COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
EXECUÇÃO
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
RESIDÊNCIA
Sumário


I - A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.
II - Cabe aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós, importando para tanto, como decorre do preceituado no art. 8º, nº 4, da Constituição e no art. 59º do CPC, analisar, em primeiro lugar, se tendo o caso dos autos elementos de conexão com diversas ordens jurídicas, existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência.
III - As normas do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro de 2003, relativas à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, constituem regras de competência internacional direta, que devem ser respeitadas pelos tribunais dos Estados Membros da União Europeia.
IV – Não é de exigir que a internacionalidade da relação ocorra apenas entre Estados Membros da União Europeia, podendo também ocorrer entre um Estado-Membro e um Estado terceiro, desde que, pelo menos, um dos elementos de estraneidade previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, apresente uma conexão significativa com um dos Estados-Membros.
V - Os critérios gerais que definem a competência internacional de um Estado-Membro em questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento previstos no citado art. 3º, nº 1, alíneas a) e b), são alternativos, no sentido de que inexiste entre eles uma hierarquização e de que são de aplicação concorrente, tendo, por isso, o cônjuge ou os cônjuges requerentes do pedido de divórcio, o direito de optar por qualquer um deles.
VI – Tendo a ré nacionalidade francesa e o autor nacionalidade portuguesa e residindo este em Portugal há vários anos, verifica-se in casu o critério da residência previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 3º do Regulamento: “a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anterior à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão, quer no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicílio”».
VII - A circunstância de a ré residir com as filhas do casal em Andorra não tem qualquer interesse para a decisão do presente pleito, na medida em que a mesma não se integra em nenhum dos critérios atributivos da competência internacional estabelecidos no artigo 3º, nº 1, do Regulamento, não relevando, por isso, para determinar o tribunal competente para decidir sobre o pedido de divórcio. (sumário)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
No Juízo de Família e Menores de Abrantes (Tribunal Judicial da Comarca de Santarém), V…, residente na Rua … Abrantes, instaurou contra S…, residente em …, Santa Coloma, AD500, Principat de Andorra, ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, pedindo que seja decretado o divórcio entre ambos.
Alegou, em síntese, que autor e ré contraíram casamento em 23 de novembro de 2005, sem convenção antenupcial, na secção Consular da Embaixada de Portugal em Andorra, e do casamento resultou o nascimento de duas filhas, T…, nascida em 16 de janeiro de 2000, e C…, nascida em 14 de março de 2006, sendo que após o casamento, autor e ré passaram a viver no Principat de Andorra.
Mais alegou o autor que desde o nascimento da segunda filha do casal, os desentendimentos entre o autor e a ré começaram a ser frequentes, relativamente a aspetos da vida do casal e, apesar das tentativas, tal situação não normalizou, e por esse motivo a ré solicitou ao autor que saísse da casa de morada da família, o que veio a acontecer em janeiro de 2007, e desde essa data autor e ré têm vivido separados de facto, tendo inclusive o autor vindo viver para Portugal, sendo que durante todo esse tempo autor e ré não reataram o trato conjugal, não havendo comunhão de habitação, mesa ou leito, pelo que o relacionamento entre ambos se encontra completamente esgotado, não pretendendo o autor, também, a manutenção do casamento.
O Sr. Juiz a quo proferiu despacho liminar e, ao abrigo do disposto nos artigos 52º, nºs 1 e 2 e 55º, nº 1 do Código Civil, 59º, a contrario sensu, 63º a contrario sensu, 97º, nº 1, 98º e 99º, nº 1, do CPC, julgou verificada a exceção da incompetência do Juízo de Família e Menores de Abrantes do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, em razão da nacionalidade, declarando a incompetência absoluta daquele Tribunal e, em consequência, absolveu a ré da instância.
Inconformado, o autor recorreu do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 - No caso concreto está em causa um casal que contraiu matrimónio na Secção Consular da Embaixada de Portugal, em Andorra, sendo o Recorrente de nacionalidade Portuguesa, e residente em Portugal, e a Recorrida de nacionalidade francesa, residindo em Andorra;
2 - O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo considerou o Juízo de Família e Menores de Abrantes, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, incompetente em razão da nacionalidade, declarando a incompetência absoluta desse Tribunal, considerando excluída a aplicação do Regulamento Bruxelas II BIS;
3 - O Acórdão da Relação do Porto, cujo raciocínio foi seguido na decisão em recurso, reporta-se a uma situação que não é análoga à dos presentes autos, porquanto nesse processo, apesar das partes serem nacionais de dois Estados-Membros distintos, tinham residência comum em Portugal;
4 - De modo que o artigo 3º do Regulamento 1259/2010, do Conselho, não tem aplicabilidade no caso concreto;
5 - O Recorrente entende que a lei aplicável quanto à apreciação dos requisitos do divórcio deverá ser a do Principado de Andorra, e que os Tribunais Portugueses são competentes para o efeito, conforme resulta do artigo 2º, do Regulamento 1259/2010 do Conselho;
6 - Na conjugação do disposto no Regulamento CE 2201/2003, de 27 de Novembro, em conjugação com o artigo 62º, do CPC e com o artigo 3º do citado Regulamento, o Recorrente entende que não se verificam os elementos de conexão no que concerne à mesma nacionalidade e residência;
7 - Verifica-se, no entanto, preenchido o requisito da residência em Portugal, há mais de um ano, por parte do Recorrente, o que leva a concluir pela competência do Tribunal Português onde a acção foi proposta;
8 - Em último caso, entendendo-se de modo diferente, o que se admite como mera hipótese, há que ter em conta o disposto no artigo 7º, nº 1 do Reg. CE 2201/2003, de 27 de Novembro, do Conselho, de acordo com o qual “se nenhum Tribunal de um Estado-Membro for competente, nos termos do art. 3º, 4º 2 5º, a competência em cada Estado-Membro é regulada pela lei desse Estado-Membro”, o que em conjugação com o artigo 62º, nº 1 a. a) e 72º do CPC leva a concluir pela competência do Tribunal Português;
9 - Devendo a decisão sub judice, ser revogada e substituída por outra que determine a competência internacional do Juízo de Família e Menores de Abrantes, para o julgamento da acção de divórcio proposta pelo Recorrente;
10 - Mostrando-se violado o preceituado nos artigos 62º, 72º e 615º, nº 1 do CPC, 2º, 3º e 7º do Reg.º CE 2201/20036, de 27 de Novembro.»

Nesta Relação o relator proferiu o seguinte despacho:
«No despacho que admitiu o presente recurso, interposto da decisão que indeferiu liminarmente a petição inicial[1], o Sr. Juiz limitou-se a mandar notificar a ré, nos termos do artigo 249º, nº 5, do CPC[2], e a dizer que o prazo para aquela responder às alegações se iniciava quando fosse notificada da sentença e das alegações.
Ora, em tal despacho, o que se devia ter feito, era ordenar a citação da ré, tanto para os termos do recurso como para os da causa, conforme o disposto no artigo 641º, nº 7, do CPC.
Assim, baixem os autos à 1ª instância, a título devolutivo, para que seja dado cumprimento àquele preceito legal.
Notifique.»
Depois de várias tentativas frustradas de citação pessoal da ré, veio esta a ser citada editalmente, não tendo deduzido oposição.
O Sr. Juiz a quo proferiu despacho ordenando o cumprimento do disposto no artigo 21º do CPC, pelo que veio a ser citado o Ministério Público, tendo a respetiva citação, assinada a 13.09.21, o seguinte teor: «Certifico que nesta data citei o digníssimo Magistrado do Ministério Público, em representação do Réu, Ministério Público, para no prazo de 30 dias contestar os presentes autos.»
Em 27.10.2021, a Digna Magistrada do Ministério Público apresentou nos autos o requerimento que se transcreve parcialmente:
«(…) quer da leitura do despacho do M.Mo Juiz, quer da nota de notificação da Sr. Funcionária, que a R. ausente representada agora pelo Ministério Público apenas foi citada para contestar a Ação, não especificamente de acordo com o comando do artigo 641º, nº 7 CPC, para além de contestar a Ação, também para os termos do Recurso.
Não contestou a R. representada pelo MP, porque se entendeu ser adequada essa atitude. Não existe qualquer efeito cominatório que importe a não contestação, a matéria documental basta-se a si mesma e a ser julgada a matéria pessoal sempre será necessária prova, em Audiência de Julgamento.
Todavia, vem invocar-se o lapso da notificação, a falta de menção expressa de que também a notificação o era nos termos e para os efeitos de resposta ao Recurso, conforme prevê artigo 641º, nº 7 CPC.
Faltou, salvo melhor entendimento, notificar a R. ausente para os termos do Recurso – a notificação a que alude o artigo 641º, nº7 CPC - completar a notificação efetuada.
Não tendo tal sido feito, vem de imediato suprir-se o lapso e, com o devido respeito, apresentam-se em anexo as Alegações de Resposta, requerendo sejam admitidas.»
Nestas alegações de resposta ao recurso, que foram admitidas por despacho proferido em 02.11.20021, o Ministério Público pugna pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão a decidir é a de determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente ação de divórcio.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos com relevo para a decisão do recurso, são os que constam do relatório antecedente, havendo ainda a considerar:
- O autor tem nacionalidade portuguesa e a ré tem nacionalidade francesa (cfr. o respetivo assento de casamento junto como doc. 1).

O DIREITO
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 08.04.2010[3], “[s]uscita-se (ou pode suscitar-se) uma questão de competência internacional quando a causa, através de qualquer dos seus elementos, tem conexão com outra ordem jurídica, além da portuguesa. A competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se, pois, na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.
Cabe, pois, aos tribunais portugueses aferir da sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós.
Para esse efeito e como resulta do estatuído no artigo 8º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e no art. 59º do CPC, importa analisar, em primeiro lugar, se tendo o caso dos autos elementos de conexão com diversas ordens jurídicas, existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar a presente ação de divórcio e, em caso negativo, se se verifica alguns dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º do CPC.
No caso em apreço, estamos perante uma ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, proposta pelo autor no Juízo de Família e Menores de Abrantes, e se é certo haver unanimidade que o pleito configura uma situação transnacional, na medida em que autor e ré, casados entre si, o autor com nacionalidade portuguesa e a ré com nacionalidade francesa, ele residente em Portugal e ela residente em Andorra, a verdade é que o entendimento do tribunal recorrido e do recorrente, no que respeita aos critérios a seguir na determinação do tribunal internacionalmente competente para julgar a presente ação, são divergentes.
Assim, na decisão recorrida entendeu-se não ser aplicável ao caso o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro, por não se verificarem in casu os critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma ação de divórcio, e que se encontram plasmados no artigo 3º do Regulamento: o da residência habitual e o da nacionalidade de ambos os cônjuges.
Entendeu o Tribunal a quo que ao caso haveria que atender ao Regulamento (UE) nº 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, concluindo que no caso concreto o Tribunal nacionalmente competente é o de Andorra, em face do disposto no artigo 3º, nº 1, daquele Regulamento.
Contra este entendimento insurge-se o recorrente, que entende não ser aplicável o artigo 3º do Regulamento 1259/2010, e que a lei aplicável quanto à apreciação dos requisitos do divórcio deverá ser a do Principado de Andorra, e que os Tribunais Portugueses são competentes para o efeito, nos termos do artigo 2º, do Regulamento 1259/2010 do Conselho, sendo que na conjugação do disposto no Regulamento CE 2201/2003 com o artigo 62º do CPC e com o artigo 3º do mesmo Regulamento, não se verificam os elementos de conexão no que concerne à mesma nacionalidade e residência, mas verifica-se preenchido o requisito da residência em Portugal, há mais de um ano, por parte do Recorrente, o que leva a concluir pela competência do Tribunal Português onde a ação foi proposta.
Quid iuris?
Em primeiro lugar, ainda que se tenha por certo que as normas do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de novembro, relativas à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental[4], só são aplicáveis aos litígios emergentes de situações transnacionais, ou seja, de situações que apresentem pontos de contacto relevantes com mais de um Estado soberano[5], impõe-se, contudo, tomar posição sobre a questão de saber se, para a sua aplicação, é de exigir que a internacionalidade da relação ocorra apenas entre Estados Membros da União Europeia ou se pode também ocorrer entre um Estado-Membro e um Estado terceiro.
A este respeito, escreveu-se no citado Acórdão do STJ de 07.10.2020:
“(…), apesar das normas atributivas de competência internacional em matéria de ações matrimoniais consagradas no Regulamento (CE) nº 2201/2003 (Regulamento Bruxelas II bis), não abordarem expressamente esta questão, os seus antecedentes históricos, ou seja, o Relatório Explicativo da Convenção de Bruxelas II[…] e o Regulamento (CE) nº 1347/2000 (Regulamento Bruxelas II) e que, conforme resulta do considerando nº 3 do Regulamento (CE) nº 2201/2003, são elementos a ter em conta na interpretação deste mesmo regulamento, depõem no sentido de que aquelas normas são «regras de competência internacional direta», isto é, são regras que devem ser respeitadas pelos tribunais dos Estados Membros previamente à decisão sobre uma questão em matéria matrimonial e que os levam a declinar a sua competência quando não se considerem competentes de harmonia com as regras do regulamento[…].
Dito de outro modo e nas palavras de Nuno Ascensão da Silva[…], tais regras «são o direito comum da competência internacional dos Estados-Membros dentro do âmbito de matérias por ele abrangidas», sublinhando, porém, que «a internacionalidade da relação não terá de se traduzir necessariamente na ligação a um Estado-membro».
No mesmo sentido, afirma João Gomes de Almeida […], que é, em princípio, irrelevante que os elementos de estraneidade – a residência habitual e a nacionalidade - previstos, respetivamente, nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 3º, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, «apontem para um Estado-Membro ou para um Estado terceiro», salientando que «As normas atributivas de competência internacional assentam em determinados elementos de conexão que o TJ considerou revelarem um vínculo suficientemente forte entre a situação transnacional e um dos Estados-Membros», pelo que «para se aplicarem as normas atributivas de competência internacional consagradas no Regulamento Bruxelas II bis, é necessário não só que o litígio seja emergente de uma situação transnacional mas também que, pelo menos, um dos elementos de estraneidade apresente uma conexão significativa com um dos Estados-Membros».
Trata-se de conclusão extraída com base no Acórdão do TJUE, de 28.11.2007 (processo C-68/07) […], que apesar de não versar sobre situação idêntica ao caso dos autos, contém referências muito relevantes sobre os critérios de atribuição de competência para as ações de divórcio contidos no art. 3.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11) e que não podem deixar de ser levadas em conta por forma a assegurar uma interpretação conforme do direito da União Europeia.
Com efeito, neste acórdão, afirmou o TJUE, no considerando nº 18, que «(…) segundo a redacção clara do artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, só quando nenhum tribunal de um Estado-Membro for competente nos termos dos artigos 3.º, 4.º e 5.º do referido regulamento é que a competência será, em cada Estado-Membro, regulada pelo direito nacional. (…) e, no considerando nº 26, que « (…) como resulta do quarto e oitavo considerandos do Regulamento n.º 1347/2000, cujo enunciado relativo à competência para conhecer das questões respeitantes ao divórcio foi em substância retomado no Regulamento n.º 2201/2003, este visa instituir regras de conflito uniformes em matéria de divórcio a fim de garantir uma livre circulação das pessoas tão ampla quanto possível. Consequentemente, o Regulamento n.º 2201/2003 aplica-se também aos nacionais de Estados terceiros que apresentem um vínculo suficientemente forte com o território de um dos Estados-Membros, nos termos dos critérios de competência previstos no referido regulamento, critérios que, segundo o décimo segundo considerando do Regulamento n.º 1347/2000, se baseiam no princípio de que deve existir um vínculo efectivo entre o interessado e o Estado-Membro que exerce a competência.”.
Volvendo ao caso concreto, significa isto que, por força do disposto no artigo 8º, nº 4, da Constituição, o Regulamento tem aplicação direta ao caso dos autos, desde logo porque autor e ré são nacionais de Estados-Membros (Portugal e França, respetivamente), pelo que a competência dos tribunais portugueses para julgar a presente ação de divórcio tem de ser aferida em função das conexões internacionais constantes do seu artigo 3º, nº1, que nos termos do artigo 59º do CPC, prevalecem sobre as elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º deste Código.
Assente, este ponto, vejamos, então, qual o critério a seguir no presente caso, uma vez que, em matéria matrimonial, o citado artigo 3º, sob a epígrafe de “Competência Geral”, e inserido no respetivo capítulo II, Secção 1 (epigrafado de Divórcio, Separação e Anulação do Casamento), enumera sete critérios de competência internacional, estabelecendo que:
1- São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação de casamento, os tribunais do Estado ­Membro:
a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, no ano imediatamente à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicilio”;
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges, ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do “domicilio” comum.
2. Para efeitos do presente regulamento, o termo domicílio é entendido na aceção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda.
Da análise desta norma decorre serem dois os elementos de estraneidade mais relevantes para efeitos de definição da competência internacional de um Estado-Membro para poder conhecer de uma ação de divórcio: a residência habitual e a nacionalidade[6].
E, como se escreveu no citado Acórdão do STJ de 07.10.2020, “retira-se ainda, como refere João Gomes de Almeida[…], que nenhum dos sete critérios atributivos de competência internacional prevalece sobre os restantes, não havendo, portanto, uma hierarquização dos critérios. Todos os critérios são colocados a um nível paritário e a paridade entre eles permite qualificá-los como critérios alternativos, no sentido em que são de aplicação concorrente, isto é, um mesmo divórcio transnacional pode preencher dois ou mais dos critérios de competência internacional previstos no citado art. 3º, podendo, assim, os tribunais de dois ou mais Estados-Membros ser internacionalmente competentes para julgar o litígio[…].”
Resulta, pois, com clareza destes considerandos que não existe nenhuma hierarquia e, consequentemente, nenhuma ordem de precedência entre os critérios atributivos de competência internacional em matéria matrimonial previstos no artigo 3º, nº 1, alíneas a) e b) do Regulamento[7].
Ora, sendo em função da relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada ação poder/dever conhecer, emerge a circunstância dos cônjuges serem nacionais de Estados-Membros diferentes, razão porque, desde logo, importa afastar a possibilidade do segundo critério geral referido, a saber, o da nacionalidade de ambos os cônjuges.
No entanto, o autor alegou na petição inicial que desde o nascimento da segunda filha do casal, os desentendimentos do casal começaram a ser frequentes relativamente a aspetos da vida do casal, e apesar das tentativas, tal situação não normalizou, e por esse motivo a ré solicitou ao autor que saísse da casa de morada da família, o que veio a acontecer em janeiro de 2007 e desde essa data até hoje, o autor e a ré têm vivido separados de facto, tendo inclusive o autor vindo viver para Portugal.
Ora, tendo o autor nacionalidade portuguesa e residindo em Portugal há vários anos, verifica-se in casu o critério da residência previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 3º do Regulamento: “a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anterior à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão, quer no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicílio””.
A circunstância de a ré residir com as filhas do casal em Andorra não tem qualquer interesse para a decisão do presente pleito, na medida em que a mesma não se integra em nenhum dos critérios atributivos da competência internacional estabelecidos no artigo 3º, nº 1, do Regulamento, não relevando, por isso, para determinar o tribunal competente para decidir sobre o pedido de divórcio[8].
Por conseguinte, há que reconhecer o tribunal português como competente (internacionalmente) para a julgar a ação, impondo-se nessa medida a procedência do recurso, devendo em consequência os autos prosseguirem os seus ulteriores trâmites legais.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que se mostre adequada à tramitação processual subsequente.
Sem custas.

*
Évora, 16 de dezembro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Trata-se efetivamente de uma decisão de indeferimento liminar, proferida ao abrigo do nº 1 do artigo 995º do CPC, embora na mesma se tenha concluído indevidamente pela absolvição da ré da instância, uma vez que o ato da proposição da ação não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação (art. 259º, nº 2, do CPC).

[2] Notificação que não se efetivou, uma vez que a respetiva carta veio devolvida com a indicação “ausente”.

[3] Proc. 4632/07.8TBBCL.G1.S1.

[4] Doravante referido apenas por Regulamento, o qual é também denominado “Novo Regulamento Bruxelas II” ou “Regulamento Bruxelas II bis”, entrado em vigor em 1 de agosto de 2004 e aplicável a partir de 1 de março de 2005, revogando o Regulamento (CE) nº 1347/2000, de 29 de maio.

[5] Cfr. o Acórdão do STJ de 07.10.2020, proc. 4435/19.7T8BRG.G1.S1, in www.dgsi, que aqui vimos seguindo de perto e onde se citam, a propósito, Maria Helena Brito, “ O Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003)”, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Volume I, 2005, Almedina, pp. 305-356 e Luís de Lima Pinheiro, “O reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria matrimonial e de responsabilidade paternal: regulamento (CE) nº 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Volume 2 (Set. 2006), págs. 517-546; acessível in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-o-reconhecimento-de-decisoes-estrangeiras-em-materia-matrimonial-e-de-responsabilidade-paternal/.

[6] Não se considera aqui o critério do domicílio comum, aplicável apenas ao Reino Unido e Irlanda.

[7] Assim também entenderam os Acórdãos da Relação de Coimbra de 01.07.2014, proc. 3355/13.3TBVIS-A.C1, da Relação de Évora de15.12.2016, proc. 1330/16.5T8FAR.E1 e da Relação do Porto de 11.07.2018, proc. 1933/18.3T8VNG.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Em todos os casos tratados nestes arestos o critério atributivo de competência assentava na nacionalidade conjunta de ambos os cônjuges.

[8] Cfr. o citado Acórdão do STJ de 07.10.2020.