HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
Sumário


I – Os arguidos encontram-se privados da liberdade (sob a medida de coação de prisão preventiva) desde 16.04.2021; os factos indiciados relativamente a cada Requerente referem-se a atos puníveis com penas de prisão de 3 a 15 anos no caso dos crimes de roubo agravado; e estes constituem crimes que se integram no âmbito do conceito de criminalidade especialmente violenta, segundo o disposto no art. 1.º, al. l), do CPP; nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva até à acusação é de 6 meses, até à decisão instrutória é de 10 meses (caso haja instrução), e até à condenação em 1.ª instância é de 1 ano e 6 meses.
II - Os dois arguidos foram acusados, no passado mês de setembro — a 29.09.2021 — pela prática, em coautoria, de dois crimes de roubo agravado, dois crimes de sequestro e uma tentativa de um crime de extorsão agravada.
III - O prazo máximo de prisão preventiva não se encontra esgotado, pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto a ambos os Requerentes, uma vez que ambas as privações da liberdade foram determinadas por autoridade competente (e já revista a 01.10.2021, conforme imposição legal, e revisão notificada aos arguidos), por facto que a lei permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração.
IV – Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo.

Texto Integral




Processo n.º 77/21.5JDLSB-C.S1

Habeas Corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. AA e BB, arguidos no processo n.º 77/21…, do Tribunal Judicial da Comarca  ... (Juízo de Competência Genérica da ...), presos preventivamente à ordem destes autos desde 16.04.2021, vêm, por intermédio de mandatário, requerer, em documento único, as providências de habeas corpus por privação da liberdade ilegal, nos termos do art. 222.º, do CPP, com os seguintes fundamentos:

«A) QUESTÃO PRÉVIA

1º — Com todo o respeito, não se pode deixar de iniciar este pedido de providência de Habeas Corpus com a afirmação de que em Portugal existem duas justiças - uma justiça para os poderosos e ricos e outra justiça para o cidadão anónimo e pobre.

2º — Também é público e notório, não sendo necessária alegação nem prova que, enquanto o poderoso e rico "faz frente" e até usa estilo provocatório para com a magistratura quer do Ministério Público, quer Judicial, consegue o seu objectivo de colher benefícios desse afrontamento, como se pode constatar pela divulgação dos procedimentos, decisões e contra decisões que têm sido proferidas em processos altamente mediáticos, que têm proliferado nos últimos anos.

3º — Invocam os arguidos estas questões, porque para além de cidadãos anónimos e pobres, são também chineses, o que dificulta a sua defesa, tendo fundado receio que, em virtude dos fundamentos que vão invocar para requerer a providência de Habeas Corpus, venham a ser penalizados em sede de julgamento.

4º — Não obstante não ser fundamento para requerer esta providência de Habeas Corpus, o arguido BB não pode deixar de referir a decisão arbitrária que determinou a apreensão do veículo automóvel,  ..., Mod. ..., com a matrícula ...-VQ-..., propriedade da sua companheira CC, o qual não foi usado em qualquer atividade ilícita, impossibilitando que esta pudesse transportar as suas três filhas, ainda crianças de tenra idade.

5º —  Para além da determinação da apreensão é inadmissível, incompreensível e manifestamente reprovável a declaração de 03-05-2021, de utilidade operacional do referido veículo, que deve estar junta aos autos, pelo Senhor Diretor Nacional da Policia Judiciária para que aquele veículo fosse posto ao serviço daquela instituição policial, em virtude de revestir manifesto interesse para a execução das várias missões, no âmbito da investigação criminal e no exercício das competências legais daquela polícia.

6º — Não fosse o arguido um cidadão anónimo, pobre e chinês e com toda a certeza absoluta que o Sr. Diretor Nacional da Polícia Judiciária não teria o atrevimento de emitir tal declaração.

B) DA PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS

7º — Os Requerentes foram detido pela Polícia Judiciária, no interior das suas habitações, cerca das 07:30 horas do dia 15 de abril de 2021, no âmbito dos autos supra identificados.

8º — Os Requerentes foram conduzidos às instalações da Polícia Judiciária e foram presente no dia seguinte, à Mma Juiz de Instrução do Tribunal Judicial da Comarca  ... - Juízo de Competência Genérica  ..., para primeiro interrogatório judicial.

9º — No âmbito desta diligência foi determinado pela Mma. Juiz de Instrução que os arguidos aguardariam os termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, conforme os fundamentos que constam da respetiva ata e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

10° — Em virtude de o processo se encontrar em segredo de justiça, sendo impossível a consulta da totalidade dos autos, os arguidos decidiram não recorrer da decisão, nem requerer qualquer alteração da medida de coação.

11° — Os arguidos requereram apenas a sua audição pelo Ministério Público no sentido de esclarecerem a intervenção que tiveram nos factos indiciados que determinaram a sua prisão preventiva.

12° — Os arguidos decidiram ficar a aguardar pelo decurso do prazo de seis meses para terem acesso livre à totalidade dos elementos que constam dos autos, para poderem organizar a sua defesa de forma fundamentada.

13° — Dado que os arguidos foram detidos no dia 15 de abril, às 00:00 horas do dia 15 de outubro completaram-se os seis meses previstos no n° 2 do artigo 215º do C. Processo Penal.

14° — No passado dia 6 do corrente mês de outubro, os arguidos foram notificados no Estabelecimento Prisional …....., através do ofício n° 2327/SEP/2021, de todo o conteúdo do ofício n° …670 de 01.10.2021, da ... - Juízo de Competência Genérica, Procº n° 77/21…, bem como do despacho que o acompanhou, com a referência n° …703.

15° — Do despacho com a referência n° …703 consta "Foi pelo Ministério Público deduzida Acusação contra, além do mais, os arguidos BB e DD, tendo sido por este promovida a revisão da medida de coação de prisão preventiva aplicada aos arguidos, pugnando pela sua manutenção".

16º — Conclui o Mmo. Juiz o seu despacho nos termos seguintes "Assim, e porquanto se mantém   rigorosamente   inalteradas   as   circunstâncias   que   determinaram   a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, aos Arguidos BB e DD, situação que lhes foi definida aquando do seu primeiro interrogatório judicial, determina-se que estes aguardem julgamento sujeitos à referida medida de coação..."

17º — O mandatário dos arguidos foi notificado do mesmo despacho através de correio eletrónico para o endereço EE (5)adv.oa.pt.

18º — Até à data presente, 21 de outubro, estão decorridos 20 dias sem que os arguidos ou o seu mandatário tenham sido notificados da alegada Acusação deduzida.

19º — É manifestamente evidente que tendo em consideração o tempo decorrido, são falsas as declarações proferidas pelo Mmo. Juiz, na parte em que afirma que foi deduzida Acusação pelo Ministério Público contra os arguidos, no despacho com a referência ...703 de 01-10-2021.

20º — Não é admissível, nem compreensível, nem aceitável que havendo Acusação deduzida pelo Ministério Público no dia 01-10-2021 a mesma não tenha sido notificada nem aos arguidos, nem ao seu mandatário, decorridos que estão 20 dias.

21º — Não podemos deixar de tomar na devida consideração que os arguidos se encontram sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, o que determina que ao processo seja atribuída a natureza e tramitado como urgente.

22º — E não se venha argumentar que a lei prescreve que a acusação deve ser deduzida no prazo de seis meses, não havendo qualquer alusão ao prazo para a sua notificação.

23º — Na perspetiva dos arguidos, que é reforçada pela realidade dos factos de que têm conhecimento através das notificações dirigidas aos próprios e ao seu mandatário, o Mmo. Juiz de Instrução proferiu o despacho com a referência n° ...703, sem que tivesse sido deduzida Acusação pelo Ministério Público, com "a promessa" de que a mesma seria deduzida até ao dia 15 de outubro, data limite do decurso do prazo de seis meses.

24º — Por razões que os arguidos desconhecem a Acusação não foi deduzida dentro do prazo limite estipulado no artigo 215º n° 2 do C. P. Penal.

25º — Os arguidos encontram-se presos ilegalmente por estar ultrapassado o prazo de seis meses previsto no art° 215º n° 2 do CP. Penal sem que tenha sido deduzida a Acusação.

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V.Exa. requer-se:

a) Que seja declarada a falsidade do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Direito no dia 01-10-2021, com a referência ...703 na parte em que refere que naquela data já tinha sido deduzida Acusação pelo Ministério Público contra os arguidos, ora Requerentes;

b) Que seja declarada a extinção da medida de coação de Prisão Preventiva a que os arguidos estão sujeitos por estar ultrapassado o prazo de seis meses para a dedução da Acusação, previsto no art° 215º n° 2 do C. P. Penal;

c) Ser ordenada a libertação imediata dos arguidos nos termos do disposto no artigo 223º, n° 4, alínea d) do C P. Penal, por se encontrarem presos ilegalmente, com todas as consequências legais.».

2. Perante os pedidos apresentados, o Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de ... emitiu parecer nos seguintes termos:

«(...) É verdade que os arguidos requerentes foram detidos em 15/04/2021 e ficaram sujeitos à medida de coação prisão preventiva cujo prazo máximo terminou em 15/10/2021.

Sucede que foi proferido despacho de acusação em 29/09/2021.

Sendo que os autos foram ao Mmo. JIC para efeitos da revisão da medida de coacção, tendo a mesma sido revista e mantida no dia 1/10/2021, em obediência ao disposto no art.° 213°, n.° I, al. b), do Código Penal. Tendo os arguidos sido notificados.

Uma vez que os arguidos são naturais da china todo o despacho de acusação tem que ser traduzido na sua língua, inclusive as notificações., o que foi cumprido em 12/10/2021 após a recepção das traduções poderão ser feitas as traduções.

Em nossa opinião não existe qualquer fundamento para a petição de habeas corpus porquanto foi deduzida acusação dentro do prazo máximo de 6 meses e as medidas de coacção foram revistas dentro de tal prazo.

No que respeita à notificação dos arguidos, o atraso deve-se ao facto do despacho de acusação e notificações terem de ser traduzidas na língua materna dos arguidos de forma que estes possam exercer plenamente os seus direitos.

Diga-se ainda, que o ilustre mandatário tem conhecimento do despacho de acusação desde pelo manos o dia 10/10/2021 tendo por isso a possibilidade de dar conhecimento aos seus clientes enquanto estes aguardam a notificação e despacho traduzidos.

Como se referiu no Ac STJ de 9/8/2013:"Acusação e notificação são actos processuais distintos. A notificação é obviamente consequência do despacho acusatório, e destina-se a dar conhecimento do acto ao sujeito processual visado, e daí a também legal tradução Só depois de existir acusação é que obviamente pode proceder-se à sua notificação, e comunicar-se a sua tradução. Mas para efeitos do disposto no art. 215.°, n.° 1, al. a), e n.° 2, do CPP, não é a notificação e tradução, da acusação que delimita o prazo máximo da prisão preventiva, na fase a que respeita, mas sim a dedução ou não de acusação em determinado período temporal.

Por outro lado, atento o princípio da actualidade, na apreciação do habeas corpus, o prazo de prisão preventiva que agora está em causa para a extinção da medida coactiva, é de 10 meses até à decisão instrutória, se houver lugar à instrução, e, se não houver lugar à instrução, é de 1 ano e 6 meses até à condenação em         instância, conforme art. 215.°, n.°5 1 e 2, do CPP."»

3. Foi prestada informação, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

«Consigna-se o seguinte:

- Os Requerentes do habeas corpus encontram-se privados da liberdade desde 15-04-2021, tendo-lhes sido aplicada medida de coação de prisão preventiva cf. referências n.º ……..74 e n.º ………98 revista a 05-07-2021 e a 01-10-2021.

- Foi deduzida acusação contra os Arguidos a 29-09-2021.»

4.1.  A pedido da Juíza Conselheira Relatora, foi junta a estes autos, entre outros elementos, a acusação, de 29.09.2021 (data aposta pelo sistema Citius), onde os aqui Requerentes foram acusados (entre outros) pela prática, em coautoria,

- de dois crimes de roubo agravado, nos termos dos arts. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), por referência aos arts. 204.º, n.º 2, als. e) e f) e 202.º, al. e) e art. 4.º, todos do CP,

- de dois crimes de sequestro, nos termos do art. 158.º, n.º 1, do CP, de uma tentativa de um crime de extorsão agravada, nos termos dos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 23.º, n.ºs 1 e 2, 72.º, 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), por referência aos arts. 210.º n.º 2, al. b), 204.º, al.s a) e f) e 202.º , al. e) e 4.º, todos do CP.

4.2. Foi adicionada nova informação pelo Senhor Procurador da República Junto do Tribunal da Comarca ..., nos seguintes termos:

«Envie cópia do despacho de acusação, das notificações aos arguidos da revisão das medidas de coacção prisão preventiva enviadas.

Consigna-se que o ilustre mandatário dos arguidos em prisão preventiva e estes têm conhecimento da dedução da acusação, após terem sido notificados do douto despacho judicial que reviu a medida de coacção devido à dedução de acusação pelo M.P., nos termos do art.º 213.º, n.º 1, al. b), do C.P.P. Mais se consigna que os arguidos ainda não foram notificados do despacho de acusação, porquanto as traduções do despacho de acusação e das notificações ainda não foram juntas aos autos, pelo que, sendo os arguidos de origem estrangeira é obrigatório a sua notificação na sua língua materna. Consigna-se que embora estejam elaborados os ofícios das notificações aos arguidos nos autos, os mesmos aguardam as devidas traduções na língua chinesa de forma que todos os sejam notificados ao mesmo tempo (arguidos e mandatário), pelo que determino que também sigam as cópias dos ofícios das notificações que aguardam as traduções para serem enviadas aos sujeitos processuais.

Consigna-se ainda que os pedidos de tradução foram feitos no dia 7/10/2021, e insistência no dia 26/10/2021, cujos pedidos desde já determino que sigam na certidão.»

5. As providências de habeas corpus saíram do Tribunal Judicial da Comarca ... (Tribunal ..., Juízo de Competência Genérica) a 25.10.2021, e deram entrada no Supremo Tribunal de Justiça a 27.10.2021 e foram autuadas na mesma data.

6. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação quanto a ambas as providências relativas a dois Requerentes distintos e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II Fundamentação

1.1. Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito[1].

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal[2]. Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.1. Antes de mais, nos termos do art. 31.º, n.º 3, da CRP, o pedido de habeas corpus deve ser decidido no prazo de 8 dias. Para que o pedido seja decidido é necessário cumprir as regras procedimentais estabelecidas no Código de Processo Penal. Sabendo que as petições apresentadas em virtude de prisão ilegal devem ser decididas no Supremo Tribunal de Justiça (art. 222.º, do CPP), e que depois de apresentadas ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (art. 223.º, n.º 1, do CPP) este convoca a secção criminal que deve decidir no prazo de 8 dias subsequentes àquela convocatória (art. 223.º, n.º 2, do CPP), a deliberação das providências aqui em discussão ainda está em tempo. Na verdade, os pedidos saíram do Tribunal de 1.ª instância a 25.10.2021, e apenas foram autuados neste Supremo Tribunal de Justiça a 27.10.2021, tendo sido convocada a secção criminal na mesma data, pelo que no dia 04.11.2021, data deste acórdão, ainda se integra no prazo legal.

2.2. Os elementos juntos a estes autos foram solicitados pela Relatora a fim de instruir a decisão, tendo em conta a parca informação dada ao abrigo do art. 223.º, n.º 2, do CPP.

A urgência da providência de habeas corpus, e a imperiosa necessidade de a decisão ocorrer no prazo de 8 dias, não se compadece com notificações adicionais, tanto mais que os autos se encontram fisicamente nas instalações do Supremo Tribunal de Justiça para consulta.

Por fim, deve ainda referir-se que o procedimento das providências de habeas corpus se encontra regulado no art. 223.º, do CPP, sem que haja lugar a audição de testemunhas, e por isso o seu depoimento não foi admitido, acrescendo ainda o facto de aquele depoimento se referir a ausência de notificações que não terão sido realizadas no âmbito dos autos principais para o que este Supremo Tribunal de Justiça não tem competência para decidir no âmbito desta providência.

2.3. AA e BB encontram-se privados da liberdade (e daí a petição apresentada com vista à proteção da liberdade de cada um) ao abrigo destes autos, desde 16.04.2021, após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado naquela data. A medida de coação foi aplicada por ambos estarem indiciados (entre outros) pela prática, em coautoria, de

«- 2 (dois) crimes de roubo agravado, na forma consumada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 210.°, n.° 1 e n.° 2, alínea b), por referência ao disposto nos artigos 204.°, n.° e) e f), 202.°, alínea e), e artigo 4.°, do diploma preambular ao Código Penal;

- 2 (dois) crimes de sequestro, na forma consumada, ilícito criminal previsto e punido pelo artigo 158.°, n.° 1, do Código Penal;

- 1 (um) crime de extorsão agravada, na forma tentada, ilícito criminal previsto e punido pelo artigo 223.°, n.° 1 e n.° 3, alínea a), por referência ao disposto nos artigos 210.°, e n.° 2, alínea b), 204.°, n.° e) e 0, 202.°, alínea e), e artigo 4.°, do diploma preambular ao Código Penal» (cf. auto de interrogatório de arguido na certidão junta a estes autos).

Considerou-se, então, que, dada a existência de perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação do decurso do inquérito, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública e de concreto perigo de fuga, e estando em causa “factos graves”, devia ser aplicada aos dois Requerentes a medida de coação de prisão preventiva e ainda a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com os ofendidos e os demais arguidos, nos termos dos arts. 27.º, n.º 3.al. b) e 28.º, n.ºs 1 e 2, ambos da Constituição da República Portuguesa, e dos arts. 191.º, 192.º, 193.º 194.º, 195.º, 196.º, 200.º, n.º 1, al. d), 202.º, als. a) e b), por referência ao art.1.º, al. l) e art. 204, als. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal (CPP).

Ora, os factos indiciados relativamente a cada Requerente referem-se a atos puníveis com penas de prisão de 3 a 15 anos no caso dos crimes de roubo agravado; e estes constituem crimes que se integram no âmbito do conceito de criminalidade especialmente violenta, segundo o disposto no art. 1.º, al. l), do CPP.

Sendo assim, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva até à acusação é de 6 meses, até à decisão instrutória é de 10 meses (caso haja instrução), e até à condenação em 1.ª instância é de 1 ano e 6 meses.

Ora, os dois arguidos foram, igualmente, acusados, no passado mês de setembro — a 29.09.2021 (cf. acusação junta a estes autos) — pela prática, em coautoria,  de dois crimes de roubo agravado, dois crimes de sequestro e uma tentativa de um crime de extorsão agravada, estando novamente em causa no que respeita ao crime de roubo agravado uma punibilidade com uma pena de prisão entre 3 e 15 anos, ara além de se integrar no conceito de criminalidade especialmente violenta [cf. art. 1.º, al. l), do CPP].

Sendo assim, o prazo máximo de prisão preventiva não se encontra esgotado. Pelo que não poderemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto a ambos os Requerentes, uma vez que ambas as privações da liberdade foram determinadas por autoridade competente (e já revista a 01.10.2021, conforme imposição legal, e revisão notificada aos arguidos — cf. certidão junto aos autos), por facto que a lei permite e sem que tenham sido ultrapassados os prazos máximos da sua duração.

Acresce referir que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo.

E no presente caso verifica-se que, pese embora a acusação ainda não tenha sido notificada aos dois arguidos aqui Requerentes, tal deve-se apenas à necessidade de tradução da acusação, dado que os arguidos são estrangeiros. E por isso a notificação da acusação sem tradução permitiria uma eventual alegação pelos arguidos da nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. c), do CPP. Porém, a acusação já foi prolatada nos autos utilizando a língua portuguesa, tal como se impõe no art. 92.º, n.º 1, do CPP, sob pena de nulidade. Mas, em atenção ao direito de defesa dos arguidos[3], determinou-se a sua tradução para a sua língua materna.

Na verdade, não se poderia fazer depender da falta de tradução da acusação, (serviço que naturalmente não está a cargo do Magistrado) a ilegalidade da prisão, quando a acusação foi efetivamente deduzida. Por outro lado, qualquer notificação da acusação sem que esteja devidamente traduzida não permitirá que corram quaisquer prazos, nomeadamente para apresentação de requerimento de abertura de instrução ou de apresentação de contestação. É certo que nada impedia que a acusação tivesse sido já notificada ao mandatário dos arguidos (com indicação expressa de que se aguarda a tradução daquela para de seguida notificar os arguidos, contando-se os prazos legais a partir destas últimas notificações – cf. art. 113.º, n.º 10, do CPP). Porém, o facto de se optar pela notificação aos arguidos e respetivo mandatário apenas quando tenha havido aquela tradução não permite que se possa considerar que estão ultrapassados os prazos máximos de prisão preventiva.

Acresce referir que a norma consagrada no art. 215.º, do CPP, é muito clara — “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) meses sem que tenha sido deduzida acusação”. Pretender que se deve interpretar o momento da dedução da acusação como sendo o momento da sua notificação é não só uma interpretação em violação clara da letra da lei, como também é dizer, em desrespeito do disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador utilizou erroneamente o termo “deduzida” querendo dizer “notificada”, não tendo sabido exprimir o seu pensamento[4].

Sabendo que foi já deduzida a acusação (e que os arguidos e o seu mandatário disso foram informados aquando da notificação do despacho que reapreciou a aplicação da medida de coação, embora não saibam o teor exato dessa acusação), nomeadamente, pelos crimes de roubo agravado, não mais podemos dizer que o prazo máximo de privação da liberdade foi ultrapassado sem que tivesse sido deduzida acusação. Valem agora, para ambos os Requerentes, os prazos máximos de privação da liberdade até à decisão instrutória (se a instrução for requerida), isto é, 10 meses, ou até à decisão em 1.ª instância, isto é, 1 ano e 6 meses.

Ora, tendo os arguidos sido presos preventivamente em abril de 2021, já tendo havido acusação (em setembro de 2021), não foram ultrapassados os prazos máximos de prisão preventiva. Pelo que não podemos concluir pela ilegalidade da prisão quanto a ambos os Requerentes, sendo clara a ausência manifesta de fundamento para a procedência das petições.

Assim sendo, não existe qualquer fundamento para deferir as petições de habeas corpus apresentadas pelos Requerentes AA e BB.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por manifestamente infundada, as providências de habeas corpus requeridas pelos arguidos AA e BB.

Nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, condena-se cada peticionante ao pagamento de 6 UC (cada um).

Custas por cada requerente, com 2 UC de taxa de justiça cada um.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de novembro de 2021

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Eduardo Loureiro

António Clemente Lima

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[1] Cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508.
[2] Cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508.
[3]  Cf. Tiago Caiado Milheiro, art. 92/ § 26, Comentário Judiciário do Código de Process Penal, Tomo I, Coimbra: Almedina, 2019, p. 1011-1012.
[4] Em outros normativos o legislador referiu-se igualmente ao momento da dedução da acusação fazendo depender deste certos efeitos, ainda que não tenha havido notificação — por exemplo, o art. 57.º, n.º 1, do CPP, onde se determina que assume logo a qualidade de arguido aquele contra quem for deduzida a acusação; ou ainda a obrigatoriedade de constituição de defensor logo após a dedução da acusação (art. 64.º, n.º 3, do CPP); cf. também art.s 280.º, n.º 2,  e 391.º - B, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, onde o momento da dedução assume relevo particular.