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APRECIAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTOS CONTRADITÓRIOS
PENA DE MULTA
MEDIDA DA PENA
Sumário
- A acusação delimita o objecto do processo, mas não restringe o objecto da discussão. É o que se extrai do consagrado no artigo 339º, nº 4, do CPP, onde se pode ler que, “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º”. - Apenas existe contradição insanável entre os factos se se verifica uma oposição entre factos provados entre si incompatíveis; entre a matéria de facto provada e a não provada; quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo explanado, que seria outra a decisão de facto correcta; ou, quando a fundamentação de facto e de direito conduzem a uma determinada decisão final e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso. - Se o tribunal a quo esclarece cabalmente que “no que respeita à matéria de facto não provada tal circunstância resulta de a prova produzida não ter permitido a este Tribunal concluir no sentido de qual das versões pelo arguido apresentadas correspondia à verdade” ou seja, pese embora não se tenha provado que mentiu no decurso da inquirição na audiência de julgamento de um dos processos em que apresentou versões opostas, daqui não resulta provado o seu contrário, ou seja que tenha dito a verdade. - A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação. - O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica. - A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito e a incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos. - Este entendimento de que pratica o crime de falsidade de testemunho o agente que presta declarações contraditórias em fases diferentes do processo, mesmo que não se prove em qual dessas ocasiões faltou à verdade, pois numa delas indubitavelmente faltou, seguido igualmente nos acórdãos enunciados na decisão é também o por nós perfilhado. - A circunstância de se ter dado como não provado que o arguido mentiu em audiência e, por conseguinte não se ter apurado se o crime foi cometido no dia 30 de Novembro de 2016 (em que prestou declarações na fase de inquérito) ou no dia 16 de Novembro de 2017 (em que prestou depoimento em audiência) não conduz a que não se possa ter por comprovado que o crime foi cometido, pois apenas não se apurou em que data exacta se consumou. - E, a posição adoptada, ao contrário do que afirma o recorrente, não oblitera o princípio constitucional da presunção de inocência, tutelado no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e de que é corolário o princípio in dubio pro reo, porquanto o cometimento de um falso depoimento não suscita dúvida alguma, limitando-se esta à questão de saber em qual dos dois depoimentos se verifica a falsidade. - A aplicação de uma pena de multa deve sempre significar a verdadeira função de uma pena e, nessa medida, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. - Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder-se concluir se a mesma é, efectivamente e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 436/18.0T9LRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local Criminal de Loures – Juiz 4, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido FF condenado, por sentença de 29/09/2020, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 6,00 euros, no montante global de 600,00 euros.
2. O arguido não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.
2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição): I. Há erro de apreciação da matéria de facto e da prova pelo Tribunal a quo ao considerar como provados os factos do ponto 10 da matéria de facto dada como provada e na motivação da decisão de facto quanto a esses factos dados como provados; II. A Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo enferma de nulidade e contraria, entre outras, as normas contidas nos artigos 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, 13.º, 14.º e 360.º, n.° 1, do Código Penal, o regime consagrado no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, e ainda os princípios da prova e o princípio in dúbio pro reo; III. Há uma clara contradição entre a matéria dada como provada no referido ponto 10, e a matéria dada como não provada no respectivo ponto 1; IV. A Douta Sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, pois condena o Arguido por factos não constantes da Acusação e fora dos moldes acusatórios assumidos pelo Ministério Público; V. Não houve qualquer outro juramento da testemunha senão o que foi prestado na audiência de julgamento, sendo que, segundo a Douta Sentença, não se provou que o Arguido aí tenha mentido; VI. Inexiste qualquer prova da factualidade inserta pela Tribunal a quo no ponto 10 da matéria dada como provada; VII. Resultando da prova carreada para os autos e produzida em sede de julgamento que o depoimento prestado perante o órgão de polícia criminal não foi esclarecedor e que não resulta provado que o Arguido, no outro depoimento, prestado em sede de julgamento, tenha mentido, impunha-se, quanto a esses factos do ponto 10, a absolvição do Arguido, na medida em que nenhuma prova foi feita dos mesmos; VIII. Não resulta provado o elemento dolo do crime; IX. Deveria o Tribunal a quo atender às regras atinentes ao princípio in dubio pro reo, absolvendo o Arguido; X. A medida da pena é excessiva; XI. O Arguido deveria beneficiar do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, procedimento esse omitido pelo Tribunal a quo; XII. A admoestação prevista no artigo 7.º do referido diploma é, in casu, suficiente para asseguraras finalidades preventivas da pena. Termos em que se requer a VV. Exas. seja o presente Recurso recebido e julgado totalmente procedente, por provado, e, em consequência, seja proferido Acórdão que absolva o Arguido do crime em que foi condenado pelo Tribunal a quo, com todas as consequências legais, pois só assim se fará a tão costumada JUSTIÇA!
3. A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, pugnando por lhe ser negado provimento.
4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida quanto às questões das nulidades da sentença, dos erros na apreciação da prova e do julgamento da matéria de facto, bem como da contradição insanável da fundamentação. Pugna pela procedência do recurso no que concerne à questão da medida da pena.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta pelo arguido.
6. Dispensados os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP.
Vício de contradição insanável da fundamentação.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação do princípio in dubio pro reo.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
Nulidade da sentença por omissão de pronúncia/não aplicação do regime estabelecido no Decreto-Lei nº 401/82, de 23/09.
Dosimetria da pena aplicada.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição): 1. O processo de inquérito a que se atribuiu o NUIPC n.º 20/16.3GDTVD visava a investigação de factos praticados por VB__, TM__e FM__ de factos, em abstracto, susceptíveis de configurar a prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º do Decreto-lei n.º15/93 de 22.01 com referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma legal. 2. No dia 30 de Novembro de 2016, pelas 11h32m, no âmbito do supra referido inquérito e Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de Torres Vedras, o arguido prestou depoimento, como testemunha, perante RC__, Cabo da GNR acerca da matéria em investigação naquele inquérito. 3. Nesse acto, após ser advertido da obrigação de responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas, o arguido declarou ser consumidor de Haxixe e Cannabis desde os seus 15 anos de idade. Conhece o FM__ há mais tempo, pois jogavam ambos à bola e encontravam-se em jogos em Santa Cruz. 4. Quanto ao Fred e ao Vitinho conheceu-os em Santa Cruz durante o verão enquanto cliente dos (bares) daquela localidade. Inicialmente costumava ver estes três sujeitos sempre juntos, até que a certa altura os mesmos se separaram. Chegou a consumir estupefacientes com o Fred e com FM__. Com o VB__ nunca teve relacionamento. Nunca comprou qualquer tipo de estupefacientes aos visados. Era do seu conhecimento pessoal que os mesmos tinham para vender. Nunca teve qualquer tipo de relação com os mesmos quanto ao tráfico de estupefacientes que estes desenvolviam. É do seu conhecimento que o VB__ se faz acompanhar de rapazes muito jovens de Torres Vedras e Santa Cruz, tendo-o visto pela última vez ontem na companhia de três menores em Torres Vedras. 5. Com base na globalidade da prova recolhida nos referidos autos de inquérito, os arguidos foram acusados da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 do Decreto-lei n.º15/93 de 22/01 por referência à tabela I-C. 6. Realizada a audiência de julgamento no âmbito do referido processo, no dia 16 de Novembro de 2017, pelas 14 horas, na Comarca de Lisboa Norte, Instância Central, Secção Criminal, J2 foi o arguido novamente inquirido como testemunha perante o Tribunal Colectivo tendo prestado juramento para o efeito. 7. Foi advertido de era obrigado a falar com verdade e só a verdade às perguntas que lhe iam fazer e que se mentisse no tribunal praticava um crime. 8. Quando inquirido respondeu ter 20 anos, ser desempregado e conhecer o FM__ por ter jogado futebol e serem amigos, o VB__ de vista, não convivendo com este, não conhecendo o TM__. Consome haxixe há dois anos. Nunca consumiu junto com o FM__ e nunca comprou haxixe. Conhece o VB__ de vista, nunca consumiu com o mesmo. Conhece o Fred por andar sempre com o VB__. Viu os mesmos em Santa Cruz, à noite. Não são amigos. Às vezes consumia haxixe à noite em Santa Cruz. Foi apanhado à entrada do Festival Ocean Spirit com um charro. Comprou a uma pessoa na rua em Santa Cruz, não sabendo identificar. Foi acompanhado de rapazes de Paul. Não consumiram em conjunto. Possui a alcunha de Chico. Ser filho de um Agente da Polícia de Segurança Pública. 9. O arguido sabia que tinha prestado juramento enquanto testemunha e que deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sob pena de incorrer em procedimento criminal. 10. Agiu o arguido de forma livre e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era contrária à lei e criminalmente punida. Mais se provou que: 11. O arguido vive com os pais, trabalha na área de atendimento ao público e aufere €635,00 mensais. 12. Ao nível de habilitações literárias concluiu uma formação profissional que lhe conferiu a equivalência ao 12º ano da escolaridade. 13. Tem uma filha de 4 anos e 6 meses de idade. 14. Do certificado do registo criminal do arguido não consta qualquer condenação.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição): 1. O arguido, quando inquirido pelo Tribunal em sede de audiência no processo supra referido, mentiu, não se coibindo de o fazer, apesar de saber que tal comportamento é proibido por lei.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição): O Tribunal formou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. O arguido ao abrigo de um direito que lhe assiste não prestou declarações. A testemunha RC__, militar da GNR referiu os procedimentos que leva a cabo na inquirição de testemunhas no âmbito de inquéritos crime. Do que se recordava o depoimento do ora arguido não teria sido muito esclarecedor. Confrontando as declarações prestadas pelo ora arguido em sede de inquérito que se encontram a fls. 4/5 dos autos, com as declarações por este prestadas na qualidade de testemunha na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 16 de Novembro de 2017, e que foram reproduzidas na audiência de julgamento, não se pode concluir no sentido de afirmar que o arguido prestou um depoimento contrário àquele que havia prestado em sede de inquérito. De facto, e no que respeita ao consumo em comum com o arguido FM__ disse na fase de inquérito que consumiu estupefaciente com aquele e em se de audiência de julgamento disse nunca o ter feito (ortografia como no original). No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo, os factos materiais que resultaram provados, conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência. No que respeita à matéria de facto não provada tal circunstância resulta de a prova produzida não ter permitido a este Tribunal concluir no sentido de qual das versões pelo arguido apresentadas correspondia à verdade. Quanto à inexistência de antecedentes criminais do arguido, teve o tribunal em conta o teor do seu certificado do registo criminal junto aos autos.
Apreciemos.
Nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP
Sustenta o recorrente que a sentença recorrida enferma da nulidade a que alude o artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP, por condenar o arguido por factos não constantes da acusação e “fora dos moldes acusatórios assumidos pelo Ministério Público”.
Nos termos do normativo invocado é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º do mesmo Código.
Analisada a acusação pública e confrontando-a com os factos dados como provados e não provados na sentença, conclui-se que os factos tidos por assentes coincidem com aqueles, com excepção do facto dado como não provado seguinte: o arguido, quando inquirido pelo tribunal em sede de audiência no processo supra referido, mentiu, não se coibindo de o fazer, apesar de saber que tal comportamento é proibido por lei.
E, por força deste, foi ele condenado pela prática do crime p. e p. pelo artigo 360º, nº 1, do Código Penal e não pelo crime p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3, do mesmo, como imputado fora.
Assim, o que resulta é que o tribunal a quo não condenou por factos diversos dos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, tendo-se limitado a alterar a qualificação jurídica, excluindo, por ausência de prova, a factualidade relativa ao elemento qualificador ou agravativo e punindo pelo tipo simples.
O bem jurídico protegido é o mesmo (não se estando, pois, perante um crime diverso), tratando-se apenas de uma reforma para melhoria da qualificação e condenação em conformidade, sendo que o arguido teve conhecimento de todos os elementos típicos do crime e a possibilidade de os contraditar.
Face ao que, não ocorreu qualquer alteração para efeitos da comunicação prevista no artigo 358º, nºs 1 e 3, do CPP – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 27/04/2011, Proc. nº 712/00.9JFLSB.L1.S1; Ac. R. Coimbra 17/06/2009, Proc. nº 122/07.7GCACB.C1; Ac. R. do Porto de 15/06/2011, Proc. nº 101/10.7PRPRT.P1; Ac. R. do Porto de 10/10/2012, Proc. nº 104/09.4PCPRT.P1; Ac. R. de Coimbra de 30/10/2013, Proc. nº 440/11.0GBLSA.C1 e Ac. R. do Porto de 14/03/2018, Proc. nº 563/16.9GAALB.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
No que tange à alegada condenação “fora dos moldes acusatórios assumidos pelo Ministério Público”, cumpre se diga que vero é que a acusação delimita o objecto do processo, mas não restringe o objecto da discussão.
É o que se extrai do consagrado no artigo 339º, nº 4, do CPP, onde se pode ler que, “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º”.
Como se elucida no Ac. do STJ de 17/09/2009, Proc. nº 169/07.3GCBNV.S1, que pode ser lido no referenciado sítio, “o objecto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal”.
E, in casu, o objecto do processo, assim entendido, mostra-se intocado.
Não se verifica, por conseguinte, a apontada nulidade.
Vício de contradição insanável da fundamentação
Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.
Sustenta o recorrente que a sentença recorrida padece do vício de contradição entre a factualidade vertida no ponto 10 dos factos provados (chamando também à colação, no corpo da motivação de recurso, a que consta do ponto 9) e a dada como não provada no respectivo ponto 1.
Como vimos, o apontado vício, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP, só releva se resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. É um vício da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.
Verifica-se o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
Ou seja, resulta da oposição entre factos provados entre si incompatíveis; entre a matéria de facto provada e a não provada; quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo explanado, que seria outra a decisão de facto correcta; ou, quando a fundamentação de facto e de direito conduzem a uma determinada decisão final e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso.
Pois bem.
Deu o tribunal de 1ª instância como assente no ponto 9 dos factos provados: O arguido sabia que tinha prestado juramento enquanto testemunha e que deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sob pena de incorrer em procedimento criminal.
E, consta do ponto 10: Agiu o arguido de forma livre e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era contrária à lei e criminalmente punida.
Como não provado foi dado: O arguido, quando inquirido pelo Tribunal em sede de audiência no processo supra referido, mentiu, não se coibindo de o fazer, apesar de saber que tal comportamento é proibido por lei.
Numa leitura mais apressada poderíamos ser conduzidos à conclusão de se verificar a apontada contradição.
Mas, assim não é.
O tribunal a quo esclarece cabalmente que no que respeita à matéria de facto não provada tal circunstância resulta de a prova produzida não ter permitido a este Tribunal concluir no sentido de qual das versões pelo arguido apresentadas correspondia à verdade.
Ou seja, pese embora não se tenha provado que mentiu no decurso da inquirição na audiência de julgamento do Proc. nº 20/16.3GDTVD, daqui não resulta provado o seu contrário. Ou seja, que ali tenha dito a verdade.
A propósito diz o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer neste Tribunal da Relação produzido: Conforme exposto, o tribunal deu como provado que o arguido, em diferentes fases do processo 20/16.3GDTVD, produziu dois depoimentos contraditórios. Na fase de inquérito, perante o órgão de polícia criminal, disse que consumiu estupefacientes com o [ali] arguido FM__. Na fase de julgamento, desmentiu essa afirmação. Na incerteza quanto ao momento em que o recorrente faltou à verdade, o tribunal, em obediência ao princípio in dubio pro reo, não podia deixar de dar como não provado que o recorrente mentiu quando testemunhou na audiência de julgamento apesar de saber que tal comportamento é proibido por lei. É nesse contexto que hão-de ser interpretados os factos provados 9 e 10. O facto provado 9 cinde-se em duas partes. A que contém a referência à prestação de juramento [«O arguido sabia que tinha prestado juramento ...»] encontra-se associada aos factos provados 6 a 8. A outra parte [«O arguido sabia que (...) deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas sob pena de incorrer em procedimento criminal»], juntamente com a factualida-de narrada no facto provado 10, engloba todos os depoimentos que o recorrente prestou no referido processo 20/16.3GDTVD. Assim vistas as coisas, não existe qualquer contradição, muito menos insanável, entre as referidas proposições provadas e não provadas.
Este é, efectivamente, o entendimento que deve ser prosseguido (e prosseguimo-lo) quanto à materialidade em causa, não se verificando o assinalado vício e improcedendo, em consequência, o recurso neste segmento.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação do princípio in dubio pro reo
Para além da invocação do vício de contradição da fundamentação, o recorrente censura a factualidade dada como provada vertida no ponto 10, mas não fazendo apelo à prova gravada (mesmo a menção ao depoimento da testemunha RC__ em audiência de julgamento se reporta ao que, como diz no corpo da motivação de recurso, “resulta da própria sentença”), antes colocando tão só em causa a formação da convicção do julgador.
Ou seja, o que realmente se extrai, desde logo, das conclusões do recurso (bem como do corpo da motivação) é a divergência entre a convicção pessoal do arguido sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Analisemos.
Conforme resulta da sentença, o tribunal a quo explicitou o processo lógico subjacente à formação da sua convicção para dar como assente a factualidade que provada se encontra (e bem assim a não provada) agora objecto de crítica e a demais com ela directamente relacionada, nos seguintes termos: O arguido ao abrigo de um direito que lhe assiste não prestou declarações. A testemunha RC__, militar da GNR referiu os procedimentos que leva a cabo na inquirição de testemunhas no âmbito de inquéritos crime. Do que se recordava o depoimento do ora arguido não teria sido muito esclarecedor. Confrontando as declarações prestadas pelo ora arguido em sede de inquérito que se encontram a fls. 4/5 dos autos, com as declarações por este prestadas na qualidade de testemunha na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 16 de Novembro de 2017, e que foram reproduzidas na audiência de julgamento, não se pode concluir no sentido de afirmar que o arguido prestou um depoimento contrário àquele que havia prestado em sede de inquérito. De facto, e no que respeita ao consumo em comum com o arguido FM__ disse na fase de inquérito que consumiu estupefaciente com aquele e em sede de audiência de julgamento disse nunca o ter feito (feita por nós a correcção dos erros ortográficos que enxameiam o texto). No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo, os factos materiais que resultaram provados, conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência.
Ora, antes de mais importa se diga que ficamos na dúvida se no quarto parágrafo transcrito não faltará a palavra “deixar” ou outra equivalente, pois o texto, como se encontra não parece ter sentido lógico.
Na verdade, entende-se que de facto, no que respeita ao consumo em comum com o arguido FM__ disse na fase de inquérito que consumiu estupefaciente com aquele e em sede de audiência de julgamento disse nunca o ter feito, quando a frase imediatamente anterioré que não se pode concluir no sentido de afirmar que o arguido prestou um depoimento contrário àquele que havia prestado em sede de inquérito.
Contudo, o que realmente se mostra essencial para a questão sub judice e se apresenta claramente elucidada é a contradição (antagonismo) entre o que o arguido/recorrente declarou na fase de inquérito e na audiência de julgamento do Proc. nº 20/16.3GDTVD relativamente ao consumo em comum de produto estupefaciente com FM__.
Quanto aos factos integradores dos elementos subjectivos do ilícito imputado, porque inerentes à dimensão subjectiva, do foro psicológico, é sabido que são, quase sempre, indemonstráveis de forma naturalística, extraindo-se, normalmente, das circunstâncias objectivas que rodearam a prática do facto e da ausência ou afastamento das causas que o possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as inferências admissíveis, o que manifestamente também ocorreu no caso sub judice, não merecendo por isso qualquer crítica.
Destarte, a factualidade em causa tem suporte na prova produzida, como decorre da aludida elucidação, não tendo o julgador de 1ª instância violado regras de experiência comum na sua avaliação, nem indicados foram quaisquer elementos probatórios que necessariamente conduzam (imponham, não apenas permitam, como legalmente se exige) a uma diversa decisão.
Chama ainda o recorrente à colação o princípio in dubio pro reo, considerando que se verifica a sua violação.
Mas, sem razão.
A violação do princípio in dubio pro reo, princípio relativo à prova e corolário do da presunção de inocência constitucionalmente tutelado – que se traduz na imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”, como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 203 - pressupõe “um estado de dúvida insanável no espírito do julgador”, só podendo concluir-se pela sua verificação quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal encontrando-se nesse estado, optou por decidir contra o arguido (fixando como provados factos dubitativos ao mesmo desfavoráveis ou assentando como não provados outros que lhe são favoráveis) ou, quando embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter – cfr. Acs. do STJ de 27/05/2009, Proc. nº 05P0145 e 30/10/2013, Proc. nº 40/11.4JAAVR.C2.S1; Ac. R. de Évora de 30/01/2007, Proc. nº 2457/06-1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Analisando a decisão recorrida, dela não resulta que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido/recorrente e nem a essa conclusão (dubitativa) se chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum, ou seja, não se infere que o tribunal recorrido,que não teve dúvidas, as devesse ter.
Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta violado o invocado princípio.
Termos em que, cumpre concluir que da análise efectuada resulta que a prova produzida suporta a decisão do tribunal recorrido no que tange à factualidade sob impugnação sem margem para dúvidas razoáveis, não havendo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão do recorrente de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador, pois a decisão sobre esta está devidamente fundamentada, tendo sido proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção – artigo 127º, do CPP.
Termos em que, carecendo de razão o recorrente no que tange à alteração da matéria de facto, tem de se considerar esta definitivamente fixada nos termos mencionados.
Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido
Discorda o arguido da sua condenação pela prática do crime p. e p. pelo artigo 360º, nº 1, do Código Penal.
A propósito, discorre-se na decisão revidenda: Da matéria de facto provada, resulta que o arguido em duas fases distintas do processo prestou depoimentos contraditórios, não se tendo apurado em qual deles prestou depoimento falso. O que é evidente é que prestou dois depoimentos contraditórios entre si. E aqui, uma de duas: ou ambos os depoimentos são falsos ou, pelo menos, um deles é falso. O que é manifestamente impossível, mesmo com recurso à melhor retórica, é afirmar que um depoimento é verdadeiro e o seu contrário também. O conceito de “falsidade” de testemunho não é unânime ao nível da jurisprudência dos tribunais da relação. Para os seguidores da “teoria objectiva” a falsidade afere-se pela conformidade com o acontecimento real a que se reporta. A consumação existe sempre que a declaração diverge da realidade objectiva. A verdade objectiva é a meta do processo, aquilo que se busca. Quando a narração do declarante se afasta do acontecido, isto é daquilo que o tribunal, em face da produção da prova tenha dado por acontecido, ela é falsa. Para a tese contrária o tipo objectivo de falsidade de testemunho está preenchido sempre que a testemunha, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos antagónicos, ainda que não se apure qual deles é falso (Ac. do TRL de 02-12-2009 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Telo Lucas, consultado in www.dgsi.pt). Ora, elemento típico do crime de falsidade de testemunho é que alguém, numa das qualidades enunciadas no artº 360º, nº 1 do Código Penal, preste depoimento, apresente relatório, dê informações ou faça traduções falsos. Dúvidas não podem, pois, restar sobre a verificação desse elemento típico: no âmbito do processo de onde foi extraída a certidão que está na origem destes autos, a arguida prestou falso depoimento: ou em 22-05-2015, quando foi ouvida em sede de inquérito, ou em 09-11-2016, quando foi ouvida em sede de julgamento (ou, eventualmente, em ambas as ocasiões...). Saber em que momento processual foi produzido o falso testemunho é algo que, para o preenchimento do tipo de ilícito, não releva.
E, louva-se ainda a sentença nos Acs. R. do Porto de 22/11/2006 (relatora a Desemb. Isabel Pais Martins), 21/02/2007 (relator o Desemb. Cravo Roxo) e de 30/01/2008 (relator o Desemb. José Carreto); Acs. R. de Coimbra de 18/05/2011 (relator o Desemb. Jorge Jacob), 28/09/2011 (relator o Desemb. Paulo Guerra) e de 16/01/2013 (relatora a Desemb. Alice Santos) e bem assim no Ac. R. de Évora de 07/02/2012 (relator o Desemb. Sénio Alves).
Vejamos.
Estabelece-se no artigo 360º, do Código Penal:
“1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
(…)
3 – “Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.”
Trata-se de um crime que só é punível a título doloso, pressupondo-se a consciência do dever de testemunhar e o conhecimento da competência da entidade que preside à inquirição.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a realização ou administração da justiça enquanto função do Estado, como salienta Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 3, Coimbra Editora, pág. 460.
O tribunal recorrido dá-nos a conhecer a existência das duas posições jurisprudenciais adoptadas nos Tribunais da Relação quanto ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime em causa.
A tese denominada “teoria objectiva”, sustentada, entre outros, pelos Ac. R. do Porto de 05/07/2006, Proc. nº 0546988 e de 14/09/2011, Proc. nº 1289/09.5TAPRD.P1; Acs. R. de Évora de 15/04/2008, Proc. nº 2613/07-1, 03/06/2008, Proc. nº 1564/07-1 e 08/04/2010, Proc. nº 333/07.5TALGS.E1, radica em que a falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado e a realidade, entre a palavra e a realidade ou verdade histórica. Somente a discrepância entre o conteúdo da declaração e o acontecimento fáctico objectivo ao qual a declaração se reporta constitui falsidade.
Já quanto à outra orientação, aduz-se no Ac. R. do Porto de 22/11/2006, Proc. nº 0644016, consultável no mesmo sítio:
“A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação.
O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica.
A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito.
A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável.”
Este entendimento de que pratica o crime de falsidade de testemunho o agente que presta declarações contraditórias em fases diferentes do processo, mesmo que não se prove em qual dessas ocasiões faltou à verdade, pois numa delas indubitavelmente faltou, seguido igualmente nos acórdãos enunciados na decisão recorrida (e bem assim nos Acs. R. de Coimbra de 30/10/2013, Proc. nº 802/11.2TAPBL.C1 e 10/07/2018, Proc. nº 244/17.6T9CTB.C1; Decisão Sumária da R. do Porto de 13/03/2013, Proc. nº 169/10.6TAALJ.P1 e Acs. da mesma Relação de 09/09/2015, Proc. nº 650/11.0TAVCD.P1 e de 31/05/2017, Proc. nº 462/13.6TALSD.P1; Ac. R. de Évora de 13/05/2014, Proc. nº 77/12.6TAENT.E1, que no referido sítio podem ser lidos) é também o por nós perfilhado.
Daí que, a circunstância de se ter dado como não provado que o arguido mentiu em audiência (do Proc. nº 20/16.GDTVD) e, por conseguinte não se ter apurado se o crime foi cometido no dia 30 de Novembro de 2016 (em que prestou declarações na fase de inquérito) ou no dia 16 de Novembro de 2017 (em que prestou depoimento em audiência) não conduz a que não se possa ter por comprovado que o crime foi cometido. Foi, indubitavelmente, apenas não se apurou em que data exacta se consumou.
E, a posição adoptada, ao contrário do que afirma o recorrente, não oblitera o princípio constitucional da presunção de inocência, tutelado no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e de que é corolário o princípio in dubio pro reo, porquanto o cometimento de um falso depoimento não suscita dúvida alguma, limitando-se esta à questão de saber em qual dos dois depoimentos se verifica a falsidade.
Mostra-se provado que o arguido prestou depoimentos de teor antagónico, que sabia que os prestava quanto à mesma realidade da qual tinha conhecimento pessoal e que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe foram dirigidas em qualquer dos actos.
Ao prestar tais depoimentos contraditórios agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei
Mostram-se, destarte, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual o arguido vinha acusado, ainda que sem a agravação do seu nº 3, uma vez que provado não ficou que tenha mentido em audiência de discussão e julgamento após ter prestado o juramento legal.
Nulidade da sentença por omissão de pronúncia/não aplicação do regime estabelecido no Decreto-Lei nº 401/82, de 23/09
Considera o recorrente que a decisão revidenda padece de nulidade, por não ter beneficiado do regime penal aplicável a jovens delinquentes instituído pelo Decreto-Lei nº 401/82, de 23/09.
Presume-se que pretende ele significar a nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP, de acordo com a qual é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Ora, percorrendo a decisão sob censura, corresponde à realidade que não se debruçou sobre a aplicabilidade desse regime especial e vero é que à data da prática do crime tinha o arguido completado 16 anos de idade, mas não atingido ainda os 21 anos, pressuposto formal para esse efeito, de acordo com o estabelecido no artigo 1º, nºs 1 e 2, do mesmo.
Só que, conforme se extrai do consagrado nos artigos 4º, 5º e 6º, do referido regime, apenas quando a pena a aplicar é de prisão se impõe a consideração do mesmo. Não quando a pena em causa é a de multa – neste sentido se perfila a jurisprudência largamente maioritária dos nossos Tribunais Superiores., Vd. entre outros, Ac. R. de Lisboa de 12/12/2006, Proc. nº 9320/2006-5; Ac. R. de Guimarães de 11/06/2008, Proc. nº 961/07-1; Ac. R. do Porto de 09/06/2010, Proc. nº 166/07.9SFPRT.P1; Ac. R. de Évora de 05/02/2013, Proc. nº 85/10.1GDFTR.E2; Ac. R. do Porto de 11/10/2017, Proc. nº 1468/15.6PBMTS.P1; Ac. R. de Lisboa de 18/12/2018, Proc. nº 111/17.3GACSC.L1-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt; bem assim o Ac. do STJ de 27/02/2002, Proc. nº 119/02 - 3ª.
E, o julgador da 1ª instância optou pela aplicação da pena de multa (principal, em alternativa à pena de prisão também prevista no tipo legal), pelo que não cumpria ponderar o regime penal especial para jovens, não se verificando, pois, a invocada nulidade.
Pugna também o recorrente por lhe ser aplicada a medida de correcção de admoestação prevista no artigo 7º do regime especial.
Mas, como resulta da conjugação do consagrado nos artigos 6º e 7º, do mesmo, a admoestação é uma medida de correcção que pressupõe a aplicação de uma pena de prisão (em nosso entender a referência é à pena concreta até dois anos, conclusão resultante do plasmado no ponto 7. do preâmbulo do Decreto-Lei nº 401/82, de 23/09) o que, tal como se deixou dito, não ocorreu.
De onde, a inaplicabilidade, na situação em apreço, da almejada medida de admoestação.
Dosimetria da pena aplicada
Diz ainda o arguido que “a medida da pena é excessiva”.
Foi condenado na pena de 100 dias de multa.
O crime de falsidade de testemunho é, in casu, punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou pena de multa não inferior a 60 dias, não criticando o recorrente a opção pela pena de multa.
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, nº 1, do Código Penal – não podendo ultrapassar a medida da culpa – nº 2.
Nos termos do artigo 71º, do Código Penal, para a determinação da medida da pena cumpre atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.
A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.
Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.
Ou, dito de outra forma, opera através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa - Claus Roxin, Derecho Penal-Parte Especial, I, Madrid, Civitas, 1997, pág. 86.
Assim, do exposto resulta que a pena concreta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Destarte, daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Analisando a sentença recorrida, verifica-se que, para apurar a medida da pena, ponderou o tribunal a quo as razões de prevenção geral altas, dada a natureza do crime e o bem jurídico em causa; que agiu com dolo directo; a ilicitude normal e a ausência de antecedentes criminais.
As necessidades de prevenção geral são efectivamente elevadas, por se tratar de um crime cometido com frequência significativa, cumprindo evitar a sua banalização.
Quanto às exigências de prevenção especial, mostram-se medianas, considerando a idade, a ausência de antecedentes criminais e a integração familiar e laboral, por um lado, que abonam a seu favor e a não demonstração de interiorização do mal do crime, por outro, o que contra ele milita.
Pelo exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a culpa e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, do Código Penal, não se mostra que a pena de multa aplicada (100 dias para um limite máximo de 360 dias) extravase a medida da respectiva culpa e também não ultrapassa os limites dentro dos quais a justiça relativa havia de ser encontrada, mostrando-se adequada e proporcional, não merecendo censura.
Analisemos agora se a razão diária da multa fixada é desproporcionada, importando a sua alteração.
De acordo com o estabelecido no nº 2, do artigo 47º, do Código Penal, o montante diário da multa pode variar entre 5,00 euros e 500,00 euros, sendo fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Conforme salientado nos Acs. do STJ de 02/10/1997, in CJ/STJ, 1997, III, pág. 183 e da Relação de Coimbra de 17/04/2002, CJ, 2002, II, pág. 57, a aplicação de uma pena de multa deve sempre significar a verdadeira função de uma pena e, nessa medida, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. Só assim este poderá sentir o juízo de censura que a condenação significa, bem como só assim se dará satisfação às exigências de prevenção, realizando as finalidades da punição, sendo certo que, por outro lado, não pode deixar, quanto à pessoa singular, de lhe ser assegurado o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar.
Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder-se concluir se a mesma é, efectivamente e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto.
Ora, provado se mostra que o arguido exerce actividade laboral, auferindo 635,00 euros mensais e reside com os progenitores.
Já no Acórdão da Relação de Coimbra de 01/02/2007, Proc. nº 1/05.2FDCBR.C1, que pode ser lido em www.dgsi.pt, se ajuizava que nos dias que correm, só uma situação a roçar a indigência justifica a fixação de uma taxa diária da pena de multa inferior a cinco euros e certo é que a redacção dada ao nº 2, do artigo 47º, do Código Penal, pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor em 15 de Setembro do mesmo ano, fixou precisamente em cinco euros o montante mínimo diário da taxa da pena de multa.
Assim sendo, ponderando a condição económica apurada, fixou a sentença revidenda a razão diária da multa em 6,00 euros, que corresponde a montante bem encostado ao limite mínimo (de 5,00 euros) fixado na lei.
Não merece, pois, censura, o valor diário fixado.
Face ao exposto, cumpre negar provimento ao recurso nesta parte e, por conseguinte, na totalidade.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido FF e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.
Lisboa, 14 de Setembro de 2021
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)
Artur Vargues
Jorge Gonçalves