RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
REQUISITOS
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


Neste Supremo Tribunal de Justiça foi, em 28JAN2021, proferido acórdão, no processo 12674/16.6T8LSB.L1.S1, intentado por AA contra BB e CC, confirmando o acórdão da Relação que, reconhecendo o Autor como herdeiro legitimário de DD (pai e ex-marido dos Réus), decretou a nulidade da partilha judicial (para separação de bens comuns do casal de DD) celebrada pelos Réus em 27ABR2006 (depois do decesso de DD) e condenou a Ré a restituir à herança os bens partilhados ou o valor recebido pela sua alienação.

Em 09MAR2021 vieram BB e CC (doravante Recorrentes) interpor recurso para uniformização de jurisprudência, invocando contradição com os acórdãos do STJ de 15MAR2013 (proc. 55/06.3TBARC.P1.S2) e de 02JUN2020 (proc. 3278/16.4T8GMR.G1.S1), propondo o seguinte segmento uniformizador:

O artigo 1260º, nº 2 do código civil consagra uma verdadeira presunção legal ‘juris tantum’ e não uma dispensa ou liberação do ónus da prova.

Tal presunção apenas pode ser elidida através de prova do contrário (nos termos do nº 2 do artigo 350º do Código Civil), não sendo suficiente a dúvida (ainda que séria ou qualificada) acerca da veracidade de tal facto decorrente de uma presunção judicial.


 AA (doravante Recorrido) respondeu invocando, quanto ao que agora importa analisar, estarem inverificados os requisitos de admissibilidade do recurso.

Foi proferida decisão singular pelo Relator não admitindo o recurso para uniformização de jurisprudência por inverificados os respectivos pressupostos.

Inconformados, vieram os Recorrentes deduzir reclamação para a conferência.


II – Os acórdãos em confronto

a) O acórdão recorrido

O Autor (ora Recorrido) pedia o seu reconhecimento como herdeiro legitimário de DD e, consequentemente, se decretasse a anulação da partilha da herança daquele efectuada pelos Réus (ora Recorridos) e condenasse a Ré a restituir à herança os bens (ou o correspondente preço) que recebeu através daquela partilha, bem como o cancelamento dos correspectivos registos.

Invocava, para fundamentar tal pedido, que foi judicialmente reconhecido como filho de DD por sentença proferida em 04JUL2013, sendo que os Réus (filho e ex-cônjuge daquele, entretanto falecido), sabendo desde 2004 que era pretendido esse reconhecimento da paternidade, com o fito de excluir o Autor da herança, procederam, por escritura de 27ABR2006, a uma partilha em que adjudicaram todas os bens à Ré, prescindindo o Réu de tornas.

Os Réus (ora Recorrentes) contestaram alegando que não procederam à partilha da herança de DD mas apenas à partilha dos bens do ex-casal deste, sem qualquer intuito fraudatório (até porque na data não existia qualquer outro filho para além do Réu, nem o Autor era titular de qualquer expectativa jurídica de filiação), que o Réu prescindiu de tornas no cumprimento de uma obrigação natural, da qual não há repetição, e ainda, a título de excepção, que a Ré adquiriu os bens em causa por usucapião.

A Relação, reconhecendo o Autor como herdeiro legitimário de DD, decretou a nulidade da partilha judicial (para separação de bens comuns do casal de DD) celebrada pelos Réus em 27ABR2006 e condenou a Ré a restituir à herança os bens partilhados ou o valor recebido pela sua alienação.

Desse acórdão interpuseram os Réus (ora Recorrentes) revista em que invocavam, além do mais, violação pela Relação do direito probatório material ao recorrer a presunção judicial para afastar a presunção de boa-fé da posse titulada (art.º 1260º, nº 2, do CCiv) e que tal presunção não se suportava num nexo lógico justificativo de um juízo qualificado de certeza; e sendo a posse da Ré de presumir de boa-fé se havia de ter por completado o prazo de usucapião.

Conhecendo desses fundamentos o acórdão começou por afirmar que o art.º 1260º, nº 2, do CCiv, estabelece não uma presunção ‘juris tantum’ mas antes uma dispensa ou liberação do ónus da prova, o que afastava desde logo a aplicação do entendimento, invocado pelos recorrentes, da impossibilidade de ilisão de presunções legais ‘juris tantum’ por presunção; para de seguida rejeitar aquele entendimento, afirmando antes a possibilidade de as presunções legais ‘juris tantum’ serem elididas por recurso a presunção judicial; concluindo não ter ocorrido violação do direito probatório material pela Relação ao manter inalterados os factos provados 13 e 14 (Ao celebrarem a escritura de partilha, referida em 7º, os réus tiveram intenção de afastar o autor de nela poder intervir; E impedir o acesso do autor à meação do DD). E de seguida concluiu que a ilação retirada pelas instâncias, em face das circunstâncias do caso, se fundava num nexo lógico justificativo de um juízo qualificado de certeza, não padecendo de ilegalidade.

Em face do que sufragou o entendimento perfilhado pela Relação de que sendo a posse da Ré de qualificar como de má fé não havia lugar a aquisição por usucapião (salvo quanto a um bem móvel), confirmando o por ela decidido.

b) O acórdão fundamento 1

Os Autores reivindicavam a propriedade de três imóveis fundando essa pretensão na aquisição por escritura de compra e venda de 4JUN2003, na inscrição registral desse direito a seu favor desde a mesma data e em usucapião derivada da posse iniciada com a compra dos imóveis; mais propugnavam pela declaração de invalidade da aquisição derivada invocada pelos Réus por ser aquisição de quem não tinha o direito.

Os Réus contestaram defendendo terem sido os Autores que adquiriram de quem não tinha o direito; e, em reconvenção, reivindicaram para si os prédios por os terem adquirido por doação de quem tinha o direito e por usucapião.

Veio a considerar-se que não obstante o doador ser apenas usufrutuário dos prédios (e não seu proprietário) o certo é que, por sobre eles intencionalmente exercerem actos materiais correspondentes ao direito de propriedade desde SET21998 até finais de 2003, os Réus (inicialmente em conjunto com o doador) tinham a correspondente posse.

Posse essa que não concorria com qualquer posse dos Autores porquanto a mera escritura de compra e venda foi considerada insuficiente para a investidura na posse (que requer a prática de actos materiais, não demonstrada nos autos).

Sendo a posse reconhecida aos Réus titulada, ela é de presumir de boa fé, nos termos do art.º 1260º, nº 2, do CCiv, sendo que, por força do disposto no artº. 350º, nº 2, do mesmo código, os Autores estavam dispensados de provar tal situação, cabendo antes ao Réus ilidir tal presunção através da prova do contrário.

E porque tal não ocorreu, conclui-se pela improcedência da acção e procedência da reconvenção.

c) O acórdão fundamento 2

O Autor intentou acção de investigação de paternidade contra o Réu pedindo o seu reconhecimento como filho do mesmo, invocando a ocorrência de relações sexuais de cópula completa exclusivas entre sua mãe e o Réu entre ABR e JUN2014.

Foram realizados exames hematológicos que concluíram pela exclusão do Réu da paternidade do Autor.

A acção foi julgada improcedente.

A Relação, não obstante aditar à factualidade a possibilidade rara de os exames hematológicos excluírem erroneamente a paternidade e a probabilidade de tal no caso ser praticamente nula, confirmou a sentença.

Na revista, o STJ considerou que embora demonstrado que o pretenso pai e a mãe mantiveram relações de sexo durante o período legal de concepção (o que preencheria as presunções de paternidade estabelecidas nas als. c) e e) do nº 1 do art.º 1871º do CCiv) tal havia de se considerar insuficiente para afirmar a paternidade relativamente ao Réu uma vez que do não apuramento da exclusividade das relações sexuais e dos resultados dos exames hematológicos resultava a dúvida séria relativamente àquelas presunções (sendo certo que, ao contrário da regra geral estabelecida no art.º 350º, nº 2, do CCiv, segundo a qual a presunção legal pode ser ilidida por prova em contrário, as presunções de paternidade são susceptíveis de ser ilididas por dúvida séria, conforme a disposição especial constante do nº 2 do art.º 1871º do CCiv), negando a revista e confirmando o acórdão recorrido.


III – Da admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência

Convém ter presente, em sede de apreciação liminar da admissibilidade do recurso, que o mecanismo processual da uniformização radica na necessidade de superação de contradições da jurisprudência do próprio Supremo Tribunal de Justiça, constituindo uma garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, aliás, na linha da directriz hermenêutica do nº 3 do art.º 8º do CCiv. Daí que o seu enfoque incida sobre a contradição de critérios normativo-decisórios e não sobre as divergências que se prendam com a própria especificidade de cada caso concreto. E que a verificação dos respectivos requisitos seja levada a cabo segundo um critério de rigor.

Conforme as pertinentes disposições legais e a jurisprudência consolidada desde Supremo Tribunal são requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência:

a) A regularização da situação tributária (art.º 642º do CPC);

b) A tempestividade do recurso (art.º 689º do CPC);

c) A legitimidade do recorrente (art.º 631º do CPC);

d) A representação por advogado (art.º 40º, nº 1, al. c) do CPC;

e) A apresentação de alegação, rematada por conclusões, onde se identifique a invocada contradição (artigos 639º e 690º do CPC);

f) A junção de cópia do acórdão fundamento (art.º 690º do CPC);

g) A anterioridade do acórdão fundamento e o seu trânsito (art.º 688º do CPC);

h) Que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento ocorra (art.º 688.º do CPC):

a. Relativamente à mesma questão fundamental, por essencial à resolução do caso, de direito;

b. Oposição directa (não implícita ou pressuposta);

c. Tendo por base uma similitude de situações factuais;

d. No domínio da mesma base normativa;

i) Que a orientação perfilhada no acórdão recorrido não esteja coberta por jurisprudência uniformizada do STJ (art.º 688º, n. 3, do CPC).


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 A situação tributária mostra-se regularizada.

 O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado.

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões bem como, formalmente, mostram-se satisfeitos os ónus de indicação dos elementos específicos de recorribilidade.

Encontram-se junto aos autos cópias (extraídas de www.dgsi.pt) dos acórdãos fundamento, que são anteriores ao acórdão recorrido e se presumem transitados em julgado (art.º 688º, nº 2, do CPC).

O recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe a oposição entre dois acórdãos – o recorrido e o fundamento – relativamente à mesma questão fundamental de direito; e nesse contexto só é admissível a invocação de mais do que um acórdão fundamento se estiverem em causa diferentes questões fundamentais (porque essenciais à resolução do caso) de direito.

O fundamento essencial da decisão tomada no acórdão recorrido relativamente à invocada aquisição por usucapião por banda da Ré (única questão, das abordadas no acórdão recorrido, que vem impugnada no presente recurso) foi o entender-se que as circunstâncias factuais apuradas fundavam um nexo lógico justificativo de um juízo qualificado de certeza da verificação de má-fé por banda dos Réus, não estando essa via inviabilizada pelas regras do direito probatório. Que se justificava uma presunção judicial de má-fé, por um lado, e que a prova por presunção judicial era hábil para afastar a pressuposição de boa-fé da posse titulada quer porque o nº 2 do artigo 1260º do CCiv não estabelecia uma presunção ‘juris tantum’ mas antes uma dispensa ou liberação do ónus da prova, quer porque, ainda que se estivesse perante uma presunção ‘juris tantum’ ela admite a prova em contrário através de presunção judicial.

A questão fundamental de direito em causa é assim a de determinar se a pressuposição de boa-fé da posse titulada estabelecida no nº 2 do art.º 1260º do CCiv é susceptível de ser afastada por via de uma presunção judicial.

E no âmbito dessa questão nunca o acórdão recorrido pôs em causa que o afastamento da pressuposição de boa-fé pudesse ocorrer por outra forma que não a prova do contrário. Ao contrário do defendido pelos Recorrentes aquela pressuposição não foi afastada com base em dúvida, ainda que séria, sobre a verificação da boa-fé, mas sim com a convicção de efectiva ocorrência de má-fé, dando como provado os já apontados factos 13 e 14. O que, aliás, é patente na fundamentação oferecida nas instâncias.

Nesse conspecto desde logo se vislumbra a inexistência de qualquer oposição entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento.

Com efeito não está em causa qualquer ilisão de presunção por qualquer outro meio que não a prova do contrário, designadamente por dúvida, necessariamente séria.

Por outro lado, o acórdão fundamento 1 limita-se a afirmar que a posse titulada se presume de boa-fé nos termos do estipulado no art.º 1260º, nº 2, do CCiv (sem, contudo, analisar e tomar posição sobre a problemática da qualificação dogmática dessa presunção) e que a mesma pode ser ilidida por prova em contrário (sem analisar e tomar posição sobre as vias probatórias que podiam ser utilizadas); o que está em perfeita sintonia com o entendimento perfilhado no acórdão recorrido.

Por seu turno o acórdão fundamento 2 expressa o entendimento de que as presunções legais, regra geral, só podem ser ilididas com a prova do contrário, só em casos excepcionais, expressamente previstos na lei, podendo essa ilisão basear-se apenas em dúvida séria; o que também está em sintonia com o acórdão recorrido que exige a prova do contrário, que no caso considerou alcançada por via de presunção judicial.

Donde desde logo se conclui não estarem verificados os requisitos legais para a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência.


IV - Decisão


Termos em que se não admite o recurso para uniformização de jurisprudência.           

Custas do recurso e da reclamação para a conferência pelos Recorrentes.

Valor: o da causa (483.266,64 €).

Fixa-se a taxa de justiça global devida pelo recurso em 2.000 €, dispensando-se o pagamento do demais remanescente.

Fixa-se a taxa de justiça devida pela reclamação em 3 UC’s.

           

Lisboa, 08SET2021


Rijo Ferreira (relator)


[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,

 conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]


Cura Mariano


Abrantes Geraldes