CASSAÇÃO DE CARTA DE CONDUÇÃO
Sumário

- A cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.
- Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto, foi introduzido no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, cuja declaração de cassação do título depende da perda total de pontos atribuídos, mas esta não resulta da prática de uma única infracção, mas antes, nos termos legais, da prática de uma pluralidade de infracções.
- Em suma, em casos como o ora em apreço, não se verifica incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República
- A primeira condenação que releva para a cassação em causa foi proferida em 14.12.2016 e transitada em julgado em 26.01.2017, reportando-se à prática, em 03.12.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, pela qual o ora recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses.
- Como tem vindo a ser afirmado pela jurisprudência, o direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito, tratando-se de uma actividade que pode tornar-se perigosa para a segurança dos restantes utentes das estradas e, por esse motivo, tem de ser sujeita a um justificado controlo das condições da sua manutenção, pelo que se compreende que a conservação do título de condução fique sujeita à adopção de um correcto comportamento rodoviário.
- A cassação da carta de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas (e sanções) de inibição de conduzir.
- O título de condução constitui a autorização administrativa para o exercício da condução, que tem como pressuposto a aptidão do condutor para esse exercício, sendo razoável e proporcional que a lei estabeleça mecanismos de verificação, ao longo do tempo, da manutenção ou não daquela aptidão, visando acautelar os interesses públicos que uma condução inapta e/ou perigosa pode afectar.  
- Quanto às questões referentes à necessidade de conduzir, a impossibilidade de se regenerar, o passado “quase imaculado” e a conveniência em acompanhar o seu neto, não levadas às conclusões, nenhumas destas circunstâncias é, nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, relevante para o efeito de obstar à cassação do título de condução.
- A perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, não lhe sendo aplicável os artigos 188.º e 189.º do Código da Estrada, não tendo ocorrido qualquer prescrição.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária foi determinada, em razão da perda da totalidade de pontos, nos termos do artigo 148.°, n.°s 2 e 10, do Código da Estrada, a cassação do título de condução n.º L.1389732, de que é titular AA, melhor identificados nos autos.
Não se conformando com a decisão proferida, o mesmo deduziu impugnação judicial da decisão administrativa, que veio a ser julgada improcedente.
2. Recorreu, então, para esta Relação, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
A Douta decisão administrativa e contraordenacional deverá ser revogada:
A) Não se pronunciou sobre as questões referidas, sendo nula por aplicação do artigo 379° n° 1 al. C) do Código de Processo Penal (omissão de pronúncia) na medida em que não apreciou questões que lhe foram submetidas, como a assistência a neto gravemente doente; e sobre a possibilidade de ouvir testemunhas, tempestivamente identificadas nos Autos, a tal propósito;
B) Viola o disposto no n° 4 do artigo 30° da CRP, por aplicar automaticamente penalidades em processo meramente administrativo ou de contraordenação na sequência de anteriores processos criminais;
C) Viola igualmente, de forma flagrante, os números, 1, 3 e 4 do artigo 29° da Constituição, Portuguesa, conforme referido nos pontos 31° e seguintes, questão que o Douto Juízo de Pequena Instância Criminal nem sequer cuidou de abordar na sua resposta ao recurso apresentado pelo arguido;
D) Sem prescindir, o regime agora em vigor, ao invés de ser justo, simples, adequado, previsível e intuitivo, mostra-se confuso, arbitrário, injusto, lacunoso e, nessa medida, ilegal;
E) Por um lado, o Código da Estrada na sua versão de 2015 é vago e confuso, prevendo em artigos bem distantes e não relacionados sistematicamente, que aos condutores seja atribuído um máximo concreto de doze pontos, que ao cadastro de cada condutor possam ser subtraídos pontos; que cada condutor possa ficar com zero pontos e nem sequer prevê que, em tal caso, o mesmo fique impedido de solicitar nova carta de condução pelo período de dois anos;
F) Também o Código da Estrada, datado de 2015, mas com entrada em vigor apenas em 1 de Junho de 2016, apenas prevê confusa e esparsamente, que cada condutor disporá de doze pontos, que por cada infração registada sejam subtraídos pontos; e, de passagem, que cada condutor possa ficar com zero pontos, não prevendo também que os condutores sem pontos fiquem privados de conduzir ou de iniciar novo processo para aquisição de carta de condução durante o período de dois anos;
G) Assim, não poderia o condutor AA, aqui recorrente contar razoavelmente com o regime de subtração de pontos e mesmo de perda de habilitação para conduzir, uma vez que o regime atual se encontra mal elaborado e dado que a legislação anteriormente vigente apenas impedia os condutores de cometerem, no lapso de cinco anos, duas infrações muito graves ou três infrações graves;
H) Pelo exposto, a lei agora em vigor não apenas contraria o disposto nos n.°s 1, 3 e 4 do artigo 29.° da Constituição;
I) Como fere de morte o disposto no artigo 30° n° 4 de tal Diploma Fundamental, que obsta à aplicação automática de sanções ou a perda de direitos civis em virtude da prática de crimes ou de contraordenações;
J) Mal se compreende ainda que um condutor sujeito “apenas" a processo de suspensão provisória e não a julgamento, que cumpra as injunções aplicadas, nomeadamente que pague uma coima e tenha bom comportamento; não se concebe que um tal condutor cumpridor veja serem-lhe subtraídos seis pontos na respetiva carta de condução (artigo 148° n° 1 do CE) ao passo que um outro condutor, que venha a ser julgado e condenado, pela mesma infração - condução com álcool - sem pagar multa ou demonstrar algum arrependimento perca apenas três ou cinco pontos na sua carta de condução (artigo 148° n° 2 do CE);
K) Finalmente, como também já alegou em tempo, sem que tal questão tenha sequer merecido uma justa ponderação em sede, nomeadamente judicial, o aqui recorrente exerce a profissão de ……, sofreu, tão somente, duas condenações por infrações estradais, justamente as em apreciação nestes Autos e, face à legislação existente mormente a anterior à aqui em apreço, jamais poderia prever um agravamento tão intenso da sua situação jurídica de condutor como o que passou a ser previsto no artigos 121.°-A) e 148° do Código da Estrada;
L) Seja como for, ambas as decisões administrativas de cassação - ou pelo menos a última delas - mostram-se prescritas dado que, entre o momento do trânsito em julgado das infrações e o momento atual decorreram já, respetivamente, quatro anos e cinco meses para a primeira infração (com trânsito em julgado Janeiro de 2017); e três anos e um mês (trinta e sete meses) para a segunda infração, a qual terá transitado em julgado em Maio de 2018;
M) De facto, conceber-se que os crimes e as contraordenações possam prescrever ainda que sejam mais graves, ao passo que as decisões administrativas não transitariam jamais em julgado; um tal entendimento fere de morte qualquer ordenamento jurídico democrático, como é o Português.
Assim se decidindo, pelo provimento do presente recurso interposto, ao abrigo do disposto no artigo 74° n° 2 do Regime Geral das Contraordenações para aperfeiçoamento do Direito a aplicar, que implicará a revogação de decisão de cassação da carta de condução injusta e arbitrariamente imposta a AA, far-se-á JUSTIÇA!
3. O Ministério Público deduziu resposta ao recurso, concluindo no sentido de que o mesmo não merece provimento
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), deu parecer em que pugna pelo não provimento do recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P., o recorrente respondeu ao parecer, mantendo a sua posição. Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, tendo em consideração as conclusões formuladas pelo recorrente e a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo artigo 75.º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro), as questões a decidir são:
- Da omissão de pronúncia;
- A inconstitucionalidade do regime do Código da Estrada de perda de pontos e consequente cassação do título de condução, por violação dos artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4 e 30.º, n.º4, da  Constituição da República Portuguesa;
- Da prescrição “das decisões administrativas de cassação”.           
2. A Decisão Recorrida
Diz-se na decisão recorrida:
« (…)
Nulidade da decisão
Arguiu o arguido a nulidade da decisão por não terem sido inquiridas as testemunhas por si arroladas, o que constitui, no seu entender, uma violação do artigo 32.° da CRP.
Analisada a decisão proferida, verifica-se que a ANSR fez uma apreciação do requerimento de defesa apresentado pelo arguido, concluindo pela não inquirição das duas testemunhas arroladas uma vez que «o processo de cassação é um processo autónomo que resulta da verificação de determinados pressupostos legais, que se baseia na aplicação automática do artigo 148.° do Código da Estrada e na prova documental existente no processo. Assim, e por estarmos perante questões de direito e não de facto e tendo em conta que as testemunhas arroladas só podem responder sobre questões de facto, indefere-se a sua audição.»
Esse mesmo entendimento teve este Tribunal ao apreciar o recurso de impugnação apresentado pelo arguido-recorrente, já que os factos que deram origem à decisão administrativa não foram postos em causa nem alegados quaisquer outros suscetíveis de prova, designadamente testemunhal.
Assim, inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte da ANSR, foram respeitados os direitos de defesa do arguido-recorrente e a apreciação feita pela entidade recorrida revela-se adequada aos fundamentos da defesa apresentada.
Acresce que, nos termos do artigo 175.°, n.° 4 do Código da Estrada, cabe ao arguido indicar expressamente, na defesa apresentada, os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento.
Analisada a defesa, verifica-se que foram arroladas testemunhas sem qualquer indicação sobre os factos que com os seus depoimentos se pretendia provar.
Desta feita, o indeferimento da sua inquirição mostra-se enquadrado nos normativos legais aplicáveis e em nada afetou o direito de defesa do arguido, pelo que não constitui qualquer nulidade, improcedendo a pretensão do arguido.
***
Inexistem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do objecto do recurso.
III - Fundamentação de Facto
Factos provados
Dos elementos probatórios constantes dos autos resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. No âmbito do processo n.° 419/16……, que correu termos na Secção de Pequena Criminalidade de …. – J…, foi proferida decisão em 14.12.2016 e transitada em julgado em 26.01.2017, pela qual o arguido foi condenado pela prática, em 03.12.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses.
2. Tal condenação deu origem à perda pelo arguido de 6 pontos.
3. No âmbito do processo n.° 495/18….. que correu termos no Juízo Local Criminal de …. – J…, foi proferida decisão em 18.05.2018 transitada em julgado em 18.06.2018, pela qual o arguido foi condenado pela prática, em 02.05.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de um ano.
4. A aplicação desta injunção deu origem à perda pelo arguido de 6 pontos.
5. A perda dos pontos referidos em 2 e 4 levou o arguido a ficar com zero pontos.
Factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa não ficaram por provar quaisquer factos.
Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados alicerçando-se na prova constante dos autos, a qual não foi posta em crise pelo arguido-recorrente, já que não impugnou qualquer facto constante da decisão recorrida, limitando o seu recurso a matéria de direito.
Assim, teve o Tribunal em consideração o registo individual de condutor de fls. 1, o resultado da pesquisa à base de dados do IMT de fls. 3, a cópia das decisões judiciais proferidas que constam de fls. 5 e 7 e certificado de registo criminal junto em 21.05.2021.
IV - Fundamentação de Direito
Enquadramento Jurídico
Nos termos do artigo 121.° do Código da Estrada, a condução de veículo a motor na via pública só é permitida a quem for titular de carta de condução, a qual é emitida por entidade pública e mediante prova do preenchimento dos requisitos legais.
A obtenção e manutenção da faculdade de condução de veículos a motor na via pública está sujeita a um regime que se encontra previsto no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir e no Código da Estrada, o qual inclui um sistema de pontos.
Assim, estabeleceu o legislador a atribuição de 12 pontos a cada condutor, fixando igualmente um conjunto de circunstâncias que determinam a perda de pontos e estabelecendo as respetivas consequências, conforme o disposto no artigo 148.° do Código Penal.
Nos termos do n.° 2 da referida disposição legal, «a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.° 3 do artigo 282.°do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.° 3 do artigo 281.° do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.»
Dos factos provados resulta a condenação pelo arguido em pena acessória de proibição de conduzir no âmbito de dois processos crime. Com tais decisões o arguido perdeu 12 pontos, ou seja, a totalidade dos bons que detinha, ficando com zero pontos.
A perda da totalidade de pontos dá origem a processo autónomo onde é ordenada a cassação da carta de condução - artigo 148.°, n.° 4, al. c) e n.° 10 do Código da Estrada.
Assim, o processo no âmbito do qual foi proferida a decisão recorrida e o teor da respetiva decisão constituem uma decorrência legal, mostrando-se preenchidos todos os requisitos impostos por lei.
*
Entende o arguido que o procedimento contraordenacional viola o artigo 30.°, n.° 4 da CRP, de acordo com o qual «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.»
A CRP estabelece um conjunto de direitos atribuídos a todos os cidadãos, quer sejam os que constituem o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, incluídos nos Direitos, Liberdades e Garantias, quer sejam os de índole política, económica, laboral, social ou cultural.
Contudo, em lado algum da CRP se vislumbra o direito ao exercício da condução. Isto porque as regras para a circulação automóvel são do foro administrativo e estabelecem um conjunto de critérios que visam a segurança de todos, por forma a assegurar a sua vida, integridade física e integridade dos seus bens, estes sim direitos constitucionalmente consagrados.
Desta forma, impedir um cidadão de exercer a condução não constitui a perda por estes de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, mas sim um impedimento a que esse cidadão atente contra a segurança de todos os transeuntes.
Diga-se que a cassação da carta de condução constitui uma consequência de um conjunto de comportamentos adotados pelo condutor no exercício da condução e que impedem o juízo de aptidão desse mesmo condutor para tal atividade.
Isto porque não basta a aprovação inicial necessária à obtenção do título de condução para que o condutor possa conduzir nas vias públicas. É igualmente necessário que ao longo do exercício de tal atividade o condutor mantenha uma conduta que prove a sua capacidade para exercer a condução. Ao praticar contraordenações ou crimes no exercício da condução, o condutor põe em causa a aptidão que inicialmente lhe foi conferida, em proporção da gravidade dos ilícitos praticados.
Sendo a subtração dos pontos um efeito automático da infração cometida, verificando-se a sua perda total conclui-se que o condutor deixou de reunir as condições necessárias ao exercício da condução, quer seja pelo número, quer seja gravidade das infrações cometidas.
Assim, a consequência da perda total de pontos decorre diretamente da lei - não ferindo, por isso, o princípio da legalidade - e mostra-se proporcional à gravidade/regularidade das infrações cometidas pelo condutor, tendo em consideração as diferentes perdas de pontos determinadas pelo legislador em função da gravidade da infração e a possibilidade de obtenção de pontos pelo decurso do tempo e realização de formações específicas - não violando, por isso, princípio da proporcionalidade.
A título de exemplo, veja-se a análise exposta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 09.05.2018, Relator Juiz Desembargador Dr. Francisco Mota Ribeiro: «O sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desidrato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respetivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, mas perda esta que tem materialmente subjacente a condenação ou a verificação prévia de infrações contraordenacionais ou penais, nos termos supra referidos, traduzem decisões de caráter administrativo: a primeira um ato administrativo permissivo de conteúdo positivo,[2] ou mais precisamente autorização permissiva expressa na licença ou carta de condução, ou habilitação, relativa a direito cujo exercício “pode importar em sacrifícios especiais para um quadro de interesses públicos que convém acautelar”, entendendo o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução[3]; enquanto que a segunda se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização-habilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais, designadamente das invocadas pelo recorrente - art.°s 2°, 18°, n° 2, 20°, n° 1, 29º, n° 1, 30°, n° 4, 32°, n°s 1, 4, 5 e 10, 202°, n° 2, e 219º, n° 1, da CRP. E sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, ainda por cima de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade, não vislumbramos onde possa estar a inconstitucionalidade das normas dos art°s 148°, n°s 1 e 2, 149°, n°s 1, al. c), e 2, do CE, 281°, n° 3, do Código de Processo Penal, bem como dos art.°s 4°, n° 1, al. e), f), n° 3, al. e) e aa), 6°, n°s 2, 5 e 6 do DL n° 317/94.»
Conclui-se, por isso, que ao ter praticado dois crimes rodoviários após a entrada em vigor da Lei n.° 116/2015, que ocorreu em 1.06.2016, o arguido revelou perda idoneidade para o exercício da condução, face à gravidade dos atos praticados e que determinaram a proibição de conduzir durante um total de 1 ano e 5 meses e, consequentemente, a perda de todos os pontos.
Por último, não podemos deixar de referir que o arguido, já em momento prévio à entrada em vigor desta alteração legislativa ao Código da Estrada, havia praticado dois crimes idênticos, que não assumem relevância para estes autos mas que só reforçam a decisão proferida pela ANSR.
Conclui-se, assim, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade, impondo-se a manutenção da decisão recorrida.
V - Decisão
Face ao exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso interposto por AA e, consequentemente, manter na íntegra a decisão recorrida de cassação do título de condução n.° L-1389732 de que o arguido-recorrente é titular.
(…). »
***
3. Apreciando          
O recorrente invoca a omissão de pronúncia sobre as questões de inconstitucionalidades que suscitou. Além disso, segundo o recorrente – no corpo da motivação mais do que nas conclusões que definem o objecto do recurso -, o tribunal não apreciou, ou fê-lo de forma “insuficiente e muito ligeira”, as questões da sua necessidade de conduzir, a impossibilidade de se regenerar, o seu passado “quase imaculado” e a conveniência em acompanhar o seu neto.
Em primeiro lugar, importa reter que a decisão recorrida pronunciou-se expressamente sobre a questão de não terem sido inquiridas no âmbito da fase administrativa as testemunhas arroladas pelo ora recorrente.
Por conseguinte, manifestamente o tribunal não omitiu pronúncia sobre essa questão.
Além disso, também importa sublinhar que o arguido e o seu Ex.mo advogado foram notificados do despacho de 30 de Abril último, onde constava, expressamente, que não sendo manifestada oposição no prazo de 10 dias, a impugnação judicial seria decidida por despacho.
Ora, na sequência das respectivas notificações, não foi deduzida oposição a que se decidisse a impugnação por despacho, ou seja, sem precedência de audiência de julgamento.
Constando do despacho em causa a referida cominação e não tendo o ora recorrente manifestado oposição à decisão por despacho, não se vê como pode agora questionar a não inquirição de testemunhas em sede de impugnação judicial.
Quanto à inconstitucionalidade do regime do Código da Estrada de perda de pontos e consequente cassação do título de condução, por violação dos artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4 e 30.º, n.º4, da  Constituição da República Portuguesa, a decisão recorrida, sem margem para dúvidas, emitiu pronúncia, expondo os seus argumentos e fazendo seus os da jurisprudência citada.
Trata-se de matéria que tem vindo a ser apreciada pelas diversas Relações em sentido essencialmente idêntico.
A cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.
No Código Penal, encontra-se previsto no artigo 101.º, com a epígrafe “Cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor”, que constitui uma medida de segurança não privativa da liberdade [veja-se a sua inserção sistemática no Livro I – Parte Geral / Título III – Das consequências jurídicas do facto / Secção IV – Medidas de segurança não privativas da liberdade], aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos.
Por sua vez, no Código da Estrada o regime da cassação tem sofrido variações ao longo do tempo, mas com com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a cassação do título de condução, nos termos dos artigos 148.º e 169.º, n.º 4, passou a ser da exclusiva competência do Director-Geral de Viação.
Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto, foi introduzido no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus.
O artigo 148.º, com a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, passou, então, a ter a seguinte redacção [ao caso não nos importa a alteração introduzida no n.º 1, al. a), pelo - DL n.º 102-B/2020, de 09/12]:
«1 – A prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtracção de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contra-ordenação grave implica a subtracção de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efectuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves;
b) A prática de contra-ordenação muito grave implica a subtracção de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.
2 – A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.
3 – Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contra-ordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtracção a efectuar não pode ultrapassar os seis pontos, excepto quando esteja em causa condenação por contra-ordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtracção de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 – A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infractor frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infractor realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 – No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 – Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves no registo de infracções é de dois anos para as contra-ordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 – A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 – A falta não justificada à acção de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 – Os encargos decorrentes da frequência de acções de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infractor.
10 – A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 – A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.
12 – A efectivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 – A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações.»           
De acordo com o disposto no artigo 121º-A, n.º 1, do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos.
Nos sucessivos regimes legais manteve-se a competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução – competência que passou para o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – ANSR (artigo 169.º, n.º 4 – presentemente n.º 3) -, dependendo o seu decretamento da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao condutor.
Quer isto dizer que a cassação do título de condução, ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada, não é uma medida de segurança, revestindo-se de natureza administrativa, dela cabendo impugnação para os tribunais nos termos do regime geral das contra-ordenações (cfr. n.º 13 do artigo 148.º do Código da Estrada).
No caso vertente, tendo o ora recorrente sido condenado, por sentenças transitadas em julgado, em dois processos autónomos, em cada um deles pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, como resulta dos factos provados, viu ser-lhe subtraída a totalidade dos doze pontos que lhe haviam sido atribuídos, o que tem como consequência a cassação do seu título de condução.
Para o efeito foi organizado o competente processo autónomo, no qual, confirmada a verificação daqueles pressupostos, previstos no artigo 148.º, n.ºs 2 e 4, al. c), do Código da Estrada, a autoridade administrativa proferiu a referida decisão de cassação, confirmada pelo despacho recorrido.
Como tem vindo a ser afirmado pela jurisprudência, o direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito.
Trata-se de uma actividade que pode tornar-se perigosa para a segurança dos restantes utentes das estradas e, por esse motivo, tem de ser sujeita a um justificado controlo das condições da sua manutenção, pelo que se compreende que a conservação do título de condução fique sujeita à adopção de um correcto comportamento rodoviário.
Como é sublinhado no acórdão da Relação do Porto, de 30-04-2019, processo 316/18.0T8CPV.P1 (disponível em www.dgsi.pt, como outros citados sem diversa indicação), a atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional, sendo legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias durante um período experimental. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa. Ora, ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. «Também neste aspeto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”. É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período). Não estaremos, pois, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito.»
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 260/2020, referindo-se ao sistema da “carta por pontos”, disse o seguinte (itálico nosso):
«Este sistema implica a possibilidade de cassação do título legal de condução em caso de diminuição dos pontos decorrente de condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias bem como o estabelecimento de uma condição negativa para a sua aquisição. O decurso do tempo e a conduta do condutor condicionam, porém, os efeitos das infrações cometidas no cômputo dos pontos. Efetivamente, aos 12 pontos de que dispõe à partida cada condutor poderão acrescer três, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária, até atingir o limite de 15 pontos. Também é possível adicionar um ponto mais em cada período de revalidação da carta sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, com o limite de 16 pontos, sempre que o condutor voluntariamente frequente ação de formação com as regras regulamentares.
O objetivo prosseguido pelo legislador com o estabelecimento deste regime pode ser perscrutado consultando a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 336/XII, que deu origem à Lei referida, que nos diz:
«A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.
O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.
A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.
O regime da carta por pontos é aplicável às infrações cometidas após a sua entrada em vigor, mantendo-se o atual regime inalterado para as infrações anteriormente praticadas» (sublinhado aditado).
O regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.
8. No caso que deu origem ao presente recurso, o recorrente foi condenado, por sentenças transitadas em julgado, pela prática sucessiva de dois crimes de condução em estado de embriaguez, além do mais, nas penas acessórias de proibição de conduzir por um período de 3 meses e 4 meses, respetivamente. O processo penal aplicável a estas condenações criminais está sujeito ao respeito pelos princípios constitucionais decorrentes do artigo 32.º da Constituição.
Foram as referidas condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que desencadearam a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do CE. Neste quadro, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir. Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. O mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.»
No referido Acórdão, o Tribunal Constitucional analisou a questão na perspectiva da constitucionalidade da norma que impõe um período de dois anos sobre a efectivação da cassação da carta durante o qual não pode ser obtido novo título de condução, resultante do n.º 11 do artigo 148.º do Código da Estrada, face ao princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República.
Não deixou, porém, de tecer considerações com interesse para o caso.
Desde logo, realçando que não existe um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma actividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e esta depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador.
Por outro lado, frisando que a cassação da carta de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas (e sanções) de inibição de conduzir.
O título de condução constitui a autorização administrativa para o exercício da condução, que tem como pressuposto a aptidão do condutor para esse exercício, sendo razoável e proporcional que a lei estabeleça mecanismos de verificação, ao longo do tempo, da manutenção ou não daquela aptidão, visando acautelar os interesses públicos que uma condução inapta e/ou perigosa pode afectar.  
Podemos ter no acórdão da Relação de Évora, de 20.09.2020, proferido no processo n.º 218/20.T8TMR.E1, cujo entendimento sufragamos:
«Acerca do sentido e alcance da norma ínsita no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 461/2000 [[10]], chamado a pronunciar-se sobre a conformidade à referida norma da Constituição do artigo 130.º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada, na redação do D.L. n.º 2/08, de 3 de janeiro – que previa a caducidade da carta ou licença de condução provisória, quando fosse aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efetiva –, exarou o seguinte:
“A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege. Todavia, a proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 362/92, Diário da República, 2.ª série, de 8 de Abril de 1993, 183/94, inédito, 264/99, Diário da República, 2.ª série, de 13 de Julho de 1999, e 327/99, Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1999).”
Acolhendo o entendimento do Tribunal Constitucional no referenciado Acórdão e que foi reiteradamente afirmado noutros Acórdãos [[11]], considera-se que a atribuição de título – licença ou carta – de condução e o inerente direito de conduzir do respetivo titular, não é um direito absoluto, definitivo e incondicional, sendo, por isso, legitimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a atribuição do título da condução e uma vez atribuído, para a sua manutenção, conforme infra se explanará.
Este entendimento foi uma vez mais afirmado pelo Tribunal Constitucional, no recente Acórdão n.º 260/2020[[12]], que decidiu não julgar inconstitucional a norma que impõe um período de dois anos sobre a efetivação da cassação da carta durante o qual não pode ser obtido novo título de condução, resultante do n.º 11 do artigo 148.º do Código da Estrada.
(…)
Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtração da totalidade dos pontos (al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE), o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contraordenações graves ou muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos.
Como se faz notar no Ac. da RC de 15/01/2020 [[14]], “A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respetiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e atualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada).
A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infração cometida.”
Nesta perspetiva e como se refere no Acórdão da RG de 27/01/2020 [[15]], com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.
(…)
E perfilhamos do entendimento de que a enunciada condição negativa imposta pelo legislador, para a manutenção do título de condução pelo condutor a quem foi atribuído, é plenamente justificada pelos potenciais riscos da atividade da condução para bens jurídicos fundamentais, tais como a integridade física e a vida dos utentes das estradas e a segurança e rodoviária, que constitui uma prioridade da política criminal [[16]], perante os números da sinistralidade rodoviária no nosso país e as trágicas consequências que lhe estão associadas.
Assim, ao determinar a cassação do título de condução, decorrente da perda da totalidade dos pontos atribuídos, no caso de condenação, por decisão definitiva ou sentença transitada em julgado, pela prática das contraordenações graves e/ou muito graves previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do Código da Estrada ou dos crimes referenciados no n.º 2 do mesmo artigo, em proibição de conduzir, o que se verifica é a valoração de sanções e/ou de penas em que o condutor foi condenado pelo cometimento de infrações rodoviárias e que acarretaram a perda de pontos, nas condições de manutenção do título de condução atribuído [[17]].
A prática de uma única infração rodoviária não determina automaticamente a cassação do título de condução, pela perda dos pontos atribuídos ao condutor. O que determina aquela cassação são sucessivas condenações do condutor, pela prática de infrações, que, no seu conjunto, implicaram a perda da totalidade dos pontos atribuídos e não tendo o condutor, nem pelo decurso do tempo nem pela sua conduta posterior conseguido adquirir outros pontos.
Por outro lado, como refere Damião Cunha [[18]] “não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violado um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto”.
Assim e sufragando-se o entendimento defendido no referenciado Acórdão da RG de 27/01/2020, “a restrição de direitos decorrente da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos ao condutor, apresenta-se como necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estada (cf. arts. 24º, n.º 1, e 25º, n.º 1, da Constituição). Noutro prisma, encontra justificação no comportamento do condutor, revelador de uma perigosidade acrescida no exercício da condução.”»
A declaração de cassação do título depende da perda total de pontos atribuídos, mas esta não resulta da prática de uma única infracção, mas antes, nos termos legais, da prática de uma pluralidade de infracções. Efectivamente, a cada uma das infracções contra-ordenacionais ou penais previamente verificadas, corresponde, automaticamente, a subtracção de um determinado número de pontos, mas a cassação só é legalmente admissível com o esgotamento do crédito concedido, correspondente ao esvaziamento da pressuposta – com a concessão do título – aptidão para conduzir veículos com motor.
Em suma, em casos como o ora em apreço, não se verifica incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República
Igualmente, não se verifica violação do artigo 29.º da Lei Fundamental, que o recorrente configura nos seguintes termos:
- à data da 1.ª infracção, o regime vigente proibia a prática de duas infracções muito graves ou de três infracções graves no período de cinco anos;
- a legislação relativa à carta de condução por pontos e respectiva cassação não é legal, nem justa, sendo a lei muito confusa e estabelecendo um regime “irreflectido, injusto, incoerente, imprevisível e, em tal medida, mesmo ilegal”;
- não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior, além de que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Vejamos.
A primeira condenação que releva para a cassação em causa foi proferida em 14.12.2016 e transitada em julgado em 26.01.2017, reportando-se à prática, em 03.12.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, pela qual o ora recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses.
Lei n.° 116/2015, que introduziu no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, entrou em vigor a 1.06.2016.
Quer isto dizer que estava em vigor aquando da prática dos factos que deram origem à referida condenação.
É certo que as regras do registo individual do condutor foram actualizadas pelo Decreto-Lei n.º 80/2016, de 28 de Novembro, a fim de se adequarem ao regime da carta por pontos e de forma a agilizar e simplificar o registo, a gestão e a consulta dos pontos detidos por cada condutor no âmbito do novo regime, tendo entrado em vigor a 28 de Dezembro.
Mas isso não altera a data de vigência da citada Lei n.º 116/2015.
Não se percebe a alegação de que à data da 1.ª infracção, o regime vigente proibia a prática de duas infracções muito graves ou de três infracções graves no período de cinco anos, pois o que aqui está em causa não é a prática de infracções contraordenacionais, muito graves ou graves, mas sim de duas sucessivas condenações criminais em pena acessória de proibição de conduzir, acarretando a perda, cada uma delas, de seis pontos.
Quanto ao regime legal ser deficientemente elaborado, incoerente ou imprevisível, só podemos dizer que nos parece claro e não lhe descortinamos as incoerências e imprevisibilidades que o recorrente menciona e que, com o devido respeito, resultam mais da leitura que o recorrente faz das normas legais do que do teor das mesmas.
O recorrente nem sequer encontra no regime legal a referência a que “o condutor sem pontos terá de ficar dois anos impedido de solicitar nova carta de condução”, apesar de a lei ser expressa na previsão de que a quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.
Questiona até o recorrente a justeza da previsão de perda de 6 pontos nos casos de suspensão provisória do processo com cumprimento da injunção imposta, situação que não está em causa nos presentes autos e que, por isso, manifestamente, não cabe apreciar no âmbito deste recurso.
Não se vislumbra qualquer violação do artigo 29.º da Constituição da República, em qualquer das suas vertentes.
Não se refere o recorrente ao ne bis in idem, mas sempre acrescentamos que, também nessa vertente, não há qualquer violação, pois não estamos perante uma dupla condenação. O que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas a sucessão de condenações. Estamos, por outro lado, não perante uma condenação suplementar, mas perante a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução.
Relativamente às diversas questões que se prendem com a constitucionalidade e legalidade do regime da cassação previsto no artigo 148.º do Código da Estrada, seguimos a jurisprudência das Relações, expressa, entre outros, nos seguintes acórdãos: da Relação de Coimbra, de 6.11.2019, processo 4289/18.0T8PBL.C1, de 13.11.2019, processo 186/19.0T8CTB.C1; da Relação de Lisboa, de 16.03.2021, processo 3523/19.4T9AMD.L1-5; da Relação do Porto, de 30.04.2019, processo 316/18.0T8CPV.P1, de 10.02.2021, processo 118/20.3T9AGD.P1, de 12.05.2021, processo 3577/19.3T8VFR.P1; da Relação de Évora, de 20.10.2020, processo 218/20.T8TMR.E1, de 27.04.2021, processo 1377/20.7T8TMR.E1; da Relação de Guimarães, de 27.01.2020, processo 2302/19.3T8VCT.G1.
Quanto às questões invocadas no corpo da motivação, referentes à necessidade de conduzir, a impossibilidade de se regenerar, o passado “quase imaculado” e a conveniência em acompanhar o seu neto, não levadas às conclusões, nenhumas destas circunstâncias é, nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, relevante para o efeito de obstar à cassação do título de condução.
Finalmente, alega o recorrente a prescrição “das decisões administrativas de cassação”.
Não percebemos o que seja a prescrição de decisão.
A prescrição será do procedimento criminal ou contraordenacional ou de uma pena (crime) ou coima (contra-ordenação).
Porém, a perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, não lhe sendo aplicável os artigos 188.º e 189.º do Código da Estrada, não tendo ocorrido qualquer prescrição.
Por conseguinte, sem necessidade de outras considerações, conclui-se que o recurso não merece provimento.
*
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação, nos termos e pelos fundamentos expostos, em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça.

Lisboa, 19 de Outubro de 2021
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Gonçalves                 
Maria José Machado