC e um regime definitivo, com o decretamento do divórcio por mútuo consentimento, após produção de prova.
Distinto deste processo é aquele outro que se encontra previsto no art. 990º CPC.
O art. 1793º CC sob a epígrafe “Casa de Morada de Família” prevê:
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
O processo próprio para instruir tal pretensão está previsto no art. 990º CPC, sob a epígrafe: “Atribuição da casa de morada de família”, ao qual se aplica em parte o regime do divórcio sem consentimento do outro cônjuge (art. 931º/1/5/6 CPC) – art. 990º/2 CPC.
Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido é deduzido por apenso, como se prevê no art. 990º/4 CPC.
Contudo, a ser assim, deduzida a pretensão na pendência do processo de divórcio, sempre será necessário que o cônjuge interessado formule o pedido de constituição da relação de arrendamento a seu favor.
Por outro lado, tal pretensão apenas pode ser formulada quando está em causa casa de morada de família própria do outro cônjuge ou comum, ou ainda, casa de morada de família arrendada a terceiros pelos cônjuges.
Este procedimento reveste a natureza de processo de jurisdição voluntária, podendo o juiz investigar livremente os factos da causa e por outro lado, na providência a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 987º CPC).
Acresce que as resoluções podem ser livremente alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (art. 988º/1 CPC).
A jurisprudência tem defendido com unanimidade, seguindo a interpretação do Ac. do STJ de 26 de abril de 2012, Proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt., que são autónomas as questões constituídas pela pretensão de atribuição provisória da casa de morada de família durante o período da pendência do processo de divórcio (art. 931º/7 CPC); e pela constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no art. 990º CPC e prevista, como efeito do divórcio, no art 1793.º do CC.
A primeira traduz-se numa questão incidental, de natureza provisória, embora sem algumas das notas próprias das decisões cautelares, como seja a referente ao periculum in mora. A segunda constitui um incidente autónomo, constituído em processo de jurisdição voluntária e a tramitar por apenso ao processo de divórcio.
O Ac. STJ 13 de outubro de 2016, Proc. 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, proferido em sede de recurso de revista excecional, em nada contraria tal entendimento, quando situando-se na interpretação da providência requerida com base no art. 931º/6 CPC defende: “[a] ponderação equitativa das circunstâncias do caso concreto, especialmente prementes no campo da definição provisória das relações entre os cônjuges, na pendência do processo de divórcio: na verdade, a formulação legal – ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo - é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial e casuística das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso; no primeiro caso, o julgador entenderá que, perante o resultado de tal ponderação casuística, a vantagem auferida pelo cônjuge beneficiário com o uso exclusivo do imóvel não justifica a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, privado temporariamente do uso do bem; na segunda situação, pode o juiz temperar tal atribuição exclusiva com a imposição da obrigação do pagamento ao outro cônjuge de uma contrapartida económica, fundada em razões de equidade e justiça, aproximando-se, neste caso, ao menos por analogia, do regime de arrendamento que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família”.
E prosseguindo, refere-se: “[s]aliente-se que nos movemos no campo das decisões provisórias e cautelares, em que sempre se entendeu que o julgador dispõe de amplas possibilidades de valoração concreta e flexível dos interesses contrapostos, bem expressas, por exemplo, na norma constante do art. 376º, nº3, do CPC, ao prescrever que – em sede de procedimentos cautelares – o juiz não está sujeito à providência concretamente requerida, podendo decretar a que se revele mais eficaz e adequada à tutela do direito e à prevenção do periculum in mora.
O concreto conteúdo das medidas ou providências cautelares a decretar obedece, assim, desde há muito, a uma ampla possibilidade de modelação judicial, feita em função de juízos casuísticos, não se conciliando com uma rigidez de procedimentos, segundo a qual, independentemente das circunstâncias do caso, o tipo e a natureza da medida cautelar teriam de ser, sempre e necessariamente, definidas em abstrato; ora, tal flexibilidade impõe-se, por maioria de razão, no campo da jurisdição voluntária, em situações em que urge definir provisoriamente, segundo critérios substanciais de justiça e equidade, os interesses contrapostos dos cônjuges”.
Conclui-se no citado acórdão:”[i]nterpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família”.
Neste contexto, apesar da ação não seguir o regime previsto no art. 990º CPC – atribuição da casa de morada de família - consideramos que ao abrigo da providência prevista no art. 931º/7 CPC, sempre será possível fixar uma contrapartida a favor do cônjuge a quem não foi atribuída a casa de morada de família se tal se justificar no confronto do caso concreto, funcionando o regime previsto no art. 1793º CC como critério referencial.
No caso presente, verifica-se que no âmbito da ação de divórcio nada ficou estabelecido quanto ao uso da casa de morada de família. A ré permaneceu na casa.
Não se provou que tal circunstância tenha merecido oposição do autor (cfr. alíneas m), s) dos factos julgados não provados).
O processo correu os seus termos como processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, sem que fosse suscitado qualquer incidente pelo autor a respeito da atribuição da casa de morada de família à ré, nem foi desencadeado o procedimento previsto no art. 931º/7 CPC, no sentido de lhe ser atribuído, ainda que provisoriamente, uma compensação, nem ainda, o processo previsto no art.990º CPC, no sentido de se constituir uma relação de arrendamento.
Não lhe assiste, também por esta via, o direito a reclamar qualquer compensação, pois tal direito não foi exercido na sede e no tempo próprio, a ação de divórcio e os procedimentos conexos.
Apesar de não ser este o processo próprio para discutir da constituição de uma relação de arrendamento, nos termos do art. 1793ºCC, constata-se que não é esta a pretensão que o autor-apelante aqui veio deduzir, por não pretender a constituição de uma relação de arrendamento a seu favor, mas antes a atribuição de uma compensação pela privação do uso do imóvel.
Desta forma, mostrando-se lícita a ocupação do imóvel pela ré-apelada, ao abrigo do direito que a lei lhe confere (art. 1406º/1 CC), não assiste ao apelante-autor, o direito à compensação/indemnização que reclama.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 33.
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Numa segunda ordem de argumentos e a título subsidiário, sob o ponto 34 das conclusões de recurso, pretende o apelante que lhe seja reconhecido o direito, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
O instituto do enriquecimento sem causa, previsto no art. 473º/1 CC, tem como pressupostos:
- o enriquecimento de alguém;
- que o enriquecimento careça de causa justificativa; e
- que tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (ou do seu antecessor).
De acordo com o nº 2 do art. 473º CPC a obrigação de restituir tem por objeto:
- os casos em que nunca existiu causa justificativa para a deslocação patrimonial;
- os casos em que, embora existindo inicialmente, essa causa deixou depois de existir; e
- os casos em que a deslocação patrimonial teve em vista um determinado efeito que não se verificou.
O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que se pode traduzir num aumento do ativo patrimonial, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes atos sejam suscetíveis de avaliação pecuniária, outras ainda, na poupança de despesas.
A vantagem patrimonial de que se trata pode ser objetiva e isoladamente considerada – enriquecimento real - ou ser antes medida através da projeção concreta do ato na situação patrimonial do beneficiário – enriquecimento patrimonial[9].
Como defende MOITINHO DE ALMEIDA o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento constitui uma das condições para se verificar o enriquecimento sem causa[10].
Tradicionalmente a doutrina tem considerado que o empobrecimento será a diminuição ou perda sofrida pelo autor, ocorrida correlativamente ao aumento daí resultante para o património do réu[11].
Por outro lado, o enriquecimento será o resultado do empobrecimento e nisso se consubstancia o nexo de causalidade, o locupletamento à custa alheia (art. 473º/1 CC).
Com efeito, as situações de enriquecimento sem causa abrangem não só os casos em que existe uma correlação entre vantagem económica e empobrecimento do outro, mas ainda, os casos em que ao enriquecimento de um dos sujeitos não corresponde o empobrecimento do património do outro, mas a simples privação de um aumento deste[12].
Contudo, a inexistência de causa: “é a condição mais propriamente caracterizadora da ação de locupletamento, uma vez que pressupõe ter havido um enriquecimento injusto, que [se] não fosse injusto não seria sem causa[13]”.
Nas situações em que a deslocação patrimonial se opera mediante uma prestação, se a obrigação não existe ou porque nunca foi constituída ou porque já se extinguiu, a prestação carece de causa.
A causa do enriquecimento sempre que provém de uma prestação é a relação jurídica que a prestação visa satisfazer.
Nos casos em que o enriquecimento não provém de uma prestação do empobrecido ou de terceiro, “[o] enriquecimento é injusto porque segundo a própria lei, ele deve pertencer a outro[14]”.
ANTUNES VARELA refere a este respeito que:” [q]uando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrém, o enriquecimento carece de causa[15]”.
MENEZES CORDEIRO refere a este respeito que: “[a] ausência de causa emerge, […] da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo, ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, como coisa tolerada ou querida pelo direito[16]”.
ALMEIDA E COSTA considera que o enriquecimento carece de causa:”[…] quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial; sempre que aproveita, em suma, a pessoa diversa daquela a quem, segundo a lei, deveria beneficiar[17]”.
A interpretação da doutrina, perante a omissão de qualquer definição legal, serve como um critério de referência que não dispensa a cuidada análise do caso concreto, mas podemos concluir que o enriquecimento carece de causa, quando não tem uma base legal que o justifique.
Os pressupostos da ação integram factos positivos e factos negativos[18].
Nos factos positivos incluem-se o enriquecimento do réu, o empobrecimento do autor e o nexo de causalidade.
Os factos negativos “consubstanciam a ausência de causa”.
Contudo, como observa MOITINHO DE ALMEIDA: “a existência de causa, alegada pelo réu como exceção, [constitui] um facto positivo a provar por este”[19].
ANTUNES VARELA escreve a este respeito: “[a] falta de causa da atribuição patrimonial terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342º, por quem pede a restituição do indevido. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa”[20].
No mesmo sentido, ALMEIDA E COSTA, refere que: “[d]e harmonia com o princípio geral do art. 342º, cabe à pessoa que pede a restituição do indevido não só alegar, mas também provar a falta de causa da atribuição patrimonial”[21].
Na jurisprudência podem citar-se, entre outros, o Ac. STJ 19.02.2013, Proc. 2777/10.6TBPTM.E1.S1 e Ac. STJ 02.02.2010, Proc. 1761/06. 97UPRT.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
O enriquecimento sem causa tem caráter subsidiário, como prevê o art. 474º CC.
Decorre do citado preceito que não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
Na situação presente apurou-se que casa de morada de família de autor e ré, com as caraterísticas descritas nos pontos 9 e 10 dos factos provados, desde que o apelante cessou a comunhão de vida com a apelada, está a ser usada apenas pela apelada, quando não se provou que o apelante estava impedido de o usar. Tal situação não configura uma situação de enriquecimento sem causa, porque é o proprietário (ainda que em comunhão) que faz uso do imóvel para habitação.
Como resulta demonstrado, face aos argumentos expostos, a lei atribui às partes meios próprios para ultrapassarem a questão suscitada com o uso do bem comum por apenas um comproprietário e também prevê os mecanismos para atribuição da casa de morada de família, quando se verifica o divórcio e não dispõem os cônjuges de outra casa que satisfaça as necessidades de habitação.
Neste contexto fica afastado o regime do enriquecimento sem causa, que tem caráter subsidiário.
A situação em análise não se enquadra na figura que a doutrina designa “por intromissão nos bens ou direitos alheios”[22], que justifica o direito à restituição com fundamento em enriquecimento sem causa, mesmo quando não existe fundamento para responsabilidade civil.
No caso presente não resultou provado que a colocação do imóvel no mercado do arrendamento renderia uma quantia mensal de € 400,00 e apenas por ação da ré não foi possível obter tal rendimento (cfr. alíneas n) a r) dos factos julgados não provados). Nada se provou sobre a situação patrimonial do autor e ré. Apenas se apurou que o apelante-autor saiu de casa e suportou as despesas com o arrendamento de outros imóveis para sua habitação.
Contudo, o imóvel não reveste a natureza de bem alheio, pois pertence em comum ao apelante e apelada, ficando demonstrado o caráter lícito do uso apenas por um deles, sem que daí decorra qualquer dano para o outro, pois a cessação do uso resultou de um ato de vontade do apelante.
Neste sentido, afastando a aplicação do regime do enriquecimento sem causa, entre outros, pronunciou-se o Ac. Rel. Porto 29 de abril de 2021, Proc. 667/19.6T8STS.P1 (acessível em www.dgsi.pt).
Conclui-se, assim, que não merece censura a sentença que não reconheceu o direito à compensação pelo facto de apenas a ré apelada fazer uso do imóvel.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 35.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.
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Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Porto, 10 de janeiro de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] CASTRO MENDES Direito Processual Civil – Recursos, ed. AAFDL, 1980, pag. 5.
[3] CASTRO MENDES, ob. cit., pag. 24-25 e ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil, vol V, pag. 382, 383.
[4] Cfr. os Ac. STJ 07.07.2009, Ac. STJ 20.05.2009, Ac. STJ 28.05.2009, Ac. STJ 11.11.2003 Ac. Rel. Porto 20.10.2005, Proc. 0534077 Ac. Rel. Lisboa de 14 de maio de 2009, Proc. 795/05.1TBALM.L1-6; Ac. STJ 15.09.2010, Proc. 322/05.4TAEVR.E1.S1 (http://www.dgsi.pt )
[5] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, Coimbra, Fevereiro de 2011, pag. 350
[6] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, Coimbra, Fevereiro de 2011, pag. 357
[7] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. III, ob. cit., pag. 358 e LUIS A. CARVALHO FERNANDES Lições de Direitos Reais, Quid Juris Sociedade Editora, 6ª edição, Lisboa, 2009, pag. 358 e ANA PRATA (coord.) Código Civil Anotado, vol.II, Almedina, Coimbra, 2017, pag.218
[8] Cfr. Ac. Rel. Lisboa 03 de julho de 2014, Proc. 6044/08.7TMSNT.L1-8; Ac. Rel. Lisboa 24 de fevereiro de 2015, Proc. 4548/08.0TBCSC.L1-7; Ac. Rel. Porto 06 de maio de 2013, Proc. 1161/11.9TJPRT.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt
[9] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol.I, 3ª edição, Revista e Atualizada, Coimbra, Livraria Almedina, 1980, pag. 373
[10] L. P.MOITINHO DE ALMEIDA, Enriquecimento sem Causa – Jurisprudência Atualizada, 3ª edição, reimpressão da 3ª edição de Junho /2000, Coimbra, Edições Almedina, SA, 2007, pag. 51.
[11] L. P.MOITINHO DE ALMEIDA, Enriquecimento sem Causa – Jurisprudência Atualizada, ob. cit., pag.61.
[12] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pag. 381-383.
[13] L. P.MOITINHO DE ALMEIDA, Enriquecimento sem Causa – Jurisprudência Atualizada, ob. cit., pag. 72.
[14] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pag. 376-379.
[15] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pag. 380.
[16] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2º Volume, reimpressão, 1ª edição 1980, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, pag. 56.
[17] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª edição, Revista e Aumentada, Coimbra, Livraria Almedina – Coimbra, 2001, pag. 457.
[18] Cfr. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, 9º edição, revista e aumentada, Coimbra, Almedina, 2001, pag. 449, 450 a 462 e MOITINHO DE ALMEIDA, Enriquecimento sem causa – jurisprudência atualizada, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, pag. 111.
[19] MOITINHO DE ALMEIDA Enriquecimento sem causa – jurisprudência atualizada ob., cit., pag. 111.
[20] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 1980, pag. 381.
[21] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, ob. cit., nota (2), pag. 458.
[22] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 1980, pag. 395