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NULIDADE DA SENTENÇA
ERRO NO MEIO PROCESSUAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
FALTA OU INSUFICIÊNCIA DO TÍTULO
EXEQUIBILIDADE DA SENTENÇA
SANAÇÃO
GESTÃO PROCESSUAL
Sumário
1 – No âmbito da execução da decisão condenatória no pagamento de quantia certa, que segue a tramitação prevista para a forma sumária, assiste ao executado o direito de suscitar a intervenção do juiz para «decidir outras questões». 2 – A verificação judicial da regularidade da instância é possível ao longo da execução, seja oficiosamente ou mediante requerimento dos interessados. 3 – A manifesta falta ou insuficiência do título é questão de conhecimento oficioso, assim como o são as repercussões de tal falta nos actos de penhora entretanto praticados na execução. 4 – Em conformidade com o disposto no artigo 704º, nº 1, do CPC, a sentença condenatória é exequível em duas situações: a) Logo que se verifique o seu trânsito em julgado; b) Quando, ainda não transitada, tenha sido interposto recurso com efeito meramente devolutivo. 5 – Requerendo-se execução sem título dotado de exequibilidade, verifica-se a ausência de uma condição da acção, por o título não possuir um dos requisitos necessários à exequibilidade. 6 – A falta de título com força executiva constitui motivo legal de indeferimento do requerimento executivo, isto é, de rejeição da execução, alicerçada na falta de uma condição formal da realização coactiva da prestação. 7 – A inexequibilidade do título é insusceptível de sanação.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):
I – Relatório
1.1. Na execução de decisão judicial condenatória no pagamento de quantia certa, fundada na sentença proferida no processo nº 1418/20.8T8BCL, que V. L. move a X, Lda., foi proferido despacho a «[i]ndeferir liminarmente a presente execução, por inexequibilidade do título dado à execução» e a «[d]eclarar a nulidade de todos os atos processuais praticados após a apresentação do requerimento executivo, com inclusão das penhorados levadas a cabo nos autos, bem como a subsequente nota discriminativa apresentada pela Sr.ª Agente de Execução».
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1.2. Inconformada, a Exequente interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. Constituiu objeto do presente recurso o despacho de fls., referência 174781086. II. A sentença dada à execução foi proferida em 30/11/2020 e o requerimento executivo foi apresentado no dia 19/12/2020. III. Porque se aplica à execução o regime específico da execução sumária, cfr. art.º 626º, n.º 2 do CPC, procedeu-se, em 23/12/2020, à penhora do veículo de matrícula SC e, em 06/01/2021, à penhora da quantia de 28 471,41 Euros, depositada no Banco .... IV. Em 13/01/2021 a recorrida foi citada para em 20 dias, pagar a quantia exequenda, deduzir oposição à execução através de embargos de executado e/ou deduzir oposição à penhora. V. Em 19/01/2021, a sentença condenatória judicial dada à execução, transitou em julgado. VI. Em 21/01/2021, a recorrida apresenta aos autos n.º 1418/20.8T8BCL.1, do Juízo Local Cível de Barcelos, Juiz 2, [anterior apenso de execução de sentença nos próprios autos], requerimento denominado de “reclamação de ato”, com referência 37793540, através do qual invoca a nulidade dos atos praticados na execução, sustentando que a sentença não é exequível. VII. É imperativo concluir que, à data da apresentação de requerimento de “reclamação de ato”, já a sentença dada à execução se mostrava trânsito em julgado, o que por si só deveria determinar o indeferimento liminar do requerimento apresentado e, por conseguinte, deverá determinar a alteração da decisão de que se recorre, o que se requer. VIII. O benefício a que alude o n.º 5 do art.º 139º do CPC apenas é invocável desde que o ato seja praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, e desde que se proceda ao pagamento imediato da multa correspondente. IX. À data da apresentação do requerimento de “reclamação de ato”, a recorrida não manifestou, devendo manifestar, qualquer intenção de apresentar recurso ou reclamação da sentença judicial entretanto dada à execução; não apresentou qualquer recurso, nem invocou qualquer vício da sentença dada à execução, antes se bastou à invocação da extemporaneidade da sentença dada à execução e subsequente nulidade dos atos praticados. X. O que, já à data da apresentação da “reclamação de ato”, deveria ser interpretado como aceitação tácita da decisão proferida, pois, já à data da apresentação do requerimento de “reclamação de ato” a recorrida não revelava nem invocava qualquer expectativa de ver alterada a sentença dada à execução. XI. À data da prolação do despacho de que se recorre, o Tribunal a quo não podia ignorar que a recorrida não apresentou recurso ou reclamação da sentença dada à execução, o que sempre deveria ser considerado para efeitos de exequibilidade [ainda que superveniente] da mesma. XII. O legislador previu expressamente o meio processual adequado à alegação pelos executados de factos que consubstanciam a inexistência ou inexequibilidade do título executivo. XIII. À data da apresentação do requerimento de “reclamação de ato”, subsistia ainda à recorrida o direito de apresentação de oposição mediante embargos de executado. XIV. Pelo que, nada justifica o afastamento da oposição à execução mediante embargos de executado como meio processual idóneo à apreciação dos factos alegados pela recorrida. XV. Ultrapassado o prazo de 20 dias previsto no n.º 1 do art.º 728º do CPC, precludiu o direito da recorrida invocar factos consubstanciadores de inexequibilidade do título executivo, cfr. n.º 1 e 2 do art.º 573º do CPC, o que, nos termos do n.º 13 do art.º 780º do CPC, deverá determinar o prosseguimento da execução, mormente, a entrega ao exequente das quantias penhoradas. XVI. Ainda assim, sempre caberia ao Tribunal a quo proceder à convolação da “reclamação de ato” em “oposição à execução mediante embargos de executado”, procedendo à adequação formal a que alude o n.º 3 do art.º 193º e 547º ambos do CPC e, por conseguinte, fazer cumprir o previsto no n.º 2 e seguintes do artigo 732º do CPC. XVII. A inobservância da adequação formal constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, cfr. n.º 1 do art.º 195º do CPC. XVIII. Analisados os ensinamentos invocados no despacho de que se recorre, verificamos que os mesmos não são adequados ao sentido da decisão proferida. Antes pelo contrário, se observada de perto a jurisprudência invocada, esta impõe decisão diversa da proferida. XIX. Do Ac. do TRL de 01 de outubro de 2020 resulta que “4 - É atendível a exequibilidade da sentença condenatória se, sendo posterior à apresentação do requerimento executivo, é anterior à entrega judicial. 5 - O capítulo onde se integra o art. 626º nº 3 do C.P.C. tem a epígrafe “efeitos da sentença” e, naquela disposição legal, o legislador não distingue decisão transitada em julgado de decisão não transitada em julgada, pelo que, na execução de sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo, não tem a executada de ser citada antes da entrega judicial.”. [sublinhado nosso]. XX. Igual sentido decisório pode retirar-se do Ac. TRL de 21/01/2014, disponível em www.dgsi.pt:“1. Para efeitos do disposto no art. 814º, nº 1, al. a) do CPC61, inexiste título se não há sentença (porque não existe parte decisória ou conclusão, ou porque falta o poder jurisdicional do órgão ou entidade que a profere), ou se a execução não se conformar com o título. 2. E o título é inexequível se a sentença não for condenatória, se não tiver transitado em julgado e ao recurso tiver sido fixado o efeito suspensivo, ou, tendo havido condenação genérica nos termos do art. 661º, nº 2, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, não se tiver procedido a liquidação no processo declarativo. 3. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão, e qualquer vício ou erro de julgamento de que a sentença dada à execução possa padecer, ou qualquer nulidade processual eventualmente praticada no processo, mostram-se, inexoravelmente, ultrapassados.” [sublinhado nosso]. XXI. Aqui chegados, é manifesto concluir que, a existir nulidade processual decorrente da apresentação à execução de sentença ainda não transitada, [o que não se aceita, mas se trata por dever de ofício], o trânsito em jugado da mesma torna indiscutível e inquestionável a condenação que a mesma comporta, motivo pelo qual qualquer nulidade processual, a existir [o que não se aceita] mostra-se sanada, o que se requer seja reconhecido para tosos os efeitos legais. XXII. Como diria S. Tomás de Aquino «É natural para a razão avançar gradualmente do imperfeito para o perfeito». XXIII. Sem prescindir, a decisão de que se recorre violou ainda o dever de gestão processual ínsito no art.º 6º do CPC que determina que o juiz deve promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório; deve igualmente, ouvidas as partes, adotar os mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável; deve também promover oficiosamente o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo. XXIV. Sem prescindir, verifica-se que o Tribunal a quo atentou mal à alegação da recorrida, o que desde logo denuncia a superficialidade com que foi proferido o despacho de que se recorre. XXV. Na resposta apresentada, a recorrente invocou a inalterabilidade da sentença judicial proferida e, bem assim, na inutilidade do requerimento apresentado [referência 39039941] resultante da falta de apresentação pela recorrida de articulado que tivesse a virtualidade de anular e/ou suspender a presente execução. XXVI. Pois, tendo presente o princípio da adequação e celeridade processuais, à data em que a recorrente se pronunciou, não poderia a recorrida [nem o Tribunal a quo] ter a expectativa que a sentença condenatória judicial dada à execução sofresse qualquer alteração. XXVII. O que, por sua vez, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, constituiu causa de nulidade do despacho de que se recorre, o que, subsidiariamente se invoca se invoca. XXVIII. Violou, assim, o despacho de que se recorre, o previsto no art.º 130º, 131º n.º 3 do art.º 193º, n.º 1 do art.º 195º, 547º, n.º 1 e 2 do art.º 573º 619º, n.º 1, 621º, 628º e n.º 3 do art.º 632, n.º 1 do art.º 728º, n.º 2 e seguintes do artigo 732º, n.º 13 do art.º 780º, todos do CPC, e ainda o art.º 6º do mesmo Código, mormente, por referência aos princípios da economia e celeridade processuais, adequação formal, proibição de atos inúteis e o princípio da preclusão, e ao dever de gestão processual.
TERMOS EM QUE, com o douto suprimento de V/Excelências, deve o despacho posto em crise ser revogado e substituído por outro que indeferia a invocada nulidade por inexequibilidade do título executivo, e reconheça a exequibilidade [ainda que superveniente] da sentença dada à execução, com todos os efeitos legais, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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A Executada apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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1.3. Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.
Das conclusões da apelação emergem as seguintes questões a decidir:
i) Nulidade do despacho recorrido;
ii) Inadequação do meio processual utilizado pela Executada;
iii) Exequibilidade da sentença condenatória;
iv) Inexequibilidade do título e nulidade processual;
v) Exequibilidade superveniente da decisão judicial condenatóriae sanação do vício;
vi) Violação do dever de gestão processual.
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II – FUNDAMENTOS 2.1. Fundamentos de facto
Relevam para a apreciação da apontada questão os seguintes factos: 2.1.1. O requerimento executivo foi apresentado em 15.12.2020. 2.1.2. A sentença exequenda transitou em julgado a 19.01.2021. 2.1.3. No âmbito da execução, a Sra. Agente de Execução procedeu, em 23.12.2020, à penhora do veículo de matrícula SC e, em 06.01.2021, à penhora da quantia de € 28.471,41, depositada no BANCO .... 2.1.4. A Executada foi citada por carta registada com aviso de recepção, recebida em 21.01.2021, para pagar a quantia exequenda, deduzir oposição à execução e deduzir oposição à penhora. 2.1.5. Em 21.01.2021, a Executada, sob a referência 37793540, apresentou requerimento onde terminou pedindo: «a) seja declarada a extemporaneidade do título executivo/Sentença; b) seja reconhecida e declarada a nulidade dos actos praticados; c) ordenado o imediato cancelamento e levantamento das penhoras efectuadas ao veículo automóvel e saldo da conta bancária da titularidade da Executada». 2.1.6. Na sequência de a Sra. Agente de Execução ter apresentado, em 20.05.2021, “nota discriminativa” de honorários e despesas, a Executada deduziu reclamação em 31.05.2021, sob a referência 39039941, terminando dizendo que «se deve concluir conforme peticionado no requerimento da Executada, sob Ref.ª 37793540». 2.1.7. A Exequente respondeu à reclamação da Executada mencionada em 2.1.7. mediante requerimento com a referência 39048335, onde concluiu que, «por evidente inutilidade, deve a invocada nulidade ser indeferida». 2.1.8. Em 13.09.2021, sob a referência 174781086 e a epígrafe «indeferimento liminar póstumo e nulidade processual [ref.ª 11031136 e 11551225]», foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
«Veio a exequente V. L. requerer execução da sentença judicial condenatória proferida no âmbito do processo n.º 1418/20.8T8BCL, contra X, LD.ª (art.º 626.º do CPC), através da qual esta última foi condenada a pagar à primeira «a quantia de €24.500,00 (vinte e quatro mil quinhentos euros), acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento».
Tal sentença foi proferida no dia 30 de Novembro de 2020, ao passo que a execução foi proposta no dia 19 de Dezembro de 2020, ou seja, antes do trânsito em julgado da mesma e, bem assim, sem que a ré tenha interposto efetivo recurso da mesma, ao qual tenha sido atribuído efeito meramente devolutivo por aplicação do art.º 647.º, n.º 1 do CPC.
Por se aplicar a tal execução o regime específico da execução sumária (art.º 626.º, n.º 2 do CPC), foram imediatamente (23/12/2020 e 06/01/2021) penhorados à executada os seguintes bens: veículo de matrícula SC e a quantia de 28.471,14€, depositada no Banco ....
A executada invocou a nulidade dos atos praticados na execução, sustentando que a sentença não é exequível, ao passo que a exequente pugna pela viabilidade da execução, argumentando que o recurso que, porventura tivesse sido interposto, teria efeito devolutivo.
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Apreciando e decidindo:
De acordo com a interpretação conjugada dos art.º 703.º al. a) e 704.º, n.º 1 do CPC, as sentenças condenatórias apenas constituem título executivo, em duas situações: a) se a mesma já transitou em julgado ou; b) se, apesar de não ter transitado em julgado, o recurso que contra ela tiver sido interposto for recebido com efeito meramente devolutivo.
Com efeito, no primeiro caso, a sentença goza já de segurança jurídica, visto que, estando transitada em julgado, tornou-se definitiva, sem prejuízo da eventual interposição de recurso extraordinário de revisão.
Na segunda hipótese, ainda que não seja definitiva e mesmo que exista o risco da sentença ser modificada ou revogada em sede de recurso, certo é que o legislador permite a execução provisória da decisão e, neste particular, dispõe o art.º 647.º, n.º 1 do CPC que o recurso de apelação tem, por via de regra, efeito devolutivo, daqui decorrendo que, mesmo interpondo o réu recurso, nada obstará a que o autor/exequente requeira, ainda que provisoriamente, a execução da sentença.
No entanto, conforme alerta MARCO CARVALHO GONÇALVES, neste caso, «a exequibilidade da sentença depende da interposição efetiva do recurso e que o mesmo seja recebido com efeito meramente devolutivo, não bastando, por isso, que da sentença condenatória caiba, em abstrato, recurso, sem que o temo tenha sido efetivamente interposto, nem que ao disso recurso correspondente, em abstrato, nos termos da lei, efeito meramente executivo» (in Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª Edição, Almedina, 2020, pág. 73), opinião que é sufragada, outrossim, por VirGÍNIO DA COSTA RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, quando referem que «a decisão condenatória só deverá ser executada depois de transitada em julgado, ou sem do objeto de recurso, este tenha sido admitido com efeito meramente devolutivo» (in A ação executiva anotada e comenda, 3.ª Edição, Almedina, 2021, pág. 179).
Este é, igualmente, o sentindo da jurisprudência, ao fazer depender a exequibilidade das sentenças condenatórias não transitadas da efetiva interposição de recurso, ao qual deve ser atribuído efeito meramente devolutivo, de tal sorte que, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01 de Outubro de 2020 (processo n.º 5993/19.1T8LSB-A.L1-8, relatora Maria do Céu Silva), «antes de apresentar requerimento executivo, a exequente deveria aguardar pelo termo do prazo para a interposição do recurso e, não se verificando o trânsito findo esse prazo por ter sido interposto recurso, deveria aguardar pelo despacho sobre o requerimento de interposição do recurso» [crf., no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de outubro de 2019 (processo 20069/17.8T8LSB-A.L1-4, Maria Filomena Manso) e do Tribunal da relação de Évora de 28 de Setembro de 2017 (processo n.º 1749/14.6T8LLE-A.E1, relator Tomé Ramião)].
Com efeito, esta exigência [efetiva interposição de recurso com atribuição de efeito devolutivo], para além de ser a interpretação que encontra amparo no elemento literal do art.º 704.º, n.º 1 do CPC, é, ademais, o sentido interpretativo que permite ao recorrente requerer a atribuição de efeito suspensivo ao recurso mediante a prestação de caução (art.º 647.º, n.º 4 e 650.º do CPC), faculdade processual esta que seria frustrada se fosse possível ao credor executar (e penhorar) de imediato o devedor, logo que notificado da sentença condenatória.
No caso, a execução da sentença condenatória foi requerida 19 de Dezembro de 2020, ou seja, sem esta estivesse transitada em julgado e sem que tenha sido atribuído efeito devolutivo a recurso interposto pela ré/executada que, naquela data, ainda o poderia interpor e, no contexto do mesmo, requerer a atribuição efeito suspensivo, mediante a prestação de caução.
Nesta conformidade, naquela data, a sentença condenatória não era exequível (art.º 704.º, n.º 1 do CPC) e, como tal, a exequente não dispunha de título executivo apto estribar a presente execução, razão pela qual deveria a Sr.ª Agente de Execução ter suscitado intervenção judicial nos termos do art.º 855.º, n.º 2, al. b), na medida em que a descrita situação determinaria o indeferimento liminar da execução nos termos do art.º 726.º, n.º 2, al. a), do CPC, o que, em qualquer caso, não impede que a questão possa ser conhecida em momento posterior pelo juiz (art.º 734.º, do CPC).
Por outro lado, inexistindo titulo executivo bastante para sustentar a execução, à data em que a mesma foi proposta e, inclusivamente, no momento em que ocorreram as identificadas penhoras, é manifesto que tais atos que tais atos correspondem a nulidade processuais, por se tratarem de atos praticados quando não eram processualmente admissíveis, com evidente influência na presente causa (art.º 195.º, n.º 1 do CPC).
Pelo exposto, decide-se: a) Indeferir liminarmente a presente execução, por inexequibilidade do título dado à execução, e; b) Declarar a nulidade de todos os atos processuais praticados após a apresentação do requerimento executivo, com inclusão das penhorados levadas a cabo nos autos, bem como a subsequente nota discriminativa apresentada pela Sr.ª Agente de Execução c) Condenar a exequente no pagamento das custas processuais a que deu causa».
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2.2. Do objecto do recurso
2.2.1. Nulidade da decisão recorrida – conclusões XXIV a XXVII
Alega a Recorrente que «o Tribunal a quo atentou mal à alegação da recorrida» (2), uma vez que «[n]a resposta apresentada, a recorrente invocou a inalterabilidade da sentença judicial proferida e, bem assim, na inutilidade do requerimento apresentado [referência 39039941] resultante da falta de apresentação pela recorrida de articulado que tivesse a virtualidade de anular e/ou suspender a presente execução».
Argumenta ainda que, «tendo presente o princípio da adequação e celeridade processuais, à data em que a recorrente se pronunciou, não poderia a recorrida [nem o Tribunal a quo] ter a expectativa que a sentença condenatória judicial dada à execução sofresse qualquer alteração. (…) O que, por sua vez, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, constituiu causa de nulidade do despacho de que se recorre, o que, subsidiariamente se invoca».
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC (3), a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº 2, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Neste enquadramento, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis (4), «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
Quer dizer, o juiz não tem de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (5).
Por outro lado, o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (6). Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (7) ou quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada (8).
No caso dos autos, ponderada a argumentação da Recorrente, é manifesta a sua falta de razão.
O despacho recorrido pronunciou-se sobre as questões de que devia e podia conhecer.
Essas questões eram a inexequibilidade da sentença e a nulidade dos actos praticados no processo em razão da falta de título executivo. Foram essas as questões que a Executada suscitou no processo e que careciam de ser apreciadas.
Como é evidente, ao analisar tais questões houve argumentos apresentados pela Exequente, para rebater a tese da Executada e sustentar a viabilidade da execução, cuja apreciação ficou necessariamente prejudicada pela fundamentação constante do despacho, sendo que as demais razões esgrimidas devem considerar-se tacitamente apreciadas. Tendo o Tribunal a quo considerado que a sentença não transitada é inexequível, a menos que tenha sido interposto recurso com efeito devolutivo, e que os actos praticados quando inexiste título executivo para sustentar a penhora são inadmissíveis e nulos, não tinha que se pronunciar sobre a argumentação da Exequente em que defendia precisamente o contrário.
Em suma, não se verifica a causa de nulidade que a Recorrente aponta ao despacho de 13.09.2021.
Termos em que improcedem as correspondentes conclusões.
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2.2.2. Inadequação do meio processual
Nas conclusões XII a XIV, além de outras, a Recorrente suscita a questão da inadequação do meio processual utilizado pela Executada que conduziu à prolação do despacho recorrido.
No seu entender, como «[à] data da apresentação do requerimento de “reclamação de ato”, subsistia ainda à recorrida o direito de apresentação de oposição mediante embargos de executado» (conclusão XIII), «nada justifica o afastamento da oposição à execução mediante embargos de executado como meio processual idóneo à apreciação dos factos alegados pela recorrida» (conclusão XIV).
Nos presentes autos executa-se uma decisão judicial condenatória no pagamento de quantia certa.
As execuções fundadas em decisão judicial seguem agora a regulamentação prescrita pelo artigo 626º. Executando-se uma decisão judicial proferida por um tribunal português, o requerimento executivo é apresentado no processo em que aquela foi proferida, correndo a execução nos próprios autos e sendo tramitada autonomamente, excepto quando o processo tenha entretanto subido em recurso, caso em que corre no traslado (artigo 85º, nº 1).
Por isso, em conformidade com o disposto no artigo 626º, nº 2, «sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 550º, a execução da decisão condenatória no pagamento de quantia certa segue a tramitação prevista para a forma sumária, havendo lugar à notificação do executado após a realização da penhora».
Portanto, sendo aplicáveis as disposições dos artigos 855º a 858º, a execução de sentença corre sem despacho liminar e sem notificação prévia à penhora. Em todo o caso, cabe ao agente de execução recusar o requerimento executivo e suscitar a intervenção do juiz quando se lhe afigure provável a ocorrência de alguma das situações previstas nos nºs 2 e 4 do artigo 726º (v. artigo 855º). In casu, a notificação foi recepcionada pela Executada no dia 21.01.2021. Tomou então conhecimento dos concretos termos da execução que corria contra si e que nela tinha sido efectuada a penhora de um veículo automóvel e de um depósito bancário.
Como bem refere a Recorrente, a Executada podia deduzir oposição à execução (bem como oposição à execução, situação que para aqui não releva) no prazo de 20 dias a contar da notificação para a execução (artigo 856º, nº 1), invocando, além do mais, a inexistência ou inexequibilidade do título (artigo 729º, al. a)).
A questão é esta: a Executada apenas poderia invocar a questão da inexequibilidade da sentença aquando da instauração da execução e da nulidade dos actos praticados através de oposição à execução mediante embargos de executado, como propugna a Recorrente?
A título preliminar, é irrelevante que no intróito do seu requerimento de 21.01.2021 a Executada tenha invocado o «disposto no art.º 723.º, n.º 1, al. c) do C.P.C.», uma vez que decisivo para a qualificação do meio processual é a fundamentação e o pedido nele constantes. E, no caso em apreciação, o pedido e a respectiva fundamentação não deixam margem para dúvidas que se pretendia do juiz que declarasse «a extemporaneidade do título executivo/Sentença» e «a nulidade dos actos praticados», bem como o consequente «cancelamento e levantamento das penhoras efectuadas». A causa de pedir assentava na circunstância de ter sido requerida a execução de uma sentença não transitada em julgado e da qual não tinha sido interposto recurso; o pedido decorria de o conjunto de actos assim praticados estarem viciados de nulidade. Na tese da Executada, existia uma omissão de um acto por parte da Sra. Agente de Execução, que era a não submissão da questão ao juiz.
Por outro lado, nos termos do artigo 723º, nº 1, al. d), que tem um âmbito residual, assiste ao executado o direito de suscitar a intervenção do juiz para «decidir outras questões». Foi isso que a Executada fez: suscitou a questão de a execução ter sido requerida sem título exequível e de os subsequentes actos serem, no seu entender, nulos, formulando em conformidade a respectiva pretensão.
Desde logo, a qualquer parte assiste a faculdade, enquanto meio de defesa, de arguir nulidades, as quais são objecto de requerimento nos termos respectivos e gerais dos artigos 188º, 191º e 195º, entre outros. Independentemente de quaisquer outras considerações, no próprio dia em que tomou conhecimento integral dos termos da execução e que nela tinha sido efectuada a penhora de determinados bens do seu património, a Executada tinha a faculdade de invocar a nulidade de todo o conjunto de actos até aí praticados decorrente de a execução ter sido requerida sem título exequível. Uma vez que foi formulado pedido de declaração da nulidade dos actos e o consequente levantamento das penhoras e cancelamento do registo, é destituída de fundamento a alegada inadequação do meio processual com vista a obter a realização daquela pretensão.
Acresce que comportando a tramitação da execução de sentença uma significativa compressão das garantias do executado, desde logo por inexistir despacho liminar ou notificação prévia à penhora, é compreensível que este possa suscitar diversas questões ao juiz, sobretudo aquelas que são de conhecimento oficioso, nas quais se incluem a manifesta falta ou insuficiência do título executivo. Se na execução com processo ordinário, mesmo depois de ultrapassada a fase do despacho liminar, «o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo», por maioria de razão, esse controlo posterior é admissível na execução que siga forma sumária ou a que são aplicáveis as disposições relativas a esta. A verificação judicial da regularidade da instância é possível ao longo da execução, seja oficiosamente ou mediante requerimento dos interessados, justificando-se por o despacho liminar não ter cabimento na forma sumária. Desde que a questão não haja sido apreciada, o juiz deve conhecer dela e nada obsta a que tal mecanismo seja despoletado por simples requerimento do executado, ao abrigo do artigo 723º, nº 1, al. d), se o seu objecto não apresentar complexidade que exija um procedimento de tipo sumário, como o da oposição à execução (sendo isso evidente quando o artigo 726º, nº 2, al. a), no que respeita à falta ou insuficiência do título, exige que “seja manifesta”) (9).
O apontado controlo judicial da execução, sendo certo que pode ser feito num momento declarativo do processo, como é o caso da oposição à execução, pode ocorrer sempre que se justifique, face aos elementos que já existam nos autos, desde que não haja necessidade de produção de provas. Se o juiz concluir pela existência dos vícios, proferirá decisão em conformidade.
Todavia, o que releva no caso dos autos não é se a Executada poderia suscitar a questão da inexequibilidade da sentença – sendo certo que quanto à arguição da nulidade dos actos praticados ela sempre seria admissível ao abrigo do disposto no artigo 195º/1 –, mas sim se o Tribunal a quo podia apreciar da questão fora do incidente declarativo, ou seja, da oposição à execução mediante embargos.
Ora, essa matéria não é susceptível de qualquer dúvida: a manifesta falta ou insuficiência do título é questão de conhecimento oficioso, como bem resulta do disposto nos artigos 726º, nº 2, al. a), e 734º.
Portanto, podendo o Exmo. Juiz a quo conhecer oficiosamente da questão de que conheceu (decidiu questão que lhe incumbia apreciar), com base exclusivamente nos elementos dos autos, nenhum efeito é susceptível de se retirar da alegada inadequação do meio utilizado pela Executada.
Finalmente, não se verificava qualquer situação de preclusão do conhecimento da questão. Além de ser do conhecimento oficioso, foi suscitada nos autos antes de decorrido o prazo para oposição à execução mediante embargos e dentro do prazo de que a Executada dispunha para invocar a nulidade (e respectivas consequências). Mesmo que se concluísse pela inadequação do meio processual, nunca seria de considerar a ocorrência de qualquer motivo de preclusão, mas sim para, ao abrigo do princípio da adequação formal, ordenar a convolação do requerimento de 21.01.2021 em oposição à execução mediante embargos de executado, em conformidade com o disposto nos artigos 193º, nº 3, e 547º.
Termos em que improcedem as conclusões relativas a esta questão.
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2.2.3. Exequibilidade da sentença condenatória
Embora nas conclusões apenas constem resquícios da argumentação apresentada na motivação das alegações (v. o ponto 3 da motivação), a Recorrente parece defender que a sentença não transitada em julgado e da qual não foi interposto recurso é exequível assim que seja proferida (v. a conclusão XXI, na parte em que alega: «a existir nulidade processual decorrente da apresentação à execução de sentença ainda não transitada, [o que não se aceita, mas se trata por dever de ofício]»).
Caso se conclua que a sentença era exequível no momento em que foi apresentado o requerimento executivo, fica necessariamente prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão.
Para a apreciação da apontada questão releva o facto de o requerimento executivo ter sido apresentado em 15.12.2020 e a sentença condenatória ter transitado em julgado a 19.01.2021, sem que tenha sido interposto recurso contra a mesma.
Sobre esta matéria dispõe o artigo 704º, nº 1, que «a sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo».
A referida norma contêm uma regra e uma excepção. A regra é a sentença só adquirir força executiva depois do trânsito em julgado (10). A única excepção é a execução de sentença pendente de recurso, desde que a interposição deste tenha efeito meramente devolutivo.
Portanto, a sentença é exequível em duas situações:
a) Logo que se verifique o seu trânsito em julgado;
b) Quando, ainda não transitada, tenha sido interposto recurso com efeito meramente devolutivo.
Nesta última hipótese, estamos perante uma exequibilidade provisória da sentença (11). Aliás, o nº 2 do artigo 704º dissipa qualquer dúvida sobre a concreta situação em que a sentença não transitada em julgado adquire exequibilidade, ao referir-se a «execução iniciada na pendência de recurso». Portanto, só a execução de sentença que se tenha iniciado na pendência de recurso com efeito meramente devolutivo é provisoriamente exequível.
Em lado algum a lei admite a imediata execução da sentença não transitada em julgado e não pendente de recurso.
Por isso, é manifesto o acerto do despacho recorrido ao considerar que a exequibilidade das sentenças condenatórias não transitadas depende da efetiva interposição de recurso. Aliás, podendo em abstracto haver alguma tese peregrina em sentido contrário, desconhecemos a existência de quem defenda a exequibilidade de sentença não transitada em julgado fora da aludida situação prevista na segunda parte do nº 1 do artigo 704º.
É essa a lição de Marco Carvalho Gonçalves (12), citada na decisão recorrida, segundo a qual, «a exequibilidade da sentença depende da interposição efetiva do recurso e que o mesmo seja recebido com efeito meramente devolutivo, não bastando, por isso, que da sentença condenatória caiba, em abstrato, recurso, sem que o mesmo tenha sido efetivamente interposto». Do mesmo modo, também Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo (13) afirmam que «a decisão condenatória só deverá ser executada depois de transitada em julgado, ou sendo objeto de recurso, este tenha sido admitido com efeito meramente devolutivo».
Termos em que improcede a apontada questão.
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2.2.4. Inexequibilidade do título e nulidade processual
Do já exposto em 2.2.3. resulta que a Exequente requereu a execução sem para o efeito ter título executivo: a sentença não tinha transitado em julgado e a execução não se iniciou na pendência de recurso.
Portanto, a sentença não tinha força executiva, pelo que era inapropriada para desencadear a execução contra a ora Executada. Não podia a Exequente requerer a execução da decisão judicial condenatória nos termos do artigo 626º, nº 1, atenta a inexequibilidade da mesma.
O certo é que requereu a execução da sentença e que foram penhorados dois bens, tudo no período anterior ao trânsito em julgado da decisão judicial condenatória, o qual apenas ocorreu a 19.01.2021.
Nos termos do artigo 10º, nº 5, toda a execução tem por base um título. Se inexiste título, não pode o credor requerer contra o devedor a realização coerciva de direito de crédito violado e insatisfeito, o mesmo é dizer que não tem “direito à execução”, ou seja, a executar o património do devedor (v. artigo 817º do Código Civil).
Um título é executivo porque «atribui exequibilidade a uma pretensão» (14); antes da formação do título executivo pode haver direito à prestação, mas sem exequibilidade.
Além da mencionada exigência de título executivo, a lei define as espécies de títulos que podem servir de base à execução (v. artigo 703º) e, no que respeita às sentenças, estabelece os requisitos da sua exequibilidade (artigo 704º).
Como enfatiza Rui Pinto (15), «as exigências de título executivo e de exigibilidade e determinação da obrigação constituem, claramente, requisitos de tipo diferente dos pressupostos processuais – v.g., diferentes da competência ou da personalidade, capacidade ou legitimidade. Efetivamente, como no processo declarativo, na execução os pressupostos processuais são condições de conhecimento do pedido executivo: se, por exemplo, o tribunal for incompetente não deverá sequer conhecer da exequibilidade. Em suma: respeitam à relação processual. Mas já o título executivo e a obrigação não são pressupostos processuais, pois não respeitam à relação processual. O título não determina se o tribunal pode conhecer do pedido do exequente; pelo contrário, o título e a obrigação respeitam à relação material e determinam se o tribunal pode ou não satisfazer o pedido do credor de realização coativa da prestação, ou seja, a procedência do pedido executivo. Por isso, o título executivo e a obrigação com determinadas qualidades são condições de ação».
Assim sendo, instaurando-se execução sem título dotado de exequibilidade, verifica-se a ausência de uma verdadeira condição da acção, porque o título não possui um dos requisitos necessários à exequibilidade (16).
A falta de título executivo (ou a sua insuficiência) constitui motivo legal de indeferimento do requerimento executivo, isto é, de rejeição da execução, seja no despacho liminar ou em despacho sucessivo – v. artigos 726º, nº 1, al. a), e 734º.
Essa rejeição da execução alicerça-se na falta de uma condição formal da realização coactiva da prestação.
Sendo inequívoca a consequência jurídico-processual da instauração de execução sem título exequível, importa agora determinar o que sucede aos actos que foram praticados na execução assim requerida.
A este propósito, desde os tempos dos romanos que vigora o brocardo nulla executio sine titolo.
Se a lei não admite, como acabamos de demonstrar, uma execução sem título executivo, qualquer acto praticado no âmbito da mesma, em especial os de agressão patrimonial contra o executado, também constitui um acto que a lei não admite. Se não admite a execução, por maioria de razão também não admite os actos que a mesma encerra.
Por isso, verifica-se a nulidade de tais actos, em conformidade com o disposto no artigo 195º, nº 1.
Nesta conformidade, não é susceptível de censura o despacho recorrido na parte em que considera que «inexistindo titulo executivo bastante para sustentar a execução, à data em que a mesma foi proposta e, inclusivamente, no momento em que ocorreram as identificadas penhoras, é manifesto que tais atos correspondem a nulidade processuais, por se tratarem de atos praticados quando não eram processualmente admissíveis, com evidente influência na presente causa (art.º 195.º, n.º 1 do CPC)».
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2.2.5. Exequibilidade superveniente da sentença e sanação do vício
A questão fundamental suscitada pela Recorrente respeita à exequibilidade superveniente da sentença exequenda e seus reflexos, designadamente se isso implicava a sanação da anterior inexequibilidade e do vício dos actos então praticados.
Alega para o efeito que a eventual «nulidade processual decorrente da apresentação à execução de sentença ainda não transitada» mostra-se sanada, uma vez que «o trânsito em julgado da mesma torna indiscutível e inquestionável a condenação que a mesma comporta» (XXI).
Sustenta que «[à] data da prolação do despacho de que se recorre, o Tribunal a quo não podia ignorar que a recorrida não apresentou recurso ou reclamação da sentença dada à execução, o que sempre deveria ser considerado para efeitos de exequibilidade [ainda que superveniente] da mesma» (XI).
Sendo patente que a execução foi requerida sem ter por base título exequível e que os actos praticados se mostram inválidos por nulidade processual, importa agora averiguar se a circunstância de a sentença ter transitado em julgado a 19.01.2021, passando a Exequente a ser possuidora de título exequível, implica a sanação do vício.
Em lado algum a Recorrente demonstra, com base em norma legal, como actos claramente nulos, que não poderiam ter sido praticados por a lei vedar a possibilidade de execução sem título, podem manter-se e produzir todos os seus efeitos. Limita-se a afirmar a sanação do vício sem a atinente fundamentação: não basta dizer que a sentença é agora, desde 19.01.2021, exequível; é necessário que a nulidade de que os actos praticados padecem seja susceptível de sanação.
Em primeiro lugar, nenhuma disposição legal permite a sanação invocada pela Recorrente, decorrente da mera circunstância de, depois da penhora, a sentença ter adquirido força executiva, a qual não possuía à data dos actos de execução do património da Recorrida/Executada.
Em segundo lugar, a Recorrida não deu causa à nulidade, nem, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição (v. artigo 197º, nº 2). No próprio dia em que foi notificada das penhoras e para deduzir oposição à execução veio arguir a nulidade e invocar a inexequibilidade do título quando foi instaurada a execução.
Em terceiro lugar, não é susceptível de ser apagado o facto de a execução ter sido instaurada sem título e de a penhora, bem como o inerente acto de registo quanto ao automóvel, não ser admissível naquelas circunstâncias.
Se houvesse lugar a despacho liminar, o requerimento executivo teria sido imediatamente indeferido. Como na tramitação da execução de sentença nos próprios autos não está previsto o despacho liminar e a falta de título exequível era evidente, a Sra. Agente de Execução deveria ter suscitado a intervenção do juiz, em conformidade com o disposto no artigo 855º, nº 2, al. b), caso em que seria rejeitada a execução. E caso tivesse ocorrido qualquer outra intervenção do juiz no processo, como era uma questão de conhecimento oficioso, a execução seria indeferida e, se já tivesse ocorrido um acto de apreensão patrimonial, ordenado o levantamento da penhora.
Em nenhum desses casos incumbia ao tribunal aguardar pelo trânsito em julgado da sentença, o que bem evidencia a insusceptibilidade de sanação do vício.
Por isso, a superveniente força executiva da sentença não constitui motivo legal de sanação de algo que a lei pretende que não se verifique: a instauração de execução e a realização de actos de execução do património do executado sem que, ao tempo em que são praticados, exista título executivo. Importa frisar que não se está perante uma situação em que ao tempo da penhora o título invocado já possuía força executiva.
Em quarto lugar, além de ser manifesta a nulidade dos actos, o título executivo não constitui um pressuposto processual, mas antes uma condição da acção. Daí que careça de qualquer sentido invocar a sua sanação como se estivesse em causa um pressuposto processual, como a capacidade ou legitimidade.
É completamente diferente o juiz ordenar a junção do original do título executivo por o exequente ter apenas apresentado uma cópia e instaurar-se uma execução sem qualquer título exequível. No primeiro caso é uma questão de comprovação do título invocado e no segundo de falta de exequibilidade do título.
Portanto, e assim concluímos, o trânsito em julgado da sentença, ocorrido supervenientemente em 19.01.2021, não operou a sanação alegada pela Recorrente. Muito menos produziu qualquer efeito de preclusão da apreciação por parte do juiz.
Nesta conformidade, improcedem as conclusões formuladas sobre esta matéria.
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2.2.6. Violação do dever de gestão processual
A Recorrente alega que «a decisão de que se recorre violou ainda o dever de gestão processual ínsito no art.º 6º do CPC que determina que o juiz deve promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório; deve igualmente, ouvidas as partes, adotar os mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável; deve também promover oficiosamente o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo» (XXIII).
O dever de gestão processual mostra-se consagrado no artigo 6º do CPC, que dispõe assim:
«1 – Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando os mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2 – O juiz providenciará oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo».
Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (17), «no normativo afloram com precisão dois pilares fundamentais do processo civil: o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais».
Apesar de a Recorrente apontara violação do dever de gestão processual, não indica que concreta actuação jurisdicional foi omitida pelo Sr. Juiz a quo, para além da mera circunstância objectiva de ter decidido a questão suscitada pela Executada a favor desta e com a específica fundamentação que acabamos de apreciar. Não consta da motivação nem da conclusão das alegações que acima transcrevemos.
Estamos, assim, perante uma alegação infundamentada, insusceptível de conduzir à revogação do despacho recorrido.
Verificada uma patente falta de exequibilidade da sentença cuja execução foi requerida, o Sr. Juiz não poderia ignorar a falta de título e as respectivas consequências jurídicas, tanto mais que a Executada suscitou expressamente a questão.
A falta de título executivo não é uma mera questão formal ou acessória susceptível de ser ultrapassada pelo exercício do poder de direcção do processo. Como o demonstra a exigência estabelecida no artigo 10º, nº 5, do CPC, o título é uma questão fundamental e incontornável numa execução; sem ele não pode haver execução. Ou há título ou não há: se não há título, o juiz deve retirar daí as respectivas consequências jurídicas, não lhe sendo imposta outra actuação.
A falta de título executivo não é uma questão impertinente nem dilatória, nem é susceptível de «simplificação e agilização processual».
Também, como vimos, não constitui sequer um pressuposto processual ou outro qualquer obstáculo formal susceptível de sanação. A falta de título exequível não é sequer um problema de «regularização da instância» ou que dependa da actuação do juiz para o seu suprimento.
Ainda no que respeita à sanação, não compete ao juiz desenvolver diligências no sentido ultrapassar nulidades de actos que decorrem da actuação das partes. Igualmente não é imposto ao juiz, perante uma inequívoca manifestação de vontade de uma parte em prevalecer-se da verificação de uma nulidade ou de qualquer outra invalidade ou causa de extinção do procedimento, convidá-la a abdicar de tal arguição para sanar o vício.
Perante a precipitação da Exequente, que requer a execução e a penhora de bens antes de poder fazê-lo, o juiz não tem que efectuar uma gestão processual. É um acto pelo qual é responsável a Exequente, que deve arcar com as suas consequências e não endossar a responsabilidade ao juiz, como se a violação da exigência de título executivo decorresse da actuação deste e a falta fosse susceptível de um outro desenvolvimento.
Termos em que improcede a apelação.
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2.3. Sumário
1 – No âmbito da execução da decisão condenatória no pagamento de quantia certa, que segue a tramitação prevista para a forma sumária, assiste ao executado o direito de suscitar a intervenção do juiz para «decidir outras questões». 2 – A verificação judicial da regularidade da instância é possível ao longo da execução, seja oficiosamente ou mediante requerimento dos interessados. 3 – A manifesta falta ou insuficiência do título é questão de conhecimento oficioso, assim como o são as repercussões de tal falta nos actos de penhora entretanto praticados na execução. 4 – Em conformidade com o disposto no artigo 704º, nº 1, do CPC, a sentença condenatória é exequível em duas situações: a) Logo que se verifique o seu trânsito em julgado; b) Quando, ainda não transitada, tenha sido interposto recurso com efeito meramente devolutivo. 5 – Requerendo-se execução sem título dotado de exequibilidade, verifica-se a ausência de uma condição da acção, por o título não possuir um dos requisitos necessários à exequibilidade. 6 – A falta de título com força executiva constitui motivo legal de indeferimento do requerimento executivo, isto é, de rejeição da execução, alicerçada na falta de uma condição formal da realização coactiva da prestação. 7 – A inexequibilidade do título é insusceptível de sanação.
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III – DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)
1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Se bem interpretamos, terá pretendido dizer “Recorrente”.
3. Pertencem ao Código de Processo Civil (CPC) as disposições que doravante se mencionarem sem indicação da respectiva fonte.
4. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 143.
5. Acórdão do STJ de 30.04.2014 (relator Belo Morgado), proferido no proc. 319/10, acessível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais que se citarem de ora em diante sem indicação da respectiva fonte.
6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.03.2001 (Ferreira Ramos).
7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2002 (Araújo de Barros).
8. Acórdão da Relação do Porto de 09.06.2011 (Filipe Caroço).
9. Já Lebre de Freitas referia que «tratando-se de vícios cuja demonstração não carece de alegação de factos novos nem de prova, o meio dos embargos de executado seria demasiado pesado, pelo que é defensável bastar um requerimento do executado em que este suscite a questão no próprio processo executivo – A Acção Executiva, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 156.
10. Recorde-se que a decisão, nos termos do artigo 628º, transita em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação. Se for admissível recurso ordinário, a partir da notificação corre prazo de 30 ou 15 dias para a sua interposição. Caso não seja admissível recurso ordinário, ainda assim há que aguardar o decurso do prazo de 10 dias para apresentação de reclamação ou de pedido de reforma – artigos 149º, nº 1, 615º, nº 4, e 616º, nºs 1 e 2.
11. A provisoriedade resulta directamente do disposto no nº 2 do artigo 704º.
12. Lições de Processo Civil Executivo, 4ª edição, Almedina, 2020, pág. 73.
13. A Ação Executiva anotada e comentada, 3ª Edição, Almedina, 2021, pág. 179.
14. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pág. 63.
15. A ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, pág. 143.
16. Acórdão do STJ, de 04.04.2006, proferido no processo 06A736, relatado por João Camilo, disponível em www.dgsi.pt.
17. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 32.