PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REMESSA PARA OS TRIBUNAIS CIVIS
Sumário

Na situação em apreço, o Tribunal a quo fundou o reenvio do conhecimento da acção cível enxertada na circunstância da tramitação do incidente de habilitação de herdeiros comprometer de forma intolerável o normal andamento do processo criminal, a descoberta da verdade material e o “restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade”.
Ressalvado sempre o devido respeito por diferente entendimento, não acompanhamos o argumentário da decisão recorrida. Não só a habilitação de herdeiros se mostra já reconhecida em habilitação notarial, como não se descortina em que medida o cumprimento da tramitação prevenida no artigo 353º, do Código de Processo Civil pode in casu protelar e de forma intolerável, isto é, insuportável, inadmissível ou inaceitável o andamento do processo criminal.
Na verdade, dois dos habilitados por morte da assistente e demandante LM, já são intervenientes nos autos tendo a qualidade de demandantes e não se vislumbra em que medida o cumprimento da tramitação legal relativamente a eles e à habilitada herdeira testamentária e aos demandados civis possa suscitar questões quer com a tramitação do incidente, quer com o pedido cível enxertado que coloquem de forma intolerável em causa o julgamento dos factos/crime imputados ao arguido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 95/13.7 TAVRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, Juiz 2, datado de 21.01.2021, foi proferido o seguinte despacho judicial:

“Conforme consta da Acusação / Decisão Instrutória, os factos que o Tribunal deverá apreciar, qualificados como constituindo crime, terão ocorrido entre 2008 e 2012. O processo iniciou-se em 2013. Foi designada data para julgamento em 07/01/2020. Sucederam-se incidências várias ao longo do ano, maioritariamente relacionadas com o pedido civil, que arrastaram o inicio da audiência para o próximo dia 02/02.

Vem agora a ser deduzido incidente de habilitação de herdeiros.

A tramitação normal deste incidente acarretará, desde logo, mais um adiamento do inicio da audiência de julgamento. Além disso, são vários os requeridos e entre os quais, conforme resulta dos autos, um deles já gerou questões que demandaram algum tempo para a sua resolução. Provavelmente voltar-se-á a assistir à repetição de tais questões.

Ora, a admitir este incidente a ser resolvido em sede de processo penal, temos, face ao sobredito, mormente as datas enunciadas, que se atingiu o limite de intolerabilidade por comprometimento da descoberta da verdade material através da sua representação histórica e, ainda, do restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade.

Devem, pois, todas as questões relacionadas com o pedido civil enxertado no processo penal destes autos, serem resolvidas nos Tribunais Civis (cfr. artº. 82º, nº.3, do CPP).

Assim sendo, mantendo a data designada para inicio de audiência de julgamento, decido remeter as partes para os Tribunais Civis no tocante a todas as questões relacionadas com o pedido civil deduzido nestes autos, mormente o incidente de habilitação de herdeiros e outras questões conexas.

Notifique e d.n.”.

Inconformada com a decisão, dela recorreu a ofendida/demandante RFFA extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

“I. A recorrente é Demandante nos autos; também o era, e Assistente, LM, agora falecida a 29.12.2020, deixando como seus únicos herdeiros a recorrente; o seu viúvo FM e VA, herdeira testamentária.

II. Existe já habilitação de Herdeiros notarial, de 5 de Janeiro de 2021, escritura já junta aos autos com o requerimento de Incidente de habilitação apresentado pela ora Recorrente em 20 de Janeiro de 2021; estando a qualidade de herdeiros dos referidos desde já reconhecida por habilitação notarial, o que se diz nos termos do art. 353.º do CPC.

III. Os outros dois requeridos (o arguido e o demandado) estão identificados nos autos e neles participam; assim, nenhuma dificuldade se antevê quanto à sua citação para o Incidente; e igualmente não se antevê qualquer demora processual decorrente de contestações, que aqui provavelmente nem existirão.

IV. A falecida L deduziu Acusação particular e PIC contra o arguido M e pedido de indemnização civil contra o demandado B (inicialmente Banco …), nestes autos. Ora, ante a apresentação do Incidente de Habilitação, veio o Mm. Juiz proferir o Despacho transcrito na Motivação.

V. O processo teve início em 2013, por queixa então apresentada pelas lesadas R e L e pelo lesado F; e nenhuma culpa lhes assiste em que o julgamento só tenha vindo a ser marcado para 7 de Janeiro de 2020; como nada se lhes pode imputar quanto aos incidentes que terão atrasado a realização do mesmo, que apesar de ter tido designada data para aquele 7 de Janeiro de 2020 não se chegou porém a realizar.

VI. Está designado agora o dia 2 de Fevereiro de 2021 como data para o julgamento; mas, a data vai seguramente ser adiada, face às decisões governativas decorrentes da pandemia, por não ser processo urgente.

VII. A tramitação do Incidente de Habilitação, visto o que se diz, não tem previsão de qualquer entrave ou falta de celeridade, a cumprirem-se normalmente os trâmites processuais. Nem se alcança como de um adiamento, ainda que seja por meses, se atinja o que consta no 4ª parágrafo da decisão recorrida: (…), a admitir este incidente a ser resolvido em sede de processo penal, temos, face ao sobredito, mormente as datas enunciadas, que se atingiu o limite de intolerabilidade por comprometimento da descoberta da verdade material através da sua representação histórica e, ainda, do restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade.

VIII. Nem se percebe que questões no PIC e/ou na tramitação processual do mesmo relevam assim tão difíceis ou demoradas para que haja essa intolerabilidade de julgar, como deve ser julgado, o PIC no âmbito do processo crime onde foi deduzido oportunamente; quando essa é, a nosso ver, a solução mais rápida, mais consentânea com as normas legais e mais respeitadora dos interesses em presença e dos direitos dos lesados.

IX. Enviar as partes para os Tribunais Civis, invocando o art.82.º, n.º 3 do CPP parece descabido e infundamentado, e contrário às normas legais do princípio de adesão consagrado no Processo Penal português; devendo pois o PIC ser desde já apreciado como a Lei determina, conjuntamente com o processo crime no âmbito do qual, aliás, foi deduzido, nos termos dos art. 71º e seguintes do CPP. Não se alcança como essa apreciação conjunta, se efectuada no quadro legal, pudesse inviabilizar quanto ao PIC uma decisão rigorosa. Para rigorosa decisão importa que não se separem, em processos díspares e distintos, factos que afinal são os mesmos; e para os quais a sua apreciação e a decisão conjuntas não atrasariam intoleravelmente o processo penal.

X. As excepções legais ao princípio da adesão, notadamente a invocada no douto Despacho – a do nº 3 do art. 82º do CPP –, salvo melhor opinião, não colhem aqui. Mesmo que a data actual de julgamento pudesse vir a ser adiada - e muito provavelmente o será dada a pandemia - isso não significaria no contexto geral do processo e da situação emergente actual qualquer atraso intolerável.

XI. Assim sendo, pugna a ora recorrente pelo julgamento conjunto – como aliás determina a lei – da causa penal e civil; pois que com a decisão recorrida foram violadas as normas dos artigos 71º, 72º e 82º, nº 3 do CPP.

Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, deve revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine que no processo crime se apreciarão conjuntamente os autos civis de PIC,

Assim se fazendo JUSTIÇA!”.

Admitido o recurso e notificados os devidos sujeitos processuais, foi oferecido articulado de resposta pela Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância, alegando nos seguintes termos:

“(…)

Salvo o devido respeito, atento o princípio da adesão estabelecido no art.º 71º do C.P.P., e a previsão legal do art.º 82º, nº 3 do C.P.P. citada no despacho recorrido, que fala de retardamento intolerável do processo penal por via das questões suscitadas no pedido de indemnização civil, tal como a recorrente não se vislumbra que demora ou complexidade pode provocar a decisão do incidente suscitado.

Na verdade, já tendo sido junta aos autos a escritura de habilitação de herdeiros, apenas há a citar os requeridos e proferir decisão.

Nem se está a perspectivar que questões a tal propósito poderão suscitar os requeridos.

Isto para dizer que, em nosso entender, o despacho recorrido decidiu de forma errada ao remeter as partes para os Tribunais Civis.

Acrescente-se que, se não fosse a decisão recorrida, seria de prever que, neste momento, já se encontrasse decidido o incidente em causa e, afinal, nem sequer está designada data para realização da audiência de julgamento.

Concluindo, entende-se que o recurso da demandante civil merece provimento

(…)”.

Remetidos os autos a esta Relação, nesta o Exmº Procurador-Geral Adjunto nada disse.

Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.

Foi realizada Conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação - cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a questão aportada ao conhecimento desta instância é a seguinte:

(i) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito no tocante ao reenvio para os tribunais civis das partes na instância civil enxertada no processo criminal.

III

Fazendo aporte da elencada questão, [(i)], trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem, cumpre, desde já, salientar que não se olvida que a indemnização por perdas e danos, de qualquer natureza, emergentes de ilícito criminal é regulada, como no caso sub judice, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil - cfr. artigo 483º, do Código Civil ex vi do artigo 129º, do Código Penal -, valendo os requisitos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, decorrente de responsabilidade aquiliana, de harmonia com o consignado nos artigos 483º, 494º, 496º, 562º, 563º, 564º e 566º, todos do Código Civil.

E, importa também não olvidar que, adjectivamente, nos termos prevenidos no artigo 71º, do Código de Processo Penal, “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”.

É a consagração do chamado processo de adesão “segundo o qual o pedido de indemnização civil pode ser proposto ou directamente no processo penal ou em acção civil autónoma, embora entre os dois processos se estabeleça uma certa dependência com reflexos processuais (ex.: se a acção civil está simultaneamente pendente com o processo penal, o processo civil há-de suspender-se até que seja decidida a questão penal).” – v.g. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. I, 5ª edição, Editorial Verbo 2008, pág. 125 a 135.

Ainda como refere o mesmo autor, ob. e loc. citados, “é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquele autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo. A razão da condenação em indemnização civil mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal é ainda determinada por razões de economia processual.”.

A própria lei processual penal, no artigo 72º, estabelece aqueloutras situações em que o pedido civil pode ser formulado em processo autónomo, perante o tribunal civil, dando origem a um processo civil.

E, além do reenvio para os tribunais civis nas situações em que o tribunal criminal condenou em indemnização a liquidar em execução de sentença ou estabeleceu uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente que correrá, em princípio, em processo perante o tribunal civil – cfr. artigo 82º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal -, pode ainda o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, determinar a remessa das partes civis para os tribunais civis, quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil (a) forem susceptíveis de inviabilizarem uma decisão rigorosa ou (b) forem susceptíveis de provocar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal – v.g. nº 3, do mencionado artigo 82º.

Como se lê no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, proferido em 21.09.2021, no processo nº 153/15.3 GJBJA-A.E1, em que a signatária interveio como adjunta, “(…) O art. 82º nº3 do CPP prevê dois tipos de situação em que tal pode ocorrer, atendendo a razões distintas. Por um lado, acolhe a ideia que a adesão do processo civil ao processo penal não pode sacrificar as exigências específicas do processo penal, nem os valores que lhe estão subjacentes, pelo que o reenvio para os tribunais civis visará evitar o retardamento excessivo do processo penal (é este o fundamento em causa nos presentes autos) Por outro, admite que se ponha termo à junção das duas acções, civil e penal, quando as questões suscitadas pelo pedido cível inviabilizem a sua decisão rigorosa no processo penal.

Atribui-se, assim, ao tribunal o poder-dever de assegurar que o processamento conjunto da acção civil e da acção penal não ponha em causa a prossecução das finalidades próprias de cada um dos respectivos processos, independentemente da iniciativa das partes civis ou dos sujeitos do processo penal, máxime o MP ou o arguido.

O retardamento intolerável do processo penal pode resultar, assim, de o atraso provocado pelo processamento conjunto da ação civil pôr em causa a efetividade da pretensão punitiva do Estado, nomeadamente por comprometer a produção de provas essenciais em tempo útil; pode igualmente resultar de o atraso comprometer significativamente o dever de o Estado assegurar, no processo penal, os direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido, máxime o seu direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa; por último, pode o atraso colocar em crise a última das finalidades primárias do processo penal, apontadas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária ou paz social, particularmente relevante em crimes especialmente graves, designadamente quando se trate de crimes contra as pessoas. (…)”.

Na situação em apreço, o Tribunal a quo fundou o reenvio do conhecimento da acção cível enxertada na circunstância da tramitação do incidente de habilitação de herdeiros comprometer de forma intolerável o normal andamento do processo criminal, a descoberta da verdade material e o “restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade”.

Ressalvado sempre o devido respeito por diferente entendimento, não acompanhamos o argumentário da decisão recorrida. Não só a habilitação de herdeiros se mostra já reconhecida em habilitação notarial, como não se descortina em que medida o cumprimento da tramitação prevenida no artigo 353º, do Código de Processo Civil pode in casu protelar e de forma intolerável, isto é, insuportável, inadmissível ou inaceitável o andamento do processo criminal.

Na verdade, dois dos habilitados por morte da assistente e demandante LM, já são intervenientes nos autos tendo a qualidade de demandantes e não se vislumbra em que medida o cumprimento da tramitação legal relativamente a eles e à habilitada herdeira testamentária e aos demandados civis possa suscitar questões quer com a tramitação do incidente, quer com o pedido cível enxertado que coloquem de forma intolerável em causa o julgamento dos factos/crime imputados ao arguido.

Outrossim, afigura-se-nos que o reenvio das partes na instância cível enxertada para os tribunais civis acarretaria um prejuízo acrescido para os respectivos intervenientes, com custos aumentados e desperdício de meios e risco, ainda, de julgados contraditórios.

Vale o exposto por afirmar que, não se vislumbrando qualquer risco de prolação de decisão menos rigorosa, nem a criação de episódios que possam retardar intoleravelmente o processo penal - cfr. artigo 82º, nº 3, do Código de Processo Penal -, “no confronto entre as vantagens e desvantagens decorrentes da decisão recorrida, não há dúvida de que estas superam aquelas, tanto mais quanto os demandantes valorizam a circunstância de resolver definitivamente e num único processo a questão.” – v.g. Acórdão supra citado.

Nestes termos, o recurso interposto é procedente.

IV

Decisão

Nestes termos acordam em:

A) - Conceder provimento ao recurso interposto pela demandante civil RFFA e, revogando-se a decisão recorrida, determinar que o conhecimento da instância civil enxertada tenha lugar no processo criminal;

B) - Não ser devida tributação.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente por ambos os subscritores (cfr. artigo 94º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal)]

Évora, 12.10.2021

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

J. F. Moreira das Neves