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DECISÃO INSTRUTÓRIA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Sumário
I - A alteração substancial dos factos, nos termos e para efeitos do disposto conjugadamente nos arts. 1º, al. f), e 303º, nº3, ambos do CPP, pressupõe, impreterivelmente, uma alteração de factos. II – No caso vertente, o Mmo. Juiz de Instrução, mantendo incólumes na decisão instrutória os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, limitou-se a alterar a sua qualificação jurídica, convolando o crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 143º, nº1 e 144º, al. b), ambos do Código Penal, cuja prática foi imputada ao arguido no libelo acusatório, para um crime de ofensa à integridade física qualificada, pelos art. 145º, nº1, al. c), por referência ao disposto nos arts. 143º, nº1, 144º, al. b) e 132º, nºs 1 e 2, als. d), e), i) e j), todos do aludido diploma legal, não consubstanciando tal atuação uma alteração substancial de factos, ainda que daí resulte a imputação de crime diverso e/ou mais grave por força da sanção penal a este abstratamente aplicável. III - Para efeitos do disposto no art. 303º, nºs 1 e 5 do CPP, a operada alteração da qualificação jurídica dos factos devia ter sido comunicada à defesa, porquanto o Tribunal a quo enveredou por uma subsunção jurídica dos factos descritos na acusação que é distinta da pugnada pelo órgão acusador e, concomitantemente, da defendida pelo assistente no seu RAI, pelo que com ela não podia contar o arguido. IV – O incumprimento das preditas regras processuais, destinadas a assegurar as garantias de defesa do arguido, gera uma irregularidade processual que, no entanto, por não ter sido tempestivamente arguida, mostra-se sanada, sendo certo que o despacho de pronúncia, nessa parte, é irrecorrível [cf. art. 310º, nº1, do CPP].
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO: ▪ No âmbito do Processo nº 3277/21.4T8GMR, no dia 03.12.2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Instrução Criminal de Braga – Juiz 2, foi ditada para a ata a seguinte decisão instrutória (fls. 711 a 726/referência 170831547) - transcrição:
«Declaro encerrada a Instrução.
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O Tribunal é competente.
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Não existem quaisquer nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito.
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· Relatório.
Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação pública contra os arguidos V. S., C. M., J. P., P. F. e A. M., nos termos e com os fundamentos que constam a fls. 378 e seguintes, imputando-lhes a prática:
- Em autoria material e na forma consumada, ao arguido V. S. de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, e 144.º, alínea b), do Código de Processo Penal, relativamente ao assistente A. S.;
- Em autoria material e na forma consumada, ao arguido C. M. de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Processo Penal, relativamente à ofendida F. C.; e,
- Em co-autoria material e na forma consumada, aos arguidos C. M., J. P., P. F. e A. M. de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do Código Processo Penal, relativamente ao ofendido B. M..
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Na sequência disto veio o arguido A. M. requerer ainda a abertura da instrução, nos termos e pelos motivos que constam a fls. 488 e seguintes, tendo em vista a sua não pronúncia e o consequente arquivamento dos autos nessa parte.
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O assistente A. S. requereu igualmente a abertura da instrução, nos termos e pelos motivos que constam a fls. 499 e seguintes, tendo em vista a pronúncia do arguido V. S. pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo 145.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
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No desenvolvimento dos autos foi proposta aos arguidos C. M., J. P., P. F. e A. M. a suspensão provisória do processo nos moldes supra exarados, que foi aceite, tendo ainda o arguido A. M. prescindido da discussão dos fundamentos invocados no requerimento de abertura da instrução.
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Pelos ofendidos F. C. e B. M. foi dito que desistiam da queixa apresentada nos autos, desistência que foi aceite pelo arguido C. M..
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Com interesse para a decisão a proferir procedeu-se à junção aos autos dos certificados de registo criminal dos arguidos, bem como do registo de suspensão provisória do processo existentes na Base de Dados da Procuradoria-Geral da República dos arguidos.
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O Ministério Público deu a sua concordância à suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, conforme declarou nesta sede.
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Não se tendo vislumbrado qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre agora, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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· Da desistência de queixa.
Tendo em consideração o declarado pelos ofendidos F. C. e B. M., bem como os factos imputados aos arguidos e os crimes que os mesmos configuram, a desistência de queixa apenas pode operar em relação ao imputado crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Processo Penal, relativamente à ofendida F. C. e ao arguido C. M., por ser o único que não assume natureza pública.
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· Da suspensão provisória do processo.
Tendo presente o referido supra quanto à desistência de queixa apresentada pelos ofendidos F. C. e B. M., bem como que a prova produzida nos autos, nomeadamente as declarações agora prestadas pelos arguidos, permite ter por suficientemente indiciada a matéria de facto descrita na acusação com relevo para a questão em apreço e ainda que a qualificação jurídica efectuada pelo Ministério Público quanto a essa matéria não merece, a nosso ver, qualquer reparo, impõe-se agora a apreciação da sugerida suspensão provisória do processo, nos moldes supra propostos.
Conforme resulta do exposto supra, os arguidos requerentes da instrução e o Ministério Público manifestaram o seu acordo quanto a uma eventual suspensão provisória do processo nos termos supra exarados.
O artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, permite ao juiz de instrução criminal decidir-se pela suspensão provisória do processo se estiverem preenchidos os requisitos constantes do artigo 281.º, n.º 1, do mesmo diploma legal (o crime, ou crimes, em situações de cúmulo, não for(em) punido(s) com pena de prisão superior a 5 anos ou for(em) punidos com sanção diferente da prisão) e se o Ministério Público e o arguido derem o seu consentimento.
No seguimento do que referimos supra, nomeadamente quanto à desistência de queixa apresentada pelos ofendidos, a factualidade agora em questão há-de ser susceptível de configurar a prática, em co-autoria material e na forma consumada, pelos arguidos C. M., J. P., P. F. e A. M. de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no artigo 132.º, n.º 2, alínea h) do Código Processo Penal, com pena de prisão de máximo não superior a cinco anos.
O instituto da suspensão provisória do processo, previsto nos artigos 281.º e 282.º, do Código de Processo Penal, é uma manifestação dos princípios da diversão, informalidade, cooperação, celeridade processual e da «oportunidade», princípios estes que assumem uma importância crescente no processo penal.
Sempre que possível deve evitar-se o uso do processo penal, pois a própria sujeição do arguido a um julgamento pode ter efeitos socialmente estigmatizantes, não obstante a presunção de inocência de que beneficia durante o julgamento, nos termos do disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, a eventual aplicação de uma pena ao arguido (que nunca foi condenado por qualquer crime, e encontra-se totalmente inserido do ponto de vista social) pode ter ainda efeitos criminógenos.
Há ainda que considerar a importância deste instituto pelo papel que desempenha na pacificação social, privilegiando soluções de consenso em detrimento de um aprofundamento da conflituosidade social, sem que simultaneamente a confiança da Comunidade nas normas jurídicas violadas seja abalada ou sem que os bens jurídico-penais deixem de ser penalmente tutelados.
Extrai-se do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que são requisitos legais de cuja verificação depende a possibilidade de recurso à suspensão provisória do processo:
1. Estar-se perante um crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com pena diferente da prisão;
2. Concordância do(s) arguido(s), do(s) assistente(s) (quando haja) e do Ministério Público (isto quando em sede de instrução, por força do disposto no artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal);
3. Ausência de antecedentes criminais do(s) arguido(s) por crime da mesma natureza e/ou ausência de anterior aplicação do instituto em causa igualmente por crime da mesma natureza;
4. Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
5. Ausência de um grau de culpa elevado; e,
6. Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
Assim, tomando em linha de conta o preceituado no referido artigo 281.º do Código de Processo Penal, e atendendo a que:
- Os arguidos concordaram com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, caso assim se viesse a decidir;
- Os ofendidos declararam concordar com a suspensão provisória do processo proposta, ainda que tal não seja legalmente obrigatório;
- O Ministério Público manifestou igualmente a sua concordância;
- O crime agora em apreço e imputado aos arguidos não é punido com pena superior a cinco anos de prisão;
- Os arguidos não têm antecedentes criminais com relevo para a presente questão e não beneficiaram do instituto em apreço (cfr. fls. 688 a 698);
- Os factos indiciados não apontam para a necessidade de aplicação de uma medida de segurança, por não se indiciar que os arguidos sejam inimputáveis;
- Os arguidos encontram-se socialmente inseridos;
- A culpa tem um carácter médio, revelado na imagem global dos factos que se indiciam ter ocorrido e que, apesar de merecedores de um juízo de censura social, revelam uma relativa danosidade social.
- São de prosseguir as finalidades deste instituto acima indicadas, até pela circunstância de os ofendidos terem concordado com a solução proposta;
- O ilícito praticado situa-se na zona da designada média criminalidade, objecto de um mediano nível de censura social, sendo de prever que a suspensão provisória do processo, com o cumprimento das injunções que adiante se determinam, será suficiente para acautelar as exigências de prevenção de futuros crimes,
Entendemos ser de optar pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo nos termos propostos.
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· Da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido V. S..
Conforme referimos supra, findo o inquérito o Ministério Público deduziu acusação pública, para além do mais, contra o arguido V. S., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, e 144.º, alínea b), do Código de Processo Penal, relativamente ao assistente A. S..
Entende, porém, o assistente que os factos apurados nos autos indiciam a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
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Refere-se na acusação pública que: «1 – No dia 7/5/2017, cerca das 4:30h, o ofendido A. S. encontrava-se no interior do estabelecimento de diversão nocturna designado por “X” sito na Praça …, em Famalicão, acompanhado de alguns amigos a festejar uma despedida de solteiro. 2 – Nesse mesmo dia e hora o arguido V. S., que desempenhava funções não concretamente apuradas no estabelecimento, dirigiu-se ao ofendido A. S. que se encontrava a dançar na pista de forma algo exuberante e agarrou-o por um braço. 3 – Ao ser agarrado o ofendido A. S. virou-se e entornou de forma inadvertida um pouco da bebida que tinha no copo, molhando o arguido V. S.. 4 – Este ordenou ao ofendido que se encaminhasse para a saída, o que este acatou, seguindo na frente do arguido. 5 – Ao chegar à porta do estabelecimento o arguido V. S. desferiu uma pancada com a mão na parte de trás da cabeça do ofendido, fazendo-o cair para o exterior do estabelecimento. 6 – Já na parte exterior o arguido V. S. desferiu um número indeterminado de pancadas pelo corpo do ofendido A. S., com especial incidência na zona da cabeça, deixando-o inanimado e incapaz de se defender. 7 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido V. S., o ofendido A. S. sofreu dores, bem como múltiplas escoriações e hematomas dispersos pelo couro cabeludo, sendo a mais evidente a escoriação localizada na região parieto-occipital esquerda medindo 8 x 5 cm com disformia da zona por edema acentuado, equimose da região temporal esquerda medindo 7 x 5 cm, escoriações frontais, sobre a esquerda medindo a maior 5 x 3 cm e a menor 2 x 1 cm; edema acentuado da pirâmide nasal com escoriação ao longo da crista nasal, escoriação da asa esquerda do nariz colada com cola biológica, equimose orbitária à esquerda com hemorragia conjuntival quase obstruindo por completo o olho, tendo carecido de assistência médica no Hospital de V. N. de Famalicão. 8 – Fruto da conduta do arguido V. S. o ofendido A. S. sofreu ainda uma rasgadura da retina peripapilar inferior do olho esquerdo, que exigiu a realização de vitrectomia central e periférica, e a colocação de lente intraocular que, não obstante, deixaram no ofendido como sequelas a hipovisão à esquerda com perturbação de campos visuais nos quadrantes superiores. 9 – Todas estas lesões determinaram no ofendido A. S. um período de 497 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral por 3 dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 497 dias. 10 – Agiu o arguido V. S. de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de atingir fisicamente o ofendido A. S., o que conseguiu, desferindo-lhe sucessivas pancadas na cabeça, zona parcialmente sensível e onde estão alojados órgão vitais e sensíveis, de forma que sabia apta a causar ferimentos relevantes e permanentes, como causou, e a afectar-lhe gravemente, como afectou, o sentido da visão e a capacidade de trabalho. 11 – Mais sabia o arguido V. S. que a sua conduta era proibida e punida por lei.».
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Para sustentar a tese que explana no requerimento de abertura da instrução, o assistente invoca dois argumentos essenciais: a função exercida pelo agressor e especial perversidade e censurabilidade da consciente e voluntária conduta do agente.
Em relação ao primeiro – a função exercida pelo arguido e o conceito de funcionário para efeitos de lei penal –, refere o assistente que, ainda que com eventual classificação profissional diversa, o arguido V. S. exercia as funções efectivas de funcionário de “segurança”, nomeadamente controlando as entradas e saídas de clientes e respectivos pagamentos, tudo sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade patronal.
Mais refere que, ainda que estejamos perante a prestação de serviços públicos – da segurança, ordem e tranquilidade pública –, a qualidade da função exercida pelo arguido confere-lhe também a qualidade de funcionário que age munido de poderes de autoridade, nos termos do artigo 386.º do Código Penal.
Em relação a este concreto argumento, apesar de se reconhecer a valia do raciocínio jurídico vertido no requerimento de abertura da instrução, não podemos tê-lo por aplicável ao caso dos autos, essencialmente por duas ordens de razão.
Em primeiro lugar, e ainda que se admita que tal seria assim, a prova produzida nos autos não permite, pelo menos neste momento, afirmar que o arguido exercia as específicas funções de segurança, até aparentemente em violação do regime jurídico citado no requerimento de abertura da instrução.
Sendo funcionário no estabelecimento comercial referido pelo Ministério Público na acusação, o certo é que as suas concretas funções não foram apuradas no decurso do inquérito e a prova então recolhida não é suficiente para que neste momento se possa afirmar, sem margem para quaisquer dúvidas, que era exactamente essa a função do arguido no referido estabelecimento comercial.
Depois, em segundo lugar e ainda com mais relevo, a inaplicabilidade ao caso dos autos e à pessoa do arguido V. S. do conceito de funcionário previsto no artigo 386.º do Código Penal.
Dispõe o artigo 386.º, no seu n.º 1, que para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange: a) o funcionário civil; b) o agente administrativo; e c) os árbitros, jurados e peritos; e d) quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
Extrai-se deste normativo legal que o conceito de funcionário para efeito de lei penal é, em regra, mais amplo do que o conceito de funcionário para efeito de direito administrativo, na medida em que não se esgota no conceito de funcionário público.
De facto, e começando pela noção de funcionário civil, aquela que aparentemente mais sentido poderia fazer no caso em apreço, primordial se mostra fazer notar que em causa está uma investidura voluntariamente aceite, o carácter profissional do desempenho de função pública, a consequente estabilidade ou permanência no cargo, sendo que o elemento caracterizador consiste precisamente na profissionalidade no desempenho de função pública.
O alargamento do elenco de funcionário refere-se, portanto, a casos de agentes aos quais falta um dos elementos típicos que advém da permanência ou estabilidade do emprego (serviço) público (do funcionário civil), como seja a ausência de permanência, estabilidade ou de remuneração.
O conceito de funcionário civil abrange, assim, aqueles que desempenham por forma profissional, isto é, de forma permanente e remunerada, uma actividade compreendida na função pública administrativa ou na função jurisdicional, importando traçar, aqui, a distinção entre estes e os que são chamados para desempenhar ou para participar no desempenho de uma ou outra actividade funcional.
Tal destrinça prende-se com a diferente autoridade com competência para chamar, no âmbito da actividade de administração uma “autoridade (órgão)” administrativo, no domínio da jurisdição uma “autoridade (órgão)” jurisdicional. Deste modo, e a título exemplificativo, os juízes desempenham profissionalmente a função jurisdicional, ao passo que os jurados são chamados provisoriamente a desempenhar tal função.
A noção de funcionário parte, pois, de um conceito legal e doutrinal de funcionário público, abarcando depois, outras categorias de agentes.
Ora, ressalvado o devido respeito por diferente opinião, ainda que se tivesse demonstrado que o arguido V. S. exercia efectivamente as funções de segurança no estabelecimento comercial em questão, tal circunstancialismo não era suficiente para que o conceito de funcionário para efeito de lei penal lhe fosse aplicável.
Com efeito, e até por força do que se mostra expresso no regime jurídico regulador da actividade de segurança privado, ao exercício desta concreta função sempre faltaria o requisito do desempenho de função pública essencial para o preenchimento daquele conceito de funcionário.
Quanto ao segundo dos fundamentos invocados – especial perversidade e censurabilidade da consciente e voluntária conduta do agente.
Em relação a este concreto argumento, e com fundamento na matéria de facto descrita na acusação pública, tendemos a concordar com o assistente.
Efectivamente, a concreta conduta imputada ao arguido V. S. é susceptível de preencher aquele conceito de especial perversidade e censurabilidade.
Vejamos.
Dispõe o artigo 145.º, n.º 1, do Código Penal, que «se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido (…)», acrescentando depois o seu n.º 2 que «são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º».
Como tem sido unanimemente recortado jurisprudencialmente, o que verdadeiramente releva em cada caso é que as suas circunstâncias, analisadas em concreto, demonstrem que o agente actuou com uma censurabilidade ou perversidade que justificam uma censura penal que não deve ser encontrada na moldura sancionatória de um tipo legal de crime simples, mas sim noutra moldura, que represente um castigo aumentado. (1)
Na verdade, o tipo do artigo 132.º (para o qual remete o n.º 2 do referido artigo 145.º do Código Penal) consiste em ser o resultado causado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando o seu n.º 2 um conjunto de circunstâncias, não taxativas, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1.
Por isso que pode verificar-se qualquer dessas circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º e não existir especial censurabilidade ou perversidade justificativa da qualificação, e podem outras circunstâncias, diversas das aí descritas, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas.
É afinal a problemática ligada à culpa, e uma maior culpa impõe uma maior pena.
Sendo a culpa um conceito material que se não esgota em cumprir o juízo de censura, mas inclui a razão da censura e com ela aquilo que se censura ao agente, torna-se desde logo possível a consideração, através dela, dos elementos do tipo de ilícito: não existe uma culpa jurídico-penal em si, mas só tipos de culpa concretamente referidos a singulares tipos de ilícitos. (2)
A especial censurabilidade ou perversidade do agente é, pois, uma especial culpa por referência à que é pressuposta na moldura penal do tipo simples, assumindo aqui a qualidade de uma culpa «normal». Para o preenchimento valorativo do conceito indeterminado contido na palavra «especial» relevará, atenta a natureza material de culpa, a vontade culpável e o seu objecto nas suas manifestações concretas no caso.
Da matéria de facto alegada pelo Ministério Público resulta que o arguido V. S. dirigiu-se ao assistente A. S., que se encontrava a dançar na pista de forma algo exuberante, e agarrou-o por um braço. Ao ser agarrado, o assistente A. S. virou-se e entornou de forma inadvertida um pouco da bebida que tinha no copo, molhando o arguido V. S..
Na sequência, o arguido V. S. ordenou ao assistente que se encaminhasse para a saída, o que este acatou, seguindo na frente daquele.
Ao chegar à porta do estabelecimento, o arguido V. S. desferiu uma pancada com a mão na parte de trás da cabeça do ofendido, fazendo-o cair para o exterior do estabelecimento. Já na parte exterior o arguido V. S. desferiu um número indeterminado de pancadas pelo corpo do assistente, com especial incidência na zona da cabeça, deixando-o inanimado e incapaz de se defender.
Salvo o devido respeito por diferente opinião, e tendo sempre presente a fase meramente indiciária em que nos encontramos, não deixa de ser verdade, afigura-se-nos, que qualquer homem médio colocado perante um tal quadro fáctico se questionaria quanto ao sucedido e como é possível que comportamentos possam ocorrer no dia de hoje.
Na verdade, da matéria de facto ora transcrita extraem-se duas conclusões relevantes:
- A primeira, que o assistente nada fez de errado para despoletar um comportamento tão agressivo por parte do arguido;
- A segunda, o total sentimento de impunidade demonstrado pelo arguido.
Estamos, pois, perante um comportamento criminoso que impressiona, que vais mais longe, muito mais longe, do que aquilo que poderia ser «compreensível» em idênticas situações.
Não há por parte do assistente qualquer comportamento potenciador de uma reacção tão violenta por parte do arguido, que depois agride de forma traiçoeira e quando o assistente já se encontra impossibilitado de reagir e, por ventura, se defender.
É, pois, entendimento deste Tribunal que a concreta conduta imputada ao arguido assume contornos especais, qualificativos da sua gravidade e da culpa daquele, mostrando-se especialmente censurável e perversa.
O arguido actuou com fundamento num claro motivo torpe ou fútil, como seja o comportamento mais efusivo do assistente, e de forma fria, sem qualquer respeito pela integridade física do assistente, de forma traiçoeira, cobarde, agredindo o assistente na cabeça, sem que este estivesse minimamente a contar, e depois de o ter numa posição de inferioridade e incapacidade de se defender, agredindo-o em zonas especialmente vulneráveis do corpo do assistente.
Mostram-se, assim, preenchidas as alíneas d), e), i) e j) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, impondo-se a pronúncia do arguido nos moldes requeridos pelo assistente.
A alteração da qualificação jurídica agora efectuada não carece de ser comunicada, uma vez que resulta do alegado no requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente e com o qual o arguido foi confrontado no decurso desta fase processual.
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· Decisão.
Nestes termos, e sem necessidade de ulteriores considerações, decido:
1. Homologar, em relação ao imputado crime ofensa à integridade física simples, a desistência de queixa apresentada pela ofendida F. C., dada a concordância do arguido C. M. e ao abrigo do disposto nos artigos 143.º, n.º 2, 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2, todos do Código Penal, e 51.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, determinando nesta parte o consequente arquivamento dos autos; 2. Suspender provisoriamente os presentes autos pelo período de 1 (um) ano, relativamente aos arguidos C. M., J. P., P. F. e A. M. e na parte em que se mostram acusados da prática, em co-autoria material e na forma consumada, deum crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1 alínea a), por referência ao estatuído no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Processo Penal, relativamente ao ofendido B. M., mediante a imposição, para além daquilo que resulta do disposto no artigo 282.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, da seguinte injunção:
- Os arguidos C. M., J. P., P. F. e A. M.procederem, no prazo de 10 (dez) meses, à entrega da quantia de €5.200,00 (cinco mil e duzentos euros) aos ofendidos F. C. e B. M., sendo cada um dos arguidos responsável pelo valor de €1.300,00 (mil e trezentos euros) e, solidariamente, pelo montante global;
- O pagamento será feito pelo Ilustre Mandatário do arguido C. M. diretamente aos ofendidos no domicílio profissional e contra recibo de quitação;
- A falta de pagamento de qualquer quantia do montante supra referido, por qualquer um dos arguidos, implica o cumprimento da injunção para todos eles,
Tudo ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, 282.º, n.º 1, e 307.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.
*
3. Pronunciar para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular (3), nos termos do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o arguido:
- V. S., nascido a -/9/1971, filho de …. e de …, portador do C.C. n.º ……., residente na Rua …,
Porquanto indiciam suficientemente os presentes autos que:
1 – No dia 7/5/2017, cerca das 4:30h, o ofendido A. S. encontrava-se no interior do estabelecimento de diversão nocturna designado por “X” sito na Praça …, em Famalicão, acompanhado de alguns amigos a festejar uma despedida de solteiro.
2 – Nesse mesmo dia e hora o arguido V. S., que desempenhava funções não concretamente apuradas no estabelecimento, dirigiu-se ao ofendido A. S. que se encontrava a dançar na pista de forma algo exuberante e agarrou-o por um braço.
3 – Ao ser agarrado o ofendido A. S. virou-se e entornou de forma inadvertida um pouco da bebida que tinha no copo, molhando o arguido V. S..
4 – Este ordenou ao ofendido que se encaminhasse para a saída, o que este acatou, seguindo na frente do arguido.
5 – Ao chegar à porta do estabelecimento o arguido V. S. desferiu uma pancada com a mão na parte de trás da cabeça do ofendido, fazendo-o cair para o exterior do estabelecimento.
6 – Já na parte exterior o arguido V. S. desferiu um número indeterminado de pancadas pelo corpo do ofendido A. S., com especial incidência na zona da cabeça, deixando-o inanimado e incapaz de se defender.
7 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido V. S., o ofendido A. S. sofreu dores, bem como múltiplas escoriações e hematomas dispersos pelo couro cabeludo, sendo a mais evidente a escoriação localizada na região parieto-occipital esquerda medindo 8 x 5 cm com disformia da zona por edema acentuado, equimose da região temporal esquerda medindo 7 x 5 cm, escoriações frontais, sobre a esquerda medindo a maior 5 x 3 cm e a menor 2 x 1 cm; edema acentuado da pirâmide nasal com escoriação ao longo da crista nasal, escoriação da asa esquerda do nariz colada com cola biológica, equimose orbitária à esquerda com hemorragia conjuntival quase obstruindo por completo o olho, tendo carecido de assistência médica no Hospital de V. N. de Famalicão.
8 – Fruto da conduta do arguido V. S. o ofendido A. S. sofreu ainda uma rasgadura da retina peripapilar inferior do olho esquerdo, que exigiu a realização de vitrectomia central e periférica, e a colocação de lente intraocular que, não obstante, deixaram no ofendido como sequelas a hipovisão à esquerda com perturbação de campos visuais nos quadrantes superiores.
9 – Todas estas lesões determinaram no ofendido A. S. um período de 497 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral por 3 dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 497 dias.
10 – Agiu o arguido V. S. de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de atingir fisicamente o ofendido A. S., o que conseguiu, desferindo-lhe sucessivas pancadas na cabeça, zona parcialmente sensível e onde estão alojados órgão vitais e sensíveis, de forma que sabia apta a causar ferimentos relevantes e permanentes, como causou, e a afectar-lhe gravemente, como afectou, o sentido da visão e a capacidade de trabalho.
11 – Mais sabia o arguido V. S. que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Em consequência, incorreu o arguido V. S. na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, por referência ao disposto nos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea b), e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas d), e), i) e j), também do Código Penal.
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· Prova.
A constante a fls. 383/384, sendo que relação à prova testemunhal apenas as indicadas sob os números 1, 2, 3, 4, 5 e 8.
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· Medidas de coacção.
Como é sabido, para aplicação de uma qualquer medida de coacção, com excepção do simples termo de identidade e residência, necessário se torna, no momento da sua aplicação, a verificação em concreto de um dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º do Código de Processo Penal.
Da análise dos autos, e daquilo que é do conhecimento do Tribunal, apesar da gravidade dos factos, afigura-se não existir, pelo menos neste momento, qualquer circunstancialismo ou factualismo que permita ter por verificado um (ou mais) daqueles requisitos.
Por conseguinte, o arguido pronunciado deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência (cfr. artigos 191º, 192º, 193º, 196º e 204º, todos do Código de Processo Penal), já prestado nos autos a fls. 103.
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· Responsabilidade tributária. Sem custas, por não serem devidas – artigos 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, e 515.º, n.º 1, alínea a), todos por interpretação “a contrario sensu”, e n.º 1 do artigo 522.º, todos do Código de Processo Penal.»
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▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido V. S. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 735 a 745) - transcrição:
I. O Arguido V. S. veio pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 145.º, nº1, alínea c), por referência aos artigos 143.º, nº1, 144.º, alínea b) e 132.º, nºs 1 e 2, alíneas d), e), i) e j), todos do Código Penal;
II. Com o que o Arguido V. S. não se conforma.
III. Mediante a decisão instrutória proferida, aqui recorrida, o Arguido V. S., que em sede de Acusação Pública estava acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punível pelos artigos 143.º, nº 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal, vem pronunciado pelo crime de ofensa à integridade física, mas com a agravação do limite máximo da sanção aplicável.
IV. O que, nos termos do disposto no artigo 1º., alínea f), do Código de Processo Penal, consubstancia uma alteração substancial dos factos;
V. Que, de acordo com o estatuído no nº3, do artigo 303.º, do Código de Processo Penal não pode ser considerado pelo Tribunal para o efeito de pronúncia nos presentes autos.
VI. Destarte, ao pronunciar o Arguido V. S. por um crime de ofensa à integridade física qualificada, e, deste modo, agravando o limite máximo da pena aplicável, o Tribunal “a quo” decidiu em violação do disposto no artigo 303.º, nº3, do Código de Processo Penal, devidamente conjugado com o artigo 1º, alínea f), do mesmo Código, e com os artigos 143.º, nº1, e 144.º, nº1, alínea b) e 145.º, nº1, alínea c), estes do Código Penal.
VII. Estando a decisão instrutória inquinada com grave ilegalidade que importa a sua revogação e a sua substituição por outra que pronuncie o Arguido V. S. mantendo a Acusação Pública e, assim, pronunciando-o pela prática de um crime de ofenda à integridade física grave, p. e p. pelos artigos 143.º, nº 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal;
VIII. O que se peticiona a V. Exas.
Sem prescindir:
IX. Para o caso de assim se não entender, o que não se concebe e muito menos se concede, sempre deverá a decisão instrutória ser revogada e substituída por outra que importe a pronuncia do Arguido pelos factos que lhe foram imputados em sede de Acusação Pública e nos termos ali qualificados – ofensa à integridade física grave -, atenta a falta de indícios suficientes que permitam a qualificação do tipo de crime imputado.
X. Desde logo, não foi produzida qualquer prova em sede de instrução, valendo a prova indiciária obtida em sede de inquérito.
XI. E analisada a prova indiciária dos autos não resulta qualquer factualidade que permitisse ao Tribunal “a quo” julgar que comportamento imputado ao Arguido V. S. como “especialmente censurável e perverso” e, por consequência, subsumível nas alíneas d), e), j) e i), do nº2, do artigo 132.º, do Código Penal;
XII. Estando vedada a possibilidade de pronuncia pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.
XIII. Olvidou o Tribunal “a quo” considerar, como se impunha, que estamos perante meros indícios de que o Arguido V. S. terá praticado a factualidade vertida na Acusação Pública levada à decisão instrutória aqui em crise, e que é em sede de audiência de discussão e julgamento que será produzida a prova e será aferida toda a factualidade;
XIV. Não podendo olvidar, como igualmente olvidou, o Princípio da Presunção da Inocência do Arguido.
XV. Na verdade, e ao contrário do vertido na decisão instrutória, a factualidade indiciada apenas é passível de se subsumir na alínea b), do artigo 144.º, do Código Penal, e que permite a imputação e a acusação pelo crime de ofensa à integridade física grave;
XVI. Porquanto, da prova indiciária da qual resulta que o Ofendido, alegadamente, esteve impedido de exercer a sua actividade profissional pelo período de 497 dias, devidamente conjugada com o Princípio da Presunção de Inocência, e em detrimento - sempre com o devido respeito -, de meros juízos de valor e de uma convicção que apenas pode ser formada em sede de audiência de discussão e julgamento mas que erradamente é formada em sede instrutória, impunha ao Tribunal “a quo” manter a Acusação Pública, pronunciando o Arguido V. S. pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave e não qualificada.
XVII. Pelo que, ao decidir pela pronúncia do Arguido V. S. pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, assim agravando o limite máximo da pena aplicável relativamente ao crime pelo qual veio acusado em sede de Acusação Pública, fê-lo em grave violação dos Princípio de Direito, mais concretamente do Princípio da Legalidade e do Princípio da Presunção da Inocência, ambos com assento constitucional, e uma grave violação ao disposto nos artigos 308.º, nº2, do Código de Processo Penal.
XVIII. Devendo a Decisão Instrutória de Pronúncia recorrida ser revogada e substituída por outra que mantenha a Acusação Pública, com pronuncia do Arguido V. S. pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1 e 144.º, alínea b), ambos do Código Penal, sob pena de grave violação do disposto nos artigos 308.º, nº 2 e 283.º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, dos artigos 143.º, nº 1, 144.º, alínea b) e 145.º, nº nº1, alínea c) e 132.º, nº2, alienas d), e), i) e j), estes do Código Penal, e dos Princípios Constitucionais da Legalidade e da Presunção da Inocência, com assento constitucional nos artigos, respectivamente, 29.º, nº1 e 32.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa;
XIX. O que se peticiona a V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores.
Nestes termos, deverão V. Exas. Senhores Juízes Desembargadores conceder provimento ao presente recurso e revogar a Decisão Instrutória de Pronúncia, substituindo-a por outra que pronuncie o Arguido V. S. pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, sob pena de grave violação do disposto nos artigos 303.º, nº 3, 308.º, nº 2 e 283.º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, dos artigos 143.º, nº 1, 144.º, alínea b) e 145.º, nº nº1, alínea c) e 132.º, nº2, alienas d), e), i) e j), estes do Código Penal, e dos Princípios Constitucionais da Legalidade e da Presunção da Inocência, com assento constitucional nos artigos, respectivamente, 29.º, nº1 e 32.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, só assim se fazendo SÃ E INTEIRA JUSTIÇA.
▪ Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido V. S., nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida (fls. 754 a 765).
Para tanto, alega resumidamente:
- No caso concreto, teve lugar uma alteração da qualificação jurídica, sem que haja ocorrido qualquer alteração respeitante à factualidade imputada. Como tal, não se pode considerar ter existido alteração substancial dos factos e, consequentemente, neste particular, não padece a decisão recorrida de qualquer vício.
- No mais, e como bem refere a decisão recorrida, a questão relativa à alteração da qualificação jurídica havia sido levantada no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, com o qual o arguido foi devidamente confrontado, pelo que não carecia de qualquer comunicação ao mesmo.
- A decisão instrutória analisou, de forma correta e rigorosa, a atuação imputada ao arguido - que, reitere-se, este nunca coloca em crise - subsumindo-a às disposições legais aplicáveis. Neste sentido, e face ao exposto, a factualidade vertida na acusação, assente, nesta fase, na prova indiciária, é suscetível de preencher as alíneas d), e), i) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pelo que decidiu bem o Tribunal ao operar a alteração da qualificação jurídica, passando a imputar ao arguido a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do Código Penal.
- No mais, não se verifica qualquer violação aos princípios da legalidade ou da presunção de inocência, pois o juízo crítico efetuado, que permitiu a alteração da qualificação jurídica, assentou na factualidade imputada ao arguido nos exatos termos em que foi formulada na acusação, sem prejuízo do que venha a resultar do julgamento que a decisão entendeu por necessário.
▪ Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que igualmente defende a improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida (fls. 374 e 375 - referência 7619798).
Alega, em síntese, que, no caso, ocorreu uma alteração da qualificação jurídica operada na acusação do MP (situação que está prevista no art. 358º do CPP), e não uma alteração substancial dos factos, sendo que aquela não apanhou de surpresa o arguido/recorrente, pois tomou conhecimento dela quando foi notificado do RAI apresentado pelo assistente A. S., daí que não possa falar que não existiu contraditório e que viu as suas garantias de defesa diminuídas; por outro lado, a falta de cumprimento do disposto no art. 303º, nº5, do CPP constitui mera irregularidade que tem de ser arguida nos termos do art. 123º do mesmo diploma legal, o que não ocorreu, daí que a mesma tenha de ser considerada sanada; por último, quanto à questão de saber se foi efetuado um correto enquadramento jurídico, tendo em conta os factos constantes da acusação, remete para o que foi defendido pelo MP na resposta deduzida ao recurso em primeira instância.
Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi deduzida resposta ao parecer.
▪ Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (4).
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir reportam-se a:
A – Da alegada alteração substancial dos factos descritos na acusação geradora de ilegalidade da pronúncia [arts. 1º, al. f) e 303º, n3, do CPP]. B – Do incorreto novo enquadramento jurídico dos factos indiciados.
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IV – APRECIAÇÃO:
IV.1 – Da alegada alteração substancial dos factos descritos na acusação geradora de ilegalidade da pronúncia [arts. 1º, al. f) e 303º, n3, do CPP]:
Neste segmento recursório, o arguido funda a sua discordância face à decisão de que recorre nos seguintes argumentos [conclusões I a VIII]:
- Foi pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 145.º, nº1, alínea c), por referência aos artigos 143.º, nº1, 144.º, alínea b) e 132.º, nºs 1 e 2, alíneas d), e), i) e j), todos do Código Penal, quando em sede de Acusação Pública estava acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punível pelos artigos 143.º, nº 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal;
- A alteração operada pelo Tribunal recorrido implica agravação do limite máximo da sanção aplicável, o que, nos termos do disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, consubstancia uma alteração substancial dos factos, a qual, de acordo com o estatuído no nº3, do artigo 303.º, do mesmo Código, não pode ser considerada pelo Tribunal para o efeito de pronúncia do arguido nos presentes autos;
Conclui que a decisão instrutória está inquinada com grave ilegalidade que importa a sua revogação e a sua substituição por outra que o pronuncie mantendo a Acusação Pública, ou seja, pela prática de um crime de ofenda à integridade física grave, p. e p. pelos artigos 143.º, nº 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal.
Apreciando.
O art. 1º, al. f), do CPP, define «alteração substancial dos factos» como «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Tal noção não é ideologicamente neutra, antes exprimindo o pensamento legislativo que visa assegurar no processo penal a efetividade das garantias de defesa do arguido.
Como refere o Exmo. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar (5), «A vinculação temática ao objeto da acusação constitui uma garantia de defesa, para impedir alterações do objeto do processo que possam inviabilizar ou prejudicar de modo desrazoável a defesa do arguido; o objeto da acusação deve, por isso, manter-se essencialmente idêntico até à decisão final por forma a assegurar as garantias de defesa do arguido, que não deve ser surpreendido por factos ou circunstâncias novos, diferentes dos que constam da acusação, e que não tenha podido considerar na preparação e organização da sua defesa.»
O princípio geral acima enunciado comporta, no entanto, exceções, legalmente previstas, permitindo-se alterações ao objeto do processo delimitado pelo teor da acusação ou do requerimento de abertura de instrução por pertinentes razões que se reconduzem à descoberta da verdade material, economia processual e até à proteção do interesse da paz processual devida ao arguido, desde que haja cumprimento do contraditório e daí não advenha prejuízo insuportável para a defesa.
Nessa decorrência, prescreve o art. 303º do CPP [sob a epígrafe «Alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução»]:
«1 - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.
2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução.
3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.»
No caso vertente, temos que o Mmo. Juiz de Instrução, mantendo incólumes, intocados na decisão instrutória os factos descritos na acusação deduzida nos autos pelo Ministério Público, limitou-se a alterar a sua qualificação jurídica, convolando o crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 143º, nº1 e 144º, al. b), ambos do Código Penal, cuja prática foi imputada ao arguido no libelo acusatório, para um crime de ofensa à integridade física qualificada, pelos art. 145º, nº1, al. c), por referência ao disposto nos arts. 143º, nº1, 144º, al. b) e 132º, nºs 1 e 2, als. d), e), i) e j), todos do aludido diploma legal.
Inexiste, pois, alteração substancial dos factos, nos termos e para efeitos do disposto conjugadamente nos arts. 1º, al. f), e 303º, nº3, ambos do CPP, já que aquela (como a alteração não substancial) pressupõe, como conditio sine qua non, uma alteração de factos, o que não sucedeu na decisão recorrida.
Como sustentado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.09.2009, proferido no Processo nº 169/07.3GCBNV.S1, disponível em www.dgsi.pt, «Para ocorrer uma alteração de factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifica de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação.» (6) Estamos, assim, perante uma legal alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
Questão distinta é a de saber se, para efeitos do disposto no art. 303º, nºs 1 e 5, a realizada alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação devia ou não ter sido comunicada à defesa, concedendo-lhe, caso requerido, prazo para preparação da defesa (não superior a 8 dias).
O Tribunal a quo entendeu que a comunicação da alteração jurídica que efetuou era desnecessária “uma vez que resulta do alegado no requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente e com o qual o arguido foi confrontado no decurso desta fase processual.”
Para aquilatar do acerto ou desacerto deste entendimento do Tribunal recorrido, recordamos novamente a teleologia da norma jurídica contida no art. 303º, nº3 do CPP [e igualmente do art. 358º, nº3, do mesmo diploma legal], recorrendo agora às elucidativas palavras do Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Mendes (7): «Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto [da alteração não substancial dos factos] à alteração a qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido – nº1 do artigo 32º -, consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais cm base nas quais o arguido irá ser julgado (as disposições legais é que definem e estabelecem a natureza jurídica do facto, o tipo de culpa exigido para o seu preenchimento e demais elementos constitutivos, as sanções aplicáveis e outros elementos essenciais para a correta e adequada defesa do arguido, devendo-se ter em vista que a própria tramitação processual depende da qualificação jurídica dos factos, sendo o que acontece com a forma do processo, a competência do tribunal e o modo de exercício e a extensão do direito ao recurso).»
Como acentua o mesmo insigne autor, atenta a ratio do instituto «[…] vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32º, nº1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para a preparação da defesa.»
Dito isto, cumpre-nos concluir que a fundamentação invocada pelo Mmo. JIC para prescindir da comunicação à defesa da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública não é integralmente correta.
Assistiria plena razão ao tribunal recorrido caso na decisão instrutória se tivesse limitado a alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação do Ministério Publico em conformidade estrita com o alegado e peticionado pelo assistente A. S. no seu requerimento para abertura de instrução, e, assim, pronunciado o arguido V. S. pela prática de um crime ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, al. c), com referência aos arts. 144º, al, b), e 132º, nºs 1 e 2, als. h) e m), todos do CP.
Se assim fosse, não carecia a alteração da qualificação jurídica operada pelo Exmo. JIC de ser comunicada ao arguido, porquanto, incidindo o objeto da instrução requerida pelo assistente, não só mas também, na discussão sobre a correta subsunção jurídica dos factos descritos no libelo acusatório, a sua alteração não constitui “surpresa” para a defesa, que dispôs de oportunidade no decurso da instrução, designadamente no debate instrutório, para se defender da nova qualificação jurídica visada pelo requerente da instrução. Nessa situação, inexiste violação dos princípios do acusatório, do contraditório e das constitucionais garantias de defesa.
Sucede que, no caso, o Tribunal a quo foi mais longe e enveredou por uma subsunção jurídica dos factos descritos na acusação que é distinta da pugnada pelo órgão acusador e, concomitantemente, da defendida pelo assistente no seu RAI.
A qualificação jurídica realizada pelo Tribunal recorrido, ao convocar as circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas d), e), i) e j) do nº2 do art. 132º do Código Penal, é absolutamente inovadora face às preditas peças processuais, e com ela não podia contar o arguido.
Ora, se é certo que, como vimos, o tribunal de instrução não está refém da qualificação jurídica operada na acusação, a concretização da alteração dessa qualificação só é legal quando cumpra as regras processuais vigentes, destinadas a assegurar as garantias de defesa ao arguido.
Assim sendo, a alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada reclamava a sua comunicação ao arguido [na pessoa do seu defensor] nos termos e para efeitos do disposto no art. 303º, nºs 1 e 5 do CPP, o que não sucedeu.
Dessarte, foi cometida uma ilegalidade pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que, no caso, consubstancia uma irregularidade processual – cf. art. 118º, nº2, do CPP. (8) Não tendo sido tempestivamente arguida tal irregularidade, no caso, 3 dias após a notificação à defesa da decisão instrutória (9), mostra-se sanada, não podendo ser oficiosamente conhecida e decretada por este tribunal ad quem – cf. art. 123º, nº1, do CPP.
Ademais, não se poderia tomar como tempestiva a invocação de tal irregularidade em sede do presente recurso [aliás, nem foi especificamente arguida pelo recorrente] pela simples razão de que o despacho de pronúncia, nessa parte, é irrecorrível – cf. art. 310º, nº1, do CPP.
E bem se compreende que assim seja, sem que dessa irrecorribilidade decorra afetação das garantias de defesa, porquanto, assumindo o despacho de pronúncia natureza transitória (contrariamente ao que sucede com o despacho de não pronúncia), permite-se ainda ao arguido que discuta livremente a qualificação jurídica ali operada em sede de julgamento, podendo também o tribunal de julgamento proceder livremente à sua modificação, sendo que a decisão final a esse propósito tomada na sentença/acórdão é, ela sim, sindicável, suscetível de recurso. Está, assim, assegurada a constitucionalidade da norma vertida no art. 310º, nº1, do CPP, quando interpretada nos preditos termos. (10)
Pelo exposto, improcede, nesta parte, o recurso deduzido pelo arguido V. S., devendo manter-se a decisão instrutória recorrida.
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IV.2 - Do alegado incorreto novo enquadramento jurídico dos factos realizado pelo Juiz de Instrução Criminal no despacho de pronúncia:
Subsidiariamente, o arguido/recorrente V. S. insurge-se contra a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação operada pelo Tribunal a quo na decisão instrutória, argumentando, sucintamente, que os factos indiciados são insuficientes para permitir a qualificação do tipo de crime de ofensa à integridade física grave imputado na acusação [conclusões IX a XVII].
Como vimos, na decisão instrutória proferida, o Tribunal recorrido modificou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação sem alterar tal factualidade.
Ou seja, a discordância recursória, nesta parte, concerne à subsunção jurídica dos factos indiciados tal como foi entendida pelo Mmo. JIC.
Sucede que, como acima referimos [parte final do ponto IV.1], a decisão recorrida, nesse segmento, é irrecorrível, não cabendo ao tribunal ad quem, nesta fase processual, discutir e decidir sobre a qualificação jurídica dos factos indiciados efetuada pelo Exmo. Juiz de Instrução.
Por conseguinte, o recurso será rejeitado, nesta parte, por irrecorribilidade da decisão recorrida – cf. disposições conjugadas dos arts. 414º, nº2 e 420º, nº1, al. b), ambos do Código de Processo Penal.
*
V - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:
V.1 - Julgar improcedente o recurso deduzido pelo arguido V. S. na parte em que arguiu a nulidade da decisão instrutória com fundamento no disposto nos arts. 303º, nº3 e 309, ambos do Código de Processo Penal, mantendo-se o despacho recorrido.
V.2 – Rejeitar o recurso deduzido pelo arguido V. S. na parte em que impugna a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação efetuada pelo Tribunal a quo, por irrecorribilidade da decisão recorrida [cf. disposições conjugadas dos arts. 414º, nº2 e 420º, nº1, al. b), ambos do Código de Processo Penal].
*
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça (arts. 513º, 514º e 420º, nº3, todos do Código de Processo Penal, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal).
*
Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*
Guimarães, 22 de novembro de 2021,
Paulo Correia Serafim (relator)
[assinatura eletrónica]
Pedro Freitas Pinto (adjunto)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)
1. Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.04.97, Processo n.º 1256/96 – 3a Secção.
2. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Vol. I, pág. 218.
3. Salvo o devido respeito, vale aqui e agora o despacho proferido pelo Ministério Público aquando da dedução da acusação pública.
4. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
5. In “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 10 ao art. 1º, p. 16.
6. No mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03.04.2008, proferido no Processo nº 4827/07, e de 13.02.2008, proferido no Processo nº 213/08, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
7. Ob. cit., comentário 2 ao art. 358º, pp. 1102 e 1003.
8. Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, anot. 7 ao art. 309º, p. 781, e Maia Costa, ibidem, comentário 4 ao art. 309º, p. 990. Na jurisprudência, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/09/2021, processo nº 196/20.5GBBCL.G1, e de 09/07/2009, processo nº 504/07.4GBVVD-A.G1, do Tribunal da Relação do Porto de 10/12/2014, processo nº 281/12.7TAVLG.P1, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/03/2006, processo nº 96/2006-3, de 12/05/2015, processo nº 2135/12.8TAFUN.L1-5, e de 30/06/2015, processo nº 147/13.3TELSB-F.L1-5, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
9. Não podia o Exmo. defensor do arguido alegar a irregularidade decorrente da falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação no decurso da leitura da decisão instrutória, porquanto esse ato, a que assistiu, esgotou-se na própria leitura realizada.
10. Conforme reiteradamente decidido pelo Tribunal Constitucional, a irrecorribilidade da pronúncia nos termos constantes do art. 310º, nº1, do CPP, não é inconstitucional, sendo compatível com as garantias de defesa e, nomeadamente, o direito ao recurso, a presunção da inocência e o princípio da igualdade [cfr., entre outros, os acórdãos nº 265/94, in DR, II Série, de 19.07.1994, nº 610/96, in DR, II Série, de 06.07.1996, 468/97, de 01.07.1997, proferido no Processo nº 367/96 – 1ª Secção, nº 45/98, de 03.02.1998, proferido no Processo nº 511/97, nº 266/98, in DR II, Série II, de 11.07.1998, nº 216/99, de 21.04.1999, in DR, II Série, de 06.08.1999, nº 463/2002, de 12.11.2002, proferido no Processo nº 618/2002, e nº 482/2014, de 28.07.2014, in DR, Série II, parte D, de 28.07.2014.