I. Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
II. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao Tribunal o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
III. Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
IV. A nulidade do acórdão, sustentada na contradição, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão encerra um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada, ou seja, a nulidade do aresto, sustentada na ininteligibilidade do discurso decisório, ocorrerá sempre que a anunciada explicação que conduz ao resultado adotado, induz logicamente a um desfecho oposto ao reconhecido.
I. RELATÓRIO
1. Arquidiocese de Braga, pessoa coletiva de direito canónico NIF 500.793.018, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Município de Braga, autarquia local de natureza territorial NIF 506.901.173 pedindo que sendo julgada procedente a ação se declare que: a) A Autora é a exclusiva e legítima dona do prédio denominado “Parque ...”, situado no ..., ... e ..., concelho de ..., descrito na ..ª C.R.Predial de ... sob o n.º ...25 (anterior descrição predial n.º ...21 no L ...) e inscrito na matriz sob o art. ...14º (anterior art. ...93º, que teve origem no pretérito art. ...64º), com a área de 24.000 m2, composto ao centro pela Capela ... e respectivo alpendre, e ainda espalhados pelo logradouro da capela, por um cruzeiro, um edifício social, um coreto e um quiosque, alminhas e um lago; b) É ilícita e abusiva a utilização e parcial ocupação que o Réu faz desse prédio; c) O Réu está obrigado a abster-se de utilizar, fruir, usar e ocupar esse prédio; d) O Réu está obrigado a abster-se de perturbar o gozo, fruição, uso e utilização que a Autora vem fazendo e continuará a fazer desse prédio; e) O Réu está obrigado a restituir à Autora a parte do prédio que ocupou com parque de estacionamento no estado em que se encontrava, livre e devoluto de pessoas e bens. - se condene o Réu a: a) A restituir à Autora a identificada parte do prédio ora reivindicado, livre e devoluta de pessoas e bens.
2. Regularmente citado, o Réu apresentou contestação.
3. A Autora apresentou a réplica.
4. Calendarizada e realizada a audiência final, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
“Pelo exposto, o Tribunal decide:
- julgar improcedente a acção e, em consequência, absolve-se a ré de todos os pedidos formulados contra si;
- julgar procedente a reconvenção e, em consequência, condena-se a autora a reconhecer que o Parque ... integra o domínio público do Município de Braga;
- ordenar que a Conservatória do Registo Predial de ... proceda ao cancelamento da descrição n.º ...25 e que o Serviço de Finanças de ... proceda ao cancelamento da matriz urbana inscrita como o n.º …24 da ... (... e ...).”
5. Inconformada com a sentença proferida, a Autora/Arquidiocese de Braga dela apelou, tendo a Relação conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi enunciado:
“Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação e confirmam a douta sentença recorrida.”
6. Novamente irresignada, a Autora/Arquidiocese de Braga interpôs revista, em termos gerais, e subsidiariamente, em termos excecionais, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil.
7. Conhecido o interposto recurso, este Tribunal ad quem concluiu no segmento decisório do respetivo acórdão:
“Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente a revista interposta, em termos gerais, e, consequentemente:
a) Determinar a reapreciação da matéria de facto rejeitada, concretamente, a decisão de facto atinente aos pontos 1. a 10. dos factos não provados e pontos 62. a 92. dos factos provados, pelos mesmos juízes que elaboraram o acórdão recorrido, se for possível;
b) Determinar que a Relação verifique se o resultado dessa reapreciação implica a alteração dos outros pontos do acórdão, procedendo às alterações que entender.
c) Custas a cargo da parte vencida, a final.”
8. Notificados do acórdão, o Recorrido/Réu/Município de Braga arguiu a nulidade do acórdão, aduzindo, com utilidade, a seguinte argumentação:
“1. Na página 59 do douto acórdão escreveu-se o seguinte: “A ali Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga, quer na motivação, quer nas conclusões do interposto recurso para a Relação, referiu expressamente que entendia que se mostrava incorretamente julgado os factos (...) tendo assim indicado de forma inequívoca o sentido da decisão que pretende, a par de ter enunciado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (…) que impunham decisão diversa da recorrida”.
2. Esta afirmação, porém, não tem respaldo nas alegações de recurso para a Relação que a Recorrente apresentou.
3. Pensamos que o acórdão ora posto em crise foi induzido em erro pelas ditas alegações, o que bem se compreende atenta a invulgaridade do recurso em matéria de facto: pretende-se que 10 factos sejam dados por provados e 30 factos sejam dados por não provados.
4. Na motivação a Recorrente requer a alteração dos factos 1 a 10 e invoca para tal, apenas, os depoimentos de 10 testemunhas.
5. Na mesma motivação, para a alteração dos factos 62 a 92 a Recorrente invoca os depoimentos de 12 testemunhas (as 10 que indicou para a alteração aos factos 1 a 10) e os documentos nºs 1 a 13 da contestação.
6. Há, portanto, para os factos 62 a 92, duas testemunhas “novas”, por assim dizer – AA e BB (cfr. págs. 121 e 122 das alegações) - e 13 documentos.
7. Só que dos depoimentos destas duas testemunhas não foram efectuadas quaisquer transcrições.
8. A Recorrente indicou as horas de início e fim dos depoimentos mas nada mais.
9. Não deu, pois, cumprimento à afirmação do acórdão supra transcrita quanto à obrigação de se transcrever os segmentos dos depoimentos que suportam a alteração da matéria de facto.
10. Ocorre, assim, uma clara violação do que o próprio acórdão assinala.
11. Nas conclusões o incumprimento é ainda mais ostensivo.
12. Na conclusão 2ª a Recorrente reporta-se aos factos 1 a 10,
13. Na conclusão 3ª a Recorrente reporta-se aos factos 62 a 92,
14. E nas conclusões 4ª e 5ª a Recorrente indica como meios de prova para a requerida alteração da matéria de facto (62 a 92) os depoimentos de 10 testemunhas (quando na motivação tinha invocado 12 testemunhas),
15. E um documento, quando na motivação tinha indicado 13 documentos.
16. Por conseguinte, é fácil concluir que a Recorrente não indicou quais os concretos meios probatórios que fundamentam a alteração dos factos 1 a 10.
17. Ou seja, também aqui se confirma que o recurso não cumpre o que o acórdão refere.
18. Temos, assim, de concluir que o acórdão é nulo porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão.
19. O acórdão refere que na motivação todos os depoimentos têm passagens transcritas: assim não acontece.
20. O acórdão recorrido refere que as conclusões indicam os concretos meios probatórios necessários à alteração da matéria de facto: assim também não acontece.
21. Ou seja, a fundamentação do acórdão não é consentânea com o decidido.
22. Face à dita fundamentação, o acórdão deveria ter decidido no mesmo sentido do acórdão da Relação, pois a Recorrente não deu cabal cumprimento às determinações legais na matéria.
23. Há, assim, contradição entre a fundamentação e a decisão, o que constitui nulidade que expressamente se invoca.
24. ACRESCE, ainda, que o acórdão considera que o Município e Braga dispunha dos “elementos de que necessitava para se pronunciar sobre a impugnação da decisão de facto”.
25. Não se vislumbra como tal é possível.
26. Começa a Recorrente por requerer sejam dados por provados 10 (dez) factos (cfr. página 12 das alegações).
27. Esta requerida alteração da matéria de facto tem por base os depoimentos de 10 (dez) testemunhas, transcritos pela Recorrente na sua quase totalidade.
28. Sucede, porém, que a Recorrente não faz nenhuma conexão entre as passagens transcritas e cada um dos factos que pretende ver provados, procedendo a uma espécie de impugnação “por atacado” ou “em bloco”, por via da qual um conjunto vastíssimo de passagens de depoimentos (quase a totalidade dos depoimentos foi transcrita, note-se) serve para provar um conjunto alargado de factos.
29. Impunha-se que a Recorrente especificasse, por cada facto que pretende ver provado, quais as passagens dos depoimentos das testemunhas que sustentam tal pedido, sob pena de não se lograr compreender o que, verdadeiramente, motiva a alteração à matéria de facto.
30. Pergunta-se, a título de exemplo: as passagens transcritas do depoimento da primeira testemunha indicada (CC) visam suportar a alteração dos dez factos? Ou só um facto? Ou cinco factos? Ou algumas passagens servem uns factos e outras passagens servem outros factos? A verdade é que a resposta a esta pergunta é: não se sabe.
31. E não se sabe porque a Recorrente não indicou, para cada facto, quais os depoimentos e respectivas passagens que fundamentam o seu pedido.
32. Seguidamente a Recorrente pretende que sejam considerados não provados 31 (trinta e um) factos que a sentença julgou provados.
33. Neste caso a Recorrente sustenta o seu pedido nos depoimentos de 12 (doze) testemunhas que indica (cfr. págs. 121 e 122 das alegações).
34. Nesta situação, porém, a Recorrente não transcreve quaisquer passagens dos depoimentos, remetendo para as anteriores transcrições.
35. Por isso, as objecções supra apontadas dão-se aqui por reproduzidas, mas com duas notas adicionais.
36. Uma primeira nota para referir que este segmento da impugnação da matéria de facto é ainda mais precário, porquanto uma parte significativa destes 31 factos provados respeita a matéria que nenhuma relação tem com os 10 factos a aditar, e muita desta factualidade nem foi abordada pelas testemunhas, resultando exclusivamente de documentos (situações ocorridas nos séculos 19 e inícios do século 20, que naturalmente as testemunhas não presenciaram).
37. Uma segunda nota para recordar que não foram transcritas quaisquer passagens dos depoimentos das testemunhas AA e BB.
38. Ora, se as transcrições dos depoimentos de 10 testemunhas (algumas das transcrições são quase completas) servem para fundamentar a alteração de 41 factos (10 + 31), e tantas e diversas questões foram abordadas pelas testemunhas, como se pode o Município defender?
39. Não compete ao Município apurar qual ou quais as passagens imputáveis a cada facto.
40. E também não pode o Município presumir que as passagens transcritas fundamentam toda a alteração de factos requerida.
41. Por isso é uma tarefa impossível para o Município.
42. Não é necessária muita experiência em elaborar contra-alegações de recurso para se chegar a esta conclusão.
43. É como alguém ser acusado de 10 crimes e depois se dizer que as provas são todas as que estão nos autos.
44. É imprescindível imputar a cada facto um meio de prova.
45. Aceitar como válida a alegação de recurso da Recorrente é coarctar o direito ao recurso do Município e, assim, ferir de morte o princípio do contraditório;
46. É transferir para o Recorrido o incumprimento da Recorrente.
47. Esta interpretação do artigo 640º/nºs. 1 e 2 do CPC, a manter-se, atento o exposto, é inconstitucional por violação do princípio do contraditório, presente no princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º da CRP.
48. Esta interpretação, a manter-se, é igualmente contrária a jurisprudência constante do próprio Supremo Tribunal de Justiça para a mesmíssima situação:
- acórdão de 05.09.2018 (proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2, no qual se invoca o acórdão do STJ de 20.12.2017, no processo nº 299/13.2TTVRL.C1.S2):
“1 - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
2 - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”;
- acórdão de 20.02.2019 (proc. nº 1338/15.8T8.PNF.P1.S1):
“No caso dos autos, analisando o corpo das alegações e conclusões da apelação, atrás transcritas, verificamos que, no que se refere à prova que indica para fundar a alteração que pretende relativamente aos factos dos artigos 2º., 3º., 4º., 5º., 6º., 7º., 8º., 9º., 10º., 15º., 17º., 18º., 19º., 20º., 21º., 22º. e 23º da base instrutória, o recorrente não concretizou, por referência a cada facto impugnado, quais os meios probatórios que, no seu entender,
49. Ora, nesta situação, em que o acórdão considera que o Município dispõe dos elementos suficientes para contra-alegar, verifica-se a nulidade prevista no artigo 615º/nº 1 b) do CPC, por falta de fundamentação de facto e de direito.
50. A pronúncia sobre o direito ao contraditório do Município é pobre, e exigia superior fundamentação.
51. E esta fundamentação torna-se ainda mais necessária quando se decide em sentido contrário a jurisprudência constante e uniforme, pois além do caso concreto há que ponderar o efeito que tem na credibilidade da Justiça tal decisão.
52. Não que seja ilícito ter opinião diferente da maioria, como é bom de ver: o julgador pode sempre decidir no sentido que entende ser o mais correcto, dentro dos requisitos legais.
53. Mas uma única decisão em sentido contrário a muitas outras decisões, sobre a mesma situação, causa sempre perplexidade e incompreensão na comunidade sobre o papel da Justiça.
9. A Recorrente/Autora/Arquidiocese de Braga respondeu nos seguintes termos:
“O Recorrido vem, ao abrigo do disposto nos artigos 666º e 615º/nº 1 b) e c) do CPC, arguir para a CONFERÊNCIA nulidades que assaca ao douto Acórdão proferido.
Esta pretensão do recorrido constitui uma capa diáfana para reverter o decidido. O artigo 615.º sob a epígrafe “causas de nulidade da sentença” determina que é nula a sentença quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
Ora, nenhum dos casos previstos nesta norma se verificam in casu.
Não se compreende como se possa referir que a decisão do Acórdão não é consentânea com a fundamentação.
O couto Acórdão decidiu que “A ali Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga, quer na motivação, quer nas conclusões do interposto recurso para a Relação, referiu expressamente que entendia que semostrava incorretamente julgado os factos (...)tendo assim indicado de forma inequívoca o sentido da decisão que pretende, a par de ter enunciado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (…) que impunham decisão diversa da recorrida”.
O que se pode, aliás, constatar do teor das alegações de recurso de Apelação.
O Acórdão está fundamentado, uma vez que enuncia os factos provados, aplica as normas jurídicas que julga adequadas á situação fáctica, decidindo em conformidade, independentemente de se saber se a decisão está correcta ou não e fá-lo de forma coerente pois que não se vislumbra contradição entre a fundamentação do Douto Acórdão e a decisão, nem se verifica que se tenha pronunciado sobre questão que não tivesse sido colocada. O Acórdão enuncia claramente os «fundamentos de facto» provados que servem de suporte à aplicação do direito, e cita as alegações da Apelação e o decidido pela decisão da relação de ... - Ou seja enuncia também os «fundamentos de direito» que justificam a decisão que acaba por ser proferida. E sem qualquer contradição o faz.
Pode o Recorrido se concordar quer com o decidido, mas isso nunca significa que o Acórdão esteja ferido de nulidade porque os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou porque conheceu de questão que não podia conhecer.
Não assiste razão ao Recorrido, pelo que deve ser indeferido o requerimento de nulidade.”
10. Foram dispensados os vistos
11. Cumpre decidir
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme estatui o direito adjetivo civil quanto aos vícios e reforma do acórdão, uma vez proferido o aresto, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Tribunal quanto à matéria da causa, sendo lícito ao Tribunal, porém, retificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes no acórdão e reformá-lo, nos termos prevenidos no direito adjetivo civil - art.º 613º nºs. 1 e 2 ex vi artºs 666º n.º. 1 e 679º, todos do Código de Processo Civil - .
O direito adjetivo civil enuncia, imperativamente, no n.º 1 do art.º 615º, aplicável ex vi artºs. 666º e 679º, todos do Código de Processo Civil, as causas de nulidade do acórdão.
Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito (alínea b) do nº. 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil) está relacionada com o comando que impõe ao Tribunal o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Na verdade, a fundamentação das decisões é uma exigência constitucional - art.º 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - e legal - artºs. 154º, 607º e 663º, todos do Código de Processo Civil.
É na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório.
Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 615º do Código de Processo Civil.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por outro lado, a nulidade do acórdão, sustentada na contradição, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão encerra um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada, ou seja, a nulidade do aresto, sustentada na ininteligibilidade do discurso decisório, ocorrerá sempre que a anunciada explicação que conduz ao resultado adotado, induz logicamente a um desfecho oposto ao reconhecido.
Atentemos se o aresto proferido padece das invocadas nulidades.
Conforme decorre do enquadramento jurídico vertido no acórdão proferido não distinguimos como é que o Recorrido/Réu/Município de Braga pode afirmar a contradição entre os fundamentos e a decisão, sustentando que o afirmado no acórdão encerra afirmações que não têm respaldo nas alegações de recurso para a Relação que a Recorrente apresentou, concretamente, quando consignou que: “A ali Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga, quer na motivação, quer nas conclusões do interposto recurso para a Relação, referiu expressamente que entendia que se mostrava incorretamente julgado os factos (...) tendo assim indicado de forma inequívoca o sentido da decisão que pretende, a par de ter enunciado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (…) que impunham decisão diversa da recorrida”, afirmando, por sua vez o Recorrido que “na motivação a Recorrente requer a alteração dos factos 1 a 10 e invoca para tal, apenas, os depoimentos de 10 testemunhas. Na mesma motivação, para a alteração dos factos 62 a 92 a Recorrente invoca os depoimentos de 12 testemunhas (as 10 que indicou para a alteração aos factos 1 a 10) e os documentos nºs 1 a 13 da contestação. Há, portanto, para os factos 62 a 92, duas testemunhas “novas”, por assim dizer – AA e BB (cfr. págs. 121 e 122 das alegações) - e 13 documentos. Só que dos depoimentos destas duas testemunhas não foram efectuadas quaisquer transcrições. A Recorrente indicou as horas de início e fim dos depoimentos mas nada mais. Não deu, pois, cumprimento à afirmação do acórdão supra transcrita quanto à obrigação de se transcrever os segmentos dos depoimentos que suportam a alteração da matéria de facto.”
Ora, a este propósito, convirá relembrar o que se enunciou no aresto proferido por este Tribunal ad quem “Revertendo ao caso dos autos, coloca-se a questão de saber se foi cumprido o ónus que impende sobre a Recorrente/Autora/Arquidiocese de Braga, com vista à apreciação pela Relação, da impugnação da decisão de facto.
No que tange às conclusões recursivas apresentadas pela Recorrente/Autora/Arquidiocese de Braga, que tivemos o cuidado de consignar, no precedente segmento, apelidado de relatório, divisamos, concretamente quanto aos factos não apurados detalhados em 1. a 10, e quanto aos factos apurados elencados nos pontos 62. a 92., ter a Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga individualizados os factos que, pretensamente, estão mal julgados, especificando, com concretização particular, os meios de prova que impõem a modificação da decisão de facto, outrossim, qual o sentido da decisão concreta a proferir, e, inclusive, uma vez que se trata também de declarações gravadas, a Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga concretizou, na motivação do recurso, as passagens dos depoimentos que tal há de permitir, a par da indicação de outros meios de prova julgados pertinentes para a decisão de facto.
A ali Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga, quer na motivação, quer nas conclusões do interposto recurso para a Relação, referiu expressamente que entendia que se mostrava incorretamente julgado os factos não apurados detalhados em 1. a 10 e os factos apurados elencados nos pontos 62. a 92., discordando da decisão de facto daquele Tribunal de 1ª Instância quando, respetivamente, os não teve por adquirido processualmente, ao invés de o considerar provado (factos não apurados detalhados em 1. a 10), a par de os julgar demonstrados, quando se impunha a sua não aquisição processual (factos apurados elencados nos pontos 62. a 92.), tendo, assim, indicado de forma inequívoca o sentido da decisão que pretende, a par de ter enunciado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, (com transcrição de parte das gravações dos depoimentos, julgados relevantes, de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL) que impunham decisão diversa da recorrida, mencionando também, e especificamente, os documentos entendidos por relevantes para a reponderação da facticidade impugnada.”
Não descortinamos, pois, onde o aresto proferido por este Tribunal faz referência às “duas testemunhas “novas”, por assim dizer – AA e BB”, bastando, para isso, cotejar o acórdão proferido para se aferir de modo linear a respetiva inteligibilidade neste conspecto.
Não divisamos, assim, que o aresto proferido encerre erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada, não colhendo, de todo, a invocada contradição do acórdão proferido.
De igual modo, não se descortina como é que se poderá conceber que o acórdão proferido não fundamenta a afirmação de que o Município de Braga dispõe dos elementos de que necessita para se pronunciar sobre a impugnação da decisão de facto.
Continuando a relembrar os segmentos do acórdão proferido, acima enunciados, [(…) tendo, assim, indicado de forma inequívoca o sentido da decisão que pretende, a par de ter enunciado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, (com transcrição de parte das gravações dos depoimentos, julgados relevantes, de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL) que impunham decisão diversa da recorrida, mencionando também, e especificamente, os documentos entendidos por relevantes para a reponderação da facticidade impugnada.”], importa sublinhar o que então também foi afirmado: “(…) a Apelante/Autora/Arquidiocese de Braga ao impugnar a decisão de facto não se limitou a fazer simples afirmações genéricas de que a decisão devia ser diversa, ficando sem saber para cada facto qual o fundamento e a razão de ser da pretensão da recorrente, bem pelo contrário, ao impugnar a decisão da matéria de facto, nos termos enunciados, sublinhamos, especificou os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados; os concretos meios probatórios que na ótica da recorrente impunham decisão diversa; e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo bastante, salvo o devido respeito por opinião contrária, a indicação feita dos meios de prova, e uma vez que também engloba depoimentos gravados, a enunciação dos respetivos segmentos, tidos por relevantes, a exigir, pois que o Tribunal da Relação repondere a decisão de facto proferida em 1ª Instância.
(…) permitindo não só ao Recorrido/Réu/Município de Braga dispor dos elementos de que necessitava para se pronunciar sobre a impugnação da decisão de facto, a par de ter fornecido à Relação os dados necessários para da mesma conhecer”
Da leitura do acórdão proferido, cremos, assim, resultar do mesmo inequívoca e suficiente fundamentação da razão pela qual o Recorrido/Município de Braga dispõe dos elementos de que necessita para se pronunciar sobre a impugnação da decisão de facto, sendo certo que o acórdão proferido por este Tribuna ad quem teve o cuidado de enunciar os meios probatórios a ter em consideração, e em momento algum faz referência às “duas testemunhas “novas”, por assim dizer - AA e BB”, cuja enunciação do depoimento não contempla, necessariamente, os requisitos atinente à reponderação da decisão de facto, por parte da Relação, daí que entendemos, sem prejuízo de nos repetir, que recolhemos do acórdão proferido, sustentação bastante dos termos enunciados e a considerar para a apreciação da impugnação da decisão de facto, dispondo o Recorrido de todos os elemento para exercer o contraditório.
Reconhecida a inteligibilidade do aresto proferido, entendemos não se justificar quaisquer das invocadas nulidades, antes parecendo reconduzir, ao cabo e ao resto, a um entendimento jurídico diverso daqueloutro assumido pelo Tribunal ad quem, o que, não deixando de ser legitimo discordar do enquadramento jurídico perfilhado na decisão, cremos que jamais poderá ancorar qualquer sustentação das arrogadas nulidades do acórdão, sublinhando que o acórdão proferida se encontra fundamentado, a par de que a consignada explicação conduz logicamente ao resultado adotado.
De todo o modo, não deixamos de anotar a constitucionalidade da interpretação levada a cabo do art.º 640º do Código de Processo Civil, aliás, em conformidade com a Jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça, como discreteado no acórdão proferido.
Tudo visto, não reconhecemos as invocadas nulidades do aresto, e acreditando ser despiciendo outras considerações a este respeito, afirmamos a inteligibilidade do acórdão proferido.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo em Conferência, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedentes as invocadas nulidades, mantendo-se, na íntegra, o acórdão proferido.
Custas pelo Recorrido/Réu/Município de Braga, fixando em 3UCs.
Notifique.
Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa. 9 de dezembro de 2021
Oliveira Abreu (relator)
Nuno Pinto Oliveira
Ferreira Lopes