IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
VIAGEM AÉREA
CANCELAMENTO
ACIDENTE COM AERONAVE
REGULAMENTO (CE) DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 11-2-2004
REENVIO PREJUDICIAL AO TJUE
Sumário

Decide formular pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, formulando a seguinte questão prejudicial:
- O embate de um veículo de catering contra uma aeronave estacionada no aeroporto constitui uma «circunstância extraordinária», nos termos e para os efeitos previstos nos considerandos 14º e 15º e no art.º 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004?

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.Relatório

A intentaram a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B, pedindo a condenação da ré a pagar:
1)- a cada um dos autores a quantia de 600,00 euros;
2)- a quantia de € 117,40, correspondente ao valor dos gastos com transporte e alimentação;
3)- ao autor Damião ..... a quantia de € 400,00; e a cada um dos demais autores, a quantia de € 200,00 euros, a título de indemnização por “danos morais”;
4)- € 134,00 a cada Autor pelas noites de alojamento pagas e não gozadas;
5)-Juros de mora vencidos desde 16-08-2018 até à data da propositura da ação, no montante de € 569,58 e vincendos desde essa data até integral pagamento.
Para tanto alegam, em síntese, que a ré é uma companhia de aviação que se dedica a operações de “voos charter”, e que contrataram com a ré um voo com partida de Lisboa e com destino a Samaná, República Dominicana,  que tal voo veio a ser cancelado devido ao embate de um camião de catering na aeronave, quando esta se achava estacionada no aeroporto de Lisboa, e que a ré não cumpriu os deveres de assistência a que estava obrigada, nem os indemnizou pelo atraso do mesmo voo, que só se veio a realizar no dia subsequente. Invocam em abono das pretensões manifestadas a Convenção para a unificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional, assinada em Montreal em 28-05-1999 (Aprovada pelo Decreto nº 39/2002, de 27-11), bem como o Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11-02, 
Citada a ré, a mesma contestou, impugnando parte da factualidade invocada na petição inicial, e sustentando não assistir aos autores direito a qualquer compensação pelo atraso do voo, porquanto o mesmo se deveu a circunstâncias extraordinárias, tal como previsto no art. 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/2004.
Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador, seguido de despacho que fixou o objeto do litigio, e selecionou os temas de prova.

Posteriormente, teve lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“(…) julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno o Réu a pagar a cada um dos Autores a quantia de 600,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação para a presente acção até efectivo e integral pagamento.
Absolvo o Réu do mais peticionado.”
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, apresentando alegações cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
a)-A recorrente foi condenada ao pagamento de € 600,00 (seiscentos euros) a cada um dos 15 (quinze) Autores num total de € 9.000,00 (nove mil euros), quantia a que acrescem juros de mora, à taxa legal, por considerar a Recorrente responsável pelos prejuízos decorrentes do cancelamento de um voo.
b)-A Recorrente não concorda com a douta Sentença pois a matéria de direito está inquinada de erro na valoração / interpretação jurídica do direito aplicável considerando a prova efectuada em audiência de julgamento impondo-se claramente a reapreciação da prova gravada e consequente enquadramento jurídico na senda da jurisprudência já existente noutros processos idênticos.
c)-Impõe-se a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por uma outra que vá de encontro àqueles que são os princípios de Direito e Justiça. 
d)-Considerou-se provado o cancelamento de um voo tendo como destino Samaná operado pela recorrente em virtude da “colisão de um veículo de catering com a aeronave, dando causa a que, por razões de segurança tenha sido cancelado o voo programado para essa aeronave”, conforme se lê na douta sentença.
e)-Erradamente o Douto Tribunal na sentença ora Recorrida considerou que tal fatalidade “não constitui uma circunstância extraordinária por ser um evento inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa”.
f)-Existe, sem dúvida, uma causa de exclusão da responsabilidade da Recorrente;
g)-Conforme factos provados elencados na sentença, verificou-se uma circunstância extraordinária refletida no embate de um veículo do aeroporto – veículo de catering – na aeronave a utilizar no transporte aéreo, enquanto a mesma se encontrava parqueada no aeroporto,
h)-Tal resulta da provada gravada ao minuto 1:27, onde a Testemunha Nuno ..... referiu quando questionado quanto à forma como as aeronaves são estacionadas no aeroporto seguindo indicações do próprio aeroporto “Não, é de acordo com indicações específicas. Ou por um elemento do aeroporto que é o Follow me, que é são os senhores com as raquetes que fazem o estacionamento das aeronaves, numa determinada linha que está marcada para o tipo de aeronave. A nossa encontrava-se nessa situação, parqueada, tínhamos a limpeza a bordo, estava o supervisor.”
i)-Tendo ainda sido claro que, a situação por si só era anómala e não inerente à atividade pois a testemunha Nuno ..... também referiu claramente referiu que, na verdade, a prestação dos serviços de refeição não é, de todo, inerente ao contrato de transporte aéreo.
j)-À semelhança do entendido no acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do Processo n.º 20104/19.5T8LSB que correu os seus termos no Juiz 21 do Juízo Local Cível de Lisboa e que versa sobre o ocorrido no mesmo voo, determinou que, não se pode entender que o referido embate do veículo de catering constitua um risco inerente à atividade e normal funcionamento da transportadora.
k)-Como doutamente decidido “pese embora o serviço de catering seja prestado por um prestador de serviços contratado pela Ré, a (eventual) negligencia do condutor do veículo escapa ao controlo daquela. E repare-se que não estamos a falar das escadas moveis de acesso à aeronave [como sucede no Processo C-394/14 (Sandy Siewert e outros v Condor Flugdienst) do TJUE] ou até à colocação da manga, serviços prestados pela própria entidade aeroportuária ou até pelos funcionários da Ré [serviços esses indispensáveis ao exercício da atividade de transporte aéreo de passageiros], estamos sim, a falar de um prestador terceiro cujo funcionamento não é totalmente inerente ao exercício normal da actividade de transportadora aérea. Repare-se que, nem todos os voos têm serviço de catering (e cada vez menos por forma a serem oferecidos preços low cost) pelo que para além de não ser essencial (diferente seria se fosse um veiculo de abastecimento de combustível, serviço prestado por entidade aeroportuária) não é automaticamente inerente e escapa claramente ao controlo efectivo da transportadora.”.
l)-Tal resulta da inquirição à testemunha Nuno ..... iniciada a minuto 04:07, quando questionada quanto ao facto das refeições serem parte do serviço contratado foi claramente referido “Não está inerente à prestação de serviços. Nós não somos obrigados a dar refeição. É uma cortesia das companhias, até se pode dizer o exemplo das low costs. Eles não dão. Nós damos por cortesia e porque queremos.”
m)-O serviço de catering não é um serviço inerente à atividade da transportadora aérea, não sendo aliás um elemento essencial do contrato de transporte, logo os danos decorrentes de uma falha desse serviço não é considerada inerente à atividade de transporte aéreo de passageiros, ou seja, à atividade da Recorrente.
Acresce que,
n)-Nos termos do artigo 19° da Convenção de Montreal, a ora Recorrente deve ser considerada isenta de responsabilidade pelo dano resultante de atraso no voo uma vez que ela ou os seus trabalhadores adotaram todas as medidas que poderiam razoavelmente ser exigidas para evitar o dano,
o)-O atraso e cancelamento do voo ficou a dever-se à atuação de terceiros operadores do sector, sobre os quais a Recorrente não tem qualquer influência ou controlo, pelo que tal atuação não pode, de maneira alguma, ser-lhe imputável.
p)-Deve a recorrente ver-se eximida de qualquer responsabilidade;
q)-Por questões de segurança, as autoridades aeroportuárias e o fabricante da aeronave determinaram que o voo em causa não poderia ser realizado sem a respetiva verificação e reparação necessária, tendo gerado um atraso e posterior cancelamento do voo; 
r)-Também ao abrigo do Regulamento n.º 261/2004, no Considerando 15º e no artigo 5.º, n.º 3, as transportadoras aéreas não estão obrigadas a pagar uma indemnização se provarem que o cancelamento ou o atraso considerável se deveram a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis,
s)-mais precisamente, devido a circunstâncias que escapam ao controlo efectivo da transportadora aérea (acórdão Sturgeon, Ac. 22.12.2008, Wallentin-Hermann, C-549/07, Colet., p. I-11061, e Nelson).
t)-E no presente caso foram. 
u)-Efetivamente, mesmo face à máxima diligência da Recorrente e seus colaboradores e mesmo tomadas todas as medidas de segurança, a fatalidade do embate do veículo de catering nas rodas da aeronave constitui uma circunstância extraordinária, imprevisível e totalmente fora do controlo da Recorrente.
v)-A recorrente adotou todas as medidas possíveis, veja-se o depoimento da testemunha Nuno ..... ao minuto 04:07 do sue depoimento que refere claramente: “Quando se aperceberam que o voo não iria sair, já começou a referir isso, quais foram as medidas adotadas de assistência? Deram-se snacks e ainda se deu jantar por causa do tempo que se demorou. Entre dar o snack e o jantar eu falei com outra companhia portuguesa para saber se tinham possibilidade de aeronave. Para saber se nos podiam ceder para efetuar o voo. Os meus colegas do departamento comercial contactaram outras empresas a nível europeu, também a saber se tinham disponibilidade. E este é o procedimento normal, que se faz. Mas estamos a falar, como eu já referi, de 16 de agosto, mudanças de quinzena, destinos são o que são e as companhias estão todas a voar. Não há quase aviões disponíveis. Então a solução encontrada foi dividir o grupo? Foi dividir o grupo porque quando se contacta as companhias, as companhias podem não ter disponibilidade imediata de aeronaves. Mas dizem-nos quando é que têm. Por acaso, se não estou em erro acho que até foi a Air Atlantic que tinha disponibilidade de uma aeronave, só que em trezentos e oitenta e oito passageiros, já só por si numa situação normal, mesmo que haja disponibilidade de outros aviões é complicado proteger esses passageiros todos, então optou-se por fazer a divisão para o destino que fosse menos provável haver voos. Neste caso, para a Jamaica, somos os únicos que temos voo semanal, tendo em conta que no dia a seguir tínhamos um voo para Punta Cana que podíamos misturar os passageiros. Ou seja, proteger os passageiros que iam para Samaná, no voo do dia a seguir para Punta Cana e depois fazerem o trajeto por terra.”
w)-A Recorrente adotou e tomou todas as diligências possíveis para minimizar os prejuízos decorrentes da situação, tendo nesse sentido, diligenciado na procura imediata de novos voos e na disponibilização de alimentação adequada ao tempo de espera.
x)-Numa situação imprevisível, excepcional como também referido claramente pela testemunha João ..... que trabalha diariamente no aeroporto e que no seu depoimento referiu muito claramente no seu depoimento gravado a 24m45s quando questionado sobre se estavam perante uma situação nova nunca verificada respondeu “Foi totalmente inesperada, não estávamos a contar. Nunca vi isto acontecer. Na minha atividade já levo 10 anos de aeroporto e nunca vi e nunca presenciei na primeira pessoa….Na nossa companhia aérea este incidente não, nunca.”
y)-Outra conclusão não se pode retirar senão que estamos perante uma circunstância excepcional na linha do Acórdão do TJUE de 19.11.2009 (Pº C-402/07 e C-432/07) que refere “tal atraso não confere aos passageiros o direito a uma indemnização, se a transportadora aérea puder provar que o atraso considerável se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis, mais precisamente circunstâncias que escapam ao controlo efectivo da transportadora (…).”
z)-Acrescentando-se tal Acórdão que “o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico numa aeronave, que implica o cancelamento ou o atraso de um voo, não se enquadra no conceito de «circunstâncias extraordinárias», na acepção desta disposição, salvo se esse problema decorrer de eventos que, pela sua natureza ou a sua origem, não sejam inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e escapem ao seu controlo efectivo.”
aa)-Conforme resulta da prova gravada ao minuto 1:27, na audição da testemunha Sr. Nuno ..... “E o que acontece, estando os colegas lá dentro, quando chegou o camião do catering para ir abastecer o avião, ele embateu com violência na aeronave. - Isto é uma situação normal? Isto costuma acontecer? Porque diz: acionámos um procedimento, que parece quase que isso é normal. - Não, não é normal, as companhias é que tem procedimentos, ou por escritos ou nos manuais, e quando eu digo procedimento, é também os anos de experiência de estarmos também um passo à frente.”
bb)-Acrescentando-se, nessa mesma linha, ao minuto 04:02 a inquirição por parte Meritíssima Juíza à testemunha Sr. Nuno ..... “Mas tem procedimento para esse tipo de ocorrência?” ao qual a testemunha respondeu a 04:07 que “Há procedimentos, isso claro que há. É normal um camião de catering abastecer um avião, não é normal um camião de catering bater num avião.”
cc)-Na mesma linha, e tal como já referido anteriormente a testemunha Sr. João ...... reiterou já referido pela Testemunha Nuno ..... (depoimento gravado ao minuto 24:45): “E diga-me uma coisa, referiu aí “Continuámos com o check-in e com o embarque, porque não sabiam muito bem”. Não sabiam muito bem porquê? Isto é uma situação nova, costuma acontecer? - Foi totalmente inesperada, não estávamos a contar. Nunca vi isto acontecer. Na minha atividade já levo 10 anos de aeroporto e nunca vi e nunca presenciei na primeira pessoa. - E sabe se isto já tinha acontecido com a sua companhia aérea? - Na nossa companhia aérea este incidente não, nunca.”
dd)-Ora, considerando que circunstâncias extraordinárias são aquelas que «pela sua natureza ou a sua origem, não sejam inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e escapem ao seu controlo efectivo», conforme clarificado no Tribunal de Justiça da União Europeia no Proc. C-549/07 (Wallentin-Herman), não se pode excluir que problemas técnicos constituam circunstâncias extraordinárias, desde que decorram de eventos não inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e que escapem ao controlo efetivo desta última, como sucede in casu.
ee)-Na mesma linha do que ora se expõe, seguiu o acórdão emitido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa no âmbito do Proc. n.º 20605/19.5T8LSB que correu os seus termos no Juízo 5 do Juízo Local Cível de Lisboa, que incidiu o mesmo atraso / cancelamento, no qual é referido que “verificando-se a invocada impossibilidade objectiva de cumprimento, por acto imputável a terceiro, a R mostra-se isenta de responsabilidade contratual e a acção improcede, por não provada”.
ff)-Não se concede que em três processos estritamente semelhantes, com base na mesma situação jurídico-fáctica, ocorre uma decisão como aquela da qual agora se recorre, tendo as duas decisões anteriores sido emitidas, precisamente, no sentido contrário, i.e., no sentido de isentar a Recorrente de qualquer responsabilidade por não lhe ser imputável a circunstância excecional do acidente ocorrido e na base do cancelamento do voo.
gg)-Face ao exposto, é imperativa a conclusão de que a situação que deu origem ao incumprimento contratual decorrente do cancelamento do voo não é imputável à ora Recorrente.
hh)-Tal inimputabilidade decorre do facto de que em causa está, inegavelmente, uma situação torneada de excecionalidade, já que a fatalidade da colisão do veículo do aeroporto destinado ao serviço de catering não é nem pode ser da responsabilidade da Recorrente, estando totalmente fora do seu controlo.
ii)-Com efeito, tal acidente ocorreu estando a aeronave corretamente parqueada no aeroporto e tendo sido tomadas todas as medidas de segurança que eram exigíveis à Recorrente e aos seus colaboradores, não podendo, por conseguinte, ser a Recorrente responsabilizada pela atuação imprudente do condutor do veículo de catering ou pelo infortúnio que ditou o seu embate.
jj)-Não sendo, como efetivamente provado um facto decorrente da atividade normal (inerente) da transportadora aérea que se traduza no efetivo transporte de passageiros.

Termina nos seguintes termos:
“(…) deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que julgue procedente a defesa apresentada pela Ré, julgando-se pela ausência de responsabilidade e consequente absolvição integral do peticionado (…)”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal da Relação, onde foi recebido, foram colhidos os vistos.

2.Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
Não tendo os autores recorrido da sentença, que julgou a ação improcedente no tocante aos pedidos de reembolso dos gastos com transportes, indemnização por danos não patrimoniais, e indemnização pelas noites de alojamento pagas e não gozadas [pedidos 2) a 4), bem como pedido 5), na parte que se refere aos demais] e tendo a sentença recorrida absolvido a ré destes pedidos, as questões a eles respeitantes mostram-se arredadas do objeto do presente recurso.
O litígio dos presentes autos subsiste, pois, nesta instância de recurso, no que respeita ao pedido de condenação da ré a pagar a cada um dos autores a quantia de € 600,00, a título de indemnização, nos termos previstos no art. 7º do Regulamento (CE) 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11-02-2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.º 295/91 , acrescida de juros de mora[3].

Mais concretamente, as questões a apreciar e decidir são as seguintes[4]:
- a impugnação da decisão sobre matéria de facto - conclusões h), i), l), v), x), aa), bb), cc), interpretadas à luz do art. 2. da motivação;
- saber se assiste aos autores o direito a uma indemnização nos termos previstos no mencionado Regulamento, ou se tal direito se acha excluído pela verificação de circunstâncias extraordinárias, nos termos previstos nos considerandos (14) e (15) e no art. 5º, nº 3 do mencionado Regulamento – conclusões f), g), j), m) a u), w)a z), e dd) a jj).

3.Fundamentação

3.1.Os factos
3.1.1.Factos provados

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos[5]:
1.Os AA. são uma família de quinze pessoas que planeou as suas férias em conjunto entre os dias 16 de agosto e 24 de agosto de 2018; 
2.Para o efeito, através do operador turístico contrataram com a Ré as viagens de ida e volta, com partida de Lisboa e destino a Samaná, na Republica Dominicana, tendo obtido as seguintes reservas para o voo OBS889 de 16 de agosto e voo OBS890 no dia 23 de agosto de 2018:
- Reserva SPT001800602153
(...)
3.O voo OBS889 de 16 de agosto tinha o seguinte trajeto – Lisboa LIS– Samaná AZS (República Dominicana) – Montego Bay MBJ (Jamaica)
4.A hora de partida designada para esse voo a partir do aeroporto Humberto Delgado em Lisboa era 14.30 horas e hora de chegada a Samaná às 17.35 horas do mesmo dia.
5.Os AA reservaram 7 noites em regime tudo incluído no Hotel Gran Baya Principe El Portillo BP*****, com entrada a 16 de agosto e saída a 23 de agosto.
6.A rota ortonómica Lisboa Samaná excede os 6000 km
7.No dia 16 de agosto pelas 12.30 horas os AA. dirigiram-se à porta de embarque designada após terem efetuado o check in e despachado as suas bagagens;
8.A hora de embarque prevista foi sendo sucessivamente adiada até que os AA foram informados que havia um problema operacional e que deviam aguardar;
9.Por volta das 17.00 horas foi atribuído aos AA e aos outros passageiros um vale refeição no valor de 9,00 euros;
10.Momentos mais tarde foram informados que o camião que transportava o catering tinha embatido com a aeronave e que aguardavam o parecer da Airbus, empresa fabricante do avião para seguirem viagem.
11.Adicionalmente foram informados que poderiam proceder a uma reclamação em virtude do atraso, de forma a serem ressarcidos pelos prejuízos, tendo-lhes sido entregue um folheto explicativo que corresponde ao documento nº 5 junto com a petição inicial.
12.Por volta das 19.00 horas, ainda no aeroporto, a Ré comunicou os AA. que o voo para Samaná não iria realizar-se nesse dia e que os passageiros do voo OBS889, com esse destino, iriam ser reencaminhados para um hotel em Lisboa;
13.Os restantes passageiros, com destino à Jamaica partiram nessa mesma noite;
14.Pelas 20.20 horas foram os AA. finalmente encaminhados à zona das esteiras para recolha da bagagem;
15.Cerca de uma hora depois continuavam sem bagagem e sem informação sobre o transporte para o alojamento ou refeições, tendo sido disponibilizado apenas o nome do estabelecimento hoteleiro onde iriam pernoitar – Hotel Tryp Oriente.
16.Por esse motivo os AA. (...), cujas idades eram à data, respetivamente, 78, 80, 69 e 73, dirigiram-se de táxi ao hotel indicado, tendo gasto nesse percurso a quantia de 10,20 euros;
17.Os restantes AA. chegaram ao hotel no transporte disponibilizado pela Ré às 23.30 horas.
18.Na manhã seguinte os AA constataram ter recebido uma mensagem da Ré informando que o voo para Samaná AZS partiria às 16 horas e que deveriam comparecer no balcão de check in às 12.00 horas.
19.Os AA foram ainda informados no aeroporto que o voo indicado tinha como destino Punta Cana – Republica Dominicana, com a companhia aérea Wamos Air e que o percurso Punta Cana Samaná seria realizado de autocarro, com uma duração de cerca de 4.30 horas e chegada prevista para as 2.00 horas do dia 18 de agosto de 2018; 20. Punta Cana e Samaná são cidades afastadas por mais de 300 km;
20.Os AA. (...) almoçaram nesse dia a expensas suas, gastando o valor total de 107,20 euros;
21.O percurso de autocarro entre Punta Cana e Samaná realizou-se pelo interior do país, em estradas que em alguns troços se encontravam em más condições, sem separador central, sem iluminação, delineadores ou guias direcionais.
22.A viagem ocorreu durante a noite em estradas sem iluminação, cruzando-se com condutores locais muitas vezes com os máximos ligados, conduzindo em contramão e em excesso de velocidade, levando a cabo ultrapassagens perigosas, obrigando o autocarro várias vezes a desviar-se bruscamente e, por vezes, mesmo a sair da estrada.
23.O autocarro não possuía cintos de segurança e não foi feita qualquer paragem;
24.Dos conselhos de viagem do Ministério dos Negócios Estrangeiros consta o seguinte:
25.Transporte: (…) o respeito pelos códigos de circulação e condução é reduzido, apesar da insistência das autoridades policiais pelo que deve conduzir com precaução (…). Evite fazer viagens de noite. Aconselha-se a que tranque as portas do carro e que tenha especial cuidado em caso de chuvas (…) O país tem uma alta taxa de mortes e acidentes rodoviários. Os seguros automóveis são obrigatórios embora muitos não sejam posteriormente renovados. A polícia é normalmente protetora dos turistas, sobretudo nas zonas turísticas, mas fora destas deve ter mais cuidado e não confiar.
26.Esta viagem causou ansiedade, angústia, medo e transtorno a todos os AA. que temeram pela sua integridade física e pela própria vida e de todos os familiares durante todo o percurso.
27.O Autor (...) sofreu cansaço extremo, tremores, ansiedade, irritação e desgaste psíquico.
28.Os AA perderam duas noites já reservadas e pagas no Hotel em Samaná no valor de pelo menos 68,00 euros, por noite, por pessoa 
29.A Ré uma sociedade comercial que se dedica à “exploração da indústria de transporte aéreo regular e não regular de passageiros e respetiva bagagem de carga e correio, importação de bens direta ou indiretamente necessários ou convenientes àquela exploração, assim como a exploração de serviços e a realização de operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com aquela atividade e que sejam suscetíveis de facilitar, favorecer e complementar a sua realização, incluindo a prestação de serviços de assistência em escala (handling), em aeroportos, a particulares ou companhias aéreas civis, respetivas tripulações, passageiros, bagagens e carga, e a locação e sublocação de aeronaves; supervisão e controlo dos serviços que sejam prestados por terceiros; representação e gestão dos interesses no sector turístico e aeronáutico; a facilitação de produtos de consumo e a elaboração de estudos e planos de organização; bem como a gestão no sector turístico e aeronáutico a cujo âmbito geral se dedicará”.
30.A Ré, como companhia aérea licenciada para o efeito, presta serviços de transporte aéreo como companhia aérea charter.
31.É contratada por agências de viagens ou operadores turísticos para realizar determinados voos específicos previamente agendados por estas e no âmbito de viagens turísticas por estas organizadas e vendidas ao público.
32.O voo referido é um voo charter previamente contratado para o trajeto Lisboa-Samaná - Montego Bay com o número OBS889.
33.O referido voo tinha cerca de 300 passageiros.
34.Acontece que, no dia 16/08/2018, a Ré deparou-se com uma falha técnica numa das suas aeronaves, que impossibilitou a descolagem do voo OBS-889 para a hora designada.
35.Falha essa que ficou a dever-se ao embate de um veículo do aeroporto- Veiculo de Catering- na aeronave enquanto a mesma se encontrava parqueada no aeroporto.
36.A aeronave estava parqueada no aeroporto conforme indicações das autoridades aeroportuárias aguardando apenas o voo em causa.
37.Por questões de segurança as autoridades aeroportuárias determinaram que o voo em causa não poderia ser feito sem a respetiva verificação e reparação necessária, tendo levado a um atraso e posterior cancelamento.
38.Apenas por volta das 19h foi confirmado pelas autoridades que o voo não seria possível realizar, nesse momento foram solicitadas as competentes autorizações necessárias para dar seguimento ao processo de desembarque das bagagens e encaminhamento dos passageiros para os vários hotéis.
39.Acresce que, considerando a reparação da aeronave e ainda o período em causa, apenas foi possível assegurar como primeiro voo disponível um voo às 16h de dia 17, ficando os passageiros no aeroporto até ao momento do check-in.
40.No dia seguinte, ou seja, dia 17 de agosto, foi disponibilizado almoço aos passageiros.

3.1.2.Factos não provados
A sentença recorrida não contém qualquer elenco de factos não provados.

3.2.- Os factos e o direito
3.2.1.- Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.1.1.- Considerações gerais
Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art. 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Esta
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie no teor de depoimentos prestados, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. A observância desse ónus pressupõe a indicação do início e fim das passagens dos depoimentos tidas por relevantes, podendo o recorrente, se assim o entender, proceder à transcrição dessas passagens. Tal indicação não tem necessariamente que constar das conclusões, mas deve constar da motivação do recurso. No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os acs. RC de 17-12-2017 (Isaías Pádua), proc. 320/15.0T8MGR.C1; e STJ 06-12-2016 (Garcia Calejo), p. 437/11.0TBBGC.G1.S1.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Sumariando os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[6]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a)-Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b)-Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c)-Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d)-(…)
e)-O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”

3.2.1.2.O caso dos autos
No caso dos presentes autos, afigura-se evidente que a apelante não observou os ónus impugnatórios consagrados no art. 640º do CPC.
Com efeito, muito embora nas suas alegações, a apelante tenha declarado, que “não se conforma com a douta sentença recorrida, não concordando nem aceitando a decisão proferida, por um lado, sobre a matéria de direito, (…) e, por outro, sobre a matéria de facto, pretendendo-se nesse âmbito, que seja efetua a reapreciação da da prova gravada” (art. 2. da motivação), discorra longamente sobre a prova produzida em audiência de julgamento (vd. arts. 11., 12., 15., 19., 25., 27., 29., 30., 31., 35., 36., e 37. da motivação, e als. h), i), l), v), x), aa), bb), e cc) das conclusões), e reitere que não concorda com a sentença recorrida “nomeadamente pela prova efetuada, e que ora iremos indicar” (arts. 7. e 8. das alegações), concluindo que se “impõe(…) uma reapreciação da prova feita em audiência de discussão e julgamento, a qual apenas poderá (…) determinar a absolvição da Recorrente” (art. 42. da motivação), o certo é que em ponto algum das mesmas alegações a apelante identifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, da mesma forma em que também não indica e decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quer isto dizer que a apelante não observou os ónus que lhe são impostos nas als. a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC, limitando-se a uma impugnação que, nas citadas palavras de ABRANTES GERALDES podemos classificar como “de pendor genérico” e “inconsequente”.
Com efeito, no tocante ao ónus de especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a) do CPC), cremos que tal indicação deve ser clara e inequívoca, individualizando de forma a não deixar quaisquer dúvidas, os referidos pontos. Assim, sendo habitual que as decisões judiciais atribuam números aos diversos pontos da decisão de facto, como sucede no caso vertente, a forma expectável de o fazer será mediante a indicação dos números correspondentes aos pontos da decisão de facto que o recorrente pretende ver reapreciados.
Depois, como esclarece ABRANTES GERALDES[7], “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação nas alegações do recurso e síntese nas conclusões” e – acrescenta o Ilustre Conselheiro - “a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões”.
Já no que respeita ao ónus de especificar “a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c) do nº 1 do art. 640º do CPC), a sua observância implica que o apelante enuncie as concretas proposições de facto que devem substituir os pontos de facto impugnados, ou esclarecer, de forma inequívoca que pretende a sua eliminação total.
Nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. b) do CPC, a inobservância deste ónus tem como consequência “a imediata rejeição do recurso na respetiva parte”.
Esta “respetiva parte” será a parte do recurso referente à impugnação da matéria de facto afetada pela inobservância do ónus. E, como refere o já citado Mestre, “o efeito de rejeição não é precedido de qualquer despacho de aperfeiçoamento”.
Nesta conformidade, conclui-se pela rejeição da impugnação da decisão sobre matéria de facto.

3.2.2.Do mérito da causa
Como já se referiu, a única questão a equacionar e decidir no tocante ao mérito da causa consiste em determinar se assiste aos autores o direito a receber da ré uma indemnização, nos termos previstos no art. 7º, nº 1, al. b) do Regulamento (CE) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.
Conforme dispõe o art. 1º do referido Regulamento, o mesmo estabelece os direitos mínimos dos passageiros em caso de recusa de embarque contra a sua vontade, cancelamento de voos, e atraso de voos. E, nos termos do art. 3º do mesmo diploma, este aplica-se aos passageiros que partem de ou têm como destino um aeroporto localizado num Estado Membro da União Europeia.
No caso dos autos, resultou provado que os autores contrataram com a ré, que é uma companhia de aviação, uma viagem com partida de Lisboa e destino a Samaná, República Dominicana, o qual se achava agendado para o dia 16-08-2018, pelas 14h30m e chegada no mesmo dia, pelas 17h35, mas que apenas viajaram no dia 17-08-2018, chegando ao destino no dia 18-08-2018.[8]
Finalmente, provou-se ainda que o voo inicialmente previsto foi cancelado[9].
Estabelece o art. 5º do mesmo Regulamento que em caso de cancelamento, os passageiros têm direito a receber da transportadora aérea operadora, entre outras prestações, uma indemnização nos termos previstos no art. 7º, salvo se ocorrer uma das circunstâncias previstas numa das subalíneas i) a iii) as quais se reportam a situações que não ocorreram no caso dos autos e que portanto não assumem relevância para a decisão do presente recurso[10].
Nos termos previstos no art. 7º do Regulamento, o montante da indemnização para voos extracomunitários com mais de 3.500 km é de € 600. É este o montante indemnizatório reclamado pelos autores, tendo em conta que resultou provado que a rota do voo cancelado pela ré excede os 6.000 km[11].
Sucede, contudo, que a ré invocou a exceção prevista no art. 5º, nº 3 do Regulamento, que estabelece que “a transportadora aérea não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do art. 7º, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderia ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis”.
Esta exceção deve ser interpretada à luz dos considerandos (14) e (15) do Regulamento em questão, que têm o seguinte teor:
”(14) Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal, as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.
(15) Considerar-se-á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.”
Julgada a causa, resultou provado que o cancelamento do voo dos autores se deveu a uma falha técnica no avião, provocada pelo embate de um veículo de catering  na aeronave, quando esta se encontrava parqueada no aeroporto, tendo as autoridades aeroportuárias determinado que o voo dos autores não podia ser feito sem as necessárias verificações e reparação da aeronave[12].
Perante estes factos, coloca-se a questão de saber se o embate de um veículo de catering no avião, estando este estacionado no aeroporto constitui uma circunstância extraordinária, nos termos e para os efeitos previstos nos considerandos (14) e (15) e no art. 5º, nº 3 do Regulamento.
A esta questão, a ré responde afirmativamente, e os autores de forma negativa.
De acordo com o referido nas alegações de recurso apresentadas pela apelante, a jurisprudência dos tribunais de 1ª instância encontra-se dividida, dado que nos processos nºs 20104/19.5T8LSB e 20605/19.5T8LSB o Tribunal adotou o entendimento aqui sustentado pela ré, ora apelante, ao passo que a sentença recorrida seguiu a tese sufragada pelos autores, ora apelados.
Nos termos do disposto no art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[13], “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial (…) b) sobre a validade e interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”.
Ainda nos termos do mesmo preceito, “Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie”.
Finalmente, e no que ora releva, estatui também o citado artigo que “Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”
No caso em apreço, está em causa a interpretação de uma norma de um Regulamento, norma essa cuja interpretação é controvertida, e desempenha um papel central na solução do litígio dos presentes autos.
Por outro lado, atento o valor da causa (€ 14.926,98), que é inferior ao da alçada do Tribunal da Relação (€ 15.000,00 – art. 44º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário[14]), do presente recurso de apelação não cabe recurso ordinário para o Supremo de Tribunal de Justiça (art. 629º, nº 1 do CPC), pelo que no caso presente o reenvio prejudicial é obrigatório.
É certo que de acordo com a jurisprudência do TJUE, tal obrigatoriedade não se verifica “quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável”[15].
E é igualmente verdade que no caso dos autos os autores invocaram em abono da interpretação do art. 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/2004 que propugnam o decidido pelo TJUE no caso Siewert (acórdão de 14-11-2014, Siewert, C-394/14, EU:C:2014:2377), no qual o TJUE decidiu que aquele preceito “deve ser interpretado no sentido de que um acontecimento como, no caso do processo principal, o choque de uma escada móvel de embarque de um aeroporto contra um avião não deve ser qualificado de «circunstância extraordinária» que dispensa a transportadora aérea da obrigação de indemnização dos passageiros em caso de atraso considerável de um voo operado por esse avião”.
As semelhanças entre a situação de facto analisada no caso Siewert e o caso dos presentes autos são evidentes, visto que em ambos estão em causa situações de colisões de objetos em movimento com o avião destinado a operar o voo que sofreu atraso ou cancelamento.
Porém, não menos certo se revela que como aponta a ré nas suas alegações de recurso, os Tribunais de primeira instância têm adotado interpretações díspares do preceito em questão, mesmo considerando o decidido pelo TJUE no caso Siewert.
Acresce que a leitura da decisão proferida no caso Siewert não permite apreender com clareza se no momento da colisão entre as escadas e o avião as primeiras estavam a ser manobradas, e se o avião estava em movimento ou se encontrava estacionado, quando no caso vertente se apurou que o veículo de abastecimento de catering, pertencente à empresa gestora do aeroporto, foi embater no avião, e que este se encontrava estacionado, depreendendo-se ainda da primeira circunstância que tal veículo estava a ser manobrado pelo respetivo condutor.
Tal significa que no caso dos presentes autos é claro e manifesto que a colisão se deve a ato humano, imputável a terceiro, sem que a empresa de transportes aéreos tenha tido qualquer intervenção na ocorrência daquele embate, o que no caso Siewert não é evidente.
Nestas circunstâncias, entende este Tribunal que persiste uma dúvida razoável na interpretação os considerandos (14) e (15) e do art. 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/2004, pelo que não se verificam exceções à obrigação de reenvio.
Termos em que se deve determinar o reenvio prejudicial, submetendo-se ao Tribunal de Justiça da União Europeia a seguinte questão:
- O embate de um veículo de catering contra uma aeronave estacionada no aeroporto constitui uma «circunstância extraordinária», nos termos e para os efeitos previstos nos considerandos 14º e 15º e no art. 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/200 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004?

3.3.Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
No caso vertente, o presente acórdão não põe termo ao recurso de apelação, razão pela qual não são devidas custas.

4.Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a)-Rejeitar a impugnação da decisão sobre matéria de facto;
b)-Sobrestar na apreciação do mérito do recurso, e suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia a seguinte questão prejudicial:
- O embate de um veículo de catering contra uma aeronave estacionada no aeroporto constitui uma «circunstância extraordinária», nos termos e para os efeitos previstos nos considerandos 14º e 15º e no art. 5º, nº 3 do Regulamento (CE) nº 261/200 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004?
A instância fica suspensa até à decisão final do Tribunal de Justiça da União Europeia.
O pedido de reenvio prejudicial deverá ser instruído nos termos previstos nas Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais, devendo ter-se em especial atenção o constante dos seus pontos 21. a 24..
Confirmado o recebimento do pedido de reenvio, deverá a secção de processos, trimestralmente, solicitar informação acerca do seu estado.
Sem custas.



Lisboa, 14 de setembro de 2021



Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa



[1]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[2]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[3]Pedidos 1) e 5).
[4]As conclusões 1. a 36. contêm meras referências genéricas à posição manifestada pela apelante, que a mesma desenvolve (aliás de forma prolixa e exageradamente desenvolvida) nas conclusões subsequentes.
[5]Os quais se mostram assentes, face à rejeição da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
[6]“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[7]Ob. cit., p. 165, e nota de rodapé n.º 267.
[8]Pontos 2., a 4., 7. a 9., 18. e 19.dos factos provados.
[9]Ponto 37. dos factos provados.
[10]O que é pacífico, dado que nenhuma das partes se reportou a qualquer destas exceções.
[11]Ponto 6. dos factos provados.
[12]Pontos 10., 34. a 37., e 39. dos factos provados.
[13]Adiante designado pela sigla “TFUE”.
[14]Aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26-08, retificada pela decl. Retif. 42/2013, de 24-10; alterada pela Lei 40-A/2016, de 22-12; pela Lei 94/2017, de 23-08; pela Lei Orgânica nº 4/2017, de 25-08; pela Lei 23/2018, de 05-06; pelo DL 110/2018, de 10-12; pela Lei 19/2019, de 19-02; pela Lei 27/2019, de 28-03; pela Lei 55-2019, de 05-08, e pela Lei 107/2019, de 09-09.
[15] Ponto 6. das “Recomendações à atenção dos órgãos nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais”, (2019/C 380/01), disponíveis em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019H1108(01)&from=PT.