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CÚMULO DE PENAS
Sumário
Os critérios que presidem à cumulação jurídica de penas aplicam-se ao cúmulo entre penas efectivas e suspensas. Um cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, que visa determinar a medida da pena que determinado agente deve sofrer em consequência do cometimento de vários crimes, dentro de determinado espaço de tempo. Busca-se aqui, tal como na fixação de uma pena aplicada pela prática de um só crime, a sanção adequada quer à culpa do agente quer às exigências de prevenção, nos precisos termos do comando contido no artigo 71º/CP. As operações que se hão de efectuar para encontrar a pena justa são precisamente as mesmas quer o concurso ocorra em face de um único processo, quer se venha a apurar subsequentemente. No caso de penas suspensas na sua execução, o caso julgado incide, única e exclusivamente, sobre a medida da pena e não sobre a sua forma execução. O fundamento de ressocialização que legitima a imposição de uma pena não é, necessariamente pela via da lógica, compatível com a imposição de penas efectivas a par da suspensão de outras. Ou se entende que o agente apenas pela via da prisão efectiva alcançará os desideratos sociais subjacente à justiça penal, ou não: e na conformidade há que decidir qual o tipo de pena aplicável. Nada obsta a que a uma conjugação de penas suspensas se adeqúe uma pena efectiva como também que que à conjugação de penas suspensas e efectivas se entenda que a pena justa pode ser suspensa. ( sumário elaborado pela relatora )
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
I – Relatório: NV_______ , filho de , nascido a 21.08.1979, na freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, solteiro, jardineiro, residente na rua , Carnaxide recorre da condenação, em cúmulo jurídico superveniente de penas, na pena única de seis anos e três meses de prisão.
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II- Fundamentação de facto: Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
O arguido NV_______ foi julgado e condenado nos seguintes termos:
1- No processo 88/15.0 SVLSB, por acórdão de 01/02/2018, transitada em julgado em 28/11/2018, proferido pelo Juiz 22 do Juízo Central Criminal de Lisboa, por factos praticados desde data não apurada até 12 de Dezembro de 2016, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido (doravante p. e p.) pelos artigos 21°/1 do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-C e II-A anexas ao mesmo diploma, na pena de quatro anos e nove meses de prisão, em concurso real com um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86°/1/c) e d), 2°/1/p), x), az e 3º p) e 3° 2/1, todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado na pena de um ano e seis meses de prisão.
Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de cinco anos e três meses de prisão.
Foi considerado provado que:
- Desde data não apurada, mas anterior a 17/ 09/ 2016, o arguido aderiu ao plano de terceiro, em conjunto com ele e outros indivíduos, de o auxiliar na obtenção e venda de produtos estupefacientes, em especial haxixe, a indivíduos que procediam á sua revenda, na área de Lisboa.
- Incumbia ao arguido NV_______ guardar o produto estupefaciente entregando-o àquele indivíduo para que ele o comercializasse, ou entrega-lo aos compradores mediante indicações do mesmo.
- Assim, o arguido NV_______ vendeu doses de haxixe a vários indivíduos.
- Tal sucedeu designadamente no dia 17/ 09/ 2016, data em que, a solicitação daquele indivíduo, o arguido NV_______ o acompanhou a um encontro com terceiros compradores de estupefacientes, transportando ambos consigo numa mochila 30 placas de cannabis (resina) com o peso líquido de 2.855,729 gramas, apresentando um grau de pureza de 12,5%, suficiente para a elaboração de 7.139 doses médias individuais, produto que entregaram àqueles terceiros.
- Também no dia 15/ 11/ 2016 o arguido NV_______ guardava na sua residência três embalagens que acondicionavam vinte e cinco embalagens menores, contendo cannabis (resina) com o peso líquido total de 2.447,240 gramas, tendo acompanhado aquele indivíduo, a solicitação deste, a um encontro com um terceiro comprador desse o produto, a quem o entregaram.
- No dia 12/ 12/2016, o arguido NV_______ guardava na sua residência:
- duas embalagens e meia contendo cannabis (resina) com o peso líquido de 24,742 grs.,
- um pacote com MDMA com o peso líquido de 1,55 grs.,
- uma arma de fogo de calibre 6,35 mm. com uma munição do mesmo calibre no carregador,
- uma caixa contendo quarenta e quatro munições de calibre 6,35 mm.
- O arguido NV_______ não é titular de licença de uso e porte de arma.
- O arguido NV_______ Voz conhecia a natureza e características dos produtos estupefacientes, destinando-os à venda, e designadamente daqueles que vendeu, visando com a sua actividade obter lucros.
- Agiu em conjugação de esforços e vontades com terceiros, e de acordo com plano comumente traçado com eles.
- Mais conhecia as características e perigosidade da arma e munições que detinha na sua posse, sabendo não deter a necessária autorização para essa detenção.
- Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei.
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2- No processo 76/15.6 SWLSB, por Acórdão datado de 13/03/2018, transitada em julgado em 23/04/2018, proferido no Juiz 20 do Juízo Central Criminal de Lisboa, pela prática, desde data não apurada até 29 de Julho de 2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21º/1 e 25°/a) do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A e I-8 anexas ao mesmo diploma, foi condenado na pena de três anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Foi considerado provado que:
- Em ocasião não concretizada, mas anterior a 29/ 07/ 2015, o arguido acordou com outros dois indivíduos proceder à aquisição de heroína e cocaína destinadas à venda a terceiros, na zona da rua Maria Pia, em Lisboa, e para o efeito adquiriram heroína e cocaína, que transportaram para o imóvel sito no n.° 218 da Rua … em Lisboa, acondicionando tais produtos em doses individuais para venda.
- Em execução de tal acordo, no dia 29/ 07/ 2015, pouco após as 9.00 horas, um desses indivíduos foi ao encontro de vários indivíduos que se encontravam naquela rua, e após breve troca de palavras com estes, acedeu àquele imóvel, regressando logo em seguida, na posse de embalagens de produto estupefaciente, que entregou a tais indivíduos, após receber a respectiva quantia em dinheiro.
- Em seguida, o mesmo indivíduo dirigiu-se para junto do estabelecimento comercial "Bola Azul", sito na mesma rua, ali continuando a aguardar o contacto de compradores de produto estupefaciente.
- No mesmo dia, pelas 9.30 horas, chegou à rua Maria Pia o arguido NV_______ que, colaborando com aquele indivíduo, começou por seu turno a entregar embalagens de produto estupefaciente a consumidores, recebendo a respectiva quantia de pagamento, tendo também encaminhado alguns consumidores para o mesmo indivíduo.
- À vez, e no momento em que não estavam ocupados na concretização de uma venda, o arguido NV_______ ou aquele indivíduo com que colaborava, mantinha uma atitude de vigilância, por forma a detectar a presença de autoridades policiais no local e alertar o outro.
- Na mesma data, o arguido NV_______ tinha consigo:
- quatro embalagens contendo heroína com o peso líquido de 1,405 gramas;
- uma embalagem com o peso bruto de 0,100 grama contendo cocaína (éster met.) de peso líquido não apurado mas seguramente inferior àquele;
- a quantia de € 27,50 em numerário e a chave do imóvel sito no n.° 218 da rua Maria Pia, em Lisboa.
- Ainda no mesmo dia o arguido e aquele indivíduo ocultavam, na residência sita no n° 218 da Rua …, em Lisboa:
- três embalagens ("bolsas") contendo cada uma seis embalagens, mais outras três embalagens (num total de vinte e uma embalagens), todas contendo heroína, com o peso líquido total de 7,713 gramas;
- três embalagens ("bolsas") contendo cada uma seis embalagens (num total de dezoito embalagens), contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido total de 1,557 gramas;
- e quatro embalagens ("bolsas") contendo cada uma cinco embalagens (num total de vinte embalagens), contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido total de 6,818 gramas.
- Por sua vez, o indivíduo com quem o arguido colaborava tinha na sua posse:
- três embalagens contendo heroína com o peso líquido de 1,052 gramas;
- uma embalagem com o peso bruto de 0,089 gr., contendo cocaína (cloridrato) de peso líquido não apurado mas seguramente inferior àquele;
- a quantia de €150,00 em numerário.
- As quantias apreendidas eram produto de vendas de estupefaciente realizadas.
- O arguido e aquele indivíduo conheciam a natureza e características estupefacientes dos produtos que detinham, destinando-os à cedência a terceiros, bem sabendo que tal conduta os fazia incorrer em responsabilidade criminal,
- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei.
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3. O arguido NV______ regista, ainda, mais as seguintes condenações criminais :
i. Em 12/07/2000, pela prática em 15/03/1999, de um crime de furto qualificado tentado, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos (processo n° 278/99.0 PCOER, do 3° Juízo do Trib. de Oeiras)
ii. Em 04/07/2001, pela prática em 23/07/1999, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução, por 3 anos (processo n° 834/99.7 TACSC, do 1° Juízo do Trib. de Cascais).
iii. Em 10/12/2001, pela prática em 31/05/2000 de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão (processo n° 603/00.3 PCOER, do 1° Juízo Criminal de Oeiras).
iv. Em 03/06/2002, pela prática, em 21/02/2001, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão (processo n° 12/01.7 PAOER, do 2° Juízo Criminal de Oeiras).
v. Em 26/05/2003, pela prática em 05/12/2000, de um crime de sequestro, um crime de roubo e um crime de burla qualificada tentada, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos (processo n° 166/00.0 JBLSB, da 1ª Vara Mista de Sintra).
vi. Em 28/05/2003, pela prática, em 17/07/2001, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos de prisão (processo n° 983/01.3 TAOER, do 1° Juízo Criminal de Oeiras).
vii. Em 16/12/2003 pela prática, em 29/03/2003, de um crime de ameaça, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de €2,00 (processo n° 358/01.2 TAOER, do 1° Juízo Criminal de Oeiras).
viii. Em 15/02/2003 pela prática, em 29/12/2000, de um crime de furto, na pena de 5 meses de prisão (processo n° 1416/00.8 PCOER, do 3° Juízo Criminal de Oeiras).
ix. Em 18/10/2007 pela prática, em 17/01/2007, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (processo n° 55/07.7 GEOER, do 3° Juízo Criminal de Oeiras).
x. Em 06/06/2013 pela prática, em 11/05/2013, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e de um crime de injúria agravada, na pena única de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 1 mês (processo n° 296/ 13.8 PEOER, do 1° Juízo Criminal de Oeiras).
xi. Em 30/08/2016 pela prática, em 27/08/2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,00 (processo n° 804/ 16.2 PEOER, do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Lisboa-Oeste, Oeiras)
4. O arguido NV_______ cresceu num meio socioeconómico carenciado e conotado com a existência de elevados índices de criminalidade, sendo o mais novo dos três filhos de um casal que viria a separar-se ainda antes do seu nascimento. Ambos os pais reorganizaram as suas vidas afectivas, tendo o arguido e os irmãos ficado entregues aos cuidados maternos, verificando-se um afastamento relativamente à figura paterna.
Cresceu num agregado familiar desorganizado, marcado pela disfuncionalidade decorrente da relação conflituosa que o arguido viria a estabelecer com o padrasto, bem como pela fraca intervenção da mãe no processo educativo dos filhos, decorrente da sua problemática alcoólica.
Desde o início da escolaridade, foram assinaladas dificuldades de adaptação, elevado absentismo e comportamentos desviantes, vindo NV_______ a abandonar os estudos aos 16/17 anos de idade, por sua iniciativa, durante a frequência do 5° ano de escolaridade. Com o abandono escolar, o arguido teve um período de inactividade, altura em que passou a dedicar-se ao convívio com o grupo de pares marginal do seu bairro de residência, mostrando-se permeável à sua influência e iniciando-se no seio do mesmo no consumo de haxixe e de álcool.
O percurso laboral irregular e a falta de outros proventos económicos, conduziram à sua envolvência em contextos desviantes que facilitaram o estabelecimento do primeiro contacto com o sistema de administração da justiça, tendo acabado por cumprir uma primeira pena de prisão entre 2001 e 2006, e uma segunda entre 2007 e 2009.
Em termos familiares e afectivos, tem dois filhos - actualmente com 10 anos e com 1 ano e 6 meses de idade - de relacionamentos diferentes, os quais estão a cargo das respectivas mães.
Trabalhou antes dos factos como cantoneiro cerca de dois anos na União de Freguesias de Algés.
Mantinha consumos regulares de haxixe iniciados durante a adolescência.
5. Após ter estado sujeito à medida de obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica desde 24/02/2017 à ordem do processo em causa no ponto 1. desta matéria de facto, o arguido foi entretanto detido para cumprimento do remanescente da pena de prisão ali aplicada, tendo estado preso, no E.P. de Sintra, entre Dezembro de 2018 e 14/09/2020, data em que foi libertado em situação de liberdade condicional.
No E.P. desempenhou tarefas numa oficina de peças de caixilharia.
Após libertado, voltou a viver em casa do irmão - com quem sempre estabeleceu uma relação próxima do ponto de vista afectivo - juntamente com este e por vezes a companheira do arguido, mãe do seu filho mais novo.
Mantém assim um convívio regular com o filho mais novo.
A companheira desenvolve actividade laboral como secretária e o irmão como servente da construção civil, sendo a situação económica do agregado humilde.
Encontra-se sem trabalho desde que foi libertado.
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IIII- Fundamentação probatória: O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
« A convicção do Tribunal quanto a este conjunto de factos formou-se com base nos seguintes elementos de prova :
· teor das certidões das decisões condenatórias proferidas nos processos elencados no ponto 1. da matéria de facto provada, e constantes das folhas de processo já ali mencionadas,
· certificado de registo criminal do arguido, junto a fls. 98 e segs.,
· relatório social elaborado pela DGRSP, e considerado em ambas as decisões condenatórias, sendo que o mesmo retracta de forma adequada o percurso de vida dos arguidos até á data da sua reclusão à ordem do processo elencado no ponto 1.1. da matéria de facto.
· declarações prestadas pelo próprio arguido NV_______ em sede de audiência para cúmulo, que designadamente actualizou as informações relativas às suas condições sócio-económicas. ».
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IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1) A pena de prisão decretada ao arguido é inconstitucional porquanto contraria o artigo 1.º da CRP.
2) Ademais, fere o direito internacional e comunitário, na medida em que atentando contra a dignidade humana e a justa necessária ao bom funcionamento de um estado de direito fere os artigos 1.º e 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e bem assim os preâmbulos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
3) O arguido foi libertado em Março de 2020, em regime de liberdade condicional, ou seja, o arguido está em liberdade há cerca de 1 ano, encontrando-se a cumprir integralmente as suas obrigações, desempenhando actividades profissionais pontuais, pois que considerando a pandemia que se vive, tem-se demonstrado difícil uma integração efectiva no mercado de trabalho, mas o certo é que NUNCA mais se verificou qualquer prática criminal pelo arguido.
4) O mesmo tem acompanhado de perto os seus filhos, tendo alias sido pai novamente e mantém uma relação amorosa, estável e consistente.
5) É forçoso e necessário questionar/equacionar e ponderar sobre a pertinência, necessidade e sentido do encarceramento agora decretado.
6) Efectivamente, a medida concreta da pena a aplicar no cúmulo jurídico, tem de resultar fixada dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, o constante do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal (CP): a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
7) Deste modo, à visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, impõe-se uma análise em conjunto, tomando em consideração os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
8) É ainda imperioso ponderar o efeito previsível da pena sobre o comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
9) Por conseguinte, a medida da pena tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.
10) E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores, se aplicou uma determinada pena conjunta.
11) Em nosso ver, esta decisão proferida pelo Tribunal à quo, para além de substantivamente inválida, na medida em que não vai ao encontro de qualquer citério de necessidade, fim de prevenção especial (dado que que o arguido se encontra em liberdade há um ano, sendo ainda indigna dado que o agente foi libertado e não voltou a praticar crimes e por isso criou a legitima espectativa de viver em sociedade e em liberdade), é extemporânea e inócua, para além de materialmente, em nosso ver encontra-se deficientemente fundamentada, porque se limita a reproduzir o texto legal, sem fazer uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender.
12) O Acórdão recorrido é nulo porquanto contraria os critérios da necessidade e oportunidade, bem como os fins de prevenção especial e os princípios fundamentais da pena justa e digna.
13) Segundo a jurisprudência do STJ sobre este tema, o tribunal que procede ao cúmulo jurídico de penas, não deve limitar-se a enumerar os ilícitos cometidos pelo arguido de forma genérica (como é o caso), mas descrever, ainda que resumidamente, os factos que deram origem às condenações, “por forma a habilitar os destinatários da decisão a perceber qual a gravidade dos crimes, bem como a personalidade do arguido, modo de vida e inserção social”. Se a decisão recorrida “não contém elementos que permitam apreender, ainda que resumidamente, os factos e as circunstâncias em que ocorreram e que foram julgados no processo da condenação, e as circunstâncias pessoais que permitam construir uma base de juízo e decisão sobre a personalidade, necessária para a determinação da pena do concurso, tal omissão não permite ao tribunal de recurso tomar uma decisão cuja base de ponderação é, pela lei, precisamente a consideração, no conjunto, dos factos e da personalidade do agente” (Acórdão de 22/02/06, Proc. n.° 116/06, do STJ).
14) “Peca por uma fundamentação deficiente o acórdão em que se considerou “a dimensão da natureza dos crimes praticados, o facto de terem sido cometidos no mesmo período temporal e a personalidade delinquente evidenciada”, abstendo-se de descrever os factos, de caracterizar a personalidade do agente, sem discernir em termos daquele binómio tendência/pluriocasionalidade, não se pronunciando quanto ao efeito da pena sobre a capacidade de ressocialização do arguido” (Acórdão de 22/03/06 do STJ) e verifica-se omissão de fundamentação se o tribunal que procede ao cúmulo jurídico assenta o seu juízo sobre as penas aplicadas anteriormente e não sobre os factos, “não obstante afirmar que “foram analisados os factos, entre os quais os que foram considerados nas sentenças supra referidas seu conjunto...” (Acórdão de 13/09/06, Proc. n.° 2167/06 do STJ).
15) Mais recentemente, em acórdão de 27-05-2010, vieram-se reafirmar de forma minuciosa estas exigências, segundo o qual “O legislador, para além de determinar a obrigatoriedade de fundamentação, de facto e de direito, de todos os actos decisórios proferidos no decurso do processo (cf. art. 97.°, n.° 5, do CPP), a qual decorre de imperativo constitucional (cf. art. 205.°, n.° 1, da CRP), instituiu, para as decisões que conheçam, a final, do objecto do processo, uma exigência de fundamentação acrescida. A fundamentação de facto da sentença a proferir após a realização da audiência, nos termos do art. 472.° do CPP e para os efeitos do art. 78.° do CP, deve conter a indicação das datas das condenações e do respectivo trânsito, a indicação das datas da prática dos crimes objecto dessas condenações e das penas que, por eles, foram aplicadas, a caracterização dos crimes que foram objecto dessas condenações e todos os factos que interessam à compreensão da personalidade do condenado neles manifestada. Como tem sido afirmando no STJ (cf. Acs. de 14-05-2009, Proc. n.° 170/04.9PBVCT, de 21-05-2009, Proc. n.° 2218/05.0GBABF, e de 04-11-2009, Proc. n.° 177/07.4PBTMR.S1), se não é necessário nem útil que a decisão que efectue o cúmulo jurídico de penas, aplicadas em decisões já transitadas, enumere exaustivamente os factos dados por provados nas decisões anteriores, já é imprescindível que contenha uma descrição, ainda que sumária, desses factos, de modo a permitir conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos e a personalidade do arguido neles manifestada. Na elaboração da sentença condenatória releva, ainda, o art. 375.° do CPP que, no seu n.° 1, dispõe, nomeadamente, que “a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada”. Trata-se da concretização, a nível processual, da imposição resultante do n.° 3 do art. 71.° do CP “Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. Poder-se-ia afirmar que, como nenhuma norma comina a nulidade para a inobservância do dever de especificação dos fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, imposta pelo art. 375.°, n.° 1, do CPP, tal inobservância consubstanciaria mera irregularidade art. 118.°, n.°s 1 e 2, do CPP. Entende-se, porém, que a especificação dos fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena se integra no dever de fundamentação das razões de direito da decisão, a que se refere o n.° 2 do art. 374.° do CPP, e que a omissão de tal especificação determina a nulidade da sentença (cf. art. 379.°, n.° 1, al. a), do CPP). No caso de realização de cúmulo jurídico das penas, a fundamentação da pena única deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo e para além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade da pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos. É nulo o acórdão, por insuficiência de fundamentação de facto e de direito, quando se limita a indicar os crimes que foram objecto da condenação, sem especificar, embora de forma concisa, os factos que os consubstanciaram, quando é absolutamente omisso quanto à personalidade do arguido (nada contém sobre as suas condições pessoais, familiares e sociais à data em que cometeu os crimes) e quando nada esclarece sobre a avaliação da personalidade do arguido e da globalidade dos factos por ele praticados´”.
16) Segundo o STJ “Em obediência a tal preceito art. 374.º, n.º 2 do CPP, o tribunal está obrigado a fundamentar a decisão em termos de facto e de direito (...), indicando, ainda que sucintamente, as circunstâncias (de tempo, lugar e modo) em que foram cometidos os vários crimes que deram origem às várias condenações do recorrente, de maneira a que se perceba qual a ligação ou tipo de conexão que intercede entre os vários factos, encarados numa perspectiva global, e a sua relacionação com a personalidade do recorrente: se esses factos são a expressão de um modo de ser, de uma escolha assumida de determinado trajecto de vida, em suma, se radicam na personalidade do agente, ou se são antes fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais, ou de uma particular conjuntura da vida do recorrente, uma situação passageira, mais breve ou mais longa, mas não um traço da personalidade (ou seja, aquilo que a doutrina designa de pluriocasionalidade). Esse é, de resto, o substrato da própria fundamentação da medida da pena única, que não consiste numa simples adição de penas, mas na imposição da pena conjunta mais adequada a uma determinada avaliação do ilícito global e da “culpa pelos factos em relação”.
17) Desta feita, cremos que o Acórdão proferido é nulo por falta de fundamentação.
18) Tendo neste processo 76/15.SWLSB sido declarada suspensa na sua execução (pelo período de 3 anos e 4 meses), e sendo certo que essa suspensão da pena não foi objecto de revogação, não deveria a mesma ter sido incluída em cúmulo jurídico de penas, porque precisamente mantém intacta a sua natureza de pena suspensa na sua execução.
19) Destarte, não tendo sido revogada a aludida suspensão de execução de pena, a integração desta última num cúmulo jurídico de penas corresponderia materialmente a uma revogação da mesma suspensão sem que se mostrem verificados os pressupostos que a Lei prevê (cfr. artigo 56.º do CP).
20) “Assim, situação que resultaria da inclusão da pena em causa no cúmulo jurídico de penas, traduzir-se-ia no cumprimento – ainda que parcelar – em termos efectivos uma pena de prisão que o arguido poderá vir a não ter de cumprir de todo (se tal suspensão não vier a ser revogada). Neste sentido, decidiu-se no Ac. da Relação de Lisboa de 11/09/2013 (sumário) [1] que : «I. Em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes, a pena única não deve englobar as penas parcelares cuja execução ficou suspensa na sua execução, porquanto estas são penas de substituição e, portanto, têm diferente natureza das penas de prisão. Cumular reclusão com liberdade é operação que se mostra, em si mesma, impossível. II. A inclusão no cúmulo de uma pena de prisão declarada suspensa só pode ocorrer se tiver havido decisão de revogação nos termos do art. 56.0 do CPP, em que a pena substituída é afastada, retornando à pena base». E desenvolve-se no próprio texto do acórdão que «a lei expressamente impõe que tal alteração [de pena de natureza não privativa da liberdade para ordem de reclusão] só pode ocorrer por virtude de um comportamento culposo do condenado (vide arts. 55º e 56º do Cód. Penal». Ora, esse acto culposo há-de surgir no decurso do prazo de suspensão da execução da pena e não antes dele, como acaba por acontecer quando de forma acrítica se integram na mesma pena conjunta penas de prisão efectiva e "penas suspensas", colocando-se no mesmo plano a condenação transitada em julgado por facto cometido antes do transito em julgado de outra condenação e o facto culposo cometido após o trânsito em julgado da condenação que aplicou uma pena de prisão cuja execução ficou suspensa. No caso dos cúmulos jurídicos supervenientes – como seria aqui o caso –, é evidente que a lei determina que deve ser aplicada ao arguido uma pena única de modo a alcançar-se uma visão global de todas as suas condutas integradas numa relação de concurso, como se todos os processos tivessem sido julgados em simultâneo. Mas tal objectivo não só não pode constituir-se como causa legítima para contornar regras expressas de revogação da suspensão da execução das penas de prisão e de salvaguarda da diferente natureza das penas – que não são excepcionadas pela lei no caso de cúmulos jurídicos supervenientes –, como também não pode, de forma cega e sem ponderação de consequências, fazer recair sobre os arguidos todos os riscos e malefícios do mau, no sentido de retardado, funcionamento da justiça, ou constituir-se como factor de limitação da credibilidade das "penas suspensas" e de desincentivo ao seu cumprimento. Importa realçar que a não inclusão no cúmulo jurídico das "penas suspensas" não significa uma qualquer "impunidade" por parte do arguido e não implica que tal inclusão não possa no futuro vir a ser efectuada. Na verdade, caso venha a ser revogada a suspensão da execução da pena, de acordo com o disposto no art. 56º do Cód. Penal será nessa altura reformulado o cúmulo jurídico e as penas antes "suspensas" e agora efectivas serão ali englobadas – e aí sim sem atropelo por princípios de confiança, segurança e estabilidade jurídica, visto o arguido ter revelado através de conduta culposa posterior não ser merecedor da oportunidade de cumprir em liberdade a pena aplicada, não beneficiando também, por isso, de qualquer desconto, visto não ter cumprido a anterior "pena suspensa". Em face de tudo o exposto, e com os fundamentos expostos, decido não proceder afinal a cúmulo jurídico entre pena aplicada ao arguido NV_______ nos presentes autos com aquela aplicada no mencionado processo nº 88/15.5 SVLSB, do Juiz 22 deste JCCL.”
21) Não se pode aliás, aditar mais ao decidido pelo Tribunal à quo em 08.06.2020 e que acima se transcreveu.
22) Não está pois, de acordo com a lei, e com os fins do cúmulo jurídico de penas, a condenação ora verificada.
23) Sem conceder, a pena ora aplicada é excessiva, designadamente em face dos fins de prevenção especial que se fazem sentir e tomando em consideração eu o arguido está em liberdade há um ano sem qualquer prática criminosa e numa altura onde de enfrenta tamanhas adversidades causadas pela pandemia mundial, o que mais justifica que o arguido não seja novamente encarcerado.
24) Pelo exposto a pena deverá situar-se no mínimo, em respeito ao critério do quantum da pena do artigo 40.º do CP, i.e. no limite 5 anos e dessa feita ser suspensa e a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, conforme vem determinado no artigo 71.º do CP.
25) No que concerne à prevenção especial de socialização é de considerar e em sentido favorável ao arguido, a circunstância de se encontrar familiar e socialmente bem inserido.
26) Ponderando todas as circunstâncias, entende-se adequada, proporcionada, e bastante, a condenação do recorrente em tudo pelo mínimo, fixando-se o limite dos 5 anos, e bem assim ordenada a suspensão da execução.
27) Sem conceder, e caso assim não se entenda, requer-se a aplicação de pena nunca superior a 5 anos cumprida com recurso a OPHVE.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se seja o presente recurso recebido e em sua consequência, seja o Acórdão proferido revogado e ee declare a não cumulação jurídica de penas do arguido,
Caso assim não se entenda, seja conhecida a nulidade da falta de fundamentação do Acórdão sendo o mesmo nulo,
Caso assim não se entenda, se fixe o limite da pena condenatória em 5 anos e se suspenda a sua execução
Caso assim não se entenda, se fixe o limite da pena em 5 anos e se aplique uma medida de OPHVE
Requer-se a realização de audiência com vista a discutir da admissibilidade ou não da possibilidade de cumular penas suspensas na sua execução e penas de prisão efectivas.».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1. Nestes autos foi o arguido, em cúmulo jurídico de penas (Processos n.ºs 88/15.0SVLSB e 76/15.6SWLSB) condenado na pena de 6 anos e 3 meses de prisão;
2. O arguido requerer a não cumulação jurídica de penas, porém e relativamente a tal questão pronunciou-se, nos presentes autos o Tribunal da Relação de Lisboa, Ac. de 3.12.2020, Proc. 76/15.6SWLSB-B e que nos escusamos de reproduzir na íntegra, mas que consideramos exemplar no tratamento das questões suscitadas pelo recorrente;
3. Um cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, que visa determinar a medida da pena que determinado agente deve sofrer em consequência do cometimento de vários crimes, dentro de determinado espaço de tempo;
4. O sistema penal Português, que pela pena visa a ressocialização do agente, pela consideração da culpa e da necessidade de ressocialização, só pode ser compatível com o entendimento de que é devido o cúmulo de penas de prisão efectivas e suspensas na sua execução.
5. Existindo concurso de crimes, uma pena de substituição apenas pode ser aplicada à pena única conjunta dele decorrente, então tal regra deve valer quer nos casos de cúmulo inicial, quer de cúmulo superveniente, já que a nossa lei instituiu tendencialmente um regime de transposição integral, isto é, de unidade de regras materiais sobre a punição do concurso de crimes, independentemente do momento processual do seu conhecimento;
6. A aplicação de uma pena de substituição está resolutivamente sujeita à verificação superveniente da existência de um concurso de crimes que não era conhecido ou que não podia ser considerado aquando da primitiva condenação e, como tal, abrangida por um efeito de caso julgado rebus sic standibus e não propriamente porque se entenda que as penas de substituição sejam apenas meras formas de cumprimento das penas principais.
7. A alteração de 2007 ao n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal, no sentido de no cúmulo jurídico superveniente serem incluídas as penas já cumpridas, retirou relevo ao argumento assente na necessidade de preservação da paz jurídica do condenado. Dessa forma, deve prevalecer o princípio da transposição integral, subjacente ao regime do conhecimento superveniente do concurso de crimes e tributário do princípio da igualdade, nos termos do qual se deve procurar obter o mesmo resultado punitivo em casos de concurso de crimes, quer esse concurso seja conhecido e julgado ab initio, quer o seja apenas em momento subsequente à prática desses crimes;
8. O presente acórdão não padece de qualquer vício de fundamentação, pelo que nos termos do disposto no artº 97º do Código de Processo Penal as decisões dos Tribunais têm de ser fundamentadas de facto e de direito;
9. O recorrente que a pena única aplicável tem, nos termos do art.º 77.º, n.º 2, do C.Penal, como limite máximo a soma das várias penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada dessas mesmas várias penas;
10. Ora, perante uma moldura punitiva que se situa em pena de prisão a decidir entre o mínimo de 4 anos e 9 meses (valor da pena concreta mais elevada aplicada ao arguido daquelas que integram o cúmulo) e o máximo de 9 anos e 7 meses (soma das três penas concretas que integral o cúmulo), entendemos adequada fixar ao arguido a pena única de 6 anos e 3 meses de prisão;
11. O arguido regista anteriormente aos factos 9 condenações, por crime de furto qualificado, por crime de roubo, crime de sequestro, crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, crime de ameaça, crime de resistência e coacção sobre funcionário, crime de injúria agravada e crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
12. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento, devendo manter-se integralmente o douto acórdão recorrido.».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
- Nulidade do acórdão porquanto contraria os critérios da necessidade e oportunidade, bem como os fins de prevenção especial e os princípios da pena justa e digna;
- Ilegalidade da cumulação de penas efectivas com penas suspensas;
- Aplicação de uma pena suspensa na sua execução ou de execução no domicílio.
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VI- Fundamentos de direito: 1- Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação:
O arguido entende que o acórdão é nulo, por falta de fundamentação, o que faz simplesmente com reporte para os arestos que transcreve, sem qualquer transposição da tese neles defendida para o acórdão recorrido.
Não vamos aqui repetir o que é dito nos acórdãos citados, aliás transcrito para as conclusões de recurso que copiam o corpo da motivação, em contramão com o disposto no artigo 412º/1, do CPP.
Constata-se, contudo, que todas as exigências de fundamentação a que o arguido se reporta, e be, estão cumpridas no acórdão recorrido que indica, face a cada uma das duas condenações em operação de cúmulo jurídico, as datas dos factos, da decisão e do trânsito em julgado, a descrição dos factos cometidos, dos crimes nos quais foram integrados e das penas respectivas. Mais foi ponderado o passado criminal do arguido, as suas condições de vida, a nível familiar, social, económico e de saúde. Não se descortina que outros factos o arguido entende que pudessem ser relevantes para as operações de cúmulo jurídico das penas, algo, aliás, que ele próprio também não referiu.
Não se vislumbra, pois, a referida nulidade, decaindo a sua invocação.
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2- Da nulidade do acórdão porquanto contraria os critérios da necessidade e oportunidade, bem como os fins de prevenção especial e os princípios da pena justa e digna:
O arguido insurge-se contra a fixação de uma pena única, que foi fixada em prisão efectiva, porque está em liberdade há cerca de um ano e não voltou a cometer outros crimes. E, com fundamento nestes considerandos invoca a nulidade do acórdão recorrido, nos termos supra mencionados.
Ora, como o arguido sabe, porquanto patrocinado por profissional do foro, o Código de Processo Penal Português (doravante CPP) prevê um regime de nulidades absolutamente fechado, tipificado, a que se dá o nome de princípio da legalidade (artigo 118º/CPP). Significa isto que constitui nulidade aquilo e só aquilo que o CPP ou legislação processual avulsa configura expressamente como tal. Não invocando o arguido que normas configuram a sua discordância como nulidade, nem se descortinando oficiosamente que as haja, resta a declaração da improcedência da pressuposta nulidade de decisão.
A par da invocada nulidade, o arguido considera que o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e o direito internacional e comunitário, «na medida em que atentando contra a dignidade humana e a justa necessária ao bom funcionamento de um estado de direito fere os artigos 1.º e 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e bem assim os preâmbulos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos».
Mais uma vez deixa no tinteiro em que termos essa contrariedade das normas invocadas se verifica, sendo que a cumulação de penas é um instituto processual penal obrigatório, sempre que reunidos os respectivos pressupostos processuais.
Nos termos do artigo 412º/ 1, do CPP, «a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido». Isto significa que qualquer recurso se estrutura em torno de uma concreta pretensão de modificação da decisão de que se recorre, pretensão essa que carece de ser motivada com a indicação expressa dos seus concretos fundamentos, de direito e de facto, sujeita a um resumo conclusivo.
Manifestamente, o nosso direito processual penal adoptou, em matéria de recursos, a orientação de que estes se regem pelo princípio do dispositivo, isto é, são as partes que dispõem do direito de impugnar, ou não, as decisões. Sendo a manifestação de uma discordância em relação à decisão judicial proferida, o recurso é o remédio jurídico de que a parte dispõe para ver essa decisão substituída por outra que, no seu entendimento, melhor tutele o seu direito. Consequentemente, ao recorrente cabe um duplo ónus: o de indicar, com precisão, o que entende que foi mal julgado e o de propor a solução que entende que melhor se adequa à aplicação da lei. A proposta de solução carece de ser concreta, precisa e susceptível de rigorosa apreciação pelo Tribunal de recurso, quer na perspectiva dos factos em que se alicerça, quer na da aplicação do direito que, no entendimento do recorrente, resultaria numa decisão mais conforme com a lei.
Ora, compulsados os termos do presente recurso, verifica-se que o arguido não invoca qual o fundamento legal para a pretensão nem ele existe.
A questão da natureza e quantum da pena aplicada é discutível apenas no âmbito das normas que estabelecem as regras a que se sujeita a operação, que não se mostram sequer beliscadas.
Improcede, pois, também esta segunda pretensão.
*** 3- Da ilegalidade da cumulação de penas efectivas com penas suspensas:
A verdadeira questão que subjaz ao recurso é a discordância do arguido com a cumulação de penas que lhe aumentou a pena efectiva a cumprir. Defende, na conformidade, que não é legal a cumulação entre penas efectivas e suspensas na sua execução.
A questão que se coloca nos autos é a velha divergência acerca da legalidade da realização de cúmulo jurídico entre penas de prisão e penas de prisão suspensas na sua execução, que vem sendo decidida, por forma largamente maioritária, na jurisprudência do STJ e das Relações, no sentido da legalidade e necessidade da cumulação.
Repetimos aqui o que recentemente escrevemos no acórdão tirado no processo 76/15.6SWLSB-B.L1.
Um cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, que visa determinar a medida da pena que determinado agente deve sofrer em consequência do cometimento de vários crimes, dentro de determinado espaço de tempo.
Busca-se aqui, tal como na fixação de uma pena aplicada pela prática de um só crime, a sanção adequada quer à culpa do agente quer às exigências de prevenção, nos precisos termos do comando contido no artigo 71º/CP. Porque estas são as balizas da medida de qualquer pena é que o artigo 77º/CP define como limites da pena unitária a pena mais baixa e a soma das penas aplicadas, dando ao Juiz a margem necessária para que fixe a pena justa, considerando a globalidade dos ilícitos e a culpa manifestada, ou seja, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1, do CP).
As operações que se hão de efectuar para encontrar a pena justa são precisamente as mesmas quer o concurso ocorra em face de um único processo, quer se venha a apurar subsequentemente.
E tais operações aplicam-se independentemente da natureza das penas em concurso.
O sistema penal Português visa a ressocialização do agente, pela consideração simultânea da culpa e da necessidade de ressocialização e tal desiderato só é compatível com o entendimento de que é devido o cúmulo de penas de prisão efectivas e suspensas na sua execução, desde que em situação de concurso.
A dificuldade que se coloca deriva do entendimento (certíssimo) de que a pena de prisão suspensa na sua execução é uma pena de substituição, portanto algo autónoma da pena de prisão. Mas, há que atentar na medida da autonomia para que a solução a dar ao problema lhe seja proporcionada.
Ora, analisada a estrutura das penas suspensas na sua execução, há que assumir que o caso julgado incide, única e exclusivamente, sobre a medida da pena e não sobre a sua forma execução. Esta está subordinada quer ao cumprimento de regras impostas, podendo perdurar no tempo por mais tempo, até metade do período inicialmente previsto (artigo 55º/d), do CP), quer ao cometimento de novos crimes (artigo 56º/CP) não como sanção pela prática específica desses crimes, mas como resultado do reflexo que eles exibem das necessidades correctivas sobre a personalidade do agente.
No caso de concurso de crimes, a questão é rigorosamente a mesma: definir e aplicar ao agente uma pena que reflicta, em face de todos os crimes, a medida de penalização adequada à sua socialização e reinserção social, que é o fim último de qualquer pena.
Ora, a medida de imposição punitiva que se revela não é, necessariamente pela via da lógica, compatível com a imposição de penas efectivas a par da suspensão de outras. Ou se entende que o agente apenas pela via da prisão efectiva alcançará os desideratos sociais subjacente à justiça penal, ou não: e na conformidade há que decidir qual o tipo de pena aplicável. Nada obsta a que a uma conjugação de penas suspensas se adeqúe uma pena efectiva como também que que à conjugação de penas suspensas e efectivas se entenda que a pena justa pode ser suspensa.
Sendo a finalidade e a forma de actuação da figura jurídica do cúmulo de penas a que se acaba de referir, é a própria filosofia do sistema penal que a consagra e as regras que este define para a fixação da pena que impõem a cumulação de penas de prisão, em qualquer forma de execução que se configurem no momento da apreciação da pena justa a aplicar àquele preciso concurso de crimes.
A constitucionalidade desta solução já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que, pelo acórdão n.º 3/2006, de 3 de Janeiro de 2006, não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 77.º, 78º e 56º, nº 1 do CP, quando interpretadas no sentido de que, verificando-se uma situação de conhecimento superveniente de concurso de infracções, na pena única do mesmo resultante pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares de prisão constantes de anteriores condenações.
A solução dada a esta questão tem vindo a cristalizar-se no entendimento de que há lugar a cúmulo entre estes dois tipos de penas, mediante uma série de argumentos que João Pedro Batista sintetizou no boletim 33 da revista Julgar, e que, por facilidade, transcrevemos: «A resposta negativa assenta a sua argumentação, no essencial, na diversa natureza dogmática das penas substitutivas, na intangibilidade do caso julgado e na tutela das expectativas legitimamente criadas e da paz jurídica do condenado. Argumenta-se, em primeiro lugar, que as penas de substituição são penas autênticas, distintas e autónomas das penas principais que visam substituir, cuja aplicação obedece a finalidades de prevenção geral e especial, como qualquer outra pena, e não meras formas de execução destas. Nesta perspectiva, o caso julgado há-de abranger não só a pena principal, como também a pena de substituição que, in casu, tenha sido aplicada. Significa isto que a restrição à intangibilidade do caso julgado, que a realização de um cúmulo jurídico, no âmbito do conhecimento superveniente do concurso de crimes, sempre implicaria — já que estão sempre em causa decisões condenatórias transitadas em julgado —, apenas encontra justificação constitucional quando e na medida em que a aplicação do regime do artigo 78.º do Código Penal obedeça à teleologia subjacente ao mesmo, isto é, quando ocorrer uma materialização do princípio de que o cúmulo jurídico e a obtenção de uma pena única conjunta são mais favoráveis ao condenado do que a acumulação material das penas parcelares. Assim, em todos aqueles casos em que da realização do cúmulo jurídico no âmbito do conhecimento superveniente do concurso de crimes resulte uma pena efectivamente mais grave, inexiste justificação legal e constitucional para a preterição do caso julgado — enquanto decorrência directa da proibição constitucional do non bis in idem, consagrada no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa —, ocorrendo a violação da paz jurídica do condenado ([3]). Em sentido contrário — que se acompanha — argumenta-se que a exclusão (ou a facultatividade) da aplicação do regime da punição do concurso de crimes conhecido supervenientemente, naqueles casos em que tenham sido aplicadas penas de substituição, não encontra suporte legal, designadamente no artigo 78.º do Código Penal ([4]) Entende-se, ainda, que o efeito de caso julgado, na parte em que abrange as penas de substituição que sejam aplicadas a penas parcelares, tem uma natureza rebus sic standibus, cedendo quando se demonstre que outros crimes foram cometidos pelo agente antes do trânsito em julgado dessa condenação e que, como tal, existia um concurso de crimes que não foi tido em consideração. Se não sofre dúvidas que, no caso paradigmático de concurso de crimes julgado em simultâneo, a questão da aplicação de penas de substituição apenas se coloca quanto à pena única conjunta ([5]), isso significa que, na determinação desta, só se tomam em conta as penas principais concretamente aplicadas a cada crime individualmente considerado. E, se assim é, também quando o conhecimento desse concurso de crimes ocorra em momento subsequente a realização do respectivo cúmulo, na medida em que obedece às regras do artigo 77.º do Código Penal, deve ser efectuada tendo por base as penas principais — agora já transitadas em julgado, como impõe o n.º 2 do artigo 78.º do mesmo código —, apenas se colocando a questão da aplicação das penas de substituição em momento ulterior, isto é, uma vez determinada a medida concreta da pena única conjunta. Assim, dado que, existindo concurso de crimes, uma pena de substituição apenas pode ser aplicada à pena única conjunta dele decorrente, então tal regra deve valer quer nos casos de cúmulo inicial, quer de cúmulo superveniente, já que a nossa lei instituiu tendencialmente um regime de transposição integral, isto é, de unidade de regras materiais sobre a punição do concurso de crimes, independentemente do momento processual do seu conhecimento. É por isso que se entende que a aplicação de uma pena de substituição está resolutivamente sujeita à verificação superveniente da existência de um concurso de crimes que não era conhecido ou que não podia ser considerado aquando da primitiva condenação e, como tal, abrangida por um efeito de caso julgado rebus sic standibus ([6]) e não propriamente porque se entenda que as penas de substituição sejam apenas meras formas de cumprimento das penas principais. Só desta forma se consegue, verdadeiramente, alcançar o desiderato prosseguido com a opção legal pela pena única conjunta, que passa não só por uma adequada forma de execução, como essencialmente pela atribuição da pena justa, em função de uma avaliação conjunta da personalidade do agente e do conjunto dos factos ou, na expressão feliz de Cristina Líbano Monteiro a determinação de uma «pena voltada para ajustar a sanção — dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares — à unidade relacional de ilícito e culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes» ([7]). Por outro lado, apenas esta solução permite prosseguir da melhor forma o intuito legal de obter o mesmo resultado punitivo em casos de concurso de crimes, quer esse concurso seja conhecido e julgado ab initio, quer o seja apenas em momento subsequente. Trata-se de um objectivo assumido expressamente no n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal e postulado igualmente pelo princípio da igualdade. ([8]) Nessa medida, crê-se ser igualmente improcedente a argumentação assente nas expectativas do condenado de que «[n]essas circunstâncias, teria razões para formar a expectativa de que quanto aos crimes que motivaram essas condenações as suas “contas” com a justiça se encontravam definitivamente encerradas» ([9]). Isto porque, se se pode aceitar a ideia de que o agente não está obrigado a informar o tribunal de outros crimes que tenha cometido e/ou que estejam a ser julgados e que possam estar numa relação de concurso ([10]) (designadamente para que se possam desencadear, quando legalmente admissíveis, os mecanismos de conexão processual), já não é aceitável que o agente funde nessa falta de informação do tribunal uma expectativa que seja tida por legítima e, assim, digna de tutela jurídica. Isto porque o agente sabe que, ao fixar aquela pena de substituição, o tribunal desconhecia uma parte da realidade relevante para o juízo em que fundou essa opção sancionatória. Dessa forma, tendo o agente a consciência de que cometeu os aludidos crimes e que os mesmos estão entre si em concurso — e rejeitando-se a tese do cúmulo facultativo —, não se vê em que possa fundar a legitimidade da expectativa de que, uma vez conhecidos, não serão supervenientemente objecto de cúmulo jurídico, como sempre seriam, caso tivessem sido conhecidos ab initio. É que — como também se deve reconhecer — nem sempre é possível, no plano prático e mesmo no plano legal ([11]), julgar e punir num mesmo processo todos os crimes que se encontrem numa relação de concurso, na acepção do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, sendo infundada a ideia de que, subjacente aos casos de conhecimento superveniente do concurso de crimes, estão necessariamente falhas na administração da justiça, que não podem redundar em prejuízo para o agente ([12]) Crê-se, ainda, que a alteração de 2007 ao n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal, no sentido de no cúmulo jurídico superveniente serem incluídas as penas já cumpridas, retirou relevo ao argumento assente na necessidade de preservação da paz jurídica do condenado. Dessa forma, deve prevalecer o princípio da transposição integral, subjacente ao regime do conhecimento superveniente do concurso de crimes e tributário do princípio da igualdade, nos termos do qual se deve procurar obter o mesmo resultado punitivo em casos de concurso de crimes, quer esse concurso seja conhecido e julgado ab initio, quer o seja apenas em momento subsequente. prática desse crime». Quanto ao princípio da igualdade, cf. o Ac. do TRL de 22-09-2011, Em suma, parece ser de entender, como princípio geral ([13]), que, no âmbito do conhecimento superveniente do concurso de crimes, a realização do cúmulo jurídico impõe a desconsideração de todas as penas substitutivas aplicadas nos crimes em concurso — e a anulação ([14]) dos cúmulos anteriores que tenham sido efectuados no entretanto —, atendendo-se unicamente às penas principais. Só após a determinação concreta da pena única conjunta se ponderará, em face da mesma, da aplicabilidade de alguma pena de substituição ([15])».
A propósito do mesmo tema, veja-se o que consta do sumário do recente acórdão do STJ, tirado no processo 325/19.8T8PNF.S1, a 15/7/2020: «I - O STJ tem examinado a questão da inclusão de uma pena suspensa numa decisão de cúmulo jurídico de penas, no âmbito de um concurso superveniente de crimes, entendendo que as penas suspensas deverão ser englobadas no cúmulo jurídico desde que não tenham sido declaradas extintas pelo decurso do prazo de suspensão. II – De acordo com a posição predominante, no sentido da inclusão da pena de prisão suspensa na execução, defende-se que a “substituição” deve entender-se, sempre, resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso e que o caso julgado forma-se quanto à medida da pena e não quanto à sua execução. III - O STJ tem entendido de forma dominante que não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respectivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do Código Penal, ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão, pois no caso de extinção nos termos do artigo 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o será nas restantes hipóteses. IV (….) V - As penas conjuntas aplicadas em anteriores cúmulos jurídicos de penas perdem a sua subsistência, devendo desaparecer, perante a necessidade de uma nova recomposição de penas já que na reformulação de um cúmulo jurídico, as penas a considerar são sempre as penas parcelares, não as penas conjuntas anteriormente fixadas. VI - Havendo lugar à elaboração de um cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de mais situações em concurso (artigo 78.º do Código Penal), são desfeitos os cúmulos anteriores que hajam sido realizados, e todas as penas parcelares readquirem a sua autonomia, devendo todas elas ser ponderadas na determinação da pena única conjunta, a qual se move numa moldura penal abstracta balizada pela pena parcelar mais grave e pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sem que possa ser ultrapassado o limite máximo de 25 anos, conforme artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, preceito que alude às «penas concretamente aplicadas aos vários crimes» e nunca em penas únicas conjuntas. VII – O STJ tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente». VIII - A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado. IX – Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». X - Pressuposto material de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade». XI - Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»
Em face do exposto, resta a declaração da legalidade do cúmulo efectuado, que abrange uma pena de prisão suspensa na sua execução, cujo período da suspensão não ocorreu ainda.
*** - Da aplicação de uma pena suspensa na sua execução ou de execução no domicílio:
O recorrente discorda também da medida da pena, que considera excessiva, «em face dos fins de prevenção especial que se fazem sentir e tomando em consideração eu o arguido está em liberdade há um ano sem qualquer prática criminosa e numa altura onde de enfrenta tamanhas adversidades causadas pela pandemia mundial, o que mais justifica que o arguido não seja novamente encarcerado», estando familiar e socialmente bem inserido.
Entende que a pena deverá fixar-se no limite mínimo dos 5 anos ser suspensa ou cumprida com recurso a OPHVE.
Ora, o que está em causa é a efectivação de um cúmulo jurídico entre três penas, a saber:
- de quatro anos e nove meses de prisão por um crime de tráfico de estupefacientes,
- de um ano e seis meses de prisão, por um crime de detenção de arma proibida
- de três anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Neste preciso processo foram cumuladas as duas primeiras penas, dando origem a uma pena única de cinco anos e três meses de prisão.
Essa decisão transitou em julgado.
Manifestamente, a opção por uma pena inferior equivaleria a uma violação do caso julgado formado, porque nenhum factor susceptível de interferir na medida da pena ocorreu - quer a nível processual quer a nível substantivo, das condições de vida do arguido, que estava sujeito ao cumprimento de uma pena efectiva.
Acresce que, a estas duas penas acresce a pena de mais um crime de tráfico de estupefacientes, com uma pena de três anos e quatro meses de prisão, que necessariamente pesa na pena de cúmulo, porque reforça o entendimento da incapacidade de o arguido se comportar de forma conducente com as regras da sociedade, que atinge de forma gravosa e reiterada.
O facto de ter estado um ano sem novas condenações é inócuo para efeitos da natureza da pena, porque o cadastro criminal do arguido, que regista anteriormente aos factos nove condenações, por crime de furto qualificado, por crime de roubo, crime de sequestro, crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, crime de ameaça, crime de resistência e coacção sobre funcionário, crime de injúria agravada e crime de condução de veículo em estado de embriaguez, impõe a consideração de que nenhuma das penas sofridas, nem sequer o conjunto delas, foi suficiente para a promoção das necessidades de prevenção especial que se revelam e revestem de particular intensidade.
Em face da factualidade pertinente para a fixação da pena em cúmulo que reflecte a personalidade do agente pelo conjunto dos factos cometidos, não há defeito que se possa assacar à pena única fixada.
Improcede, na conformidade, a alteração de pena requerida.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 3 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 09-06-2021
Graça Santos Silva
A. Augusto Lourenço
_______________________________________________________ [1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995. [3] Assim, cf. NV_______ Brandão, op. cit., passim [4] Assim, André Lamas Leite, «A suspensão da execução da pena privativa da liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, II, Coimbra, 2009, p. 608 e seguintes. [5] Assim, por todos, Jorge Figueiredo Dia, op. cit., § 430, p. 295. Na jurisprudência, por todos, cf. o Ac. do STJ de 21-11-2012, proc. 153/09.2PHSNT.S1. [6] Cf. o Ac. do STJ de 09-11-2006, proc. 06P3512. [7] Op. cit., p. 165. [8] Cf. o Ac. do STJ de 02-06-2004, proc. 04P1391, onde se pode ler: «[a] posterioridade do conhecimento «do concurso», que é a circunstância que introduz as dúvidas, não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são, como se referiu, de ordem substancial. (…) Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso, deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projecta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime». Quanto ao princípio da igualdade, cf. o Ac. do TRL de 22-09-2011, proc. 33/07.6PDFUN-A.L1-9. [9] NV_______ Brandão op. cit., p. 130. [10]Idem, p. 133 [11]Nomeadamente em face dos limites legais à conexão de processos (note-se que o artigo 24.º do Código de Processo Penal não esgota os casos de concurso de crimes). [12]Cf. Maria João Antunes, «Comentário à Sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Almada de 9 de Dezembro de 1997», AAVV, Droga. Decisões de Tribunais de 1.ª Instância: 1997, IPDT, 2000, p. 285. [13] (…). [14] A expressão é de Figueiredo Dia, op. cit., § 429, p. 295. [15] Também neste sentido, cf. Tiago Calhado Milheiro, op. cit., § 96, p. 106 a 108