CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário

Quando a decisão administrativa não cumpre os requisitos do artº 58 do DL nº 433/82 não se aplica subsidiariamente o artº 379 do CPP98.

Texto Integral

Acórdão

Acordam, em audiência, os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
B….. não se conformado com a sentença proferida pelo 3º Juízo Criminal das Varas de Competência Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia que em recurso de contra-ordenação revogou parcialmente a decisão da entidade administrativa e lhe aplicou a coima de € 750,00 por violação do artigo 27º, nº 1, alínea a) e 5 do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9, recorre mais uma vez, agora para o Tribunal da Relação, apresentando-se como síntese das suas razões de discordância, as seguintes conclusões:
Da acusação na fase administrativa – auto de notícia – e da acusação na fase judicial – decisão administrativa – não consta a imputação de que não seja o arguido/recorrente titular de licença sanitária da Portaria nº 6.065.
Como se deu como provado nos autos, o estabelecimento em causa existe há mais de 100 anos.
Nos termos do artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99, o que constitui contra-ordenação, quanto a estabelecimentos pré-existentes é que estejam em funcionamento sem possuírem a licença de utilização que nesse diploma se prevê, o alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929 ou sem autorização de funcionamento emitida ao abrigo da Portaria nº 22.970 de 20 de Outubro de 1967.
Considerar, assim na sentença proferida a circunstância de não possuir o estabelecimento do arguido/recorrente, é considerar facto que se integra no núcleo essencial da contra-ordenação, inteiramente diferente dos constantes da acusação, o mesmo é dizer que se trata de contra-ordenação diversa, ou seja, alteração substancial dos factos.
Tal circunstância foi considerada fora do contexto dos nºs 2 e 3 do artigo 359º do CPP aplicável por força do disposto no artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10.
É pois nula a sentença recorrida nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP, aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
No âmbito factual da nulidade acima arguida, cometeram-se dois erros notórios na apreciação da prova, relativamente aos quais constam do processo todos os elementos probatórios e que, por isso, não obstante se ter prescindido da documentação da audiência são susceptíveis de correcção no presente recurso, nos termos dos artigos 410º, nº 2, alínea c) e 431º, alínea a) do CPP, aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1, do Decreto-lei nº 433/82.
O primeiro é o facto de, pelas razões em detalhe expostas no texto da presente motivação, se impor a alteração do facto considerado provado de que “ao estabelecimento em causa foi concedido atestado de Fiscalização Sanitária Anual, relativa ao ano económico de 1957, sendo naquele identificado como mercearia e vinhos para: Ao Estabelecimento em causa foram concedidos atestados de Fiscalização Sanitária Anual relativos aos anos económicos de 1955, 1956 e 1957, sendo naqueles identificados como mercearia e vinhos.
O segundo erro consiste no facto de se ter dado como provado que “o estabelecimento comercial do recorrente não possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 3º de Março de 1929” e que deve ser corrigido no sentido ou se considerar não provado esse facto, ou mesmo, no sentido contrário, de passar a dizer-se: o estabelecimento comercial do recorrente possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929.
Pelas razões em detalhe expostas no texto da presente motivação, de que vale a pena destacar que todos os elementos probatórios produzidos a respeito da questão são constituídos, por um lado por dois ofícios da Câmara de Gaia e, por outro, pelos três atestados de fiscalização sanitária anual acima referidos em 10.
E que, quanto aos primeiros, sem que face ao seu teor se consiga perceber porque nunca a autora dos ofícios – que é a própria entidade administrativa – antes afirmara o que agora afirma, mesmo depois da pronúncia e do recurso de impugnação judicial do arguido/recorrente, em que o problema foi expressamente posto, sempre dependeria o seu relevo probatório de poder saber-se quais os elementos disponíveis que os basearam, sendo que, pedido a este respeito o respectivo esclarecimento, apenas se diz que os elementos disponíveis e que a rebuscada e insuficiente explicação para a existência dos atestados de fiscalização sanitária é anual e, como se vê, absolutamente infundada.
E quanto aos segundos, notando-se que o artigo 19º da Portaria nº 6.065 impõe que as Câmaras Municipais, emitidos os alvarás sanitários, deles envie cópia para a Direcção-geral de Saúde, a quem incumbe a fiscalização sanitária dos estabelecimentos nos termos do artigo 24º do mesmo diploma, efectivamente inculcam, segundo a lógica das coisas, que o estabelecimento a que respeitam possua o alvará sanitário.
Pelo que de acordo com as regras do ónus da prova – artigo 72º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82 – mas sobretudo, como o impõe o princípio do in dubio pro reo, decorrente do princípio da presunção da inocência consagrada no artigo 32º e 41, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, não poderá deixar de corrigir-se o erro apontado, como acima em 11 se defendeu.
Assim sendo as coisas, como são, declarando-se, como se espera, a nulidade acima arguida em 1 a 6, necessariamente há que concluir que a factualidade imputada ao arguido e de que pode a sentença conhecer é absolutamente insuficiente para o preenchimento do tipo legal de contra-ordenação de que vem acusado o arguido – artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99.
Mas mesmo sem aquela declaração, notando-se, então, a acrescer ao que já se disse que, nunca, em momento nenhum, com convolação ou sem ela, imputou a autoridade administrativa ao arguido que não possua a autorização de funcionamento da Portaria nº 22.970, sempre haverá que concluir que, por um lado, a factualidade imputada ao arguido e de que a sentença pode conhecer é insuficiente para o preenchimento do tipo legal de contra-ordenação de que vem acusado o arguido – artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99 – e que, por outro lado não se provaram factos nucleares essenciais ao preenchimento desse tipo legal – a inexistência do alvará da Portaria nº 6.065.
Pelo que, de uma maneira ou de outra, ao contrário do decidido, não poderá o arguido recorrente deixar de ser absolvido.
Tendo o arguido/recorrente, desde sempre na pronúncia em sede de audiência prévia, como no recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, colocado a questão de, por força do disposto no artigo 6º do Decreto-lei nº 379/99 de 18.9, exercendo no estabelecimento mais de uma actividade, ser necessário e suficiente o válido alvará para a actividade de taberna, essa questão como se vê, foi decidida na sentença recorrida de forma absolutamente infundada de facto e de direito.
Pelo que é, também, por aqui nula a sentença recorrida, agora nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2 do CPP aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
A este respeito, declarada essa nulidade e com vista à decisão definitiva da questão, sempre há que dizer que, como consta da matéria de facto provada, o estabelecimento do recorrente é um só de mercearia, taberna e casa de pasto e que possui o alvará nº 1005/94 do Governo Civil do Porto para a actividade de taberna.
Ora esse alvará, que é o emitido na sequência da autorização de abertura prevista no artigo 36º do Decreto-lei nº 326/86, de 30 de Setembro – cf. artigo 37º do mesmo diploma – manteve expressamente a sua validade, mesmo após a entrada em vigor do Decreto-lei nº 168/97, de 4 de Julho, nos termos do artigo 50º, desse diploma.
E de acordo com o artigo 6º do Decreto-lei nº 370/99 se num estabelecimento se exercerem mais do que uma actividade é necessário e suficiente apenas uma autorização.
Pelo que se impõe a conclusão que a final, o estabelecimento funciona legalmente.
E pelo que, também, por aqui ao contrário do infundamentadamente decidido, não poderá o arguido/recorrente deixar de ser absolvido.
Como quer, porém, que se entendam as coisas, o que são factos é que o estabelecimento do arguido existe há mais de 100 anos, que o despacho que originou a notificação do arguido a que, no auto de notícia, este é acusado de não ter dado cumprimento, foi revogado por decisão transitada em julgada do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, que o despacho que deu origem à segunda notificação no mesmo sentido – mas que é posterior à data dos factos – está também pendente de recurso, que o estabelecimento possui, pelo menos um, atestado de fiscalização sanitária anual – o que efectivamente inculca possua também o alvará de licença sanitária da Portaria nº 6.065, que o recorrente é titular de alvará válido para a actividade de taberna – sendo que, nos termos do artigo 6º do Decreto-lei nº 370/99, uma só autorização bastará para a exploração de várias actividades no mesmo estabelecimento e que, nunca antes do presente processo – e de forma comprometida como foi – havia a autoridade administrativa colocado ao recorrente o problema de não possuir o alvará daquela Portaria.
Pelo que sempre esteve – como está – o arguido absolutamente convicto da licitude de toda a sua actuação.
Não sendo a sentença proferida no primeiro recurso de impugnação judicial de contra-ordenação, nesse contexto e no seu próprio, de molde a poder alterar essa convicção.
Pelo que errou notoriamente a decisão recorrida, quanto aos factos, ao considerar provado que “o recorrente não actuou com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz” e que “o arguido agiu de modo livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida por lei”.
Devendo ao contrário ter considerada provada aquela convicção de licitude, o que pode e deve, ser pela Relação alterado, nos termos do artigo 310º, nº 2, alínea c) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei 433/82.
E pelo que haverá que concluir que o arguido agiu sem consciência da ilicitude o que o mesmo é dizer, sem culpa, de acordo com o artigo 9º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Pelo que, ainda por aqui, ao contrário do decidido, não poderá o arguido deixar de ser absolvido.
A sentença recorrida indeferiu a arguição de nulidade da decisão administrativa por ter sido omissa quanto à forma de culpa – dolo ou negligência – o que directamente influi a medida da pena nos termos do nº 5 do artigo 27º do Decreto-lei 370/99, com o argumento de que não deve fazer-se a mesma exigência quanto às decisões administrativas que se faz para as sentenças penais.
A verdade, porém, é que de acordo com o artigo 41º, nº 2 do Decreto-lei nº 433/82, as entidades administrativas estão sujeitas, na aplicação das coimas, aos mesmos deveres dos Juízes que, nos termos do nº 1 da mesma disposição e diploma – como nos do artigo 58º, nº 1, alínea c) do Decreto-lei nº 433/82 – tem a decisão de conter a fundamentação de facto e de direito, da decisão, sendo que esta por se tratar de decisão condenatória nos termos do artigo 375º do CPP tem que abranger os fundamentos que presidiram à escolha da medida da pena – o mesmo é dizer, designadamente, a forma de culpa, dolo ou negligência.
Assim como se vê, não tendo acontecido, é nula a decisão administrativa impugnada, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP, aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, assim devendo ser declarado.
Como aliás, sempre seria nula a decisão, mesmo que vista como acusação na fase judicial do processo, como entendeu o Assento nº 1/2003, publicado no DR I Série, de 25 de Janeiro, nos termos do artigo 283º, alínea b) do CPP, aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Sendo que essa nulidade, nos termos do mesmo Assento sempre se teria que considerar tempestivamente arguida, por o ter sido no recurso de impugnação judicial, ao menos quanto a todos os elementos de cariz factual.
Ao decidir o contrário errou, também aqui, a decisão recorrida.
E sendo que a final, deverá sempre a decisão administrativa que substitua a declarada nula, concluir nos termos acima expostos, pela absolvição do arguido.
Violou a decisão recorrida, por todo o exposto, o disposto nos artigos 9º, 32º, 41º, nºs 1 e 2, 58º, alínea c) do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10 como os artigos 374º, nº 2 e 375º, nº 1 do CPP, como violou o disposto no artigo 51º do decreto-lei nº 168/97 de 4.7 os artigos 6º, 27º, nº 1, alínea a) e 33º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9 e até o artigo 32º, nº 2 do CRP.
Concluiu pela declaração de nulidade da decisão recorrida ou, quando assim se não entenda corrigidos os erros notórios apontados na apreciação da matéria de facto, deve revogar-se a mesma.

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Na sua resposta, o Digno Procurador Adjunto propugnou pela negação de provimento ao recurso, devendo manter-se na íntegra a decisão recorrida.
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Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto teve vista no processo para concluir, no seu douto parecer, que o recurso não merece provimento.
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Cumpriu-se o disposto no nº 2 do artigo 417º do CPP, atravessando o arguido/recorrente nos autos teve o ensejo de corrigir o teor da 17ª conclusão do seu recurso.
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Seguiram-se os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores que intervêm na decisão.
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Realizou-se a audiência com observância do legal formalismo.
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Cumpre apreciar e decidir:
1. Delimitação do objecto do recurso
Por via da delimitação do objecto do recurso operada pelas conclusões do recorrente, definem-se como questões a conhecer e a decidir por este Tribunal da Relação as seguintes:
Nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Erro notório na apreciação da prova – artigos 410º, nº 2, alínea c) e 431º, alínea a) do CPP por remissão do artigo 41º, nº 1, do Decreto-lei nº 433/82.
Insuficiência da matéria de facto para o preenchimento do tipo legal da contra-ordenação – artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99.
Nulidade da sentença recorrida nos termos dos artigos 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2 do CPP aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Alteração da matéria de facto dada como provada – conclusão 29ª – nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Nulidade da decisão administrativa nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º do Decreto-lei nº 433/82.
Nulidade da decisão administrativa por violação do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP ex vi artigo 41º nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, à luz do Assento do STJ nº 1/2003, publicado na DR I Série A de 25.1
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2. Matéria de facto considerada como provada pelo 3º Juízo Criminal das Varas de Competência Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia.
O arguido explora como legal representante e desde há cerca de 20 anos um estabelecimento conhecido por “B….” sita na Rua …., nº …, em Oliveira do Douro, em Vila Nova de Gaia.
Tal estabelecimento comercial adveio à propriedade do arguido por via sucessória, sendo explorado por si e seus antecessores há mais de 100 anos.
O imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento comercial é actualmente propriedade da “C…..”, sendo que o contrato de arrendamento foi celebrado em 1913, constando do mesmo que o “arrendamento se destina a mercearia ...”.
Este estabelecimento comercial caracteriza-se por uma mercearia – venda de produtos alimentares e de limpeza –, taberna e casa de pasto – venda de bebidas e servindo almoços, sendo a sua actividade principal a de mercearia.
Ao estabelecimento em causa foi concedido atestado de Fiscalização Sanitária Anual, relativa ao ano económico de 1957, sendo naquele identificado como mercearia e vinhos.
Em 18 de Abril de 2000 o arguido foi notificado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia para no prazo de 30 dias proceder ao licenciamento do seu estabelecimento, sob pena de ser ordenado o seu encerramento.
Mais foi notificado na mesma data para apresentar pedido de licenciamento da actividade de mercearia nos termos do Decreto-lei nº 370/99 de 18 de Novembro.
Por sentença já transitada em julgado proferida pelo Tribunal Administrativo do Circulo do Porto, no âmbito do processo nº 589/00, foi declarada a nulidade do despacho que originou tal notificação.
Em 11 de Março de 2002 o arguido foi notificado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia para no prazo de 30 dias proceder ao licenciamento do seu estabelecimento, sob pena de ser ordenado o seu encerramento.
No decurso desse prazo, que terminava em 12 de Abril de 2002, apresentou o arguido nessa Câmara Municipal de Gaia, um requerimento, no qual, para além do mais, pedia a suspensão por mais 60 dias do prazo concedido.
Tal requerimento foi indeferido, sendo que na sequência dessa notificação, o arguido recorreu contenciosamente, quer do acto que ordenou a notificação de 11 de Março de 2002, quer da decisão de indeferimento (recurso pendente sob o nº 973/02, do 6º juízo do tribunal administrativo do círculo do Porto).
O recorrente está prestes a concluir negociações com vista à aquisição à sua senhoria de parte do imóvel em que se encontra instalado o estabelecimento comercial, tendo já sido por esta deliberada em Assembleia-geral, a sua venda ao recorrente, sendo sua intenção proceder a profundas obras de remodelação do imóvel.
O recorrente é titular do alvará de abertura nº 1005/94 emitido pelo Governo Civil do Porto, restrito à actividade de taberna.
O estabelecimento comercial do recorrente não possuiu alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6065, de 30 de Março de 1929.
Por sentença transitada em julgado, em 22.10.01, datada de 4 de Outubro de 2001, proferida no âmbito dos autos de contra-ordenação nº 284/01, que correu termos pelo 4º juízo criminal deste tribunal, e de cujo teor o arguido tomou conhecimento, foi decidida a sua absolvição da prática da contra-ordenação prevista e punível pelo artigo 54°, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 445/91 de 20 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, de que vinha acusado. Aí, e a propósito do estabelecimento em causa nos presentes autos, escreveu-se o seguinte: “No caso sub judice estamos perante um estabelecimento existente há mais de 100, no qual é exercida a actividade de mercearia como actividade principal, com venda de bebidas e serviço de refeições rápidas, almoços, a trabalhadores que perto do mesmo trabalham. Assim sendo, julgamos estar perante um estabelecimento sujeito ao regime previsto no Decreto-Lei nº 370/99 de 18 de Setembro, face ao disposto nos artigos 1° e 2°, nº 3 deste diploma legal, uma vez que a actividade principal é mercearia. Neste caso, como está em causa um; estabelecimento existente há mais de cem anos, é aplicável o regime previsto nos artigos 32°, nº 1 ou 33° do Decreto-Lei nº 370/99 de 18 de Setembro, consoante o mesmo seja ou não possuidor do alvará referido no primeiro citado preceito legal, sendo que, mesmo no caso de inexistência do referido alvará, teria o arguido um ano após a entrada em vigor do referido diploma legal, ou seja até 18 de Setembro de 2000 para requerer a licença de utilização. Assim sendo, mesmo considerando a hipótese de não ser possuidor do alvará referido no artigo 33° do Decreto-Lei nº 370/99 de 18 de Setembro, em 10 de Março de 2000 o arguido ainda estava em tempo de requerer a necessária licença de utilização”.
O arguido, no dia 12 de Janeiro de 2002, ao manter aberto e em funcionamento o estabelecimento comercial já descrito, sem que possuísse a licença de utilização prevista no D.L. nº 370/99 de 19.09.99, não actuou com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
O arguido agiu de modo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida por lei.
No aludido estabelecimento trabalham o arguido, a esposa, um filho e um empregado.
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3. Matéria de facto não provada
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos articulados nos autos ou alegados em audiência de julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes, designadamente.
Que o arguido a partir da data em que teve conhecimento da sentença proferida no âmbito do processo de contra-ordenação nº 284/01, que correu os seus termos pelo 4º juízo criminal deste tribunal, conhecimento esse que ocorreu em data anterior à que a mesma transitou em julgado, ou seja, 22.10.01, ao manter aberto e em funcionamento o referido estabelecimento comercial sem ter providenciado pela obtenção da licença de utilização a que alude o D.L. nº 370/99, de 18.09.99, agiu sem consciência do carácter ilícito da sua conduta.
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4. Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal, no que toca à factualidade provada e não provada, assentou no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento:
Declarações da arguido que descreveu o estabelecimento em causa, esclarecendo que pretende em breve adquirir o aludido imóvel e realizar todas as obras necessárias, com vista a obter o respectivo licenciamento. Esclareceu ainda que tomou conhecimento, em data anterior à autuação, da sentença proferida no âmbito do processo nº 284/01, referindo também que na documentação que se encontra na sua posse não se encontra qualquer alvará sanitário previsto na Portaria nº 6065, de 30.03.1929, nunca tendo diligenciado junto da Câmara Municipal de Gaia ou de qualquer outra entidade no sentido de apurar se este existia.
D….., fiscal municipal, que lavrou o auto de notícia, cujo teor confirmou.
E…. e F…. e G….: frequentadores do estabelecimento comercial em causa, que descreveram com rigor, e H….: dirigente da Associação C…., que referiu que se encontram em fase terminal as negociações com vista à aquisição pelo arguido do imóvel onde aquele estabelecimento se encontra instalado.
Considerou-se o teor dos documentos juntos aos autos, sendo certo que em todos aqueles em que é identificado o estabelecimento é sempre referida como primeira actividade mercearia, variando a referência à restante actividade – auto de notícia de fls. 4, fls. 14 a 58, certidão de fls. 74 a 79, 108 a 132, 156, 171 a 173, 178 a 180.
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5. Passamos, agora, a dilucidar as questões elencadas [Tratando-se de uma contra-ordenação permanente, consistente na exploração de um edifício sem licença de utilização, a mesma persiste enquanto o mesmo não for fechado ou licenciada a exploração, pelo que só a partir da data em que se verificar o encerramento ou o licenciamento se iniciará o prazo de prescrição (artigo 27º, nº 1, alínea a) e nº 5 do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9; artigos 5º e 27º alínea c) do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10; artigo 119º, nº 2, alínea a) do artigo 119º do CP ex vi artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10.). Considerando que a situação persiste, consideramos que não decorreu o prazo de prescrição.]

A ordem dos factores não é arbitrária, daí que comecemos a apreciar e decidir a última das questões que o arguido/recorrente colocou a este Tribunal. A verificar-se a nulidade da decisão administrativa por violação da alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP aplicável por referência ao artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 483/82, então, prejudicadas ficam todas as outras nulidades.
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5.1 – Nulidade da decisão administrativa por violação da alínea a) do nº1 do artigo 379º do CPP
Sustenta o arguido/recorrente que as decisões administrativas que aplicam coimas devem conter a fundamentação de facto e de direito, sendo que esta por se tratar de decisão condenatória, nos termos do artigo 375º, nº 1 do CPP, tem que abranger os fundamentos que presidiram à escolha de medida da pena. Assim, a decisão administrativa é nula por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 379º ex vi artigo 41º, nº 1 do decreto-lei nº 433/82, de 27.10.
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Cumpre decidir
A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a identificação dos arguidos; a descrição dos factos imputados, com a indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e se fundamenta a decisão; a coima e as sanções acessórias, assim rezam as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 58º do decreto-lei nº 433/82.
Embora compreendamos que a decisão de folhas 81, não é formalmente exemplar, a verdade, é que não deixou de proceder à identificação do arguido, remetendo para a participação de folhas 2 dos autos, acabou por transcrever os factos que lhe são imputados: no dia 12 de Janeiro de 2002, na Rua …., nº …º, em Oliveira do Douro, I…. possuía um estabelecimento de mercearia sem que para o efeito possuísse a necessária licença de utilização. Quanto à indicação dos meios de prova, indicou o auto de notícia. Depois de tomar posição sobre a prova indicada e de transcrever o que com base nos depoimentos das testemunhas considerou provado, analisou juridicamente os factos e indicou as normas legais aplicáveis à situação em concreto, concluindo pela aplicação de uma coima e sanção acessória. Aliás, deve recordar-se que nem o artigo 58º do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10, nem qualquer outra norma deste diploma estabelece qualquer sanção para a inobservância de algum dos requisitos nela previstos. A este propósito devemos chamar à Colação o que escreve o Exmo. Juiz J…..: Quando a decisão administrativa não cumprir os requisitos enunciados no artigo 58º “não se deve aplicar, subsidiariamente, o disposto no artigo 379º do CPP – nulidades da sentença – uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória, esta, nos termos do artigo 62º, nº 1, converter-se-á em acusação [Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 5ª edição, pág. 110]
Evidencia o Tribunal da Relação do Porto que “as disposições dos artigos 374º e 379º do CPP pressupõem um processo-crime e referem-se a uma sentença proferida com observância de todo o formalismo legal previsto neste Código. É de admitir que estes preceitos legais sejam aplicáveis à fase judicial em processo de contra-ordenação; mas fazer depender a regularidade de uma decisão administrativa das exigências, daqueles normativos do Código de Processo Penal, para a sentença, não é adaptar convenientemente ao processo administrativo de aplicação da coima os preceitos processuais penais. A fase administrativa do processo de contra-ordenação é tributária do próprio processo administrativo e deve reger-se pelos seus princípios fundamentais”(Ac. RP, datado de 8 de Janeiro de 2003, publicado in www.dgsi.pt).
Em face de todo o exposto, o tribunal julga improcedente por não provada a alegada nulidade.
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5.2– Nulidade da decisão administrativa mesmo vista como acusação na fase judicial do processo
O arguido/recorrente defendeu que sempre a decisão seria nula por violação do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP ex vi artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Determina o nº 1 do artigo 62º do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10:
Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao Juiz, valendo este acto como acusação.
Sabemos que notificado da decisão administrativa, o arguido veio interpor recurso judicial nos termos do artigo 59º e seguintes do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10. Remetidos os autos para o Tribunal competente, a Digna Procuradora – adjunta deu o seguinte despacho: Remeta aos Juízos Criminais para distribuição – folhas 2. Feita a distribuição, a Exma. Juiz admitiu o recurso e designou dia e hora para a audiência de julgamento. Nos termos da norma acima enunciada por via da remessa dos autos à distribuição, a decisão da autoridade administrativa converteu-se em acusação.
Transformada a decisão administrativa em acusação, o arguido passou a ter conhecimento quer dos factos quer das normas legais aplicáveis
A alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP determina que a acusação contém sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente nele teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Naturalmente que tem importância para a defesa do arguido que conheça os factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam aos pressupostos da punição, à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável (artigo 58º do decreto-lei nº decreto-lei nº 433/82, de 27.10). Estamos em presença de uma nulidade sanável (artigo 283º, nº 3 do CPP ex vi artigo 41º do decreto-lei nº 433/82), arguível pelo interessado no prazo de 10 dias (artigo 120º, nº 1 do CPP), perante a própria administração ou judicialmente no acto da impugnação. Compulsados os autos verificamos que na fase administrativa o arguido não suscitou esta nulidade – folhas 9 a 13 – o que permite concluir que entendeu os factos que lhe eram imputados e as normas jurídicas que os enquadravam e puniam. Chegados à fase de impugnação da decisão administrativa por via da interposição de recurso, também, não vislumbramos que tenha suscitado a nulidade da decisão administrativa/acusação nos termos da alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP ex vi artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10. Não tendo sido suscitada nem na fase administrativa nem aquando da impugnação da decisão, mesmo a existir teria que se considerar sanada, apesar de considerarmos que a decisão administrativa/acusação fornece ao arguido todos os elementos necessários à elaboração da sua defesa.
O Supremo Tribunal de Justiça por Assento nº 1/2003, publicado no DR. IA, nº 21 de 25 de Janeiro fixou a seguinte jurisprudência:
Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias, após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.
Contrariamente ao defendido pelo arguido/recorrente a decisão administrativa/acusação de folhas 81 a 85 forneceu-lhe todos os elementos necessários não só para que pudesse preparar a sua defesa, como lhe indicou os factos que lhe eram imputados, a norma jurídica que os previa e punia – 1º § de folhas 81 – considerou os elementos que relevam para efeitos da culpa, dolo ou negligência – último § de folhas 83 – indicando, também, a norma que permite a aplicação da sanção acessória – 2º § de folhas 84.
Assim, consideramos que não se verifica a alegada nulidade, mas mesmo que se verificasse estava sanada já que não foi suscitada no prazo legal.
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5.3 Nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Para fundamentar esta nulidade, o arguido/recorrente alegou que da acusação na fase administrativa – auto de notícia – e da acusação na fase judicial – decisão administrativa – não consta a imputação de que não seja o arguido/recorrente titular de licença sanitária da Portaria nº 6.065. Como se deu como provado nos autos, o estabelecimento em causa existe há mais de 100 anos. Nos termos do artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99, o que constitui contra-ordenação, quanto a estabelecimentos pré-existentes é que estejam em funcionamento sem possuírem a licença de utilização que nesse diploma se prevê, o alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929 ou sem autorização de funcionamento emitida ao abrigo da Portaria nº 22.970 de 20 de Outubro de 1967. Considerar, assim na sentença proferida a circunstância de não possuir o estabelecimento do arguido/recorrente, é considerar facto que se integra no núcleo essencial da contra-ordenação, inteiramente diferente dos constantes da acusação, o mesmo é dizer que se trata de contra-ordenação diversa, ou seja, alteração substancial dos factos. Tal circunstância foi considerada fora do contexto dos nºs 2 e 3 do artigo 359º do CPP aplicável por força do disposto no artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10.
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Cumpre decidir
Passando, agora, para os domínios da sentença recorrida, o arguido/recorrente considera-a nula por violação da norma indicada na epígrafe, que determina:
É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º.
A decisão administrativa/acusação dá conta que o arguido, no dia 12 de Janeiro de 2002, na Rua …, nº …, em Oliveira do Douro, possuía aberto ao público e em pleno funcionamento um estabelecimento de mercearia sem que para o efeito possuísse a necessária licença de utilização, o que constitui contra-ordenação prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 27º do Decreto-lei nº 370/99, punida com coima a graduar de € 498,80 a € 3.740,98.
Com o respeito devido, o facto da sentença recorrida ter dado como provado que “o estabelecimento comercial do recorrente não possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065 de 30 de Março de 1929, não significa que tenha procedido a uma alteração não substancial ou substancial dos factos descritos na acusação – artigos 358º, 359º e alínea f) do artigo 1º do CPP.
Basta atentarmos no que a lei define por alteração substancial para considerarmos que tal factualidade não imputa ao arguido contra-ordenação diversa daquela pelo qual se encontra acusado, nem tão pouco a sua inclusão agrava os limites máximos da coima aplicável. Quanto à alteração não substancial será aquela que, apesar de representar uma modificação dos factos que constam da acusação, não imputa ao arguido contra-ordenação diversa nem agrava os limites máximos da sanção.
Não há dúvidas que a alínea a) do nº 1 do artigo 27º do Decreto-lei nº 370/99, de 18 de Setembro, prevê que: constituem contra-ordenações a utilização do edifício ou parte dele sem licença de utilização (…). É esta a realidade factual central que a provar-se preenche o tipo legal da contra-ordenação, a qual está plasmada na acusação e na sentença. Naturalmente que quando a lei fala em “licença de utilização” faz referência ao diploma legal ao abrigo da qual a mesma é concedida.
Não existem dúvidas que o Tribunal a quo deu como provado: “o estabelecimento comercial do recorrente não possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6065, de 30.3.1929”, todavia, não partilhamos o entendimento subscrito pelo arguido/recorrente quando considera que estamos em presença de facto diverso do mencionado na acusação. Penso não suscitar dúvidas que na acusação se faz menção à seguinte realidade fáctica: o arguido possuía um estabelecimento aberto ao público (…) sem que para o efeito possuísse a necessária licença de utilização – folhas 81 dos autos. O que o Tribunal a quo se limitou a precisar foi que aquela licença está prevista na Portaria nº 6065, de 30.3.1929. Para melhor compreendermos o “sem razão” do arguido/recorrente façamos o seguinte exercício: retiremos do facto provado – folhas 193 – a expressão “previsto na Portaria nº 6065, de 30 de Março de 1929”.
O corte desta expressão tem alguns efeitos na verificação dos elementos constitutivos da contra-ordenação?
Com o respeito devido, parece-nos que não. O que a lei considera como contra-ordenação é a abertura ao público dos estabelecimentos indicados nos artigos 1º e 2º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9, sem que para o efeito sejam portadores de licença de utilização, que pode ser concedida nos termos deste diploma, ou sem o alvará de licença sanitária previsto na Portaria identificada na alínea a) do nº 1 do artigo 27ºdo mesmo Decreto-lei. Acresce o facto de a introdução de tal indicação na matéria de facto não alterar nem agravar a posição do infractor, pelo que não pode falar-se em alteração substancial de factos, como também não tem a virtualidade de modificar qualquer dos factos previamente plasmados na acusação/decisão administrativa. No entanto e julgamos que por mera cautela o Tribunal a quo considerou que da prova produzida em audiência de julgamento podia resultar que “o estabelecimento comercial pertença do recorrente (…) não possui alvará de licença sanitária emitido nos termos da Portaria nº 6.065, de 30.3.1929 [Sublinhado nosso]” – acta de folhas 164, sendo que concedeu ao arguido prazo necessário para a preparação da sua defesa. Requerido o prazo para a preparação da defesa, o arguido atravessou nos autos o requerimento de folhas 166 a 170, onde concluiu que não podia utilizar-se a faculdade prevista no artigo 358º por ser substancial a alteração. A Exma. Juiz não atendeu às razões plasmadas no requerimento e levou à matéria de facto, por considerar tratar-se de uma alteração não substancial, aquele segmento do artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei n~370/99, de 18.9. Deste modo, consideramos que não se verifica a alegada nulidade.
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5.4 – Erro notório na apreciação da prova – artigos 410º, nº 2, alínea c), 431º, alínea a) do CPP ex vi nº 1 do artigo 41º do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10
Aponta, agora, o recorrente as suas baterias para os vícios da sentença, considerando que no âmbito factual da nulidade acima arguida, cometeram-se dois erros notórios na apreciação da prova, relativamente aos quais constam do processo todos os elementos probatórios e que, por isso, não obstante se ter prescindido da documentação da audiência são susceptíveis de correcção no presente recurso, nos termos dos artigos 410º, nº 2, alínea c) e 431º, alínea a) do CPP, aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1, do Decreto-lei nº 433/82.
O primeiro é o facto de, pelas razões em detalhe expostas no texto da presente motivação, se impor a alteração do facto considerado provado de que “ao estabelecimento em causa foi concedido atestado de Fiscalização Sanitária Anual, relativa ao ano económico de 1957, sendo naquele identificado como mercearia e vinhos para: Ao Estabelecimento em causa foram concedidos atestados de Fiscalização Sanitária Anual relativos aos anos económicos de 1955, 1956 e 1957, sendo naqueles identificados como mercearia e vinhos.
O segundo erro consiste no facto de se ter dado como provado que “o estabelecimento comercial do recorrente não possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929” e que deve ser corrigido no sentido ou se considerar não provado esse facto, ou mesmo, no sentido contrário, de passar a dizer-se: o estabelecimento comercial do recorrente possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929.
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Cumpre decidir
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do Tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, erro notório na apreciação da prova – assim reza a alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP.
Nos termos da norma acima transcrita só existe erro notório na apreciação a prova quando do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum resulte com toda a evidência conclusão contrária à que chegou o Tribunal. O Supremo Tribunal de Justiça ensina que o erro notório “só ocorre quando, face à decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência, se deva concluir que, ao dar como assente determinado facto, o julgador errou de forma evidente e tanto que do erro o homem comum não pode deixar de se aperceber. Este erro notório tem de ser interpretado, como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, mormente para efeitos do nº 1 do artigo 514º do CPC, isto é como um facto que todos se apercebem directamente (…) ou como um facto que adquire carácter notório por via indirecta, isto é mediante raciocínios formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos” [Ac. STJ, datado de 6.4.1994, Col. Jur. (Acs. STJ), Ano II, tomo II, pág. 187].
Lendo os factos provados e não provados concluímos que evidenciam a sequência lógica da prova produzida, com respeito pelas normas processuais que regulam a apreciação das provas, pelo que não se verifica o vício indicado.
É pacífico ter a Exma. Juiz dado como provado que “ao estabelecimento em causa foi concedido atestado Fiscalização Sanitária, relativa ao ano económico de 1957, sendo naquele identificado como mercearia e vinhos”. Este facto foi dado como provado, tendo por referência os documentos de folhas 14 a 58, dos quais faz parte uma fotocópia relativa a um atestado emitido pelo Ministério do Interior – Direcção Geral de Saúde – Inspecção de Higiene do Trabalho e das Indústrias.
No entanto, o arguido, quando atravessou nos autos o requerimento de folhas 166, através do qual tomou posição sobre a alteração não substancial dos factos descritos na acusação, juntou aos autos duas fotocópias de outros tantos atestados de Fiscalização Sanitária Anual relativos aos anos de 1955 e 1956. Esta junção foi admitida como demonstra o despacho de folhas 175, mas motivou um pedido de informações à Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. Aquando da decisão da matéria de facto a Exma. Juiz não valorou o seu conteúdo.
O Capítulo VII do Código de Processo Penal é dedicado à prova documental – artigos 164º a 170º – através do qual disciplina as regras relativas à sua admissibilidade, momento de junção, valor probatório de documentos autênticos e autenticados, etc., sem que no entanto faça qualquer menção aos documentos não autênticos ou autenticados. Ora, tratando-se de dois documentos não autenticados, não releva o facto de não terem sido impugnados pelo Ministério Público, devendo o seu conteúdo ser apreciado livremente pelo Tribunal nos termos do artigo 127º do CPP. Poderá questionar-se o facto da Exma. Juiz ter tomado em consideração o documento junto a folhas 15 e já não os documentos juntos a 171 a 173, no entanto, se lermos a acta de folhas 174 a 175, concluiremos que foram levados em linha de conta na apreciação do conteúdo do requerimento de folhas 166. Na verdade, pode ler-se na acta de folhas 174 e 175: O recorrente tem consigo defesa escrita relativamente à projectada alteração não substancial dos factos descritos na acusação, a qual contém, como única diligência probatória, um requerimento e a junção de três documentos que à mesma vão anexos (…).
Ora, tendo sido o arguido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º nº 1 do CPP, a Exma. Juiz interpretou-os como meios de preparação de defesa, relativamente à alteração não substancial dos factos, não os relevando aquando da fixação da matéria de facto, o que se enquadra na livre apreciação que dos mesmos fez.
Assim e pelas razões acima enunciadas a sentença não padece do vício de erro notório na apreciação da prova.
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No que concerne ao segundo erro, o Tribunal já tomou posição sobre a factualidade dada como provada, a saber: o estabelecimento comercial do recorrente não possui alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929. Como já foi referido, a Exma. Juiz, cautelarmente, notificou o arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP, por entender que ao integrar na matéria de facto provada a expressão contida na alínea a) do nº 1 do artigo 27º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9. O arguido requereu prazo para a preparação da sua defesa, o que lhe foi concedido e, para o efeito, juntou três documentos que não foram revelados aquando da fixação da matéria de facto. Recorde-se que, em sede de motivação da decisão de facto, a Exma. Juiz para fundamentar a prova daquele facto escreveu: declarações do arguido (…) referiu que na documentação que se encontra na sua posse não se encontra qualquer alvará sanitário previsto na Portaria nº 6.065, de 30.3.1929 (…).
Em determinado momento da sua motivação, o arguido/recorrente chamou à colação o princípio “in dúbio pro reo” decorrente do princípio da presunção da inocência com consagração constitucional. Da motivação da decisão de facto não encontramos razões para crer que em momento algum tenha perpassado pela cabeça da julgadora qualquer dúvida sobre a existência versus inexistência de alvará de licença sanitária. Recorde-se a prova que o arguido/recorrente não a possuía alvará de licença sanitária foi feita com base nas declarações por si prestadas em audiência de julgamento e que a julgadora fez eco na fundamentação. Como escreve o Sr. Prof. F. Dias: De distinguir cuidadosamente do âmbito de incidência do princípio in dúbio pro reo são os casos em que o juiz não logra esclarecer, em todas as particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu a infracção, seja ela em definitivo qual for” [Direito Processual Penal, 1981, pág. 218.]

Deste modo, não se mostram violados o artigo 72º do Decreto-lei nº 433/82, de 27.10, como foi respeitado o princípio constitucional plasmado no artigo 32º da C.R.P.
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5.5 - Insuficiência da matéria de facto para o preenchimento do tipo legal da contra-ordenação – artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99 – artigo 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2 do CPP, aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Sustenta o arguido/recorrente que tanto em sede de audiência prévia, como no recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, foi colocada a questão de, por força do disposto no artigo 6º do Decreto-lei nº 379/99 de 18.9, exercendo no estabelecimento mais de uma actividade, ser necessário e suficiente e válido alvará para a actividade de taberna, questão como se vê, foi decidida na sentença recorrida de forma absolutamente infundada de facto e de direito. A este respeito, declarada essa nulidade e com vista à decisão definitiva da questão, sempre há que dizer que, como consta da matéria de facto provada, o estabelecimento do recorrente é um só de mercearia, taberna e casa de pasto e que possui o alvará nº 1005/94 do Governo Civil do Porto para a actividade de taberna. Ora esse alvará, que é o emitido na sequência da autorização de abertura prevista no artigo 36º do Decreto-lei nº 326/86, de 30 de Setembro – cf. artigo 37º do mesmo diploma – manteve expressamente a sua validade, mesmo após a entrada em vigor do Decreto-lei nº 168/97, de 4 de Julho, nos termos do artigo 50º, desse diploma. De acordo com o artigo 6º do Decreto-lei nº 370/99 se num estabelecimento se exercerem mais do que uma actividade é necessário e suficiente apenas uma autorização. Pelo que se impõe a conclusão que a final, o estabelecimento funciona legalmente.
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Cumpre decidir
O nº 2 do artigo 374º do CPP declara: ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No plano estritamente formal, a sentença sob censura cumpre, de forma satisfatória, as exigências referidas na norma anterior, já que de forma individualizada consignou os factos provados, não provados e respectiva motivação, passando de seguida para o aspecto jurídico da causa. Todavia, da leitura da motivação e conclusões do arguido/recorrente, parece resultar que a questão por si suscitada não se situa ao nível formal, mas antes no plano substantivo, ao considerar que o estabelecimento possui o alvará nº 1005/94 do Governo Civil do Porto para a actividade de taberna e por essa razão está a funcionar legalmente.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Está provado que o arguido explora como legal representante e desde há cerca de 20 anos um estabelecimento conhecido por “B….” sita na Rua …., nº …, em Oliveira do Douro, em Vila Nova de Gaia. Tal estabelecimento comercial adveio à sua propriedade por via sucessória, sendo explorado por si e seus antecessores há mais de 100 anos. O imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento comercial é actualmente propriedade da “C….”, sendo que o contrato de arrendamento foi celebrado em 1913, constando do mesmo que o “arrendamento se destina a mercearia...” Este estabelecimento comercial caracteriza-se por uma mercearia – venda de produtos alimentares e de limpeza –, taberna e casa de pasto – venda de bebidas e servindo almoços, sendo a sua actividade principal a de mercearia, e é titular de alvará de abertura nº 1005/94 emitido pelo Governo Civil do Porto, restrito à actividade de taberna.
Prescrevem a alínea a) do 1 e os nºs 2 e 5 do artigo 27º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9:
Para além das previstas no artigo 54º do Decreto-lei nº 445/91, de 20 de Novembro e sem prejuízo do disposto no artigo 32º do presente diploma, constituem contra-ordenações:
A utilização do edifício ou parte do edifício para a exploração de um estabelecimento abrangido pelo presente diploma sem a licença de utilização concedida nos termos do presente diploma ou sem o alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929 ou sem autorização de funcionamento emitida ao abrigo da Portaria nº 22.970 de 20 de Novembro de 1967 e do Despacho Normativo nº 148/83, de 25 de Junho, ou de legislação anterior.
(…)
A contra-ordenação prevista na alínea a) do número anterior é punível com coima de 100.000$00 a 750.000$00, no caso de se tratar de pessoa singular, e de 500.000$00 a 6.000.000$00, no caso de pessoa colectiva.
(…)
(…)
Se as infracções forem praticadas por negligência os limites mínimos e máximos das coimas são reduzidos para metade.
Conforme evidencia a matéria de facto provada, o estabelecimento em causa desenvolve a sua actividade comercial na área da mercearia – venda de produtos alimentares e de limpeza –, taberna e casa de pasto – venda de bebidas e servindo almoços, sendo a sua actividade principal a de mercearia, pelo que não nos suscitam dúvidas quanto à sua integração no tipo de estabelecimentos a que se reportam os artigos 1º e 2º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9.
Nos termos do supra descrito artigo 27º, nº1, alínea a) do DL 370/99, de 18.9 constituem contra-ordenação:
A falta de licença de utilização concedida nos termos do presente diploma;
A inexistência de alvará de licença sanitária previsto na Portaria nº 6.065, de 30 de Março de 1929.
A falta de autorização de funcionamento emitida ao abrigo da Portaria nº 22.970 de 20 de Novembro de 1967 e do Despacho Normativo nº 148/83, de 25 de Junho, ou de legislação anterior.
Explorando a matéria de facto provada, concluímos que o estabelecimento em causa não é possuidor de nenhuma das licenças ou autorizações acima especificadas, pelo que a falta de licenciamento da sua actividade constitui contra-ordenação. No entanto, sustenta o arguido/recorrente: o alvará nº 1005/94 emitido pela Governo Civil do Porto para a actividade de taberna mantém-se válido por via do disposto no artigo 50º do Decreto-lei nº 168/97. A isto acresce o facto do artigo 6º do Decreto-lei nº 370/99 explicitar que se num estabelecimento se exercerem mais do que uma actividade é necessário e suficiente apenas uma autorização.
Reportando-se o artigo 6º aos estabelecimentos que exploram diversas actividades, será organizado um único processo e concedida uma única licença, ficando todas as actividades inscritas no respectivo alvará, o que é bastante compreensível na medida em que o legislador pretendeu com este novo diploma, simplificar procedimentos e entraves administrativos ao desenvolvimento económico. Daí que não fizesse muito sentido exigir-se um licenciamento para cada um das actividades desenvolvidas, mas sempre exigiu que no alvará ficassem inscritas as actividades comerciais exercidas pelo respectivo estabelecimento.
Defende o recorrente que o alvará nº 1005/94 se mantém válido à luz do artigo 50º do Decreto-lei nº 168/97 de 4 de Julho. Sempre com o máximo dos respeitos, a leitura do artigo 50º não permite concluir que foi intenção do legislador manter válidos os alvarás de abertura emitidos em data anterior à da entrada em vigor deste diploma. O legislador salvaguardou no artigo 51º do Decreto-lei nº 168/97 os estabelecimentos de restauração e de bebidas que fossem portadores de autorização de abertura à data da sua entrada em vigor, esta só seria substituída por licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas na sequência dos casos previstos no artigo 50º. Acontece, porém, que o estabelecimento do arguido/recorrente tem como actividade principal a mercearia, exercendo também as actividades reportadas a taberna e casa de pasto. Ora, se a sua actividade se reportasse única e exclusivamente a taberna seria discutível o levantamento da contra-ordenação à luz do artigo 51º do Decreto-lei nº 168/97. Todavia, desenvolve a título principal a actividade de venda de produtos alimentares e de limpeza, vulgo mercearia, bem com a de casa de pasto com serviço de refeições. Afastada, em nosso modesto ver, a possibilidade de fazer abranger no artigo 6º a multiplicidade de actividades desenvolvidas pelo arguido/recorrente, então, não podemos ter dúvidas quanto à legalidade do levantamento da contra-ordenação por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 27º do Decreto-lei nº 370/99, de 18.9, na medida em que não foi exibido o alvará sanitário emitido ao abrigo da Portaria nº 6.065, de 29 de Março de 1929.
Assim, não só não se mostram violados os artigo 27º, nº 1, alínea a) do Decreto-lei nº 370/99 – artigo 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2 do CPP, aplicáveis por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82, nem os artigos 6º e 27º do Decreto-lei nº 370/99, nem tão pouco os artigos 50ºe 51º do Decreto-lei nº 168/97.
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5.6 – Alteração da matéria de facto dada como provada – conclusão 29ª – nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP aplicável por remissão do artigo 41º, nº 1 do Decreto-lei nº 433/82.
Considera o arguido/recorrente que a Exma. Juiz errou notoriamente ao dar como provado que “o recorrente não actuou com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz” e que o arguido agiu de modo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida por lei”, pelo que haverá de concluir-se que o arguido agiu sem consciência da ilicitude, o que o mesmo é dizer sem culpa.
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Cumpre decidir
Sob a epígrafe “fundamentos do recurso”, dispõe a alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só conjugada com as regras da experiência comum: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Resulta de forma clara da leitura deste artigo que o vício invocado tem de resultar da decisão recorrida, na sua globalidade, e sem recurso a elementos que lhe sejam externos, designadamente depoimentos exarados no processo durante a fase de julgamento. Há insuficiência da matéria de facto sempre que exista uma lacuna, deficiência ou omissão no seu apuramento e investigação com repercussões na qualificação jurídica da mesma, acarretando a normal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual. Este vício não se confunde com uma errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, já que aí estaríamos em presença de um erro de julgamento. Também não se reconduz a uma discordância sobre a matéria de facto provada construída em termos legais – artigo 127º do CPP – com base nas regras da experiência e formada e apreciada pela livre convicção do tribunal. Só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal deixe de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitam por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador [Ac. RC, datado de 27.10.1999, Col. Jur. Ano XXIV, tomo IV, pág. 68; Ac. STJ, datado de 25.09.1997, BMJ nº 469, pág. 451.]

Da leitura da decisão sob censura resulta que não padece do invocado vício. Basta atentarmos na matéria de facto provada para concluirmos que a atitude do arguido/recorrente não se enquadra, no que o Sr. Prof. F. Dias designa por “apesar do erro em que incorreu manifestou no facto uma consciência recta, orientada por uma atitude geral de fidelidade a exigência do direito” [Direito Penal, vol. I, pág. 588 e 589]. Da leitura atenta dos factos provados, não pode resultar outra conclusão que não a de estarmos em presença de uma pessoa conhecedora das exigências da lei, na medida em que desde 2000 tem conhecimento da necessidade de licenciamento do seu estabelecimento nos termos da nova lei, não relevando para o seu efectivo conhecimento da necessidade de licenciamento o facto da declaração de nulidade do despacho. Mas ainda que se entenda o contrário, a verdade é que em Março de 2002 voltou a ser notificado pela Câmara para proceder ao licenciamento o que não fez. Esta realidade factual quase que possibilitava a afirmação da “intencionalidade” do arguido na manutenção do status quo por contraposição ao tipo de ilícito negligente, contemplado na sentença.
Também aqui não vislumbramos ter a sentença errado notoriamente e por isso não se verificada a alegada nulidade.
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Nesta conformidade, o Tribunal profere a seguinte decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso mantendo-se o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 7 Ucs (artigos 92º e 93º, nº 3 do DL 433/82, de 27.10 e alínea b) do nº 1 do artigo 87º do CCJ) [Este acórdão foi revisto e elaborado pelo relator].
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Notifique.
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Porto 15 de Março de 2006
Jacinto Remígio Meca
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Arlindo Martins Oliveira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto