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ABONO DE FAMÍLIA
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
RENDIMENTO
RESPONSABILIDADE
Sumário
1 – O abono de família constitui uma prestação atribuída em função dos encargos familiares. 2 – O art. 11.º, do Decreto-Lei n.º 70/2010 de 16 de Junho exclui expressamente do rendimento a considerar para efeitos de intervenção do FGADM o valor das prestações atribuídas em razão de encargos familiares. 3 - Esse entendimento não padece de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por ofender o princípio da igualdade plasmado no art. 13º da CRP. (sumário do relator)
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
A – Nos presentes autos, suscitada a questão da continuação ou cessação da intervenção do fundo de garantia dos alimentos devidos a menores, foi proferido o seguinte despacho:
“Considerando que: - O progenitor requerido continua sem cumprir a prestação de alimentos devida à filha B…, não lhe sendo conhecidos rendimentos; - À constituição do agregado familiar corresponde uma capitação de 2,5; - A capitação dos rendimentos é de € 464,07/mês (€ 9019,28 :12) + 240 + 168,57) : 2,5), superior ao valor do indexante dos apoios sociais para 2020 e 2021, atualmente na ordem dos € 438,81 – fls. 64/69 v., art. 3.º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-lei n.º 164/99, de 13 de maio e Portaria n.º 27/2020, de 31 de janeiro, - Nos termos do art. 3.º, n.º 3, do decreto-lei n.º 164/99, de 13 de maio, os rendimentos do agregado são calculados de harmonia com o decreto-lei n.º 70/2010, de 16 de junho, com as respetivas alterações, sendo que o art. 3.º de tal decreto-lei inclui as prestações sociais como rendimentos relevantes para a verificação de recursos; o art. 11.º não exclui, no nosso entendimento, o montante de abono de família (segundo a requerente, € 168,57/mês), sob pena de preterição do princípio da igualdade (comparando com uma família que não beneficia de tal apoio regular), constitucionalmente consagrado no art. 13.º da Constituição; mas exclui o valor da prestação ou apoio social até agora garantido pelo Fundo – art. 3.º, n.º 4; Conclui-se que, não obstante a posição da Senhora Procuradora de fls. 78, a situação do agregado familiar da requerente não reúne os pressupostos de atribuição de apoio do Fundo, 1. Declaro cessada a intervenção do Fundo; 2. Determino o oportuno arquivamento dos autos.”
B – Em face do decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido nos autos, que declarou cessada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, por entender não estarem preenchidos os requisitos para a atribuição da prestação de alimentos a pagar pelo Fundo à criança. 2. Com o qual, salvo o devido respeito, não pode o Ministério Público concordar, por considerar que estão verificados todos os pressupostos legais para que o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, continue a assegurar o pagamento das prestações de alimentos devidas à criança, nos termos anteriormente decididos. 3. Com efeito, a pessoa obrigada a prestar alimentos, no caso, o progenitor, não paga as prestações alimentícias a que se encontra vinculado, não lhe sendo conhecidos quaisquer bens ou rendimentos, que permitam a sua cobrança através das formas previstas no artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível. 4. Dispõe o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 169/99, de 13-05, que o FGADM assegura o pagamento das referidas prestações de alimentos quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida e a criança não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre. 5. Pressupostos que devem igualmente estar reunidos para efeitos da manutenção da intervenção do FGADM – art. 3º nºs 4 e 6 da Lei 75/98 de 19 de Novembro e art. 9 nº 1 e 4 do DL 164/99 de 13 de Maio. 6. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16-06, para que remete o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13-05, veio estabelecer as regras para a determinação das condições de recursos a ter em conta na atribuição e manutenção dos apoios sociais, estatuindo no seu artigo 3.º quais são os rendimentos a considerar, nos quais se integram as prestações sociais. 7. Sucede que, nos termos do artigo 11.º do mesmo diploma legal, devem considerar-se excluídas das prestações sociais as prestações por encargos familiares, nas quais se inclui o abono de família. 8. Isto significa que, no cálculo dos rendimentos do agregado familiar para efeitos do disposto na Lei n.º 75/98, de 19-11, e artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13-05, não deve ter-se em conta o valor auferido a título de prestações familiares (abono de família), por força do disposto no citado artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16-06. 9. Ora, no caso em apreço, o agregado familiar da criança é composto pela mãe e três descendentes menores (2,5), tendo como rendimentos contabilizáveis para efeitos do Decreto-Lei 70/2010 de 16 de Junho (que exclui as prestações por encargos familiares, encargos no domínio da deficiência e encargos no domínio da dependência do subsistema de protecção familiar – art- 11º), o salário da progenitora, e as prestações de alimentos de dois dos filhos, no valor de 991,60€, o que perfaz o rendimento per capita de 396,00€. 10. Rendimento que é inferior ao valor do Indexante dos Apoios Sociais, actualmente fixado em 438,81€, pela Portaria 27/2020 de 31 de Janeiro. 11. Assim, não restam dúvidas de que estão reunidos os pressupostos para a manutenção da intervenção do Fundo a que alude o artigo 1.º e 3º nºs. 4 e 6 da Lei 75/98, de 19-11 e artigo 3.º, 9º nº1 e 4 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13-05, uma vez que a capitação dos rendimentos do agregado familiar é inferior ao valor do IAS para o ano de 2020 e 2021. 12. Pelo exposto, o Tribunal a quo, ao indeferir e declarar cessada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, violou claramente o disposto no artigo 1º e 3º da Lei 75/98 de de 19 de novembro, 3.º, n.ºs 1, alínea b) 2 e 3, e 9º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, e artigos 3.º, n.º 1, alínea f) e 11.º, do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, os quais deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de excluir do rendimento a considerar para efeitos de intervenção do FGADM o valor das prestações atribuídas a título de encargos familiares, como sucede com o abono de família. 13. Deve por isso, o despacho recorrido ser revogado e substituir-se por outro que mantenha a atribuição da prestação de alimentos à criança B…, a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, por se encontrarem preenchidos os pressupostos legais para tal.”
C – Não houve resposta ao recurso, o qual foi de seguida admitido e subiu a este Tribunal, impondo-se agora conhecer do mesmo.
D – Como se sabe o objecto de um recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em face das conclusões do recorrente e do despacho recorrido, e uma vez que não descortinamos qualquer questão de que se deva conhecer oficiosamente, constata-se que a questão a decidir traduz-se na inclusão ou não inclusão do abono de família no cálculo dos rendimentos a considerar para efeitos da continuação da intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Como se verifica, não existe divergência alguma sobre os factos a considerar na decisão, que estão expostos no despacho e nas conclusões acima transcritos.
*
Recordemos então os dados da questão, sobre os quais existe acordo.
O requerido progenitor da menor dos autos continua sem cumprir a prestação de alimentos a que foi condenado, e não se mostra possível o cumprimento coercivo.
A menor beneficia de abono de família no montante de €168,57/mês.
O valor do indexante dos apoios sociais está agora fixado em €438,81 por força da Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro.
A capitação a considerar, dada a constituição do agregado familiar, composto pela mãe e três descendentes menores, é de 2,5.
Se for considerado para este efeito o montante do abono de família, a capitação a que se chega é de €464,07/mês, valor que obviamente excede o IAS supra referido.
Se não for tido em conta o mencionado abono de família, o rendimento per capita a considerar é apenas de €396,00, valor este obviamente inferior ao valor do Indexante dos Apoios Sociais fixado em €438,81.
Concordam ainda o recorrente MP e o despacho recorrido em que a polémica deve ser dirimida através da interpretação das disposições do decreto-lei n.º 70/2010, de 16 de Junho, com as respectivas alterações.
A divergência centra-se concretamente sobre o disposto no art 11.º desse diploma, e na sua conjugação com o art. 3º.
E o que estabelecem concretamente as normas citadas?
O art. 3º, n.º 1, do DL n.º 70/2010 dispõe que “Para efeitos da verificação da condição de recursos, consideram-se os seguintes rendimentos do requerente e do seu agregado familiar:
a) Rendimentos de trabalho dependente;
b) Rendimentos empresariais e profissionais;
c) Rendimentos de capitais;
d) Rendimentos prediais;
e) e) Pensões;
f) Prestações sociais;
g) Apoios à habitação com carácter de regularidade;”
E o art. 11º do mesmo diploma, com a epígrafe “prestações sociais”, vem acrescentar que “consideram-se prestações sociais todas as prestações, subsídios ou apoios sociais atribuídos de forma continuada, com excepção das prestações por encargos familiares, encargos no domínio da deficiência e encargos no domínio da dependência do subsistema de protecção familiar”.
Chegamos assim ao ponto de discordância que originou o presente recurso.
O art. 3º do diploma em análise impõe que na determinação dos rendimentos do agregado familiar para a verificação das condições de recursos a ter em conta no reconhecimento e manutenção do direito aqui em causa sejam consideradas também as “prestações sociais”, e o art. 11º explicita o que são as prestações sociais referidas e quais as que devem excluir-se. Assim, terão que ser metidas na conta as prestações sociais mas “com excepção das prestações por encargos familiares, encargos no domínio da deficiência e encargos no domínio da dependência do subsistema de protecção familiar”.
Ora o abono de família é por natureza uma prestação social “por encargos familiares”, atribuída no âmbito do subsistema de protecção familiar da Segurança Social. Veja-se a este respeito o Decreto-Lei n.º 176/2003 de 2 de Agosto, com as sucessivas alterações.
O abono de família é uma prestação social atribuída em razão dos encargos familiares, e assim é qualificado expressamente em toda a legislação alusiva.
Não é possível que o legislador ao introduzir no art. 11º do DL n.º 70/2010 a ressalva “com excepção das prestações por encargos familiares, encargos no domínio da deficiência e encargos no domínio da dependência do subsistema de protecção familiar” não tivesse presente a figura do abono de família, precisamente para o afastar do número das prestações sociais que mandava incluir nos cálculos a efectuar para determinar a condição de recursos para aceder aos benefícios ali mencionados.
Concluímos, portanto, que a razão está do lado do recorrente MP, e que a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que mantenha a intervenção do FGADM enquanto se mantiverem os pressupostos para tal.
Diga-se, aliás, que esta mesma questão já tem sido tratada na jurisprudência, permitindo-nos citar dois acórdãos que reputamos da maior relevância para o caso.
O primeiro é um acórdão da Relação de Lisboa, datado de 17-11-2011, relatado por Jorge Leal e publicado na base de dados www.dgsi.pt, que sobre a questão escreveu que "quanto às prestações sociais e no que concerne ao abono de família, atentar-se-á que, nos termos do art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 70/2010, para o efeito do diploma as prestações por encargos familiares não se consideram prestações sociais. Ora, o abono de família é uma prestação por encargo familiar (vide Dec.-Lei n.º 176/2003, de 2.8, alterado e republicado pelo Dec.-Lei n.º 245/2008, de 18.12). Por conseguinte, o abono de família que a requerente recebe relativamente aos dois filhos menores também não deve ser considerado para o efeito da determinação do rendimento auferido pelo agregado familiar.”
O segundo, e muito recente, foi proferido por este Tribunal da Relação de Évora a 14-07-2021, teve como relator Mário Coelho, está também disponível em www.dgsi.pt e considerou de igual modo que “visto que a lei expressamente determina que o abono de família é uma prestação que visa compensar os encargos familiares respeitantes ao sustento e educação das crianças e jovens, a mesma não tem qualquer natureza salarial – não é o correspectivo devido ao trabalhador pela sua prestação laboral – e enquadra-se na excepção prevista na segunda parte do artigo 11.º do DL 70/2010, motivo pelo qual jamais poderia ser tomada em consideração para efeitos de cálculo da condição de recursos da Requerente.”
Também é este o nosso entendimento, pelo que julgamos procedente o recurso interposto pelo MP.
Antes de concluir, porém, importa fazer referência a um argumento incluído no despacho recorrido para sustentar a decisão.
Com efeito, alude-se ali a uma eventual inconstitucionalidade do entendimento que exclua o abono de família para os efeitos em causa: a dita prestação terá que ser incluída sob pena de preterição do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13.º da Constituição (comparando com uma família que não beneficia de tal apoio regular).
Diremos desde já que o argumento se afigura descabido: aceita-se que o princípio da igualdade impõe tratamento igual para situações iguais, mas a verdade é que a atribuição ou não atribuição do abono de família e a fixação do seu valor baseiam-se precisamente na diferenciação entre as situações de facto dos agregados familiares a considerar. A aplicação prática do princípio da igualdade deixa ao Estado a determinação de quais as situações a contemplar com essa prestação, e quais os respectivos montantes, e neste caso também a sua relevância para outros efeitos, igualmente de apoio social.
Não lesa o princípio da igualdade plasmado no art. 13º da CRP a simples circunstância de alguns terem e outros não terem direito a abono de família (seria preciso demonstrar a arbitrariedade e a falta de fundamento fáctico dessa discriminação); e também não atenta contra o mesmo princípio a inclusão ou não inclusão do abono de família na base de cálculo considerada para os efeitos aqui em apreço (trata-se de uma opção legislativa, justificável precisamente pela diversidade das situações a que se procura responder – quem beneficia de abono de família será em princípio alguém que precisa dele mais do que aqueles que não reúnem os requisitos para tal, e por isso poderia até ser contraditório utilizar essa concessão como fundamento para recusar uma intervenção destinada precisamente a assegurar mínimos de sobrevivência colocados em falta por omissão dos obrigados particulares).
Em suma, rejeita-se qualquer alegação de inconstitucionalidade para o entendimento criticado no despacho recorrido.
Terminamos, pois, por todos os fundamentos expostos, com o dispositivo que segue.
DECISÃO
Assim, julgamos procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e determinando que se mantenha a intervenção do FGADM como determinado anteriormente ao referido despacho, sem interrupção alguma, e enquanto se verificarem os pressupostos para tal.
Évora, 9 de Setembro de 2021
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier