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CRIME DE INJÚRIA
DISPENSA DE PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Sumário
I - É penalmente relevante, e enquadrável na previsão do Artº 181º, nº 1, do Código Penal, a expressão “filho da puta” que a arguida dirigiu ao assistente, com manifesta intenção de o ofender, como ofendeu, na sua honra e consideração social e pessoal, de viva-voz e de modo a que fosse por todos ouvida. II - Na verdade, considerando o contexto em que foi proferida, e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem”, a mencionada expressão revela um cariz manifestamente injurioso, ofendendo de modo jurídico-penalmente relevante a honra e consideração do assistente, não podendo ser vista como uma mera indelicadeza ou como uma “grosseria”. III - A ideia político-criminal que preside à dispensa de pena, a que alude o Artº 74º do Código Penal, como declaração de culpa sem declaração de pena, reside no carácter bagatelar da acção que, embora ilícita, culposa e punível, não justifica punição, à luz das finalidades previstas no Artº 40º, nº 1, do mesmo diploma legal. IV - Já a atenuação especial da pena, prevista no Artº 72º, do Código Penal, resulta da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção, e corresponde a uma válvula de segurança do sistema que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais em que a imagem global do facto resultante da actuação da(s) atenuante(s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 870/18.6PBGMR, do Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi submetida a julgamento a arguida:
A. G., divorciada, filha de M. R. e de A. F., natural da freguesia de …, concelho de Guimarães, nascida a .. de Novembro de 1965, residente na Rua …, Guimarães.
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2. Em 04/05/2021 foi proferida sentença, depositada no mesmo dia, da qual consta o seguinte dispositivo (transcrição (1)):
“Pelo exposto: Julga-se a acusação pública improcedente e a acuação particular parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
a) Absolver a arguida A. G. da prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, por que vinha acusada.
b) Absolver a arguida A. G. da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal (factos de 16-09-2018)
c) Condenar a arguida A. G. pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
d) Condenar o assistente V. D., pelo decaimento parcial, em taxa de justiça, que se fixa em 1 UC – artigo 515º, nº 1, alínea a), do CPP.
e) Condenar a arguida nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC – artigos 513º e 514º, do CPP e artigo 8º nº 5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Julga-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, consequentemente, decide-se:
f) Condenar a demandada A. G. no pagamento ao demandante V. D. da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação desta sentença, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
g) Sem custas na instância cível – artigo 4º, nº 1, alínea n), do RCP.
(...)”.
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3. Inconformada com tal decisão, dela veio a arguida interpor o presente recurso, nos termos da peça processual que consta de fls. 221 / 225 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1. Não se conforma a arguida com a douta decisão proferida pelo tribunal a quo.
2. Entende a aqui apelante que o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova.
3. Face à prova produzida em sede de audiência de julgamento e atenta a prova documental junta – auto de notícias do proc. nº 813/18.7PBGMR junto aos autos em 12-05-2020 - impõe-se a absolvição da arguida, aqui apelante quanto ao crime de injúrias, e consequentemente, quanto ao pedido cível em que veio condenada.
4. Assim, apesar de censurável do ponto de vista ético-social, a expressão em causa, pelo contexto em que terá sido proferida, não assume/não pode assumir relevância penal.
5. Consequentemente e apesar de ter-se julgado provado que a arguida proferiu a expressão vertida no ponto 2 da factualidade dada por provada, não foram preenchidos os pressupostos do artigo 181º do Código Penal.
6. Nomeadamente por falta de preenchimento dos elementos objectivo – “dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração” – e subjectivo – consciência da ilicitude.
7. Porquanto, a intervenção do direito só se justifica quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros
8. Haveria o tribunal a quo de ter tido, ainda, em consideração a situação social, pessoal e de escolaridade dos intervenientes para a ponderação da decisão e apreciação da causa.
9. Os factos ocorreram em residências de habitação social, o bairro social da ..., entre pessoas que vivem de rendimento mínimo de inserção, sem qualquer ocupação profissional, onde este género de situações prolifera e onde a utilização de este tipo de expressões é habitual, corriqueira, banal e desprovida do espírito depreciativo que normalmente se lhe atribui.
10. Caso assim não se entenda, o que não se concede mas por mera hipótese académica se acautela, entende a apelante que tendo em consideração o contexto em que a expressão que lhe é imputada foi proferida, é evidente que a culpa e a ilicitude do facto, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, são diminutas.
11. Pelo que se impõe a dispensa da pena, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 74º nº 1 do CP.
12. Ou se assim não se entender, impõe-se uma atenuação especial da pena, julgando-se justa, adequada e proporcional aos circunstancialismos dos autos uma pena próxima do seu limite mínimo.
13. No nosso entendimento, não interpretou, nem aplicou correctamente os artigos 40º, 47º, 71º nº 1 e 2, 72º, 73º, 74º e 181º do Código Penal, violando a sentença os mencionados normativos legais.
TERMOS EM QUE:
Deve a douta decisão proferida ser revogada, absolvendo-se a arguida,
Assim, Fazendo, Farão V/Exas., Acostumada e
Sã JUSTIÇA!”.
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4. Na 1ª instância apresentou-se a responder o Ministério Público, nos termos constantes da peça processual de fls. 227 / 232 Vº, pugnando a Digna Magistrada subscritora pela improcedência do recurso e pela confirmação, na íntegra, da decisão recorrida.
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5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o parecer que consta de fls. 237 / 239 Vº, pronunciando-se também pela improcedência do recurso. 5.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
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6. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3).
No caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa dirimir:
- Do erro notório na apreciação da prova;
- Da (não) verificação dos elementos do tipo de crime de injúria;
- Da dispensa da pena; e
- Da atenuação especial da pena.
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2. Mas, para uma melhor compreensão das questões colocadas e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade. 2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“Da acusação pública:
1) No dia 14 de Setembro de 2018, cerca das 22h00, a arguida, por motivos não concretamente apurados, mas relacionados com problemas de vizinhança, muniu-se de um objecto semelhante a um pau, mas cujas características não resultaram concretamente apuradas, e desferiu diversas pancadas com o mesmo, assim como pontapés, na porta da entrada da residência de V. D. e M. C., sita na Rua …, Guimarães.
Da acusação particular:
2) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), a arguida dirigindo-se ao assistente com manifesta intenção de o ofender, como ofendeu, na sua honra e consideração social e pessoal, de viva voz e de modo a que fosse por todos ouvido, proferiu a seguinte expressão “filho da puta”.
3) A arguida agiu de livre vontade e de consciência perfeita, bem sabendo que a sua conduta era reprovável e punida por lei.
Da situação pessoal e económica da arguida:
4) A arguida é beneficiária do RSI, no montante mensal de € 142,00.
5) Vive sozinha em casa arrendada, sendo a renda mensal de € 4,19.
6) Concluiu o 4º ano de escolaridade.
7) Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.
Do pedido de indemnização civil (para além dos factos provados constantes das acusações):
8) Na sequência da conduta da arguida descrita em 2) e 3), o demandante sentiu-se envergonhado e ofendido na sua honra e consideração.”.
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2.2. Considerou não provados os seguintes factos (transcrição):
“Da acusação pública:
a) Da conduta descrita em 1), resultou a quebra das dobradiças da porta e a sua queda ao chão.
b) Com o objecto referido em 1), a arguida desferiu ainda pancadas nuns jarrões que se encontravam à entrada da porta de V. D. e M. C., partindo-os.
c) A arguida tinha conhecimento de que os mencionados objectos não eram de sua pertença, e que a sua conduta era contrária à vontade dos respectivos proprietários, tendo agido com o propósito conseguindo de causar estragos nos mesmos.
d) A arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
Da acusação particular:
e) No dia 16 de Setembro de 2018, pelas 18h00, à entrada da sua residência, a arguida tentou agredir com uma garrafa de vidro a sua esposa e o filho de ambos, de apenas 4 meses de idade, que vinha ao colo da mãe e, ao mesmo tempo, a arguida retirou da bolsa que transportava na altura um objecto que aparentava ser duas chaves de fendas com cerca de 20 cm de cumprimento e apontou o objecto para o assistente proferindo ainda a seguinte expressão “seu filho da puta, seu cabrão vou-te espetar todo e à tua mulher, seu filho da puta, seu cabrão”.
f) O assistente é pessoa de bem, que sempre pautou e continua a pautar a sua vida pelos princípios da dignidade, correcção e seriedade e é também desta forma visto por todos aqueles que o conhecem pessoal e profissionalmente, gozando de excelente reputação no meio social onde se encontra inserido.”.
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2.3. E motivou a essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):
“O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, a arguida, que apenas compareceu na segunda sessão da audiência de julgamento, apesar de ter aceitas as circunstâncias de tempo e lugar, negou que tivesse danificado a porta ou os vasos ou que haja mesmo insultado o assistente. Colocou-se na posição de vítima, alegando ser frequentes os problemas de vizinhança, sendo mesmo vítima de perseguição/assédio por parte do assistente e da sua esposa.
O assistente, por seu turno, confirmou as circunstâncias de tempo e lugar, esclarecendo que tudo começou porque decidiu chamar a polícia atendendo ao comportamento da arguida, o que a desagradou, dando origem a mais uma discussão entre vizinhos. Referiu que a arguida lhe partiu a porta e uns vasos, então existente à entrada de casa, munida de um pau. Mais referiu que a arguida, nessas mesmas, circunstâncias de tempo e lugar, o apodou de “filho da puta”.
A testemunha J. L., agente da PSP, confirmou o auto de notícia de fls. 17, tendo-se deslocado ao prédio onde vivem arguida e assistente, local onde procedeu à identificação de ambos, nada tendo presenciado de anormal.
M. C., companheira do assistente, descreveu igualmente a má relação de vizinhança que mantêm com a arguida. Referiu que esta, munida de uma moca, partiu a porta da sua residência e uns vasos, para além de ter apodado o assistente de filho da puta. Mais aludiu a um episódio, ocorrido no dia seguinte, isto é, a 16 de Setembro, durante a qual, a arguida, novamente, terá proferido expressões injuriosas dirigidas ao assistente. Referiu que despendeu a quantia de € 120,00 para reposição da porta e os vasos custaram-lhe €30,00.
C. F., igualmente morador no prédio em causa, descreveu a má relação de vizinhança das partes, referiu que ao chegar a casa, percebeu que havia uma discussão entre a arguida e o assistente, durante as quais os insultos eram mútuos, sendo que a arguida apodava o assistente de “filho da puta”. Soube que a porta do assistente foi danificada, mas a porta da assistente também tê-lo-á sido.
V. C., morador no prédio em causa, referiu que se encontrava em casa, quando ouviu uma discussão durante a qual ouvia de forma nítida a arguida a apodar o assistente de “filho da puta”. Percebeu que a arguida se encontrava junto à porta do assistente, tendo ouvido pancadas, sendo certo que só na presença da PSP é que decidiu, tendo visto a porta do assistente aparentemente danificada na zona da fechadura, tendo sido, nesta parte, genérica e pouco objectiva.
P. C., agente da PSP, deslocou-se ao prédio, mas não assistiu a nada, apenas tendo confirmado que a arguida estava nervosa e foi conduzida à esquadra, para sua protecção.
C. P., agente da PSP, referiu que quando iniciou o turno, por volta da meia-noite, conduziu a arguida à sua habitação, onde se preparava para iniciar nova discussão, tendo ficado então, para segurança da arguida, junto à porta desta até às 03h00. Confirmou que a porta da assistente estava partida junto à fechadura, mas não viu quaisquer cacos junto à porta do assistente. Não percebeu que a porta do assistente tivesse quaisquer danos.
J. F., agente da PSP, que acompanhou ao local a anterior testemunha, confirmou que viu a porta da arguida danificada junto à fechadura.
De referir que é manifesto que o assistente, a sua companheira e a arguida, mantiveram sérios problemas de vizinhança, potenciadores de vários incidentes, facto que, naturalmente, não pode deixar de ser valorado na credibilidade a conferir a uns e outros, sem prejuízo da atenção a conferir aos depoimentos das testemunhas que, numa perspectiva mais objectiva, são capazes de corroborar uma e outra das versões apresentadas.
Assim, da conjugação da prova testemunhal, convenceu-se o tribunal da versão trazida pelo assistente, que acabou por ser corroborada pela generalidade das testemunhas de acusação, no que diz respeito à expressão injuriosa de que foi alvo.
No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis da arguida, ou seja, a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, designadamente a de ofender a honra e consideração do assistente, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.
A arguida esclareceu a sua situação pessoal nos precisos termos dados como provados.
A ausência de antecedentes criminais resulta do CRC junto aos autos.
Os factos não provados resultam da falência da prova. Com efeito, importa referir que o tribunal não se convenceu, com a necessária certeza, de que a arguida tivesse danificado quer a porta do assistente, quer os vasos. Na verdade, se, por um lado, a arguida negou tal factualidade, por outro lado, importa por evidência que as declarações do assistente e da sua companheira não foram convergentes e até, de algum modo, contraditórios. Com efeito, o dano alegadamente causado na porta, passou pela danificação total da porta, para um simples dano na fechadura, que impedia o seu fecho; o instrumento alegadamente usado pela arguida, foi descrito ora como um pau, ora como uma moca; o preço da reposição da porta não foi coincidente, não havendo sequer uma factura ou orçamento a comprovar a execução de trabalhos de reparação ou substituição, sendo certo que, a ter sido apenas danificada a fechadura, não se percebe, segundo juízos de normalidade, como podem ter despendido a quantia de € 120,00, como referiu a testemunha M. M.; o mesmo se dirá quanto aos vasos, que, nesta parte, até o assistente revelou um desconhecimento sobre o valor dos mesmos, sendo certo que não há nenhuma elemento probatório, pessoal ou documental, que indicie a conclusão que a arguida os tenha partido; mais há referir que a própria testemunha C. P., que esteve durante muito tempo a fazer vigilância junto à porta da arguida, local de onde conseguia ver a entrada do assistente, confirmou que não deu conta de qualquer anomalia/dano na porta do assistente, designadamente ao nível da fechadura, ou de cacos junto à porta, ao contrário do que viu na porta da habitação da arguida.
Dito isto, perante estas incongruências e na falta de meios de prova suficientemente objectivos, capazes de indiciar que a arguida provocou os alegados danos, o Tribunal permaneceu num estado de dúvida insanável nesta parte. Ora, perante tal cenário e sendo certo que em processo penal não merecem relevância palpites, meras convicções pessoais ou hipóteses, o Tribunal não ousou sair do referido estado de dúvida insuperável, razão pela qual, fazendo uso do princípio processual basilar do in dubio pro reo, considerou a factualidade pertinente como não provada.
Trazendo à colação às razões aduzidas supra, o mesmo se dirá quanto ao episódio do dia 16 de Setembro, que de resto, apenas foi mencionado pela companheira do arguido, não tendo sido corroborado por qualquer outro depoimento objectivo e isento.”.
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3. Posto isto, passemos, então, à análise das concretas questões suscitadas pela arguida no seu recurso, as quais serão apreciadas segundo a sua precedência lógica.
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3.1. Do erro notório na apreciação da prova
Nos termos do disposto no Artº 428º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
No que concerne à matéria de facto, a mesma pode ser sindicada por duas vias: no âmbito restrito, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no Artº 410º, nº 2, ou por via da impugnação ampla a que se reporta o Artº 412º, nºs. 3, 4 e 6, caso em que a apreciação se alarga à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.
Na situação em apreço, como se viu, de acordo com as conclusões da recorrente, nesta vertente insurge-se esta, em síntese, contra a decisão sobre a matéria de facto, sustentando que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova pois que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado pelo tribunal a quo que a expressão em causa nos autos não possui relevância penal.
Vejamos.
Sob a epígrafe “Fundamentos do recurso”, prescreve o Artº 410º:
“(...)
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
(...)
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)”.
Como logo flui do transcrito preceito legal, neste âmbito dos vícios da decisão, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Com efeito, os vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, pressupõem uma outra evidência na justa medida em que correspondem a deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna (4), não sendo confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
O vício do erro notório na apreciação da prova ocorre quando se dá como provado algo que normalmente e/ou notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou quando usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando, ainda, as provas revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilação contrária, impossível.
Trata-se, nas palavras do Exmo. Conselheiro Pereira Madeira (ibidem, pág. 1275), do erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, na decorrência da norma ínsita no Artº 410º do C.P.Penal, não se olvide que o erro na apreciação da prova só é considerado notório quando, contra o que resulte de elementos que constem dos autos, cuja força probatória não haja sido infirmada, ou de dados de conhecimento generalizado, se emite um juízo sobre a verificação, ou não, de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida. Assim, “as regras da experiência comum, em princípio, só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a existência do aludido vício” (cfr. Ac. S.T.J. de 10/07/1996, in CJAcSTJ, II, 229).
Outrossim, não se olvide que o erro notório na apreciação da prova não tem a ver com a eventual desconformidade/discordância entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente.
E, como já supra se assinalou, não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos, devidamente apurados, ao direito aplicável, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.
Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do Artº 127, entendeu dar como provada.
Pois, a insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, no caso vertente, salvo o devido respeito, não resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que a factualidade com base na qual o tribunal a quo concluiu pela responsabilização da arguida, não podia deixar de ter acontecido, ou ainda que o tribunal tenha retirado de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tendo o erro de ser patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio, não cabe no mesmo o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável da prova produzida.
Na perspectiva da lógica interna da decisão e em face do respectivo texto, os mencionados factos dados comos provados, a respeito da actuação da arguida, têm perfeito suporte na prova elencada na motivação da decisão de facto e na valoração que dela foi feita.
Ou seja, a leitura feita pelo tribunal recorrido é possível, lógica, racional e aceitável à luz das regras da experiência comum, independentemente de se concordar ou não (e a recorrente não concorda) com a valoração que por ele foi feita dos elementos probatórios de que serviu.
Aliás, e em bom rigor, no tange à factualidade atinente ao crime de injúria pelo qual foi condenada, o que se constata é que a recorrente não concorda com o enquadramento jurídico que à mesma foi dado pelo tribunal a quo, questão que, como já se assinalou, não se confunde com o descrito vício do erro notório na apreciação da prova [a qual abordaremos mais adiante a propósito da verificação dos requisitos daquele ilícito criminal].
Porém, e repetindo-nos, não podemos incluir no erro notório na apreciação da prova a sindicância que a recorrente possa pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o citado Artº 127º.
E, no caso vertente, a recorrente não optou por tal sindicância, por via da impugnação ampla, não tendo, aliás, cumprido o ónus de especificação a que alude o Artº 412º,nºs 3 e 4 do C.P.Penal.
Por tudo o exposto, não resultando do texto do acórdão recorrido (por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum), que o tribunal a quo tenha apreciado de forma visivelmente/notoriamente descabida a prova, isto é, que os factos dados como provados, não podiam, de modo algum, ter acontecido e, por isso, ter de ser dados como não provados, improcede o invocado vício notório na apreciação da prova.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, não se evidenciado na decisão recorrida quaisquer vícios ou nulidades que não se encontrem sanadas, tem-se a matéria de facto definitivamente assente.
Soçobrando, pois, o recurso, nesta parte.
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3.2. Da subsunção dos factos ao crime de injúria
Como claramente resulta das conclusões 1ª a 10ª do seu recurso, embora sob a invocação, como se viu, do vício do erro notório na apreciação da prova, defende a recorrente, em síntese, não estar verificado o crime de injúria, frisando que “A própria expressão alegadamente utilizada [“filho da puta”] que dirigiu ao ofendido, “apesar de censurável do ponto de vista ético-social (...), pelo contexto em que terá sido proferida, não assume/não pode assumir relevância penal”, não estando “preenchidos os pressupostos do artigo 181º do Código Penal”.
Acrescentando que a “intervenção do direito só se justifica quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”, que “Haveria o tribunal a quo de ter tido, ainda, em consideração a situação social, pessoal e de escolaridade dos intervenientes para a ponderação da decisão e apreciação da causa, e que “Os factos ocorreram em residências de habitação social, o bairro social da ..., entre pessoas que vivem de rendimento mínimo de inserção, sem qualquer ocupação profissional, onde este género de situações prolifera e onde a utilização de este tipo de expressões é habitual, corriqueira, banal e desprovida do espírito depreciativo que normalmente se lhe atribui.”.
Ora, não obstante ter improcedido a impugnação da matéria de facto efectuada pela recorrente, e deverem considerar-se definitivamente provados os factos dados como assentes na sentença sub-judice, e apenas esses, há que apurar da bondade do enquadramento jurídico-penal levado a cabo pelo tribunal recorrido, no que tange a esta questão.
Nestas circunstâncias, importa averiguar, pois, se os factos a este propósito dados como provados na sentença recorrida integram, desde logo, o elemento objectivo deste ilícito criminal, tal como concluiu o tribunal a quo.
A Constituição da República Portuguesa consagra no Artº 26º, nº 1, entre outros direitos de personalidade, o direito ao bom nome e reputação, apresentando o bem jurídico-constitucional assim delineado um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa por parte dos outros.
A tutela penal desses direitos está assegurada pelos Artºs. 180º e 181º do Código Penal.
Sob a epígrafe “Injúria”, dispõe o Artº 181º, nº 1, do Código Penal:
“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
Como ensina o Prof. Faria e Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 629 e 602 e sgts., com este tipo legal de crime protege-se a honra, encarada numa dupla perspectiva, em que se combina uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social.
A honra é, assim, vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
Explorando o conceito, escreve o Prof. Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, nº 3152, pág.167/168, que a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”.
Porém, a ofensa à honra e consideração não pode ser perspectivada em termos estritamente subjectivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra –, na perspectiva interior/exterior – para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspectos.
Nesta linha de raciocínio, o Prof. Beleza dos Santos, na ob. cit., pág.167, citando Jannitti Piromallo, escreve que “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela”.
A nível do elemento objectivo, o crime de injúria exige a imputação de factos ou a formulação de um juízo, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da honra e consideração de determinada pessoa, sendo certo que, contrariamente ao que sucede com o crime de difamação, no crime de injúria torna-se necessário que os factos ocorram na presença do ofendido.
A noção de facto - sublinha o Prof. Faria e Costa na citada obra - traduz-se “naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência”, assumindo-se, por conseguinte, como “um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência”.
Já o conceito de juízo “deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor”, devendo “ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido”.
No que tange ao elemento subjectivo do ilícito, basta o dolo genérico, em qualquer das modalidades previstas no Artº 14º do Código Penal, não sendo exigível uma especial intenção por parte do agente, isto é, não exigindo a lei o propósito de ofender a honra e consideração da pessoa visada, bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém e que a sua actuação é proibida por lei.
Ora, voltando ao caso vertente, ficou demonstrado que, no dia 14 de Setembro de 2018, cerca das 22h00, a arguida, por motivos não concretamente apurados, mas relacionados com problemas de vizinhança, muniu-se de um objecto semelhante a um pau, mas cujas características não resultaram concretamente apuradas, e desferiu diversas pancadas com o mesmo, assim como pontapés, na porta da entrada da residência de V. D. e M. C., sita na Rua …, Guimarães.
Mais se tendo provado que a arguida, nas aludidas circunstâncias de tempo e lugar, dirigindo-se ao assistente com manifesta intenção de o ofender, como ofendeu, na sua honra e consideração social e pessoal, de viva voz e de modo a que fosse por todos ouvido, proferiu a seguinte expressão “filho da puta”.
Serão tais epítetos objectivamente injuriosos?
Desde já adiantamos ser afirmativa a nossa resposta.
Mas, por uma questão de rigor, e a fim de evitarmos subjectivismos que sempre podem existir na apreciação destas questões, atentemos no significado de cada uma daquelas palavras/expressões, socorrendo-nos para o efeito do “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” da Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, 2001, I e II Volumes:
- “Puta” - Substantivo feminino “(De puto), Gross. 1. Mulher que se dedica à prostituição, a ter relações sexuais mediante remuneração. ≈ MERETRIZ, PROSTITUTA. 2. Mulher sem moralidade; mulher devassa ou com comportamento reprovável. 3. Mulher que se detesta ou se maldiz pelo seu carácter, pelas suas atitudes, pelas suas maneiras... 4. Expressão insultuosa. filho + da puta. Ir para a puta que o/a/te... pariu, Gross., expressão utilizada quando se quer mandar embora alguém em termos insultuosos. Mandaralguémpara a puta que o/a/te... pariu, Gross., afastar alguém que se detesta ou com quem se está extremamente aborrecido.” - pág. 3011;
- “filho da puta” - Gross. 1. Pessoa desprezível ordinária. 2. Insulto utilizado para maldizer alguma coisa ou alguém.” - pág. 1747.
Ora, precisados os conceitos, e vistos e analisados os respectivos significados, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a aludida expressão contém um teor e uma acentuada carga pejorativa, exprimindo um juízo negativo acerca do ofendido e assistente V. D., não podendo deixar de ser tida como susceptível de ofender a honra e a consideração do mesmo, pois que clara e nitidamente visam a esfera da sua dignidade pessoal.
Na verdade, considerando o contexto em que foi proferida (sublinhe-se que, como se provou, foi proferida de viva voz e de modo a que fosse por todos ouvido) e a «sã opinião da generalidade das pessoas de bem» (5), a mencionada expressão revela um cariz manifestamente injurioso, ofendendo de modo jurídico-penalmente relevante a honra e consideração do assistente, não podendo ser vista como uma mera indelicadeza ou como uma “grosseria”, como sustenta a recorrente na sua motivação recursiva.
Falecendo também a argumentação que a recorrente traz à liça em abono da sua tese, pois que não está minimamente provado que “os factos ocorreram em residências de habitação social, o bairro social da ..., entre pessoas que vivem de rendimento mínimo de inserção, sem qualquer ocupação profissional, onde este género de situações prolifera e onde a utilização de este tipo de expressões é habitual, corriqueira, banal e desprovida do espírito depreciativo que normalmente se lhe atribui.”.
Está, por isso, claramente preenchido o elemento objectivo do ilícito criminal em análise.
O mesmo sucedendo com o elemento subjectivo do tipo.
Pois, como se provou, a arguida proferiu a aludida expressão com a intenção de ofender, como ofendeu, o assistente na sua honra e consideração social e pessoal, tendo agido de livre vontade e de consciência perfeita, bem sabendo que a sua conduta era reprovável e punida por lei.
Conclui-se, assim, que a conduta da arguida é inteiramente subsumível ao tipo legal de crime pelo qual se mostra condenada, soçobrando, pois, este segmento do recurso.
*
3.3. Da dispensa da pena e/ou da atenuação especial da pena
Recordemos que, em face dos factos dados como assentes, o tribunal a quo condenou a arguida como autora material de um crime de injúrias, p. e p. Artº 181º, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
Devendo sublinhar-se, também, que o crime praticado pela arguida é abstractamente punido com pena de prisão até 3 meses ou com multa até 120 dias – cfr. Artº 181º, nº 1, do Código Penal.
Ora, nesta sede, não questionando a recorrente a opção que o tribunal a quo teve quando lançou mão da pena da multa, defende a mesma, porém, que, “tendo em consideração o contexto em que a expressão que lhe é imputada foi proferida, é evidente que a culpa e a ilicitude do facto, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, são diminutas”, pelo “que se impõe a dispensa da pena, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 74º nº 1 do CP” ou, “se assim não se entender, impõe-se uma atenuação especial da pena, julgando-se justa, adequada e proporcional aos circunstancialismos dos autos uma pena próxima do seu limite mínimo.”.
Vejamos, pois.
Desde já se adiantando não estarem minimamente verificados os pressupostos que permitam a aplicação de qualquer um destes institutos.
Mas convoquemos, antes de mais, as duas normas legais com base nas quais a vexata quaestio deve ser solucionada, no que tange à preconizada dispensa da pena.
Desde logo, o Artº 74º do Código Penal, que sob a epígrafe “Dispensa de pena” prescreve:
“1 - Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.
2 - Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de 1 ano, em dia que logo marcará.
3 - Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1.”.
E depois, o Artº 186º, que sob a epígrafe “Dispensa de pena”, estatui:
“1 - O tribunal dispensa de pena o agente quando este der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusado, se o ofendido, quem o represente ou integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, os aceitar como satisfatórios.
2 - O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido.
3 - Se o ofendido ripostar, no mesmo acto, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias.”.
A ideia político-criminal que preside à dispensa de pena, definida, conforme citação de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, pág. 314, como declaração de culpa sem declaração de pena, reside no carácter bagatelar da acção que, embora ilícita, culposa e punível, não justifica punição, à luz das finalidades previstas no Artº 40º, nº 1, do Código Penal.
Tem subjacente, pois, a falta de carência de punição do facto concreto.
Ora, na situação em apreço, constata-se que na sentença recorrida não consta qualquer factualidade que permita sustentar a tese esgrimida pela recorrente, no sentido de integrar os pressupostos a que aludem as transcritas normas legais.
Desde logo não se verificam os requisitos a que alude o Artº 186º do Código Penal, pois que não só a arguida não deu em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusada (e, concomitantemente, o assistente não os aceitou como satisfatórios), como não se provou que a ofensa foi provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido, como, finalmente, não se demonstrou que a afirmação que a recorrente proferiu tenha resultado de mera retorsão.
Por outro lado, também não estão verificados os requisitos que cumulativamente constam do transcrito Artº 74º, nº 1, do Código Penal.
Em primeiro lugar, porque o dano (in casu, não patrimonial) causado pela arguida não foi reparado.
Depois, porque, contrariamente ao que alega a recorrente, a ilicitude não é diminuta, concordando-se com o raciocínio do Mmº Juiz a quo quando, a propósito da determinação da medida concreta da pena, afirmou na sentença recorrida que “a ilicitude é mediana, atendendo à expressão injuriosa preferida, junto à casa do assistente, o que, naturalmente potencia uma maior humilhação e vergonha”.
Finalmente, e uma vez mais concordando-se com o tribunal a quo, também se nos afigura que “as exigências de prevenção geral são (...) elevadas, tendo em conta que a prática deste tipo de crimes é muito frequente”. O que, evidentemente, faz cair por terra o requisito ínsito no Artº 74º, nº 1, alínea c), supra transcrito.
Consequentemente, torna-se manifesto e evidente que a recorrente não podia, nem pode, beneficiar da aplicação de tal instituto, dado não se verificarem os respectivos requisitos legais.
E o mesmo sucede quanto à pretendida atenuação especial da pena.
De acordo com o Artº 72º, nº 1, do Código Penal, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Elencando o nº 2 do aludido precito legal algumas das circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito, a saber:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, ibidem, págs. 302/307, a ideia que subjaz ao princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
Sublinhando o mesmo Autor que a atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais em que a imagem global do facto resultante da actuação da(s) atenuante(s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
E que para a generalidade dos casos, ou seja, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais com os seus limites máximo e mínimo próprios.
Também a jurisprudência dos nossos tribunais superiores alinha na mesma senda, citando-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/06/2010, proferido no âmbito do Proc. nº 449/09.3JELSB.S1, inwww.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:
“I - A atenuação especial da pena só pode ser decretada quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.”.
Ora, transpondo para o caso vertente as normas e princípios jurídicos supra sumariamente enunciados, temos de concluir que não se mostrarem minimamente verificados os aludidos requisitos.
Na verdade, não se vislumbra, com suporte nos autos, maxime nos factos provados, uma “imagem global especialmente atenuada do facto” que nos permita aplicar a pretendida atenuação especial da pena, sendo certo que, como já supra se sublinhou, são elevadas as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao ilícito cometido pela arguida.
Pelo que não estando demonstradas “(…) circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”, não há que atenuar especialmente a pena, naufragando, pois, este segmento do recurso da arguida / recorrente.
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Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, conclui-se que não foi violada nenhuma das normas legais invocadas pela arguida, nem qualquer outra, e que nenhuma censura nos merece a douta sentença recorrida, que se confirma, improcedendo in totum o presente recurso.
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III. DISPOSITIVO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela arguida A. G., confirmando-se, consequentemente, a douta sentença recorrida.
Custas pela arguida/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
4. Como impressivamente refere o Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 1272/1273 -, porque aqui se trata (na detecção dos vícios do Artº 410º, do C.P.Penal), essencialmente, de uma tarefa de direito, os tribunais superiores procedem oficiosamente a essa indagação de vícios na matéria de facto, provada e não provada, atendo-se imperativamente, apenas e só, ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum, nunca a outro tipo de provas.
5. Na feliz expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2008, proferido no âmbito do Proc. nº 07P4817, cujo sumário se encontra disponível in www.dgsi.pt