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RECUSA DE MÉDICO
ABANDONO DE FUNÇÕES
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Sumário
O Código de Processo Penal (CPP) não define directa e expressamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a sua posição processual e atribuições. Nos termos do art. 68º nº 1 al. a) do CPP, o ofendido com legitimidade para se constituir assistente, tem um sentido mais restrito do que o conceito de ofendido e, portanto, não basta que tenha sofrido prejuízo com o crime, necessário é que este crime o haja atingido directa e particularmente. No que concerne ao crime de recusa de médico, não oferece qualquer dúvida, que sendo os bens jurídicos tutelados com a incriminação, eminentemente e exclusivamente pessoais, só pessoas físicas concretas (ou os seus representantes) integram o núcleo de pessoas ofendidas e a recorrente, sendo uma pessoa colectiva de direito privado, não tem legitimidade para se constituir assistente. Já no que se refere ao crime de abandono de funções, a aferição da existência ou da inexistência da legitimidade da recorrente, à luz do art. 68º nº 1 al. a) do CPP, depende da integração do conceito de funcionário, nos termos do art. 386º do CP e da qualificação da recorrente como integrante da Administração Púbica. E nem a arguida pode ser considerada funcionária, nos termos do art. 386º do CP, quanto às suas funções como médica na unidade de cuidados continuados da recorrente, nem esta última é pessoa colectiva de direito público.
Texto Integral
Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Por despacho proferido em 30 de Dezembro de 2020, no processo nº 2121/19.7T9PDL do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi indeferido o pedido de constituição de assistente apresentado pela Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada.
A requerente Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada veio interpor recurso, tendo sintetizado as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem como objeto o despacho judicial datado de 30.12.2020 e notificado à Denunciante em 07.01.2021, que decidiu pelo indeferimento do pedido para a constituição de Assistente apresentado pela Denunciante.
2. A Denunciante discorda em absoluto da decisão proferida, cujos fundamentos não merecem provimento, entendendo que lhe assiste legitimidade para se considerar ofendida nos factos em apreço, devendo por isso ser admitida a sua intervenção como Assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 68º nº 1, alínea a), do CPP.
3. A decisão recorrida limita-se a aderir à posição do Ministério Público, reiterando que a Denunciante não tem legitimidade para se constituir Assistente por "não se assumir como titular dos interesses protegidos pela lei relativamente aos crimes Investigados nos autos" e "por não ter pago a devida taxa de Justiça".
4. Contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, a Denunciante tem legitimidade para se considerar Ofendida nos presentes autos, tendo já pago inclusivamente a taxa de justiça devida para o efeito.
5. Quanto à suposta falta de pagamento da taxa de justiça, deve notar-se que a Denunciante nunca foi notificada para proceder ao pagamento da respetiva taxa de justiça, conforme impõem a Lei e a práxis.
6. De facto, do disposto no artigo 8º, nº 3, nº 4 e nº 5, do RCP, resulta que, nos casos em que o comprovativo do pagamento da taxa de justiça não seja junto ao processo com o requerimento, deve a secretaria notificar o requerente para proceder à respetiva apresentação, dando-lhe um prazo de 10 dias para o efeito.
7. Só depois de decorrido tal prazo, sem que se mostre paga a taxa de justiça respetiva, é que o não pagamento determina que o requerimento seja considerado sem efeito - regime que decorre talqualmente dos artigos 570.2 e 642.2 do CPC.
8. O indeferimento do requerimento para a constituição de Assistente por falta de pagamento da taxa de justiça, sem ter sido efetuada a notificação prevista no artigo 8º/4 do RCP, constitui uma inadmissível violação do direito fundamental de acesso à justiça e aos Tribunais, erigido no artigo 20º da CRP (vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.04.015, referente ao processo nº 622/15.5TDLSB.L1-9).
9. Por conseguinte, neste aspeto a decisão recorrida viola o disposto no artigo 8º, nºs 3, 4 e 5 do RCP, e igualmente do direito fundamental de acesso à justiça e aos Tribunais, previsto no artigo 20º da CRP.
10. Seja como for, a verdade é que, antes de ter sido notificada do despacho recorrido, a Denunciante reiterou, no passado dia 06.01.2021, o pedido para a sua constituição como Assistente e procedeu à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça correspondente, pelo que se entende que também por esta via a questão se encontra sanada, uma vez que se mostra paga a taxa de justiça devida.
11. Por outro lado, invoca o Tribunal a quo que a Denunciante não tem legitimidade para se constituir assistente, por supostamente "não se assumir como titular dos interesses protegidos pela lei relativamente aos crimes em investigação nos autos".
12. A Denunciante não pode concordar com os fundamentos invocados, nem com a decisão que nos mesmos assentou.
13. A Denunciante entendeu ser seu dever cívico e ético reportar os factos que determinaram a instauração do presente processo ao Ministério Público, por forma a apurar-se e clarificar-se qualquer eventual enquadramento jurídico-penal, mas também na medida em que se considera ofendida pelos mesmos, designadamente nos termos e para os efeitos previstos no art. 68º nº 1, alínea a), do CPP.
14. A Denunciante considera-se ofendida, desde logo, enquanto instituição titular da Unidade de Cuidados Continuados de saúde na qual estavam institucionalizados os utentes ao cuidado da Arguida e que foram visados pelos factos denunciados, tendo visto afetados os serviços ao nível dos cuidados médicos aí prestados, cuja responsabilidade impendia exclusivamente sobre a Arguida que, enquanto médica, gozava de autonomia e independência técnica e clínica.
15. Note-se que a Arguida, apesar de ter exercido funções junto da Denunciante, nunca foi funcionária da Denunciante, i.e. nunca teve qualquer vínculo laboral com a Denunciante, tendo exercido tais funções ao abrigo de um Acordo de Cooperação e enquanto médica do Hospital do Divino Espírito Santo.
16. Nos termos do Acordo celebrado, a responsabilidade pelo apoio médico que fosse necessário prestar aos utentes do Centro de Cuidados Continuados da Denunciante passou a impender sobre o Hospital do Divino Espírito Santo e, concretamente e pessoalmente, sobre a Arguida, enquanto médica designada para o efeito, função que esta desempenhou entre setembro de 2004 e agosto de 2015.
17. Para os devidos efeitos, a Arguida atuou sempre na qualidade de funcionária do Hospital do Divino Espírito Santo, uma vez que era com este Hospital que a Arguida tinha o seu vínculo laboral.
18. Uma vez que o referido Hospital é uma pessoa coletiva de direito público (cf. art. 1º, nº 1, do Apêndice II do Anexo I do Decreto Legislativo Regional nº 2/2007/A, de 24 de janeiro, e art. 1º, nº 1, alínea a), do Decreto Legislativo Regional nº 22/2015/A), por ter praticado os factos sub judice enquanto médica do mesmo e no âmbito das suas funções como funcionária deste Hospital, a Arguida enquadra-se no conceito de funcionária (cf. art. 386º, nº 1, alínea a), do CP).
19. A Denunciante, enquanto instituição titular da Unidade de Cuidados Continuados de saúde no seio da qual ocorreram os factos praticados pela Arguida, considera-se ofendida na medida em que é a responsável pela referida Unidade e pelos seus utentes, cabendo-lhe zelar pela vida e integridade física dos mesmos perante os atos e omissões de alguém que junto dela prestava funções clínicas, mas que com ela não tinha qualquer vínculo contratual, que a ela não respondia e que dela era independente.
20. É também nessa qualidade de responsável pela instituição em que estavam institucionalizados os doentes ao cuidado da Arguida que a Denunciante se considera Ofendida pelos presentes factos, desde logo no que se refere ao crime de recusa de médico.
21. A Denunciante considera, nessa medida, que tem legitimidade para se considerar Ofendida, por referência ao crime de recusa médica, devendo ser-lhe deferido o pedido para constituição como Assistente.
22. Para além disso, a Denunciante, enquanto instituição titular da Unidade de Cuidados Continuados de saúde no seio da qual ocorreram os factos praticados pela Arguida, considera-se Ofendida também na medida em que viu afetados os serviços ao nível dos cuidados médicos prestados na sua Unidade de Cuidados Continuados, cuja direção clínica impendia exclusivamente sobre a Arguida, a qual, como se viu, era totalmente independente da Denunciante.
23. Os comportamentos da Arguida, consubstanciados em ausências constantes, permanente estado incontactável e violações flagrantes dos deveres que sobre si impendiam enquanto profissional de saúde - conforme melhor demonstrado na denúncia e comprovado ao longo do inquérito -, tiveram consequências nos utentes da Unidade de Cuidados Continuados da Denunciante, mas igualmente nos serviços prestados pela Denunciante.
24. Os comportamentos da Arguida refletiram-se necessariamente numa menor capacidade de resposta ao nível dos serviços prestados, numa maior ocupação dos profissionais de saúde afetos à Unidade de Cuidados Continuados (com tarefas que excediam as suas funções, em decorrência das ausências e inação da Arguida) e em entropias ao regular funcionamento da Unidade (avaliação dos utentes feita sem a periodicidade necessária; repetidas falta de material por atrasos da Arguida ao nível da requisição de reposição; falta de orientações, atrasos e falhas ao nível da tomada de medidas e indicações necessárias; etc).
25. Os comportamentos da Arguida, consubstanciados no incumprimento flagrante dos deveres que se lhe impunham enquanto profissional de saúde tiveram indubitavelmente impacto no regular funcionamento da Unidade de Cuidados Continuados da Denunciante.
26. Na excecional situação sub judice, o "«bom andamento» da Administração Pública" ou a "regularidade e continuidade da actividade administrativa" coincide com o âmbito de atuação da Denunciante, com o funcionamento de serviços prestados pela Denunciante, daí que a Denunciante entenda que, in casu, se possa considerar Ofendida.
27. É que os factos em apreço foram praticados pela Arguida enquanto funcionária de uma pessoa coletiva de direito público (o Hospital do Divino Espírito Santo) e produziram os seus efeitos no seio de uma atividade da Denunciante (materializada na Unidade de Cuidados Continuados), ou seja, refletiram-se na esfera dos utentes institucionalizados nas instalações da Denunciante e na esfera da própria Denunciante.
28. No específico caso em apreço, crê-se que a Denunciante e os seus utentes devem ser considerados credores do dever de zelo da Arguida, para além evidentemente do Estado, uma vez que a Denunciante é a instituição titular da Unidade de Cuidados Continuados no seio da qual a Arguida praticou os factos em apreço.
29. Deve entender-se que o incumprimento pela Arguida dos deveres de zelo que sobre si impendiam prejudicou o Estado, mas igualmente - e sobretudo - a Denunciante, enquanto titular da Unidade de Cuidados Continuados onde esse incumprimento se verificou, e que viu os seus serviços afetados, e os seus utentes, que sofreram nas suas pessoas os impactos do incumprimento.
30. Nessa medida, é justo que se reconheça a legitimidade para a Denunciante se considerar Ofendida, por referência igualmente ao crime de abandono de funções.
31. Pelos motivos que se vêm invocando, entende a Denunciante que o Tribunal a quo errou na decisão recorrida e que fez uma interpretação incorreta, porque demasiado redutora, do disposto no art. 68.º nº l, alínea a), do CPP, violando-o.
32. Deve, ao invés, ser reconhecido à Denunciante o estatuto de Ofendida, porquanto esta se deve considerar, no caso sub judice, titular dos interesses jurídicos que as incriminações em relevo visam proteger, a par do interesse dos próprios utentes, no crime de recusa médica, e a par do interesse do Estado, no crime de abandono de funções.
33. Acresce que a "o constituição como assistente não pode ser excluída em função da natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação, antes ela se há-de admitir sempre que esse bem jurídico puder ser encabeçado num portador concreto" (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 212) - o que se verifica no caso em apreço, por ser a Denunciante credora do dever de zelo de funcionário que sobre a Arguida impendia (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2003, de 16 de janeiro de 2003).
34. O Tribunal a quo errou ao indeferir o pedido para a constituição de Assistente, não devendo ser atendidos os fundamentos invocados na decisão recorrida, tendo o Tribunal a quo violado o disposto no art. 68º nº 1 alínea a) do CPP.
35. A Denunciante tem legitimidade para se considerar Ofendida (artigo 68º, nº 1, alínea a), do CPP), encontra-se representada por mandatário judicial (artigo 70º nº l do CPP) e já liquidou a taxa de justiça correspondente e juntou o respetivo comprovativo de pagamento (artigo 519º nº 1 do CPP e artigo 8º, nº 1, do RCP).
36. Pelo exposto, e uma vez que estão preenchidas todas as condições determinantes da constituição como Assistente, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que defira o pedido da Denunciante, sendo esta admitida a intervir nos presentes autos na qualidade de Assistente.
Nestes termos, e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas, Venerandos Juízes Desembargadores, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que defira o pedido da Denunciante para a constituição como Assistente, sendo esta admitida a intervir nos presentes autos na qualidade de Assistente, com o que se fará a costumada Justiça!
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual formulou as seguintes conclusões:
1 - No que respeita ao pagamento da taxa de justiça, a situação processual da requerente Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada encontra-se resolvida uma vez que a mesma, no segundo requerimento para se constituir como assistente procedeu ao pagamento da taxa de justiça.
2 - Os serviços de Cuidados Continuados prestados pelas Santas Casas (art. 7.°, n.° 2, do Decreto Legislativo Regional n.° 16/2008/A de 12 de Junho de 2008) não integram os serviços prestados pelas unidades de saúde do Estado (art. 7.°, n.° 1, do mesmo diploma legal), ou seja, são privados, e, embora o médico que acompanha os utentes deva ser escolhido entre os médicos do hospital, o que assegura a qualidade mínima e a experiência necessária à prestação do serviço, é à Santa Casa da Misericórdia que cabe assegurar os meios humanos relativos ao funcionamento da Unidade de Cuidados Continuados e de Saúde, nomeadamente no que respeita aos médicos, e ao Instituto da Segurança Social dos Açores, IPRA, assegurar o pagamento deste médico, pelo que podemos concluir que, quando actuou no âmbito da Unidade de Cuidados Continuados de Saúde da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada, a arguida não estava no exercício de funções públicas, enquanto funcionária pública, mas como médica de uma instituição particular, logo, não actuou como funcionária nos termos do art. 386.°, do C.P., em qualquer uma das suas alíneas, nomeadamente da alínea c).
3 - Os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68°, n.° 1, alínea a) do Código de Processo Penal, pelo que nos casos de crimes públicos em que o interesse tutelado é exclusivamente público, a regra é a de que ninguém poderá constituir-se assistente, sendo que o direito de constituição como assistente só existirá se for conferido por lei especial, conforme expressamente dispõe o artigo 68.°, n.° 1 do Código de Processo Penal,
4 - Quanto ao crime de abandono de funções (art. 385.°, do C.P.), o bem jurídico protegido é o dever de zelo do funcionário, sendo certo que, estando em causa um “serviço público” que a violação do dever de zelo coloca em causa, apenas a relação do agente com o Estado é afectada pela actuação do agente.
5- No que ao crime de recusa de médico respeita, os bens jurídicos protegidos são a vida e a integridade física de uma pessoa concreta, pelo que teria de ser a pessoa a quem a arguida recusou a ajuda e que viu a sua vida e integridade física colocadas em causa pela sua actuação que teria legitimidade para se constituir como assistente.
Por tudo o exposto, o Ministério Público entende que o despacho da Meritíssima Juíza de instrução criminal que rejeitou o requerimento para constituição da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada como assistente nos presentes autos se encontra suficientemente fundamentado e não incorre em qualquer violação da lei penal ou processual penal, pelo que deve manter-se, na totalidade.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da confirmação da decisão recorrida, com fundamento nos argumentos expostos na resposta ao recurso apresentada pelo Mº.Pº., na primeira instância.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve respostas.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista no art. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objecto do recurso e identificação das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
As questões a decidir, no presente recurso, à luz das respectivas conclusões, são as de saber se o indeferimento do requerimento para a constituição de Assistente por falta de pagamento da taxa de justiça, sem ter sido efectuada a notificação prevista no artigo 8º/4 do RCP, constitui uma inadmissível violação do direito fundamental de acesso à justiça e aos Tribunais, erigido no artigo 20º da CRP e a de saber se a recorrente tem ou não legitimidade para se constituir assistente.
2.2. Fundamentação de Facto
Para a apreciação do recurso importa considerar a seguinte factualidade:
Os presentes autos tiveram a sua origem na denúncia da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada contra MM___ , identificada a fls. 342 dos autos, nos termos da qual a arguida, enquanto médica da equipa hospitalar de suporte em cuidados paliativos do Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e Directora Clínica da Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada entre 2004 e 2015, a quem incumbia coordenar toda a assistência prestada aos doentes, garantir a correcção e prontidão dos cuidados de saúde e, em especial, dirigir a acção médica, e estabelecer e acompanhar a implementação do plano específico de reabilitação dos utentes durante o internamento, incumpriu os deveres que se impunham enquanto profissional de saúde, incumprimento este que fez perigar a saúde dos utentes que estavam a seu cargo, ausentando-se por períodos consideráveis durante os quais permanecia incontactável, estando indisponível para prestar esclarecimentos e informações aos familiares dos utentes, não fazia uma avaliação dos utentes com a periodicidade necessária, nomeadamente no que respeita a alterações das prescrições médicas, o que levou os enfermeiros da UCCI a encaminhar utentes para o Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada ou a alterar a terapêutica dos doentes uma vez que esta permanecia incontactável, chegando a proibir os enfermeiros de a contactar após as 22H00 ou a dizer, quando contactada, que não valia a pena investir no utente porque estava “para morrer”, pelo que, estando nós perante doentes carecidos de acompanhamento frequente, o lapso temporal entre o aparente agravamento do estado de saúde destes e o tardio encaminhamento para o hospital terá contribuído, pelo menos potencialmente, para o agravamento do estado de saúde desses doentes, o que era do conhecimento da arguida, factos que indiciam a prática pela arguida de tantos crimes de recusa de médico, p. e p. pelo art. 284.°, do C.P., quantas as pessoas a quem recusou atender e que, face à sua não actuação, correram perigo de vida ou de perigo grave para a sua integridade física.
Entende também a denunciante que a arguida MM___ praticou o crime de abandono de funções, p. e p. pelo art. 385.°, do C.P., porquanto, constituindo a Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada uma associação com personalidade jurídica e natureza de pessoa colectiva de utilidade pública, MM___ seria funcionária para os efeitos do art. 386.°, do C.P., pelo que, quer devido à sua falta de comparência ao serviço por largos períodos de tempo ou por apenas aceitar esporadicamente ser contactada por telefone, o que protelou o tratamento de doentes, quer por ter desempenhado de forma deficiente a sua valência administrativa — verificação do material necessário à prestação de cuidados de saúde e prestação de esclarecimentos aos familiares do utentes da UCCI - a mesma agiu com intenção de interromper e retardar a prestação de cuidados de saúde, o que se verificou, bem como resultou na inexistência de material médico necessário para tratar os doentes (denúncia de fls. 1 a 22 que integra a certidão com a referência Citius 17163684).
Nesse requerimento, datado de 16 de Outubro de 2019, a Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada requereu a sua constituição como assistente (denúncia de fls. 1 a 22 que integra a certidão com a referência Citius 17163684).
No final do inquérito, o Mº. Pº. proferiu despacho de arquivamento, datado de 18 de Novembro de 2020 (fls. 265 a 274 da certidão com a referência Citius 17163698).
E nesse mesmo despacho, tomou posição quanto àquele pedido de constituição como assistente, tendo-se pronunciado no sentido do indeferimento do mesmo por não ter sido paga a Taxa de Justiça devida e por a requerente não ter legitimidade para tal efeito, em face das natureza dos crimes denunciados e respectivos bens jurídicos (fls. 265 a 274 da certidão com a referência Citius 17163698).
O despacho recorrido foi exarado nos autos em 30.12.2020, apreciou o primeiro pedido de constituição como assistente formulado pela recorrente Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada e tem o seguinte teor (transcrição integral):
Sufragando na íntegra a posição expressa pelo Digno Magistrado do M°P° e acompanhada pela defesa, cujos fundamentos aqui se retomam - não tendo a requerente legitimidade para o efeito, de acordo com o disposto no art.68°, n°1, al. a) do CPP, visto não se assumir como titular dos interesses protegidos pela lei relativamente aos crimes investigados nos autos (Como salientado pelo Digno Procurador da República, no caso do crime de recusa de médico p. e p. pelo art.284° do C.Penal, a pessoa ofendida é aquela a quem o médico recusou a ajuda (cfr. posição também defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", 2ª edição, pág. 816) e no crime de abandono de funções p. e p. pelo art.3855 do C. Penal, sendo o bem jurídico protegido o dever de zelo do funcionário (cfr. também Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", 2.5 edição, pág. 1022), não cabe reconhecer a titularidade desse interesse a qualquer particular ou entidade privada), e ainda por não ter pago a devida taxa de justiça, exigida nos termos conjugados do art. 519° do CPP e art.8°, n°1 do RCP (Não se inserindo a pretensão de exercício de ação penal por denúncia por si apresentada como justificativa da isenção de custas prevista no art. 4°, n°1, al. f) do RCP) -, indefiro o pedido de constituição de assistente apresentado pela Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada.
Notifique.
Devolva os autos ao M°P°.
Em 11 de Janeiro de 2021, a Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada veio requerer novamente a sua constituição como assistente e requerer a abertura da instrução (fls. 275 e seguintes da certidão com a referência Citius 17163698).
Com este requerimento juntou documento comprovativo do pagamento da Taxa de Justiça pela constituição como assistente (documentos de fls. 306 a 309 que integram a certidão com a referência Citius 17163698).
2.3. Apreciação do Mérito do Recurso
O presente recurso pretende a revogação do despacho proferido em 30 de Dezembro de 2020 que indeferiu o pedido formulado pela Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada para se constituir assistente quer em virtude de não ter pago a Taxa de Justiça devida para o efeito, nos termos dos arts. 519º do CPP e 8º do Regulamento das Custas Processuais, quer em virtude de não ter legitimidade para o efeito.
Com efeito, não se vislumbra na tramitação processual que a Secretaria tenha constatado a omissão do pagamento da taxa de justiça, imposta pelo art. 519º nº 1 do CPP e pelo art. 8º nº 1 do Regulamento das Custas Processuais (por autoliquidação, no valor de 1 UC, sem prejuízo de ulterior correcção, por decisão judicial, nos termos do citado art. 8º nº 1), como condição de admissibilidade da constituição como assistente e, nessa conformidade, tenha procedido à notificação da requerente para que, em cumprimento do preceituado nos nºs 3 e 4 do mesmo art. 8º do RCP, juntasse o documento comprovativo da autoliquidação da mencionada taxa de justiça acrescida da taxa de justiça sancionatória de igual montante. Só depois de efectivada tal notificação e decorridos os prazos previstos nos nºs 2 e 3 do mesmo art. 8º, sem que o pagamento se mostrasse realizado, poderia ter-se concluído pela omissão do pagamento da Taxa de Justiça devida pela constituição como assistente.
Diga-se que, se este fosse o único fundamento do despacho recorrido e do presente recurso, o mesmo teria de ser julgado provido e o despacho recorrido revogado, porque, efectivamente, o indeferimento do pedido de constituição como assistente, sem o cumprimento prévio da tramitação prevista nos mencionados nºs 3 e 4 do art. 8º do RCP, constituiria uma afronta intolerável ao princípio constitucional do acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no art. 20º da CRP.
Acresce que, tendo a Santa Casa da Misericórdia efectuado um segundo pedido de constituição como assistente, com ele autoliquidou a taxa de justiça prevista nos arts. 519º do CPP e 8º nº 1 do RCP, pelo que, quanto mais não fosse por uma questão de aproveitamento útil de actos processuais validamente praticados (no caso, o pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente e apenas este pagamento, sem considerar agora a falta de fundamento legal para formular um pedido igual ao que desencadeou a prolação do despacho sobre que versa o presente recurso), ficaria prejudicada a questão da omissão do pagamento da Taxa de Justiça.
Em todo o caso, importa considerar que o outro fundamento do indeferimento do pedido de constituição como assistente formulado pela Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada, foi a sua falta de legitimidade para tanto, face à natureza dos crimes imputados à arguida.
É, pois, da apreciação desse pressuposto que depende, decisivamente, o desfecho do presente recurso.
O Código de Processo Penal (CPP) não define directa e expressamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a sua posição processual e atribuições.
Assim, segundo o disposto no art. 68º, podem constituir-se assistentes: as pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito (corpo do nº 1 do artigo 68º); os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (alínea a) do nº 1 do artigo 68º); as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento (alínea b) do nº 1 do artigo 68º); os representantes do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos (alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 68º) e qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados (alínea e) do n.º 1 do artigo 68º).
O CPP prevê, ainda, uma panóplia de direitos de intervenção no processo, entre os quais se destacam os poderes de deduzir acusação; de requerer a instrução (no caso de arquivamento dos autos por decisão do Mº. Pº.); de apresentar provas, durante o inquérito, a instrução e o julgamento, de ser ouvido, de interpor recurso da decisão final absolutória, inerentes a esse estatuto, para além de outros, expressamente reconhecidos ao assistente, nos arts. 68º; 69º; 284º; 285º; 287º nº 1 al. b); 341º al. b); 346º; 401º nº 1 al. b).
E, no art. 69º nº 1, assume de forma clara que o assistente é um colaborador do Mº. Pº., devendo, por regra, subordinar a sua intervenção no processo à actividade do Mº. Pº.
A previsão do assistente como um sujeito processual, é uma especificidade do CPP português sem paralelo no Direito Comparado, fruto da pretensão do legislador português, no sentido de assegurar o equilíbrio entre a natureza pública do exercício da acção penal, atribuído a um órgão do Estado, o Mº. Pº. (art. 219º da CRP), em sintonia com o interesse eminentemente público do jus puniendi como direito exclusivo do Estado e com as exigências de observância do princípio da legalidade e de defesa da legalidade democrática e a constatação de que o reconhecimento ao ofendido do direito de intervir no processo, nos termos da lei, deve ser uma das garantias do processo criminal (art. 32º nº 7 da CRP).
Com efeito, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade não anula a constatação de «que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida, convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, p. 240).
Assim «o assistente está legitimado a agir no processo penal, enquanto detentor de um específico interesse na questão de direito sujeita a apreciação judicial. Sendo que esse interesse, embora particular, é um elemento de ponderação na concreta decisão do caso, pelo que a intervenção do assistente é também uma exigência de ordem pública (pois que a decisão justa é aquela que tem por suporte a consideração de todos os pontos juridicamente relevantes - incluindo o do assistente)» (Damião da Cunha, «A participação dos particulares no exercício da acção penal», RPCC, 8, p. 593).
Porém, se «(…) a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, (…) eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtua a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do juiz» (Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal Português, I, pp. 192 e segs. No mesmo sentido, art. 2º nº 1, 7 e 11 da Lei de autorização legislativa do actual Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro).
Para o que releva no caso vertente, a legitimidade para a constituição como assistente só pode ser apreciada, de acordo com a previsão legal contida no art. 68º nº 1 al. a) do CPP, porquanto não existe lei especial que reconheça à Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada o direito de se constituir assistente, os crimes em investigação, nestes autos, não integram o catálogo da al. e) do art. 68º nº 1, nem são crimes de natureza semi-pública ou particular.
Nos termos daquela disposição legal, o ofendido com legitimidade para se constituir assistente, tem um sentido mais restrito do que o conceito de ofendido e, portanto, não basta que tenha sofrido prejuízo com o crime, necessário é que este crime o haja atingido directa e particularmente. É o ofendido no conceito estrito de pessoa titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, a título pessoal directo, ou por representação, na acepção contida nos arts. 113º nº 1 do CP.
São, pois, os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger, quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo.
Ora, a determinação de qual é o bem jurídico ou bens jurídicos que constituem o objecto imediato da incriminação, envolve a análise dos elementos constitutivos do tipo legal de crime e a sua inserção sistemática, na parte especial do Código Penal, a fim de descortinar qual o universo desses titulares (José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pp. 156 e segs.; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, p. 240; Damião da Cunha, «Algumas reflexões sobre o estatuto do assistente e seu representante no direito processual penal português» RPCC, 5.º, 1995, p. 153, e «A participação dos particulares no exercício da acção penal», mesma RPCC, 8.º, pp. 593 e segs.; Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, p. 206).
Por isso impõe-se a análise dos dois crimes denunciados pela recorrente e em investigação, neste processo.
Quanto ao crime de recusa de médico.
O art. 284º do Código Penal prevê e pune com pena de prisão até cinco anos, a conduta do médico que recusar o auxílio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira.
O crime de recusa de médico é um crime específico próprio.
É um crime específico, porque o autor dos factos que o integram só pode ser um médico e porque a acção típica tem, necessariamente, de se traduzir na omissão de cuidados médicos, sendo estes imprescindíveis para remover o perigo para a vida ou o perigo grave para a integridade física, ou seja, que o perigo não possa ser removido de outra maneira, sendo a actuação médica, em concreto, o único meio apto a eliminar o perigo (vide Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, comentário ao art.º 284º, Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, p. 844 e Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos médicos, RPCC, Ano 12, n.º3, p. 391).
É também um crime omissivo puro, pois assim é a descrição típica do respectivo modo de execução.
Os bens jurídicos protegidos são a vida e a integridade física.
O nexo de imputação subjectiva é o dolo: dolo de perigo concreto, traduzido na representação do perigo para a vida ou do perigo de grave lesão da integridade física, com a consciência acerca da “indispensabilidade e adequação do auxílio médico que o omitente podia ter prestado” e a conformação (atitude de indiferença) perante tal situação.
Se o agente se mantém passivo, apesar de ter consciência do perigo e da imprescindibilidade (para remoção do perigo) de auxílio médico, que podia prestar, poderá concluir-se que, no mínimo, se conformou com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença (dolo eventual) (Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, pág. 847).
Quanto ao crime de abandono de funções.
O art. 385º do CP pune com pena de prisão até um ano ou, em alternativa, com pena de multa até 120 dias, o abandono de funções, que é também um crime específico próprio porque autor dos factos que integram só pode ser um funcionário público, segundo o conceito que consta do art. 386º do CP e porque os modos de acção típica envolvem necessariamente o exercício de funções públicas.
Trata-se de crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração Pública, no exercício das suas funções e por causa delas.
Segundo a descrição típica, a consumação deste crime verificar-se-á em duas situações distintas – a ausência intencional ou o afastamento propositado por parte do funcionário do local onde deve prestar as suas funções (o abandono de funções propriamente dito) e/ou a negligência no exercício dessas funções, ou seja, descurando o cumprimento dos deveres que lhe estão inerentes ou impedindo a prossecução dos objectivos para que estão previstas.
O abandono propriamente dito, deverá ser prolongado e ilegítimo, no sentido de destituído de justa causa, bem como não fundamentando em caso fortuito ou de força maior, ou ainda no exercício legítimo de um direito (v.g., à greve), do mesmo modo que pressupõe necessariamente a inexistência de um substituto legal do ausente (em regime de substituição legal ou de interinidade), pois a ideia de abandono é precisamente a colocação do lugar, do cargo ou das funções numa situação de desamparo, de vacatura associada à potencialidade de a mesma causar prejuízos (ainda que não efectivados), para quem seja utente ou destinatário desses serviços públicos.
Essa deserção também não pode ser confundida como meras faltas injustificadas ou de assiduidade que devem ser tratadas em correspondente acção disciplinar, antes devendo ter um carácter prolongado ou suficientemente duradouro susceptível de gerar o resultado antijurídico, com a gravidade consentânea com o carácter fragmentário e necessário do Direito Penal.
No que se refere ao cumprimento negligente das obrigações funcionais, como é próprio da negligência, envolve uma prestação defeituosa das funções, no sentido que comumente é atribuído à negligência, ou seja, na acepção de omissão dos deveres de cuidado, zelo, atenção, conhecimento e diligência que forem exigidos, consoante a natureza das funções públicas e os objectivos por elas visados.
Em ambos os casos, a actuação deve ser dolosa, portanto, conhecida e querida pelo funcionário e além disso animada de uma especial intenção: a de impedir ou interromper um serviço público, que traduz o dolo específico exigido como nexo de imputação subjectiva do tipo e que foi determinante da sua manutenção, na parte especial do Código Penal, perante a objecção da sua irrelevância penal por se tratar de um ilícito de natureza meramente administrativa (cfr. Actas da Comissão Revisora do Código Penal; Parte Especial, Edição AAFDL, Lisboa 1979, p. 492 e 493).
Em face da sua inserção sistemática e dos seus elementos constitutivos, é lícito concluir que o bem jurídico visado pela incriminação contida no art. 385º é a autonomia funcional e a eficiência da Administração Pública.
Quanto ao conceito de funcionário, o artigo 386.º do Código Penal prevê, no universo de funcionários, para efeitos da aplicação da lei penal, os funcionários civis, os agentes administrativos, tal como todas as pessoas, que «mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar».
Nele não cabem as pessoas colectivas de mera utilidade pública e as denominadas instituições particulares de solidariedade social, porque pressuposto essencial para a afirmação do exercício de tarefas administrativas era a base legal da sua atribuição. Nestes casos (de mera “utilidade pública”), do que se trata é de “distinguir” pessoas colectivas sem escopo lucrativo, cujos fins estatutários correspondem a interesses sociais” (Damião da Cunha, num recente estudo “O Conceito de Funcionário para Efeito de Lei Penal e a Privatização da Administração Pública”, Coimbra Editora, 2008).
«As entidades colectivas privadas com funções públicas têm um regime jurídico dualista: de direito público, no que respeita ao exercício de funções públicas; de direito privado, no resto (relações com os seus aderentes, vida interna, relações entre associações, pessoal, património, contratos)» (Vital Moreira, in Administração Autónoma e Associações Públicas, Reimpressão, Coimbra Editora, 2003, págs. 547 e 548).
No que concerne ao crime de recusa de médico, não oferece qualquer dúvida, que sendo os bens jurídicos tutelados com a incriminação, eminentemente e exclusivamente pessoais, só pessoas físicas concretas (ou os seus representantes) integram o núcleo de pessoas ofendidas e a Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada não tem legitimidade para se constituir assistente.
Por conseguinte, a decisão recorrida não merece qualquer censura, nessa parte.
Já no que se refere ao crime de abandono de funções, a aferição da existência ou da inexistência da legitimidade da recorrente, à luz do art. 68º nº 1 al. a) do CPP, depende da integração do conceito de funcionário, nos termos do art. 386º do CP e da qualificação da recorrente como integrante da Administração Púbica.
E nem a arguida pode ser considerada funcionária, nos termos do art. 386º do CP, quanto às suas funções como médica na unidade de cuidados continuados da recorrente, nem esta última é pessoa colectiva de direito público.
É a própria recorrente quem reconhece que a arguida tinha o seu vínculo laboral com o Hospital do Divino Espírito Santo e só este é uma pessoa coletiva de direito público, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1º, nº 1, do Apêndice II do Anexo I do Decreto Legislativo Regional nº 2/2007/A, de 24 de janeiro, e do art. 1º, nº 1, alínea a), do Decreto Legislativo Regional nº 22/2015/A (conclusões 17 e 18 do recurso).
Como muito bem refere o Mº. Pº., na conclusão segunda da resposta ao recurso, os serviços de Cuidados Continuados prestados pelas Santas Casas (art. 7.°, n.° 2, do Decreto Legislativo Regional n.° 16/2008/A de 12 de Junho de 2008) não integram os serviços prestados pelas unidades de saúde do Estado (art. 7.°, n.° 1, do mesmo diploma legal), sendo, pois, de natureza privada.
Não colhe sequer o argumento de que a Santa Casa da Misericórdia é credora de um dever de zelo que onera a arguida, porque tudo se passa no âmbito de uma relação laboral que, sendo embora de direito público, não tem a recorrente como entidade patronal.
Do que a Santa Casa da Misericórdia é credora é de serviços de saúde na sua unidade de cuidados continuados prestados com eficiência, zelo e qualidade, dos quais é devedor o Hospital do Divino Espírito Santo.
A arguida não tem, com referência às funções que desempenha como médica, em benefício dos utentes da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada a qualidade de funcionária, segundo o conceito contido no art. 386º do CP, nem as atribuições daquela instituição e os objectivos que prossegue se inserem na Administração Pública.
A recorrente veio ainda invocar o Assento 1/2003 (hoje com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência), mas que não tem aqui aplicação, porquanto o mesmo fixou jurisprudência no seguinte sentido: «No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente».
Ora, esta jurisprudência só foi uniformizada para o crime de falsificação de documento e nenhum crime de falsificação está em investigação nestes autos, a que acresce o critério casuístico de aferição da legitimidade da constituição como assistente que deve ser feito por reporte ao concreto crime e bem jurídico por ele visado proteger que constituí o objecto de cada processo.
Tudo razões pelas quais, a recorrente não tem, efectivamente, legitimidade para se constituir assistente, neste processo e pelas quais o presente recurso não merece provimento.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas a cargo da assistente, fixando a Taxa de Justiça em 3 Ucs – art. 515º nº 1 al. b) e nº 2 do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Mmo. Juiz Adjunto.
Tribunal da Relação de Lisboa, 14 de Julho de 2021
Cristina Almeida e Sousa
Alfredo Costa