VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
TESTEMUNHA MENOR OFENDIDO
REVITIMIZAÇÃO DA VÍTIMA
TESTEMUNHA ESPECIALMENTE VULNERAVEL
Sumário

I–O art.º 56°, n.º 2 da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (aprovada Resolução da Assembleia da República n.º 4/2021, de 21 de janeiro) veio consagrar que uma criança vítima e uma criança testemunha de violência contra as mulheres e de violência doméstica deverão, se caso disso, beneficiar de medidas de protecção especiais, tendo em conta o superior interesse da criança;

II–Ora, uma medida de protecção especial de uma criança testemunha de um crime de violência doméstica ou de uma vítima especialmente vulnerável em função de tenra idade (no caso um menor de idade nascido no ano de 2009), deverá precisamente beneficiar da possibilidade de prestar declarações em sede de memória futura, em ambiente informal e reservado, assim obviando a que a mesma venha a ser compelida a prestar depoimento em audiência de julgamento, que, como decorre da experiência forense, é sempre um contexto marcado por solenidade e não muito adequado, por constrangedor, para personalidades ainda em formação;

III–Se bem que em certos casos a compatibilização entre o regime processual geral do art.º 271º do C.P.P. e o regime previsto na Lei de Protecção de Testemunhas, Estatuto da Vítima e Lei n° 112/2009 de 16 de setembro poderá ser ambiguo, nestes casos de processos de violência doméstica em que intervenham crianças, como testemunhas/vítimas, a tomada das suas declarações para memória futura deverá ser quase sempre o meio processual empregue por defeito, ganhando proeminência a sua protecção sobre quaisquer outras considerações, prefigurando-se o depoimento em julgamento, ao contrario do que sustenta o despacho recorrido, como absolutamente excepcional, condicionado à ponderação da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade, sempre tendo como linha vermelha a susceptibilidade de tal depoimento poder pôr em causa a saúde física e psíquica da vítima, sendo certo que, a decisão recorrida não teve em conta a Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei nº 93/99 de 14 de Julho, e o Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, nem tão pouco o art.º 33°, nº 1 da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal (9ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:



No Processo Comum nº 141/21.0 SXLSB-A.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 2, o Mº Pº interpôs recurso do despacho do MMº Juiz de Instrução que, desatendendo promoção sua nesse sentido, indeferiu a tomada de declarações para memória futura ao menor ofendido AA.

Extrai da motivação apresentada as seguintes conclusões:
1.No presente inquérito averigua-se a prática por BB, de factualidade susceptível de integrar um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152°, nº 1, aI. d) e nº 2, al. a) do Código Penal, cometido contra o seu filho AA, nascido em ………...2009;
2.Resulta dos autos que o menor AA tem conhecimento dos factos contra si praticados, pelo que foi promovida ai sua audição para memória futura, considerando que, à luz da sua tenra idade e vinculação filial com o suspeito, e bem assim o facto de ter sido alvo de "criminalidade violenta", o mesmo é testemunha e vítima especialmente vulnerável (artº 26°, n.º 2 da Lei 93/99 de 14 de Julho, e artº 67°, n.º 1, aI. b) e nº 3 e artº 1°, al. j) do Código de Processo Penal) o que foi contudo indeferido.
3.O instituto da tomada de declarações para memória futura constitui um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da testemunha e vítima especialmente vulnerável e protegê-la do perigo de vitimização, daí se optar pela sua audição em sede de memória futura, em. prévia inquirição da vítima e sem que isso possa ser entendido como um ato de investigação.
4.O critério de ponderação da tomada de declarações para memória futura ínsito na Lei nº 93/99 de 14 de julho, Estatuto da Vítima e Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, é mais amplo que o regime processual penal geral pertinente a este instituto) sobrelevando o imperativo de proteção da vítima/testemunha especialmente vulnerável o que não foi tido em conta na decisão recorrida;
5. Os fundamentos invocados para rejeitar a diligência promovida não têm qualquer cabimento no caso dos autos, atento que o depoimento do menor AA avulta como muito relevante para a descoberta da verdade, o princípio da imediação não é absoluto, não é obrigatória a audição em julgamento da vítima que tenha sido inquirida para memória futura, e não se impõe a prévia constituição de arguido para a realização de memória futura, sendo que, a cabal exercício do contraditório e direito de defesa será sempre assegurado com a nomeação de defensor e a sua presença na aludida diligência.
6.– Bem pelo contrário, a audição do menor AA em sede de memória futura revela-se fundamental para o andamento dos lautos, não só para obviar à sua vitimização, conatural à sua sujeição a prestar depoimento em juízo, como também para que seja ouvido em tempo útil, acautelando-se que as suas memórias não se percam com, o tempo atenta a pouca idade da vítima.
Mais se realça que o, MP não fundamentou o requerido na genuinidade do depoimento da vítima, - que se supõe - ao contrário do que refere o Mmº Juiz no seu despacho.
7. Assim, ao não deferir a tomada de declarações para memória futura ao menor AA, a decisão recorrida violou o disposto nos os art's 1', n's 1, 3 e 4, 2°, al. a), 26° n' s 1 e 2, 27°, n's 1 e 2, e 28' n's 1 e 2 da Lei 93/99 de 14 de Julho (Lei de Proteção de Testemunhas), art.' 67°, n.' 1, al. b) e n.º 3, e 1° al. j), ambos do Código de Processo Penal, e art.' 33°, n.'s os 1 e 7 da Lei 112/2009, de 16 de setembro.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, substituindo-se por outra que, acolhendo a pretensão do Ministério Público, agende data para a tomada de declarações para memória futura do menor AA.

Não houve lugar a resposta.

Nesta instância a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, acolhendo o argumentado pelo recorrente, emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os Vistos vêm os autos à conferência para decisão.

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Cumprindo decidir, das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do seu recurso vemos que em causa está tão só saber se se justifica e tem respaldo legal a tomada declarações para memória futura ao menor ofendido nos presentes autos AA requerida pelo Mº Pº.

Decidiu o Mmº Juiz “a quo” indeferir esse requerimento nos seguintes termos:
"O Ministério Público requereu a prestação de declarações para memória futura do ofendido nestes autos.
Indicou para o efeito apenas que pretende acautelar a genuinidade do seu depoimento e a sua revitimização, o que ocorre com a sua prestação de depoimento em julgamento, em ambiente mais solene.
Na realidade, a regra em vigor no processo penal português é de que toda a prova deve ser produzida ou examinada em audiência perante o tribunal de julgamento (artº 355º do Código de Processo Penal), sendo excepcional o aproveitamento de prova produzida anteriormente.
De resto, o legislador não permite, em regra, a alteração, ainda que parcial, da composição do tribunal, sendo que a prova produzida se encontra necessariamente registada de forma idêntica às declarações para memória futura), e impõe uma concentração dessa mesma produção de prova (art. 328.º do Código de Processo Penal).
Por isso, é imperioso considerar como verdadeiramente excepcional a prestação de declarações para memória futura com validade no julgamento.
A revitimização do ofendido é igual seja ouvida agora ou em julgamento, sendo mais provável se for ouvida agora, porque deverá ainda, por imposição legal, ser inquirida em julgamento, conforme resulta claro da regra constante do art. 33.°, n.º 7 da Lei 112/2009 de 15 de Setembro para além de tal se revelar necessário às prováveis exigências do contraditório relacionadas coma inexistência de arguido constituído neste. momento.
Os fundamentos indicados pelo Ministério Público, a terem acolhimento neste caso, seriam aplicáveis à generalidade dos processos em que existem ofendidos e, globalmente, em que esteja em causa criminalidade violenta.
Sendo certo que não se compreende a alegada perda de memória de uma criança de 11 anos de idade quanto à sua vivência familiar.
Por outro lado de modo muito relevante, a prestação de declarações memória futura não constitui um acto de investigação, devendo ter os, seus termos já definidos, em termos globais, pois a mesma é levada a cabo pelo juiz que tem de apresentar um posição de imparcialidade e não de exploração do inquérito.
Ora, o Ministério Público não indica, de todo, o objecto. da eventual inquirição.

Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Fevereiro de 2020 in www.dgsi.pt. sobre o procedimento penal por crime de violência doméstica, "Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade ou ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar, esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.

Assim, pelos motivos expostos, indefiro a tomada de declarações para memória futura promovida. "

Insurge-se o Mº Pº contra esta decisão com os seguintes fundamentos:
«Os autos tiveram início no auto de notícia da PSP, no qual constam factos imputados a BB susceptíveis de integrar um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, al. d) e nº 2, al. a) do Código Penal, cometido contra o seu filho a AA nascido em ………...2009.
No mesmo pode-se ler, em suma que, a vítima tem 11 anos e viveu com a sua avó paterna até aos 8 anos de idade, altura em que o denunciado resolveu pedir a sua guarda que lhe foi atribuída pelo Tribunal de Família e Menores:
A vítima informou que o denunciado já a agrediu várias vezes, algumas delas com objectos, nomeadamente com chinelos, sapatos, colher de pau e com a tábua de cortar os alimentos, ficando marcado com várias vezes com nódoas negras e também lhe dirige as expressões "FILHA DA PUTA, MULA, ÉS UMA MERDA, ÉS UM CARALHINHO, ESTAS AI A BATER PUNHETAS A GRILOS" ..
A vítima refere que fica sozinha em casa constantemente, desde que chega da escola até à hora de jantar porque o denunciado vai a casa comer e vai trabalhar, ficando a vítima novamente, sozinha.
A vítima afirma que não tem qualquer apoio escolar por parte do pai, e que não tem possibilidade de fazer as aulas online em casa porque o denunciado não paga os serviços, tendo assim de se deslocar até à escola para ter aulas e conseguir fazer os trabalhos.
No dia 19.03.2021, pelas 13h00, o denunciado descobriu umas batatas fritas escondidas no seu armário e começou a discutir com a vítima, ao mesmo tempo que agarrou na tábua de cortar os alimentos e agrediu a mesma várias vezes na perna direita e, antes de sair de casa disse-lhe: "VOU-TE METER NO HOSPITAL COM A PORRADA QUE VAIS LEVAR LOGO".' .
A fls. 17 foi inquirida a avó da vitima, e mãe do denunciado, que referiu, em suma, que no dia 19.03.2021 a vítima lhe telefonou a chorar, a dizer que o pai lhe tinha batido nas pernas, que o pai tinha saído e que afirmou que quando voltasse ainda lhe ia bater mais. Que se deslocou à casa do denunciado para ir buscar a vítima e que esta lhe indicou que o pai/denunciado lhe bateu com uma tábua de cortar alimentos, várias vezes na perna direita pelo facto de o mesmo ter comido umas batatas fritas que estavam no armário e, ainda, que o pai antes de sair, lhe disse que quando voltasse a casa ia mandar a vítima para o hospital com a porrada que lhe ia dar.
Na sequência destes factos a vítima foi retirada da sua residência por se encontrar em perigo, sendo acolhida pela avó paterna, cfr. fls 41.
(...)

Consagra o art.° 271°, n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP) que, (n.º 1) que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico: de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes Civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário; ser tomado em conta no julgamento, sendo que (n.º 2) no caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação. sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.

Verifica-se assim que o Código de Processo Penal estabelece nesta norma uma faculdade (dir-se-ia um poder-dever) de audição para memória futura de testemunhas e/ou vítimas, sendo que, numa regra de especialidade, em caso de crimes sexuais contra menores, impõe tal diligência em sede de inquéríto.
Como se sabe, vigora em processo penal o princípio da imediação no sentido de que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (art.º 355° n.º1 do C.P.R.).

O estabelecimento, pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, do regime previsto pelo art.º 271° do C.P.P., configura uma excepção a tal princípio da imediação à concentração da produção da prova no julgamento, tendo em conta quer a necessidade de acautelar a eventual dissipação da prova testemunhal, quer a protecção de vítimas em situação de particular vulnerabilidade, a descoberta da verdade, como obviar à revitimização de pessoas alvo de crimes particularmente lesivos para a sua integridade física - psíquica.

Ora, se fosse apenas o art.º 271° do C.P.P. o mecanismo a ter em conta na ponderação de audição de testemunhas para memória futura, nada haveria a apontar à decisão sob escrutínio - em boa verdade no caso dos autos não se suscita que o menor AA se irá ausentar de Portugal, nem se averigua a prática de qualquer um dos crimes elencados no catálogo daquela norma.

Contudo, a decisão em causa não teve em conta a Lei de Proteção.de Testemunhas, aprovada pela Lei nº 93/99 de 14 de Julho, e o Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de setembro, nem tão pouco o art.º 33°, nº 1 da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro.

Assim, é por demais manifesto da experiência forense e de regras de normalidade social que, não raro, pessoas numa particular situação de vulnerabilidade são testemunhas da prática de crimes que não se inserem no aludido catálogo, e que pela via do art.º 271° do C.P. não são susceptíveis de beneficiar da protecção que lhes seria conferida à luz de tal norma.

Tal será, manifestamente, o caso de menores alvo de crimes.
Face a tal, foi aprovada a lei n.º 93/99 de 14 de julho (Lei de Proteção das Testemunhas), onde "( ... ) atendeu-se à necessidade de facultar condições para que as testemunhas especialmente vulneráveis fizessem os seus depoimentos nas melhores condições possíveis e com urgência, nos termos dos artigos 271.º do CPP e do artigo 28º da Lei 93/99 de 14 de julho (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de junho de 2020, proferido no processo nº 1244/19.7PBFAR-AE1, disponível emwww.dgsi.p).

Tal diploma consagrou uma definição de testemunha como qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento. necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objeto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem (art. ° 2°, al. a).

Contudo, mesmo que inexista qualquer perigo potencial para a testemunha ou terceiros em função da prestação e depoimento, tal diploma prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade (art.º 1°, n.º 3).

Prescreve também o art.º 26° de tal diploma que (n.º 1), quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade Judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas, sendo que (n.º 2) a especial vulnerabilidade da testemunha resultar, nomeadamente da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

Já o art.º 29°, n.º 2 desta Lei estabelece que sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271,° do Código de Processo Penal.

Por sua vez, o art.º 24°, n.º 1 do Estatuto da Vítima consagra que o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tornado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal.

Testemunha especialmente vulnerável será aquela que cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade (art,º 67° nº.1, al..b) do Código de Processo Penal).

Finalmente, o art.º 33°, n.º 1 da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro estatui que, no contexto da investigação de crime de violência doméstica, o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Verifica-se assim que estes diplomas introduziram desvios ao regime processual penal pertinente à realização da diligência de memória futura, sublinhando a vulnerabilidade das testemunhas como coordenada orientadora da ponderação da realização de tal diligência, vulnerabilidade aferida não tanto por referência a uma enumeração restritiva de tipos penais, mas sim a critérios atinentes à situação de vida da testemunha/vítima, susceptíveis de acondicionar na prestação de depoimento em processos concretos, independentemente da natureza do crime em investigação.

Refira-se, aliás, que tal alargamento do âmbito de aplicação da diligência de memória futura, não fazendo depender a sua efectivação de critérios excessivamente restritivos e formalistas, no mesmo caminho de "instrumentos convencionais de que Estado Português é parte contratante.

Assim, o art.º 56°, n.º 2 da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (aprovada Resolução da Assembleia da República n.º 4/2021, de 21 de janeiro) veio consagrar que uma criança vítima e uma criança testemunha de violência contra as mulheres e de violência doméstica deverão, se caso disso, beneficiar de medidas de protecção especiais, tendo em conta o superior interesse da criança.

Ora, não se pode deixar de pugnar que uma medida de protecção especial de uma criança testemunha de um crime de violência doméstica ou de uma vítima especialmente vulnerável em função de tenra idade (v.g. um menor de idade), deverá precisamente beneficiar da possibilidade de prestar declarações em sede de memória futura, em ambiente informal e reservado, assim obviando a que a mesma venha a ser compelida a prestar depoimento em audiência de julgamento, que, como decorre da experiência forense, é sempre um contexto marcado por solenidade e pouco user friendly para personalidades ainda em formação.

Desta forma, afigura-se que, em caso de processos em que intervenham crianças, como testemunhas/vítimas, a tomada das suas declarações para memória futura deverá ser o meio processual empregue por defeito, ganhando proeminência a sua protecção sobre quaisquer outras considerações, prefigurando-se o depoimento em julgamento, ao contrario do que sustenta o despacho recorrido, como absolutamente excepcional, condicionado à ponderação da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade, sempre tendo como linha vermelha a susceptibilidade de tal depoimento poder pôr em causa a saúde física e psíquica da vítima.

É bem certo que a compatibilização entre o regime processual geral do art.º 271º do C.P.P. e o regime previsto na Lei de Protecção de Testemunhas, Estatuto da Vítima e Lei n° 112/2009 de 16 de setembro poderá nem sempre ser fácil.

Na lição do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3 de fevereiro de 2015, proferido no processo 76/13.0GGSTC-AE1, "não obstante a inevitável compatibilidade a realizar entre a previsão desse art. 271º, tendencialmente, restritiva quanto aos seus requisitos (doença grave, deslocação. para o estrangeiro e crimes do catálogo indicado), e os termos conjugados dos artºs , 2.º alínea a), e 28.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99 (bastando-se com especial vulnerabilidade da testemunha, definida, esta, na ampla acepção referida), afigura-se que, daí, se desprende o propósito legislativo de conferir à testemunha, nessa condição de especial vulnerabilidade, uma protecção que se distancia do elenco subjacente àquele mesmo artº 271, o, se bem que não o contrariando.

Ainda, acompanhando Sandra Oliveira e Silva, ob. Cit., pág. 111, nota de rodapé 201, que o recorrente salienta, e bem, este regime de protecção das testemunhas especialmente vulneráveis introduzido pela Lei n.º 93/99, de 13 de Julho, «não é mais do que uma imperfeita especialização do regime das declarações para memória futura prevista no artº 271.º do Códígo de Processo Penal.

Neste sentido, os regimes não são contraditórios e, ao invés, complementam-se entre si. Se assim é, tudo dependerá, então de aquilatar da conveniência, em concreto, dessa medida, como protectiva do menor, em função das finalidades do inquérito, da realização da justiça e as garantias de defesa dos arguidos (seus progenitores), tentando, tanto quento necessário, estabelecer ponderação que se compagine . com a reconhecida perspectiva de "concordância prática" dos" interesses em jogo.

A intervenção da autoridade judiciária, motivando que a testemunha deve depor constitui em si mesma uma intromissão nos direitos do menor, o que impõe protecção adequada" tendo como linha vermelha a susceptibilidade de tal depoimento poder pôr em causa a saúde física e psíquica da vítima (art.º 4°, nº 6 do Estatuto da Vítima).

Revertendo ao caso concreto, o menor AA:
- É testemunha dos factos em investigação (art.º 2°, aI. a) da, Lei de Protecção de Testemunhas)
- É testemunha especialmente vulnerável, não só em função da sua tenra idade, mas também por ter de depor contra pessoa do seu círculo familiar (art.º 26°, n.º 2 da Lei de Protecção de Testemunhas);
Atento que foi alvo da prática de crime que integra o conceito de "criminalidade violenta", e bem assim a sua tenra idade constitui-se como vítima particularmente vulnerável, não se olvidando que, na sequência dos factos noticiados a mesma foi sujeita a acolhimento institucional (artº 67° , n° 1 al. b) e n.º 3, e artº 1°, al. j), ambos do Código de Processo Penal).

Desta forma, tudo aconselha que sejam tomadas as suas declarações para memória futura, tendo em conta o imperativo/ de não a sujeitar a ter de prestar declarações em audiência pública e desta forma expô-la a uma situação potencialmente vulnerante para a sua saúde psíquica.

A perspectiva da decisão recorrida foi, contudo outra, pondo a tónica, antes do mais, na circunstância de que a revitimização da vítima seria igual fosse ouvida em sede de memória futura, fosse ouvida em julgamento, uma vez que, por imposição legal, conforme o art.º 33°, n.º 7 da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, deverá ser inquirida em julgamento.

Com o devido respeito, tal leitura do citado artº 33°, nº 7 da Lei 112/2009 de 16 de setembro é incorreta.

Assim, consagra esta norma que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

É assim de relativa clareza que, este comando legal não impõe a obrigatoriedade de inquirição em julgamento da vítima que tenha sido inquirida em sede de memória futura, nem tal faria sentido face à economia do citado art. ° 33° da Lei 112/2009 de 16 de setembro; na verdade, para quê admitir a a possibilidade de produção antecipada de prova com a tomada de declarações para memória futura, se depois sempre seria obrigatório produzir essa mesma prova em audiência de julgamento?

Tal leitura do art.º 33° n.º 7 da Lei 11'2/2009 de 16 de setembro teria como consequência a inutilização da tomada de declarações para memória futura em casos de violência doméstica, reduzindo o n.º 1 do art.º 33° de tal Lei a mero floreado, sem qualquer relevância prática para a investigação e, a final, para o julgamento.

O que a referida Lei faz é, na ponderação de interesses entre a necessidade de descoberta da verdade material, por um lado, e a necessidade de proteção da vítima, por outro, admitir a possibilidade de audição da vítima em sede de julgamento, mas apenas se tal não puser em causa a sua saúde física e psíquica, apontando assim para as mesmas coordenadas impostas pelo art. ° 24°, n. ° 6 do Estatuto da Vítima.

Contrariamente ao sustentado pelo despacho recorrido, não é obrigatória a audição em julgamento da vítima a quem foram tornadas declarações para memória futura, admitindo-se tal inquirição em julgamento, mas sempre sujeita à ponderação da absoluta necessidade para a descoberta da verdade e da preservação da saúde da vítima.

Por outro lado, a decisão recorrida considera que a inquirição da vítima em julgamento é necessária às prováveis exigências do contraditório relacionadas com a inexistência de arguido constituído nos autos'

Parece assim a decisão em causa aventa que é na audiência de julgamento que pode ser assegurado de forma cabal o contraditório do arguido.

Contudo, tal asserção esquece que na diligência de tomada de declarações para memória futura terá sempre de estar presente o defensor do arguido que, por intermédio do magistrado judicial que preside, pode formular perguntas à testemunha (art.º 271°, n.ºs 3 e 5 do Código de Processo Penal, art.º 24°, n.º 5 do Estatuto da Vítima, e art.° 33°, n.º 2 e 4 da Lei 122/2009, de 16 de setembro).

Desta forma, não se vislumbra como poderá ser beliscado o exercício do direito ao contraditório, sendo que, numa perspectiva de concordância prática dos interesses em causa - prevenir a vitimização do menor com a sua sujeição a prestar depoimento em julgamento, face aos direitos de defesa do arguido, a realização da diligência pretendida em nada restringe o cabal exercício dos direitos de defesa do arguido, e concorre de forma muito relevante para proteger a testemunha/vítima menor.

Mesmo nos casos de inexistência de arguido constituído, como é o caso em apreço, é admissível a tomada de declarações para memória futura, mormente em casos de vulnerabilidade das vítimas sendo sempre necessária a nomeação de defensor ao suspeito e a sua notificação para comparecer na diligência de memória futura, assim propiciando o cabal exercício do contraditório (neste sentido, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de novembro de 2016, proferido no processo 382/15.0T9MTS, e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Maio de 2017, proferido no processo 12/15.0JDLSB, ambos disponíveis em WWW.dgsi.pt).

E não se diga que a investigação deveria ter os seus termos já definidos pois isso obrigaria a uma inquirição do menor em sede de inquérito e o que se pretende com as memórias futuras é evitar sujeitar o menor a sucessivas prestações de declarações e protegê-lo do perigo de vitimização, sem olvidar que o mesmo será, certamente, também ouvido em sede de Tribunal de Família.

Acresce, ainda, que toda a matéria na presente investigação, que se encontra na fase inicial e está condensada no auto de notícia que deu inicio aos autos, resume-se às agressões e ofensas que a vítima imputa ao denunciado que são descritas no auto de notícia.

Assim, os fundamentos invocados pela decisão recorrida para não admitir a realização da tomada de declarações para memória futura da vítima AA não têm qualquer cabimento, devendo antes em observância do imperativo de prevenção da vitimização de testemunhas especialmente vulneráveis, e de revitimização de vítimas especialmente vulneráveis expressos pela lei 93/99 de 14 de julho, estatuto da vítima e Lei 112/2009 de 16 de Setembro, ser acolhida tal pretensão.
(destaques nossos)

Convoca o recorrente na fundamentação do recurso vinda de transcrever legislação que, nos precisos termos nela explanados, - que inteiramente subscrevemos - justificam, em vista do circunstancialismo fáctico em causa (cuja apreciação igualmente sufragamos), o deferimento da pretensão que formulou de que fossem tomadas declarações para memória futura ao menor AA, nela fazendo uma exaustiva e correcta explanação sobre o direito e a sua aplicação àquele circunstancialismo (com os necessários reflexos na apreciação da decisão recorrida) que merece a nossa inteira concordância e em vista da qual, tendo presente que está um causa a audição de um menor quanto a actos de violência assumidos na sua pessoa pelo seu próprio pai, o que potencia a sua vulnerabilidade e a perturbação que lhe causará prestar declarações), resulta patente que aquela pretensão deverá ser deferida..

É pois com os fundamentos invocados pelo Mº Pº recorrente1 e secundados nesta instância pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta, a que nada há a retirar nem a acrescentar, que se dará provimento ao recurso, determinando a revogação da douta decisão recorrida e a sua substituição por despacho que, acolhendo a pretensão do Ministério Público, agende data para a tomada de declarações para memória futura do menor AA.


DECISÃO

Por tudo o exposto acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a douta decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra agende data para a tomada de declarações para memória futura do menor AA.



Lisboa, 23 de Setembro de 2021



(Maria da Luz Batista)
(Almeida Cabral)



(1)de sobremaneira nos segmentos que destacámos