LEVANTAMENTO DE SIGILO PROFISSIONAL
SEGREDO MÉDICO
REGISTOS CLÍNICOS DE TRABALHADORES
RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
DIREITO DE ACESSO AOS TRIBUNAIS
COLISÃO DE DIREITOS
JUÍZO DE NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE
Sumário

I - O segredo médico constitui pilar fundamental do exercício da actividade médica e tutela quer direito à reserva da intimidade da vida privada, que assenta na dignidade da pessoa humana, consagrado legalmente [em convenções internacionais, na CRP e na Lei ordinária – cfr. designadamente arts. 12 da DUDH, 8º da CEDH, 10º da CDHB, 26º e 32º, nº 8, da CRP, 16º do CT/2009, 195º do CP, 126º, nº 2, do CPP, bem como na Lei 12/2005, na Lei 117/2015 (EOM) e no Regulamento de Protecção de Dados Pessoais constante do Reg. (EU) 2016/679 e Lei 58/2019], quer a indispensável confiança na relação entre médico/doente, visando a protecção da confiança do indivíduo que, nele confiando, revela factos sigilosos.
II - Os dados contidos nos processos/ registos clínicos de (outros) trabalhadores do empregador estão, nos termos do referido em I), sujeitos a sigilo médico, sem cujo levantamento o médico não os poderá juntar aos autos, mormente para prova dos factos constitutivos de infracção disciplinar que, no caso, foi imputada à trabalhadora/enfermeira.
III - Em contraponto ao direito à reserva da intimidade da vida privada referido em I), releva, do ponto de vista do empregador, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a um processo equitativo (art. 20º da CRP), na vertente do direito à prova, consubstanciando também interesse constitucionalmente protegido a boa administração da justiça (art. 202º da CRP), sendo que, no caso e na perspectiva da tutela dos interesses da Ré, está concretamente em causa o exercício do poder disciplinar, que lhe advém do contrato de trabalho celebrado com a A., poder esse que, em última análise, radica no direito constitucional à iniciativa privada (arts. 61º, 62º, 80º c) e 86º da CRP).
IV - Face à colisão dos direitos referidos em I) e II), deve prevalecer o direito/dever de sigilo profissional, enquanto emanação do direito à reserva da vida privada e da dignidade da pessoa humana, não devendo o sigilo médico ser levantado.
V - Não obstante, na medida em que os registos/processos clínicos não contenham a identificação, ou a possibilidade de identificação directa ou indirecta do titular dos dados [designadamente, nome, morada, categoria profissional, números de identificação fiscal, da Segurança Social, do SNS ou outro nos termos previstos no art. 4º, nº 1, do RGPD, designadamente número mecanográfico] entende-se dever ser de, na ponderação a fazer dos interesses e direitos tutelados e num juízo de necessidade e proporcionalidade, autorizar o levantamento do sigilo profissional [sendo, todavia, de esclarecer que não cabe no âmbito do presente incidente de levantamento de sigilo a emissão de pronúncia sobre a questão da validade e/ou admissibilidade, ou não, de produção da prova sem, ou com ocultação, dos elementos identificadores acima referidos].

Texto Integral

Procº nº 2594/19.8T8VFR-A.P1- Levantamento Sigilo
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1212)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A A., B…, intentou contra a Ré, C…, Ldª, acção declarativa de condenação, com processo comum, tendo formulado o seguinte pedido:
“a) Ser declarado nulo o processo disciplinar alegado nos presentes autos.
b) Ser anulada e declarada abusiva a sanção disciplinar de “perda de dois dias de férias”, aplicada pela R. à A., e consequentemente ser a R. condenada a apagar o respetivo registo.
c) Ser a R. condenada a pagar ao A. a quantia de 5500€ (cinco mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos morais.
d) Ser a R. condenada a pagar os juros de mora que se vencerem, à taxa legal, sobre as quantias acima indicadas, desde a data da citação da R. e até à data do seu integral pagamento.”.
Para tanto, alegou em síntese e no que ora importa (cfr. arts. 68 a 85) que: na sequência de procedimento disciplinar a Ré lhe aplicou a sanção disciplinar de perda de dois dias de férias; não consegue perceber a que processos a Ré se está a referir, existindo milhares de processos clínicos; assim sendo, não tem possibilidade de saber se os mencionados factos correspondem, ou não, à verdade, o que impede e viola o seu direito de defesa. Mais alegou nos arts. 27 a 30 e 96 e 97 da p.i. o seguinte: “27) a A. estava a trabalhar sob pressão, desempenhando um grande volume de trabalho, concretamente, a fazer exames de medicina de trabalho e de atendimento de medicina de trabalho, em simultâneo com o atendimento da medicina curativa, assessorando os 02 médicos em simultâneo. 28) Neste contexto, é fácil de trocar um processo. 29) Vai requerer-se da folha do registo diário da A., referente ao dia 18.05.2018, de maneira a que o Tribunal possa tomar conhecimento do volume de trabalho realizado pela A. no dia em questão. 30) O lapso cometido não representa o resultado do “incumprimento reiterado” das obrigações da A., nem qualquer “postura não profissional, num contexto de desinteresse pelo trabalho e de desleixe generalizado”, (…) 96) Ora, durante este período a A. trabalhou diariamente para a R., desempenhando as suas funções, até 30 de Junho, 97) pelo que é fácil de concluir que, durante este período de tempo, a esmagadora maioria do seu trabalho não suscitou qualquer reparo por parte da R.”
A final da p.i. a A. formulou o requerimento de meios de prova onde, para além do mais, requereu a notificação da Ré para juntar aos autos as “Folhas de Registo Diário do Trabalho” da A. referentes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018, para prova do alegado nos arts. 27 a 30 e 96 e 97 da p.i.

A Ré contestou, alegando, em síntese que:
Na sequência de procedimento disciplinar aplicou à A., enfermeira exercendo as suas funções no posto médico daquela e com quem mantém contrato de trabalho desde 31.05.1988, sanção disciplinar de perda de dois dias de férias, imputando-lhe, para tanto e entre outra, a seguinte factualidade constante do nº 13 da nota de culpa e da decisão disciplinar e reproduzida no art. 1º da contestação:
“13. No dia 29.6.2018 existiam as seguintes irregularidades em processos da responsabilidade da arguida:
a) No processo 278, na consulta de enfermagem no contexto de exame de saúde periódico, a arguida não fez o registo vacinal da trabalhadora.
b) No processo 4915 existiam registos de enfermagem diferentes em papel e em suporte informático, devendo ser uniformes: No registo informático existem registos de atos de enfermagem datados de 2018 (4-6-2018; 5-6-2018; 6-6-2018; 8-6-2018) e em suporte de papel e para o ano de 2018 existem apenas registos nos dias 4-6-2018 e 5-6-20].
c) Também no processo 2694 não existem registos coincidentes (existe um ato de enfermagem em formato digital de 4-6-2018, não existe qualquer registo em papel no formulário “Consulta e Cuidados de Enfermagem").
d) No processo 95 existe um ato de enfermagem em formato digital realizado a 4-6-2018 sem qualquer registo em papel.
e) No processo 2798 existe um ato de enfermagem de 4-6-2018 no processo informático sem registo em papel.
f) No processo 422 existe registo informático de cuidado de enfermagem a 4-6-2018 sem registo em papel; no exame de saúde periódico com consulta de enfermagem a 18-6-2018 não existe registo completo de vacinas.
g) No processo 4377 existe um registo informático de 31-1-2017 que não consta no processo em papel e um registo em papel de 3-4-2017 que não consta no programa informático,
h) No processo 3929 existe registo de enfermagem em papel de 10-7-2017 sem registo no programa Informático.
i) No processo 4398 - observado em consulta pela arguida a 4-6-2018 em contexto de exame periódico, não existe registo de vacinas completo.
j) No processo 580 há registo de cuidados de enfermagem em suporte digital dos dias 31-01- 2018, 14-02-2018, 20-02-2018, 17-03-2018, 21-03-2018, 9-4-2018, sem qualquer registo em papel, e o registo de vacinas em formato digital está incompleto.
k) No processo 3929 existe registo na folha de "movimento diário" de enfermagem de 4-6-2018, mas não há registo em papel ou no sistema Informático de qualquer ato de enfermagem.
l) No processo 4307 o registo de cuidados de enfermagem em formato digital é de 7-3-2018, o registo em papel é de 5-3-2018.”
Mais impugnou a matéria constante dos mencionados arts. 27, 28, 96 e 97 da p.i. e pugnou pela improcedência da acção.
E a final da contestação, no que toca ao requerimento de meios de prova:
i) No ponto I e no que ora importa referiu e requereu o seguinte:
“Os registos clínicos do nº 13 do artº 1º estão na posse do médico de trabalho coordenador do serviço interno de saúde da R. (1ª testemunha infra) e a coberto de sigiloso profissional. Por motivos de natureza deontológica e profissional o médico do trabalho não pode ceder cópias dos documentos sem notificação do tribunal nesse sentido, não podendo a R. obrigá-lo a fornecer esses elementos nem dispensá-lo do sigilo.
Neste sentido, coloca a questão ao tribunal, para que dentro dos seus poderes de gestão processual permita que os documentos sejam juntos, dispensando-se o sigilo, ou que a testemunha seja portadora desses registos na data no julgamento, para poder apresentá-los/exibi-los em condições de sigilo e produzir-se a prova documental conjugadamente com a testemunhal ou outra solução que agilize o objetivo de usar os registos sem dano para os dados pessoais neles constantes ou minimizando-o.”
ii) Pronunciando-se sobre os documentos cuja junção foi requerida pela A., referidos no ponto 2, alegou a Ré que: “Quanto ao requerimento de prova documental da A. (junção das folhas de registo diário de trabalho da A.), a situação é idêntica à exposta no ponto I.”
iii) Arrolou como testemunha o Sr. Dr. D…, médico.
iv) Juntou, também aos autos o processo disciplinar, de onde consta, para além do mais:
- a participação, datada de 26.06.2018, elaborada pelo Exmº Sr. Dr. D…, na qual é referida, no seu nº 12, als. a) a j), a factualidade descrita no nº 13 da nota de culpa e na decisão disciplinar;
- as declarações prestadas pelo Exmº Sr. Sr. D… no âmbito do processo disciplinar aos 06.07.2018, que constam de fls. 157 a 161, concretamente, no que poderá relevar, de fls. 159, 6º§ a fls. 160, als. a) a m).
- Nota de culpa [fls. 171 a 174], resposta à nota de culpa [fls. 175] e decisão do procedimento disciplinar datada de 31.08.2018 [fls. 177 a 181].

Por requerimento de 02.11.2019, veio a A., para além do mais, requerer:

“III
Sigilo profissional
Face às várias hipóteses equacionadas pela R., requer-se a V. Exa. se digne ordenar a notificação da R. para identificar o médico em questão e, na posse dessa informação, ordenar a respetiva notificação para juntar aos autos os documentos solicitados pela A., dispensando-o do respetivo sigilo profissional.”

Aos 13.01.2020, a Mmª Juiz proferiu o seguinte despacho no que toca aos meios de prova documental requeridos quer pela A., quer pela Ré, referidos nos pontos, respectivamente, 2) e 3.i) do presente despacho:
“Quanto à requerida junção das folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018, e dos registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação, e uma vez que a Ré já identificou o médico na posse do qual se encontram (1ª testemunha do seu rol), determino que o mesmo junte aos autos tais elementos.
Caso venha a ser invocado pelo profissional de saúde, como fundamento para não cumprimento do determinado, sigilo profissional/médico e concluindo-se pela legitimidade de tal invocação, cumprirá instaurar o competente incidente de quebra de sigilo profissional, junto do Tribunal Superior, nos termos a que expressamente se refere o artigo 135, nº3, do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 417º, nº3, c) e nº4 do CPC, aqui subsidiariamente aplicável.”

Aos 24.01.2020 o Exmº Sr. Dr. D…, na sequência da notificação do despacho acima referido, juntou requerimento invocando que os documentos cuja junção foi determinada “contêm informação clínica e dados sensíveis abrangidos pelo segredo médico”, pelo que “só poderá dar cumprimento se for dispensado nos termos legais”.

Aos 09.03.2020, na sequência do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha Sr. Dr. D…, médico do trabalho, foi, conforme acta respectiva [fls. 188 a 190], proferido pela Mmª Juiz o seguinte despacho [no que poderá relevar]:
“(…).
Mais referiu a testemunha, reiterando posição processual que já assumira no seu requerimento junto a fls. 133 dos autos, que os processos a que se faz referência no ponto 13 da nota de culpa não podem por si ser juntos por contenderem com informação clinica sujeita a sigilo profissional. Referiu ainda não ter solicitado à Ordem dos Médicos o levantamento desse sigilo, admitindo poder fazer essa solicitação. A fim de permitir esclarecer processualmente essa situação, determino que se notifique a referida testemunha D… para, em 10 dias, vir aos autos informar e comprovar documentalmente se solicitou o levantamento do sigilo profissional junto da entidade competente que lhe permita juntar aos autos os processos identificados no aludido ponto 13 da nota de culpa, devendo, na afirmativa, juntar cópia do requerimento que dirigiu a essa entidade. (…)”.

Aos 30.09.2020 o Exmº Sr. Dr. D… informou [cfr. fls. 191] o seguinte: “(…) Mais informo que desde 19 de março de 2020 não tenho qualquer vínculo contratual com a Ré (empresa C…, Lda). Deste modo, não me é possível juntar aos autos a informação solicitada (cópia do requerimento efetuado), uma vez que não sou detentor do documento em apreço, que eventualmente se encontrará alojado em formato digital no ambiente de trabalho por mim utilizado nos computadores da empresa, aos quais atualmente já não tenho acesso. Apesar deste constrangimento remeto em anexo minuta de indeferimento ao pedido efetuado.”, tendo ainda juntado decisão, datada de 03.04.2020, proferida pelo Exmº Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos [cfr. fls. 192] indeferindo o pedido de dispensa de sigilo profissional, decisão essa da qual consta o seguinte:
“A solicitação do DR. D…, médico especialista em medicina do trabalho, portador da cédula profissional n.º ….. e ao abrigo da alínea b) do n.º 6 do artigo 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo DL 282/77, de 05.07, com a redação que lhe foi dada pela Lei 117/2015, de 31.08, e do nº 2 do artigo 35.º do Código Deontológico é indeferido o pedido de escusa de segredo profissional relativamente a qualquer informação sobre registos clínicos correlacionados com a matéria em discussão no processo nº 2594/19.8T8VFR, que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Trabalho de Santa Maria da Feira.
Do pedido de escusa não se retira a demonstração que o seu depoimento ou a entrega de elementos respeitantes a registos clínicos seja absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra, dos legítimos interesses, do bem estar, saúde ou vida de qualquer doente ou médico.”

Notificada, veio a Ré, aos 19.10.2020, requerer o seguinte:
“Tendo sido notificada do indeferimento do pedido de escusa do Dr. D…, vem requerer a aplicação dos nºs 2 e 3 do artº 135º do CPP, conjugados com o nº 4 do artº 417º do CPC, e considerando que :
- A R. levantou um processo disciplinar à A., enfermeira que dava assistência ao posto médico, por incumprimentos que não logravam ser corrigidos sem essa forma de atuação.
- No âmbito das acusações formuladas uma existia (nº 12) que tinha a ver com irregularidades nos processos clínicos dos trabalhadores e com a existência de registos desconformes.
- Os registos clínicos referidos na acusação disciplinar, para verificação das acusações, estão sujeitos a sigilo profissional, segundo a Ordem dos Médicos e o Dr. D…, que pediu escusa.
- Esses documentos, conjugados com o depoimento do médico, são essenciais à prova da acusação disciplinar nesse ponto e portanto absolutamente necessários e imprescindíveis à realização da justiça. Sem eles não se fará a prova do facto.
- Não está em causa a questão clínica ou o dado pessoal da saúde dos trabalhadores, que pode ser inclusivamente excluído da discussão, mas apenas a mera organização e elaboração dos registos e a sua regularidade. Está em causa uma questão de bom funcionamento e a dignidade do serviço de saúde e dos médicos envolvidos, o coordenador e os colegas, que denunciaram a situação, tendo em vista a sua correção. Está em causa também a defesa do legítimo interesse dos utentes/doentes (trabalhadores da R.), num serviço médico de qualidade, e da própria R., numa organização correta do sistema que tem obrigação legal de instituir.
- Põe-se, assim, a questão da necessidade de colaborar com a justiça e de permitir ao tribunal que faça o seu trabalho, ouvindo o depoimento do médico conjugado com os registos efetuados pela A. nos processos clínicos dos trabalhadores em causa.
- Como tal:
i) Deve equacionar-se a dispensa do dever de segredo profissional, face ao interesse preponderante da realização da justiça e à imprescindibilidade do depoimento para a prova da verdade, sendo certo que o motivo de sigilo, o dado pessoal clínico, pode ser mantido fora da discussão, pois não é esse o ponto da controvérsia.
ii) Em alternativa à dispensa de sigilo, deve ponderar-se uma forma de produzir a prova acautelando a manutenção do sigilo com um procedimento que garanta a confidencialidade. Os registos estão identificados por número de processo, que corresponde ao número mecanográfico do trabalhador. Os documentos podem ser fotocopiados (registos manuais) e extraídos do sistema (registos informáticos) mantendo-se a confidencialidade do nome, que para o efeito seria riscado, e entregues ao tribunal em envelope fechado, também mantendo o sigilo, nos termos referidos, para serem usados por profissionais todos eles vinculados ao segredo profissional e com reserva de publicidade, nesta parte. O mesmo quanto ao depoimento do médico sobre tais documentos/registos.”

Notificada do requerimento acima referido, a A., aos 02.11.2020 apresentou requerimento no qual se opõe ao levantamento do sigilo profissional referindo, para além do mais, que: “4) (…) a comunicação inicial que o Dr. D… fez à R., em 26.06.2018, que esteve na origem do processo disciplinar (cfr. processo disciplinar junto aos autos), na parte em que se pronuncia sobre os referidos registos clínicos, consubstancia uma violação inequívoca do sigilo profissional, uma vez que não foi precedida de qualquer autorização da Ordem dos Médicos. (…). 8) A isto acresce que para além de ser matéria sujeita a sigilo profissional, os referidos registos clínicos versam sobre dados pessoais de trabalhadores, que beneficiam de proteção legal, e não está na disponibilidade da R., nem do Tribunal, utilizar a respetiva informação sem autorização dos seus titulares, isto é, dos trabalhadores em questão. 9) Aquilo que a R. pretende no Ponto ii), do seu requerimento, é absolutamente ilegal e impraticável, pelas seguintes razões:
- em primeiro lugar, pressupõe um acesso ilegal da R. aos referidos registos clínicos, pelos motivos acima expostos;
- em segundo lugar, a R. propõe-se fazer uma colagem de fotocópias, cuja genuinidade só poderá ser aferida através da consulta dos processos clínicos, o que redundará numa violação do sigilo profissional e de uma violação da proteção dos dados pessoais dos titulares dos referidos processos.
(…)”.

Aos 13.11.2020 foi pela Mmª Juiz proferido o seguinte despacho:
“Por despacho de 13.01.2020 (fls. 131/132), na sequência do requerido pela Ré, ordenou-se que o médico juntasse aos autos as folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018 e os registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação.
O médico veio invocar (requerimento datado de 24.01.2020), fls. 133, que os documentos solicitados contêm informação clínica e dados abrangidos por segredo médico, pelo que só poderá dar cumprimento se for dispensado, nos teremos legais.
No depoimento que prestou na audiência do dia 09.03.2020 (cfr. ata de fls. 141), o médico reiterou essa informação.
Posteriormente, o referido médico informou ter solicitado a dispensa junto da Ordem dos Médicos, que mereceu a resposta junta a fls. 236 verso.
Veio a Ré requerer se suscite o incidente de quebra de sigilo (requerimento datado de 19.10.2020).
A A. pronunciou-se nos termos que constam no seu requerimento datado de 02.11.2020.
*
Cumpre, assim, decidir.
Nos termos dos artigos 497º, nº3 e 434º, do C.P.Civil, aqui subsidiariamente aplicáveis por força do artigo 1º, nº2, a) do CPT, a recusa de colaboração para a descoberta das verdade é admitida se além do mais implicar violação do sigilo profissional.
O nº 3 do citado artigo 497º e o artigo 434º prevêem a hipótese de “dispensa do dever de sigilo”, mandando aplicar, com as adaptações impostas pelos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Em matéria de segredo profissional e no tocante ao pedido de prestação de informações a entidades a ele obrigadas rege o disposto no artigo 182º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, nos termos do qual, as pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado. Nos termos do nº2 se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 135º, nºs 2 e 3 e 136º, nº2.
O referido artigo 135º do C.P.Penal permite a invocação do segredo profissional, designadamente aos médicos.
Nos termos dos nºs 2 e 3 do citado artigo 135º do C.P.P. caberá desde logo averiguar da legitimidade da escusa invocada, sendo que caso desde logo se conclua pela ilegitimidade, será ordenada a entrega dos documentos com as informações pretendidas. Caso seja legítima a escusa, o tribunal imediatamente superior a este pode decidir pela entrega do documento com quebra do invocado segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
Os documentos pretendidos, sobretudo os registos clínicos dos trabalhadores, contêm informação pessoal e dados clínicos dos trabalhadores, cobertos pelo sigilo médico, como de resto a Ordem dos Médicos já veio afirmar.
Tendo em conta o critério acima referido e face a recusa do médico em juntar tais documentos, somos forçados a concluir pela legitimidade da escusa invocada.
É por isso legítima a escusa invocada pelo médico.
*
Para ultrapassar esta situação, a Ré requereu já o despoletamento do mecanismo processual previsto no artigo 135º, nº2, do CPP.
O dever de segredo invocado pelo médico para justificar a recusa de fornecer os documentos não é absoluto.
Nesta situação concreta, o dever de segredo médico, ligado ao interesse da protecção dos dados clínicos do paciente/trabalhadores da Ré e de proteção do direito à reserva da vida privada, conflitua com o interesse da boa administração da justiça.
Deste modo, nos termos dos artigos 135.º, 2 e 3 e 182.º, 2, ambos do CPP ex vi do artigo 434º, do C.P.C., suscito a intervenção do Venerando Tribunal da Relação do Porto no sentido de decidir da requerida junção dos documentos em causa - as folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018 e os registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação -, com quebra do sigilo profissional, se considerar que esta se mostra justificada.
(…)”. [sublinhado nosso]

Subidos os autos a esta Relação, aos 07.01.2021 foi pela ora relatora solicitado parecer ao Exmº Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos nos seguintes termos:
“(…)
Assim, antes de mais e tendo em conta a resenha efectuada no ponto I do presente despacho, oficie-se à Ordem dos Médicos, na pessoa do Exmº Sr. Bastonário, solicitando-lhe parecer sobre o levantamento do sigilo profissional médico relativamente à junção aos autos, pelo Exmº Sr. Dr. D… ou por outro médico que desempenhe funções nos serviços médicos da Ré, dos documentos/registos requeridos pela Autora e pela Ré mencionados nos pontos I. 2, 3.1. e 8 do presente despacho, de onde conste o teor desses registos, bem como a identificação, ou possibilidade dessa identificação, dos trabalhadores em causa nos mesmos.
Em caso de resposta negativa a tal questão, entende-se ser também de solicitar parecer sobre se a [eventual] junção de tais documentos/registos mas de onde conste apenas o teor dos mesmos, designadamente dos actos referidos no ponto 13 da nota de culpa/decisão disciplinar [mencionados no ponto I.1. do presente despacho] mas sem indicação de elementos identificadores dos trabalhadores em causa nos mesmos está abrangido pelo segredo profissional e, em caso afirmativo, sobre o levantamento do mesmo.”.

Foi, pelo Exmº Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos, emitido parecer no sentido de que “(…). Atento o exposto, a Ordem dos Médicos entende mostrar-se justificada, face às normas e princípios deontológicos, a manutenção da inviolabilidade das fichas clínicas dos trabalhadores e a consequente recursa em depor por parte do Dr. D…, na qualidade de testemunha ou em fornecer dados dos processos clínicos dos aludidos trabalhadores.”.

Ordenada a notificação de tal parecer às partes, notificação essa efectuada aos respectivos mandatários, via citius, com data de elaboração de 05.03.2021, veio a Ré, por requerimento de 22.03.2021, pronunciar-se nos seguintes termos:
“Tendo sido notificada da pronúncia da Ordem dos Médicos, vem dizer que é uma posição radical e obstrutiva da realização da justiça, de forma desnecessária e desproporcional.
Os documentos, conjugados com o depoimento do médico, são essenciais à prova da acusação disciplinar nesse ponto e portanto absolutamente necessários e imprescindíveis à realização da justiça. Sem eles não se fará a prova do facto.
Percebe-se a preocupação da Ordem dos Médicos traduzida na necessidade de reserva do nome do trabalhador titular dos registos clínicos e até da rastreabilidade pelo número mecanográfico. Mas a verdade é não são esses nomes, o dado pessoal clínico, que está em causa, nem esse dado é necessário para nada. Os dados dos pacientes podem ser mantidos fora da discussão e nessa medida as questões suscitadas ficam sem objecto ou razão de ser.
Neste processo o que está em causa é o incumprimento da A. na mera organização e elaboração dos registos e a sua regularidade, a prova pode ser realizada sem revelação dos dados pessoais.
É de seguir a jurisprudência de casos análogos[1], com a própria R. sugeriu, permitindo-se a prova com exclusão dos nomes dos pacientes e a salvaguarda da identidade/dado pessoal.
Ou seja, reitera-se que se permita ao tribunal fazer o seu trabalho, ouvindo o depoimento do médico conjugado com os documentos, ponderando-se uma forma de produzir a prova acautelando a manutenção do sigilo com um procedimento que garanta a confidencialidade.
Os registos estão identificados por número de processo, que corresponde ao número mecanográfico do trabalhador. Os documentos podem ser fotocopiados (registos manuais) e extraídos do sistema (registos informáticos) mantendo-se a confidencialidade do nome, que para o efeito seria riscado, e entregues ao tribunal em envelope fechado, também mantendo o sigilo, nos termos referidos, para serem usados por profissionais todos eles vinculados ao segredo profissional e com reserva de publicidade, nesta parte. O mesmo quanto ao depoimento do médico sobre tais documentos/registos. E se necessário fosse mediante uma identificação convencionada para despistar a rastreabilidade, pois o facto material sujeito a prova é indiferente à identidade/dado pessoal.”

Aos 05.04.2021, a A. apresentou requerimento com o seguinte teor:
“(…), vem opor-se ao requerimento apresentado pela R., nos seguintes termos:
1) A Ordem dos Médicos já se pronunciou duas vezes sobre esta matéria e não vislumbramos qualquer razão legal para ser levantado o sigilo médico.
2) Neste momento, após a Ordem dos Médicos se ter pronunciado pela 2ª vez, não pode haver qualquer dúvida em como esta matéria nunca deverão ter sido carreada para o processo disciplinar, porque foi obtida em violação do sigilo médico.
3) Efetivamente, não há qualquer dúvida em como a comunicação inicial que o Dr. D… fez à R., em 26.06.2018, que esteve na origem do processo disciplinar (cfr. processo disciplinar junto aos autos), na parte em que se pronuncia sobre os referidos registos clínicos, consubstancia uma violação inequívoca do sigilo profissional, uma vez que não foi precedida de qualquer autorização da Ordem dos Médicos.
4) Consequentemente, constata-se que a factualidade alegadamente constante de tais registos (cuja veracidade a A. não aceita, nem nunca aceitou!) foi carreada para o processo disciplinar de forma ilegal, em violação do sigilo profissional – uma vez que a utilização dos referidos registos, sujeitos a sigilo profissional, constitui um meio de prova ilegal – o que determina a nulidade do processo disciplinar, o que expressamente se invoca.
5) Neste momento, aquilo que a R. pretende com a sua insistência é branquear a situação acabada de expor.
6) Registamos que o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (Apelação 4354/19.7T8CBR-A.C1), invocado pela R., nada tem que ver com a questão discutida nos presentes autos. Na verdade, o referido acórdão versa sobre a possibilidade de serem juntos aos autos os talões de salário de trabalhadores que não fazem parte do processo. No presente processo, discute-se a utilização de dados clínicos, sujeitos a sigilo médico, para fins disciplinares.
7) A este respeito, sublinhamos que aquilo que a R. pretende é absolutamente ilegal e impraticável, pelas seguintes razões:
- em primeiro lugar, pressupõe um acesso ilegal da R. aos referidos registos clínicos, em flagrante violação do sigilo médico e sem a autorização dos trabalhadores que são titulares da informação pessoal que consta desses registos clínicos.
- em segundo lugar, a R. propõe-se fazer uma colagem e truncagem de fotocópias, cuja genuinidade só poderá ser aferida através da consulta dos originais dos processos clínicos, o que redundará numa violação do sigilo profissional e de uma violação da proteção dos dados pessoais dos titulares dos referidos processos.
- em terceiro lugar, a pretensão da R. consubstancia (mais uma!) violação dos direitos de defesa da A., pelos motivos expostos nos artigos 74º a 85º da petição inicial (cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido).
Efetivamente, nunca ninguém confrontou a A. com esta matéria, isto é, nem os médicos da R., nem a R., possibilitaram que a A. se defendesse no momento próprio.
Nestes termos e nos melhores de direito, a A. opõe-se ao deferimento do requerido pela R..”

Aos 07.04.2021, veio a Ré arguir a “nulidade” do requerimento apresentado pela A. aos 05.04.2021, alegando o seguinte:
“A A. não tinha o direito de se pronunciar sobre a pronúncia da R. quanto ao parecer da Ordem dos Médicos, tanto mais que a R. se limitou a reiterar o que antes já tinha requerido no processo. E muito menos para arguir nulidades de um processo disciplinar (em autos de incidente de levantamento de sigilo, como fez no seu artº 4º!) e produzir alegações sobre o anteriormente praticado.
Nestes termos, sendo um acto proibido e anómalo e tendo influência no processo por constituir uma desigualdade de armas, deve o requerimento da A. ser desentranhado”, ao que a A., por requerimento de 15.04.2021, respondeu referindo o seguinte:
“1) A A. limitou-se a deduzir a sua oposição ao requerimento que a R. apresentou em 22.03.2021 (“vem opor-se ao requerimento apresentado pela R.”), e fê-lo corretamente, explicando os motivos porque é que não concordava com o teor desse requerimento e concluindo pedindo o seu indeferimento (“Nestes termos e nos melhores de direito, a A. opõe-se ao deferimento do requerido pela R..”).
2) E, ao fazê-lo, exerceu o seu direito legal ao contraditório (art. 3º/3 do CPC).
3) Portugal é um Estado de Direito Democrático (art. 2º da CRP) e o direito ao contraditório é um dos direitos fundamentais de qualquer processo judicial que decorra num Estado de Direito Democrático.
4) Consequentemente, o exercício do direito legal ao contraditório nunca consubstancia qualquer nulidade processual. (art. 195º/1 CPC).
Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser indeferida a arguição de nulidade deduzida pela R..”

Aos 23.04.21 foi proferido despacho:
A. Quanto aos requerimentos da A. de 05.04.2021, da Ré de 07.04.2021 e da A. de 15.04.2021, que decidiu nos seguintes termos:
“- Julgar parcialmente procedente a nulidade processual invocada pela Ré no seu requerimento de 07.04.2021, tendo-se, em consequência, como não escritos os nºs 2), 3) e 4) do requerimento da A. apresentado aos 05.04.2021;
- Quanto ao mais que consta do requerimento da A. de 05.04.2021, admitir a resposta da A. nele vertida, improcedendo nessa parte a arguida nulidade processual.
Custas do incidente pela A. e pela Ré na proporção de metade para cada, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça devida.”
B. A determinar o cumprimento do princípio do contraditório nos seguintes termos:
“Pronunciando-se sobre o parecer da Ordem dos Médicos, veio a Ré, aos 22.03.2021, dizer, para além do mais que consta desse requerimento [e que, oportunamente, será apreciado], o seguinte: “(…). É de seguir a jurisprudência de casos análogos3[2], com a própria R. sugeriu, permitindo-se a prova com exclusão dos nomes dos pacientes e a salvaguarda da identidade/dado pessoal. Ou seja, reitera-se que se permita ao tribunal fazer o seu trabalho, ouvindo o depoimento do médico conjugado com os documentos, ponderando-se uma forma de produzir a prova acautelando a manutenção do sigilo com um procedimento que garanta a confidencialidade. Os registos estão identificados por número de processo, que corresponde ao número mecanográfico do trabalhador. Os documentos podem ser fotocopiados (registos manuais) e extraídos do sistema (registos informáticos) mantendo-se a confidencialidade do nome, que para o efeito seria riscado, e entregues ao tribunal em envelope fechado, também mantendo o sigilo, nos termos referidos, para serem usados por profissionais todos eles vinculados ao segredo profissional e com reserva de publicidade, nesta parte. O mesmo quanto ao depoimento do médico sobre tais documentos/registos. E se necessário fosse mediante uma identificação convencionada para despistar a rastreabilidade, pois o facto material sujeito a prova é indiferente à identidade/dado pessoal.”, o que, como a própria Ré também diz, consubstancia uma reiteração de pretensão que a mesma já havia formulado anteriormente seja no requerimento de meios de prova constante da contestação [“Neste sentido, coloca a questão ao tribunal, para que dentro dos seus poderes de gestão processual permita que os documentos sejam juntos, dispensando-se o sigilo, ou que a testemunha seja portadora desses registos na data no julgamento, para poder apresentá-los/exibi-los em condições de sigilo e produzir-se a prova documental conjugadamente com a testemunhal ou outra solução que agilize o objetivo de usar os registos sem dano para os dados pessoais neles constantes ou minimizando-o.”- sublinhado nosso], seja no ponto ii) do seu requerimento de 19.10.2020 [“ii) Em alternativa à dispensa de sigilo, deve ponderar-se uma forma de produzir a prova acautelando a manutenção do sigilo com um procedimento que garanta a confidencialidade. Os registos estão identificados por número de processo, que corresponde ao número mecanográfico do trabalhador. Os documentos podem ser fotocopiados (registos manuais) e extraídos do sistema (registos informáticos) mantendo-se a confidencialidade do nome, que para o efeito seria riscado, e entregues ao tribunal em envelope fechado, também mantendo o sigilo, nos termos referidos, para serem usados por profissionais todos eles vinculados ao segredo profissional e com reserva de publicidade, nesta parte. O mesmo quanto ao depoimento do médico sobre tais documentos/registos.”].
Ou seja, subsidiariamente, para o caso de indeferimento do requerido levantamento do sigilo profissional, a Ré pretende, ou parece pretender, que seja autorizada, por esta Relação, a produção dos meios de prova que requereu, porém, de uma outra “forma”, isto é “acautelando a manutenção do sigilo com um procedimento que garanta a confidencialidade”, designadamente, com a eliminação das referências relativas à identidade dos trabalhadores cuja privacidade se encontra abrangida pelo dever de sigilo profissional e/ou de modo a salvaguardar essa privacidade, ao que a A. se opôs.
O que está em causa e é submetido à apreciação desta Relação é tão-só o incidente do levantamento de sigilo profissional e não já a questão da validade e/ou admissibilidade, ou não, de produção da prova nos termos subsidiariamente pretendidos pela Ré, questão esta que competirá à 1ª instância apreciar e decidir, decisão que é passível de impugnação por via de recurso. No âmbito do presente incidente de levantamento de sigilo profissional, apenas se poderá eventualmente equacionar a apreciação da questão de saber se a produção dos meios de prova em causa sem identificação, ou possibilidade dessa identificação, dos trabalhadores está, ou não, sujeita a segredo profissional e/ou, em caso afirmativo, se deverá o mesmo ser levantado. Mas não mais do que isso, mormente, como já referido, se deverá ou não ser autorizada a produção dos meios de prova nos termos subsidiariamente pretendidos pela Ré e, pelo menos aparentemente, também requeridos a esta Relação.
Deste modo, e antes de mais, para o caso de eventual improcedência da pretensão principal - levantamento do sigilo profissional- e tendo em conta o princípio do contraditório (art. 3º do CPC/2013), notifique-se a presente exposição às partes para, querendo, se pronunciarem em 10 dias.”
Notificada, a Ré respondeu referindo que “concorda com ela e esclarecer que o seu requerimento subsidiário foi corretamente entendido (e não apenas pelo menos aparentemente).”.

Colheram-se os vistos legais.
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II. Fundamentação de facto
Tem-se como assente o que consta do relatório precedente.
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III. Fundamentação de direito

1. Está em questão no presente incidente decidir do levantamento, ou não, do sigilo profissional relativamente, como se diz na decisão da 1ª instância em que suscitou o incidente, “da requerida junção dos documentos em causa - as folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018 e os registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação”.
Diga-se que a A., pese embora no decurso do presente incidente se tenha oposto ao levantamento do incidente requerido pela Ré, nada disse quanto ao que por ela foi requerido. Assim, tendo em conta que a A. nada disse no que toca à junção dos documentos por si requerida, designadamente que desistia de tal pretensão, entende-se que o presente incidente de levantamento de sigilo profissional tem também como objecto a pretensão da A.

2. Dispõe o art. 519º do Código de Processo Civil que:
«1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2. Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344.º do Código Civil.
3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.
4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado».
E o art. 135º do Código de Processo Penal estipula que:
«1. Os (...) advogados (…) podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento».

Vejamos o quadro legal que poderá relevar à apreciação da questão em apreço.
- O art. 12º da D.U.D.H, nos termos do qual “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.”
- O art. 8º da C.E.D.H., nos termos do qual “1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
- O art. 10º C.D.H.B [CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DO HOMEM E A BIOMEDICINA], sob a epígrafe, “Vida privada e direito à informação”: “1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde.”
- Da CRP: art. 26º, sob a epígrafe “Outros direitos pessoais”, “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.(…)”; art. 32º, nº 8, este sob a epígrafe “Garantias do processo criminal”, “8. São nulas todas as provas obtidas mediante (…), abusiva intromissão na vida privada, (…)”; art. 35º, “Utilização da informática”, “1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei. 2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua proteção, designadamente através de entidade administrativa independente. (…); 4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na lei; (…); 7. Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de proteção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da lei.”.
- Do Código do Trabalho, aprovado pela Lei /2009, de 12.02: Art.16.º “Reserva da intimidade da vida privada”, “1 - O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada. 2 - O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspetos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afetiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas.”; Art.17.º, “Proteção de dados pessoais”, “1 - O empregador não pode exigir a candidato a emprego ou a trabalhador que preste informações relativas: a) À sua vida privada, salvo quando estas sejam estritamente necessárias e relevantes para avaliar da respetiva aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho e seja fornecida por escrito a respetiva fundamentação; b) À sua saúde ou estado de gravidez, salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem e seja fornecida por escrito a respetiva fundamentação. 2 - As informações previstas na alínea b) do número anterior são prestadas a médico, que só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto a desempenhar a atividade. 3 - O candidato a emprego ou o trabalhador que haja fornecido informações de índole pessoal goza do direito ao controlo dos respetivos dados pessoais, podendo tomar conhecimento do seu teor e dos fins a que se destinam, bem como exigir a sua retificação e atualização. 4 - Os ficheiros e acessos informáticos utilizados pelo empregador para tratamento de dados pessoais do candidato a emprego ou trabalhador ficam sujeitos à legislação em vigor relativa à proteção de dados pessoais. 5 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos nºs 1 ou 2.”; Art. 18.º “Dados biométricos”, “1 - O empregador só pode tratar dados biométricos do trabalhador após notificação à Comissão Nacional de Proteção de Dados. 2 - O tratamento de dados biométricos só é permitido se os dados a utilizar forem necessários, adequados e proporcionais aos objetivos a atingir. 3 - Os dados biométricos são conservados durante o período necessário para a prossecução das finalidades do tratamento a que se destinam, devendo ser destruídos no momento da transferência do trabalhador para outro local de trabalho ou da cessação do contrato de trabalho. 4 - A notificação a que se refere o n.º 1 deve ser acompanhada de parecer da comissão de trabalhadores ou, não estando este disponível 10 dias após a consulta, de comprovativo do pedido de parecer. 5 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto no n.º 3.”; Art. 19.º, “Testes e exames médicos”, “1 - Para além das situações previstas em legislação relativa a segurança e saúde no trabalho, o empregador não pode, para efeitos de admissão ou permanência no emprego, exigir a candidato a emprego ou a trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem, devendo em qualquer caso ser fornecida por escrito ao candidato a emprego ou trabalhador a respetiva fundamentação. 2 - O empregador não pode, em circunstância alguma, exigir a candidata a emprego ou a trabalhadora a realização ou apresentação de testes ou exames de gravidez. 3 - O médico responsável pelos testes e exames médicos só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a atividade. 4 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 ou 2.”.
- Lei 12/2005, de 26.10, alterada pela Lei 26/2016, de 22.08 [Lei de Informação da Saúde]: art. 3º: “1 - A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei. 2 - O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado. 3 - O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento ou nos termos da lei, é exercido por intermédio de médico, com habilitação própria, se o titular da informação o solicitar. 4 - Na impossibilidade de apuramento da vontade do titular quanto ao acesso, o mesmo é sempre realizado com intermediação de médico.”.
- Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM), aprovado pela Lei 117/2015, de 31.08: art. 139º, “Segredo profissional”, “1. O segredo médico profissional pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico -doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada. 2. O segredo médico profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente: a) Os factos revelados diretamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela; b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros; c) Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente; d) Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo. 3. A obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e seja ou não remunerado. 4. O segredo profissional mantém -se após a morte do doente. 5. É expressamente proibido ao médico enviar doentes para fins de diagnóstico ou terapêutica a qualquer entidade não vinculada ao segredo profissional. 6. Exclui -se do dever de segredo profissional: a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo profissional; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória.”.
- Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM), aprovado pelo Regulamento 707/2016, DR, 2ª Série, de 21.07.2016: arts. 29º a 38º, sendo os arts. 20º e 30º de conteúdo no essencial similar ao art. 139º do EOM e dispondo: o art. 31º, “Segredo médico em unidades de saúde públicas, sociais, cooperativas ou privadas”, “1. Os médicos que trabalhem em unidades de saúde estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente. 2. Compete aos médicos referidos no número anterior a identificação dos elementos dos respetivos processos clínicos que, não estando abrangidos pelo segredo médico, podem ser comunicados a entidades, mesmo hierárquicas, que os hajam solicitado. 3. As unidades de saúde em colaboração com os diretores clínicos devem impedir o acesso indevido de terceiros aos processos clínicos e aos sistemas informáticos que contenham informação de saúde. (…)”; Art. 32.º, “ Escusa do segredo médico”: “Excluem o dever de segredo médico: a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo médico; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória.”; Art. 35º, “Intervenção em processos administrativos ou judiciais”: “1. O médico que nessa qualidade seja convocado como testemunha para comparecer perante a autoridade que o convocou, não poderá prestar declarações ou produzir depoimento sobre matéria de segredo médico, exceto nas situações previstas nas alíneas a) e b) do artigo 32.º ou na lei. “2. Quando, nas situações referidas no número anterior, o médico invoque o dever de segredo, pode solicitar à Ordem declaração que ateste a natureza inviolável do sigilo no processo ou procedimento em causa”; Art. 37.º, “Tratamento da informação da saúde”: “1. Os responsáveis pelo tratamento da informação de saúde devem tomar as providências adequadas à proteção da sua confidencialidade, garantindo a segurança das instalações e equipamentos, o controlo no acesso à informação, bem como o reforço do dever de sigilo e da educação deontológica de todos os profissionais. 2. As unidades do sistema de saúde devem impedir o acesso indevido de terceiros aos processos clínicos e aos sistemas informáticos que contenham informação de saúde, incluindo as respetivas cópias de segurança, assegurando os níveis de segurança apropriados e cumprindo as exigências estabelecidas pela legislação que regula a proteção de dados pessoais, nomeadamente para evitar a sua destruição, acidental ou ilícita, a alteração, difusão ou acesso não autorizado ou qualquer outra forma de tratamento ilícito da informação. 3. A informação de saúde só pode ser utilizada pelo sistema de saúde nas condições expressas em autorização escrita do seu titular ou de quem o represente. 4. O acesso a informação de saúde pode, desde que anonimizada, ser facultado para fins de investigação. 5. A gestão dos sistemas que organizam a informação de saúde deve garantir a separação entre a informação de saúde e genética e a restante informação pessoal, designadamente através da definição de diversos níveis de acesso. 6. A gestão dos sistemas de informação deve garantir o processamento regular e frequente de cópias de segurança da informação de saúde, salvaguardadas as garantias de confidencialidade estabelecidas por lei”. E, nos termos do art. 39º, “1. A informação médica é a informação de saúde destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde. 2. Entende -se por «processo clínico» qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares. 3. Cada processo clínico deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito ao doente. 4. A informação médica é inscrita no processo clínico pelo médico que tenha assistido o doente ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional igualmente sujeito ao dever de segredo. 5. O processo clínico só pode ser consultado por médico incumbido da realização de prestações de saúde a favor do doente a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a segredo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmo”.
- Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.04.2016 relativo à protecção de pessoas singulares no que fiz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (RGPD): Art. 4º, “Definições”, “Para efeitos do presente regulamento, entende-se por: 1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular; 2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição; (…);13) «Dados genéticos», os dados pessoais relativos às características genéticas, hereditárias ou adquiridas, de uma pessoa singular que deem informações únicas sobre a fisiologia ou a saúde dessa pessoa singular e que resulta designadamente de uma análise de uma amostra biológica proveniente da pessoa singular em causa; (…);15) «Dados relativos à saúde», dados pessoais relacionados com a saúde física ou mental de uma pessoa singular, incluindo a prestação de serviços de saúde, que revelem informações sobre o seu estado de saúde”; Art. 5º, “Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais”: “1. Os dados pessoais são: a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»); b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89º, nº 1 («limitação das finalidades»); c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»); (…)”; Art. 6º, “Licitude do tratamento”, “1. O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações: (…); f) O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança”; Art. 9º, “Tratamento de categorias especiais de dados pessoais”, “ 1. É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa. 2. O disposto no nº 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos: (…); b) Se o tratamento for necessário para efeitos do cumprimento de obrigações e do exercício de direitos específicos do responsável pelo tratamento ou do titular dos dados em matéria de legislação laboral, de segurança social e de proteção social, na medida em que esse tratamento seja permitido pelo direito da União ou dos Estados-Membros ou ainda por uma convenção coletiva nos termos do direito dos Estados-Membros que preveja garantias adequadas dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados; (…); f) Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional”;
- Lei 58/2019, de 08.08: Art. 28.º, “Relações laborais”, “1 - O empregador pode tratar os dados pessoais dos seus trabalhadores para as finalidades e com os limites definidos no Código do Trabalho e respetiva legislação complementar ou noutros regimes setoriais, com as especificidades estabelecidas no presente artigo. (…); Art. 29.º, “Tratamento de dados de saúde e dados genéticos”, “1 - Nos tratamentos de dados de saúde e de dados genéticos, o acesso a dados pessoais rege-se pelo princípio da necessidade de conhecer a informação. (…); 4 - Os titulares de órgãos, trabalhadores e prestadores de serviços do responsável pelo tratamento de dados de saúde e de dados genéticos, o encarregado de proteção de dados, os estudantes e investigadores na área da saúde e da genética e todos os profissionais de saúde que tenham acesso a dados relativos à saúde estão obrigados a um dever de sigilo; 5 - O dever de sigilo referido no número anterior é também aplicável a todos os titulares de órgãos e trabalhadores que, no contexto do acompanhamento, financiamento ou fiscalização da atividade de prestação de cuidados de saúde, tenham acesso a dados relativos à saúde; 6 - O titular dos dados deve ser notificado de qualquer acesso realizado aos seus dados pessoais, cabendo ao responsável pelo tratamento assegurar a disponibilização desse mecanismo de rastreabilidade e notificação. (…)”
- Cód. Penal: Art. 195º: “
Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.”

3. No caso, a Ré pretende que sejam juntos aos autos os processos/registos clínicos a que se reporta o nº 13 da nota de culpa para prova da infracção disciplinar imputada à A. e pela qual foi disciplinarmente sancionada, documentos esses que contêm elementos e informações clínicas relativas a outros trabalhadores e, na mesma situação, se encontrando também a pretensão da A., formulada a final da pi., de notificação da Ré para juntar as “Folhas de Registo Diário do Trabalho” (para prova do que alegou na p.i.).
Tal documentação está, tendo em conta o quadro legal acima exposto e indiscutivelmente, sujeita a sigilo médico, o que aliás as partes, mormente a Ré, não colocam em causa.
A questão está, pois, em saber se tal sigilo deve ser levantado.
O segredo profissional consiste na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional[3], definido-o Fernando Elói como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão[4].
O segredo médico constitui pilar fundamental do exercício da actividade médica e tutela o direito, consagrado constitucional e legalmente, nos termos acima referidos, à reserva da intimidade da vida privada e a indispensável confiança na relação entre médico/doente, visando a protecção da confiança do indivíduo que, nele confiando, revela factos sigilosos.
E, por outro lado, nos termos do já citado art. 139º, nº 6, do EOM apenas se excluem do segredo profissional as seguintes situações: “ a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo profissional; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória.”.
Ao caso não têm aplicação as situações previstas na als. a) e c), nem neste está em causa a defesa da dignidade e da honra do médico, do doente ou de terceiros, importando, todavia, saber se estaremos perante situação em que esteja em causa a defesa de legítimo interesse de terceiro, no caso, da Ré e da A. Salienta-se que as informações clínicas constantes dos documentos cuja junção se pretende reportam-se não à A., mas sim a outros trabalhadores da Ré, não constando dos autos que os mesmos tenham dado o seu consentimento à revelação dos dados.
Em contraponto ao direito à reserva da intimidade da vida privada, releva no caso o direito, a todos constitucionalmente consagrado, de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a um processo equitativo (art. 20º da CRP), na vertente do direito à prova, consubstanciando também interesse constitucionalmente protegido a boa administração da justiça (art. 202º da CRP), sendo que, no caso e na perspectiva da tutela dos interesses da Ré, está concretamente em causa o exercício do poder disciplinar, que lhe advém do contrato de trabalho celebrado com a A., poder esse que, em última análise, radica no direito constitucional à iniciativa privada (arts. 61º, 62º, 80º c) e 86º da CRP).
Estamos, pois, perante situação de direitos legítimos da Ré e da A. [no exercício do seu direito de defesa no procedimento disciplinar de que foi alvo].
Como diz Júlio Gomes, in Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho, págs. 266/267 “(…) já não se discute tanto hoje se e como é que os poderes patronais são limitados pelos direitos fundamentais dos trabalhadores, mas, antes, se em que medida é que se justifica a compressão de direitos fundamentais dos trabalhadores”, havendo que se assentar numa “presunção de liberdade” e na premissa, apresentadas por José João Abrantes[5], de que “qualquer restrição aos direitos fundamentais tem que ser justificada, adequada e proporcional”, sendo que “qualquer limitação imposta à liberdade civil do trabalhador tem uma natureza marcadamente excepcional, não podendo justificar-se a não ser pela necessidade de salvaguardar um outro valor que no caso concreto deva ser considerado mais importante: (…)” e, a pág. 321 que “Qualquer restrição aos direitos fundamentais deste [reporta-se ao trabalhador] terá que ser necessária, mas também justificada, proporcional e adequada. É, desde logo à luz destes princípios, que julgamos poderem resolver-se algumas questões não expressamente tratadas na nossa lei.”
Estamos, assim, perante situação de colisão de direitos entre terceiros, os trabalhadores da Ré a quem se reportam os registos clínicos, e os das partes, dispondo o art. 335º do Cód. Civil que: “1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. 2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”
Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 4ª Edição, Almedina, pág.390, refere o seguinte: “VI. Os limites extrínsecos aos direitos fundamentais e de personalidade dos trabalhadores decorrem do relevo de outros interesses ou direitos que entrem em colisão com aqueles. Esta situação de colisão de direitos deve ser tratada nos termos gerais, ou seja, com a cedência recíproca e equilibrada dos direitos em confronto, ou através da prevalência do direito que, no caso concreto, se considere superior (art. 335º CC). Assim, os direitos dos trabalhadores podem ter de ceder a interesses do empregador, que podem, inclusivamente, concretizar direitos fundamentais desde (o direito de propriedade sobre a empresa, ou o direito de livre iniciativa económica – arts. 62º, 80º c) e 86º da CRP), (…)”.
Maria Regina Redinha, in Da protecção da personalidade no Código do Trabalho, Para Jorge Leite, Escritos jurídico-Laborais, I, Coimbra Editora, pág. 824, reportando-se à reserva da intimidade da vida privada, diz que: “(…), a esfera de protecção comporta não apenas o acesso ao conhecimento de aspectos da vida privada como igualmente a divulgação e circulação de factos e informações respeitantes à privacidade do empregador ou do trabalhador, que por seu conhecimento haja sido acedido de forma lícita ou ilícita. A divulgação de factos ou informações relativos à intimidade, por si só, constitui uma violação do direito de personalidade aqui consagrado. Ou seja, a par de um direito de reserva da informação passível de ser obtida, existe um direito ao sigilo ou ao silêncio sobre a informação colhida.”; em anotação ao art. 17º do CT, refere que: “A protecção de dados pessoais, lato sensu, tem especial atinência com a defesa da inviolabilidade pessoal a que se refere igualmente o artigo anterior na projecção reserva da intimidade da vida privada” (pág. 827); reportando-se à al. b) do nº 1, do citado art. 17º diz que:
“Dado o carácter sensível das informações e o seu potencial como factos discriminatório, o seu tratamento surge-nos autonomizado, embora também aqui se cuide da tutela da esfera privada do indivíduo.
Do ponto de vista substantivo, as informações relativas ao estado de saúde ou gravidez só podem ser solicitadas quando haja igualmente um nexo de necessidade com o concreto desempenho da actividade profissional. Tal como a derrogação anterior, também esta se subordina aos princípios da necessidade, da proporcionalidade e adequação, (…).
O nº 2 deste artigo restringe, no entanto, a possibilidade de a prestação de informações relativas ao estado de saúde ou gravidez ser efectuada directamente perante o empregador ou os seus representantes, mesmo nas hipóteses em que se revele necessário e justificado o seu conhecimento.
É imprescindível, para evitar intromissões excessivas ou desnecessárias, que este tipo de informação seja recolhida por médico, pois só ele estará em condições, não apenas de recolher os dados pertinentes, como de os tratar confidencialmente – cfr, nomeadamente o art. 13º, al. c), do Estatuo da Ordem dos Médicos.
Ao médico só é permitida a revelação do resultado final da avaliação que faça da situação clínca ou física do trabalhador ou candidato a emprego, manifestando o seu juízo de aptidão ou inaptidão para o exercício das funções ou actividades, Porém, uma vez que se trata de direito relativamente disponível (…), mediante autorização escrita do trabalhador ou candidato o médico pode fornecer elementos adicionais de informação ao empregador.
Trata-se de um consentimento autorizante – art. 81º, CC – sujeito a forma escrita. A inobservância de forma, na medida em que traduz preterição de formalidade ad substantiam, importa a nulidade do consentimento e, por consequência, torna ilícita a divulgação da informação ao empregador e a tomada de conhecimento por este. A ilicitude origina a responsabilidade civil por facto ilícito do médico e do empregador pelos danos causados com a violação do direito de personalidade – art. 483º, CC.
Esta, foi de resto, a solução originada pela pronúncia do Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 306/2003, de 25 de Junho, quanto à inconstitucionalidade do acesso directo do empregador a informações relativas à saúde e estado de gravides do candidato a emprego ou do trabalhador, por violação do princípio da proibição do excesso nas restrições ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, decorrente das disposições conjugadas dos arts. 26º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição.” (págs.829/830)

Ou seja, retira-se do quadro legal (internacional, constitucional e lei ordinária) e doutrinário citados a fortíssima tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada, nesta especialmente incluída a informação relativa à saúde do trabalhador e o consequente sigilo médico, que só em situações de natureza muito excepcional e limitadas poderão ceder, impondo-se para tanto que outros direitos, de força igual ou superior, determinem essa cedência.
No caso, conquanto ambos tenham protecção constitucional e legal, afigura-se-nos que o direito à reserva da intimidade da vida privada, que assenta na dignidade da pessoa humana, e a consequente obrigação de sigilo médico, por um lado, e o direito a processo equitativo, na vertente do direito à prova, à boa administração da justiça e ao exercício do poder disciplinar, por outro, não são iguais.
Com efeito, o direito à dignidade da pessoa humana é de natureza universal e ilimitada, direito esse no qual assenta o direito à reserva da intimidade da vida privada e o consequente direito à reserva no que toca às informações referentes à saúde, designadamente dos trabalhadores, que apenas admitem as derrogações marcadamente excepcionais e previstas na lei com grande cautela, constituindo o mencionado direito à dignidade da pessoa humana baliza ou limitação a outros direitos ou poderes, como decorre designadamente dos nºs 2 e 3 do art. 26º da CRP.
Por sua vez, no que toca ao direito à justiça e a processo equitativo, na vertente do direito à prova, a própria CRP prevê a obrigação de a lei estabelecer garantias contra práticas contrárias à dignidade humana, prevendo a lei, designadamente o CPP, restrições em matéria probatória, nomeadamente no que toca a prova ilícita (cfr. art. 126º, nº 2, nos termos do qual são nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada).
E, quanto ao interesse da boa administração da justiça, este é um conceito ou princípio indispensável, mas amplo que, a coberto do mesmo, não pode tudo permitir. Na avaliação, haverá que ponderar os concretos interesses que a administração da justiça visa prosseguir em cada caso, sendo que, na situação em apreço, o interesse que está essencialmente em causa para justificar o levantamento do sigilo médico é o exercício, conquanto legal, mas apenas, do poder disciplinar e que, tão só de forma mais “difusa” ou “longínqua” radica no direito constitucional à iniciativa privada.
Impõe-se, pois, ponderar o interesse que deve prevalecer, ou seja, qual o interesse superior que deve ser acautelado.
E, nessa ponderação, como decorre e pelo que ficou dito, afigura-se-nos também que é o direito/dever de sigilo profissional, enquanto emanação do direito à reserva da vida privada e da dignidade da pessoa humana, que deve prevalecer e que, assim, não poderá ser levantado.
E no sentido do seu não levantamento se pronunciou também o parecer emitido pela Ordem dos Médicos, no qual, após indicação do normativo legal (parte do qual que acima referimos), concluiu que:
“Quer isto dizer que a exclusão do dever de segredo profissional só é aceitável em situações tipificadas na lei, designadamente naquelas que estão previstas no nº 6 do artigo 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos na versão aprovada pela Lei 117/2015, de 31 de Agosto e noutras disposições especiais, sendo certo que ao caso implica a ponderação entre os interesses em conflito por forma a alcançar aquele que deve prevalecer.
In casu, o médico responsável pelas fichas clínicas dos trabalhadores tem o dever irrenunciável de proteger as informações constantes dos registos clínicos, ou seja os dados veiculados pelos trabalhadores sobre aquilo que faz parte da esfera da intimidade da sua vida privada.
A Ordem dos Médicos sustenta, assim, a sua posição nos princípios éticos da autonomia, enquanto expressão privilegiada da dignidade da pessoa do doente, no princípio da benevolência por concordância com a representação do melhor interesse da paciente e no princípio do respeito pela vulnerabilidade que se revela especialmente pertinente quando possa estar em causa a intimidade do trabalhador do trabalhador face à sua entidade patronal.
Em conclusão:
- Numa perspectiva estritamente deontológica, os valores e interesses ligados à manutenção do sigilo profissional tendo em consideração o acima expendido, sobrelevam àqueles que se pretendem fazer valer em sede de processo judicial do foro laboral;
- A quebra do sigilo médico por via da revelação de dados relacionados com a saúde de trabalhadores, não é deontologicamente admissível, por desproporcionada e por poder afetar irremediavelmente e de forma substancial a relação de confiança e confidencialidade que tem de existir entre o médico de trabalho e os trabalhadores que assiste.
Atento o exposto, a Ordem dos Médicos entende mostrar-se justificada, face às normas e princípios deontológicos, a manutenção da inviolabilidade das fichas clínicas dos trabalhadores e a consequente recursa em depor por parte do Dr. D…, na qualidade de testemunha ou em fornecer dados dos processos clínicos dos aludidos trabalhadores.”.

4. No entanto, afigura-se-nos também o seguinte:
As informações contidas nos registos clínicos consubstanciam dados pessoais na acepção prevista no art. 4º, nº 1, do GRPD e que “pertencem” ao seu titular, estando por isso e só por si abrangidas pela protecção conferida pelo referido regulamento, pela reserva da intimidade da vida privada e pelo sigilo médico.
Não obstante, e na medida em que os registos/processos clínicos não contenham a identificação, ou a possibilidade de identificação directa ou indirecta do titular dos dados (designadamente, nome, morada, categoria profissional, números de identificação fiscal, da Segurança Social, do SNS ou outro nos termos previstos no art. 4º, nº 1, do RGPD, designadamente número mecanográfico) entende-se dever ser de, na ponderação a fazer dos interesses e direitos tutelados e num juízo de necessidade e proporcionalidade, autorizar o levantamento do sigilo profissional [diga-se, quanto ao número mecanográfico, que o mesmo se reporta a trabalhador em concreto, podendo, ainda que de forma indirecta, conduzir ou permitir a sua identificação].
Com efeito, tutelando o direito à reserva da vida privada e o consequente sigilo médico, a privacidade de determinada pessoa em concreto e tendo em conta os interesses, também legítimos, do exercício da acção disciplinar, enquanto corolário do direito à iniciativa privada, bem como da administração da justiça e o menor sacrifício dos mesmos, afigura-se-nos, na medida em que os registos médicos/processos clínicos não contenham qualquer dado que, como referido, permita a identificação directa ou indirecta dos titulares dos dados, que se justifica a possibilidade de levantamento do sigilo profissional e sendo certo que, na perspectiva da protecção e tratamento dos dados pessoais, a al. f) do nº 2 do art. 9º do RGPD dispõe que a proibição do tratamento de dados relativos à saúde não se aplica “f) Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional”.
Diga-se ainda a este propósito, que no mencionado parecer da Ordem dos Médicos, se refere que:
“Como pontos prévios importa assinalar que: (…); c) A consulta das fichas implica sempre uma intromissão na reserva da intimidade da vida provada dos trabalhadores ainda que, posteriormente, sejam carreados aos autos documentos com a eliminação dos nomes dos titulares da informação, já que, mesmo assim, o número mecanográfico identifica o trabalhador.”
Concordamos que o número mecanográfico, que se reporta a trabalhador em concreto, é susceptível, ainda que de forma indirecta, conduzir ou permitir a sua identificação, estando abrangido pelo conceito de dado pessoal a que se reporta o art. 4º, nº 1, do RGPD. Não obstante, tal razão deixará de ser verificar caso, como acima referido, tal número não conste de informação que, porventura, seja fornecida, a par aliás dos demais elementos susceptíveis de identificação acima referidos.
Importa todavia aqui consignar e deixar esclarecido o que consta do despacho da ora relatora de 23.04.21, em que se referiu o seguinte: “O que está em causa e é submetido à apreciação desta Relação é tão-só o incidente do levantamento de sigilo profissional e não já a questão da validade e/ou admissibilidade, ou não, de produção da prova nos termos subsidiariamente pretendidos pela Ré, questão esta que competirá à 1ª instância apreciar e decidir, decisão que é passível de impugnação por via de recurso. No âmbito do presente incidente de levantamento de sigilo profissional, apenas se poderá eventualmente equacionar a apreciação da questão de saber se a produção dos meios de prova em causa sem identificação, ou possibilidade dessa identificação, dos trabalhadores está, ou não, sujeita a segredo profissional e/ou, em caso afirmativo, se deverá o mesmo ser levantado. Mas não mais do que isso, mormente, como já referido, se deverá ou não ser autorizada a produção dos meios de prova nos termos subsidiariamente pretendidos pela Ré e, pelo menos aparentemente, também requeridos a esta Relação.”.
Ou seja, não cabe no âmbito do presente incidente de levantamento de sigilo a emissão de pronúncia sobre a questão da validade e/ou admissibilidade, ou não, de produção da prova nos termos subsidiariamente pretendidos pela Ré, e não é esse o propósito do que se referiu quanto à dispensa de sigilo caso os registos clínicos não contenham informação que permita, directa ou indirectamente, identificar o trabalhador, nem o referido assenta no pressuposto prévio da validade/admissibilidade de produção de prova nesses termos. Com o referido, limitamo-nos a apreciar da questão única e exclusivamente na perspectiva do sigilo profissional.

Por fim, é de esclarecer que as considerações tecidas são identicamente aplicáveis às declarações que possam ser prestadas em Tribunal por profissional médico sujeito ao mencionado dever de segredo profissional, designadamente pela testemunha Sr. Dr. D…, médico, sobre os documentos em causa - “folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018” e registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação se e na medida do acima referido (que importe a identificação ou possibilidade de identificação, directa ou indirecta, dos trabalhadores titulares dos dados pessoais).
***
IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar o presente incidente de levantamento de sigilo profissional (médico) apenas parcialmente procedente e, em consequência:

A. Sem prejuízo do decidido na alínea seguinte, indeferir o levantamento do sigilo profissional (médico) no que se reporta à junção, requerida quer pela A., das “folhas de registo diário do trabalho da A., respeitantes ao período de 18.05.2018 até 29.06.2018”, quer pela Ré, dos registos clínicos referidos no nº13 do artigo 1º da contestação;

B. Autorizar o levantamento do sigilo profissional (médico) no que se reporta aos documentos mencionados na precedente alínea A) se e apenas na medida em que tais documentos não contenham a identificação, ou a possibilidade de identificação directa ou indirecta, do titular dos dados dos documentos (designadamente, nome, morada, categoria profissional, números de identificação fiscal, da Segurança Social, do SNS ou outro nos termos previstos no art. 4º, nº 1, do RGPD, incluindo número mecanográfico);

Custas por ambas as partes, na proporção de metade.

Porto, 14.07.2021
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
______________
[1] Ac. RC de 26.6.2020, pº 4354/19.7T8CBR-A.C2, in www.dgsi.pt.
[2] Ac. RC de 26.6.2020, pº 4354/19.7T8CBR-A.C2, in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 15.02.2000, in CJ, 2000, t 1, pág. 85 a 91.
[4] Cfr. «Da Inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais», in O Direito, Ano LXXXVI, 1954, pág. 81, e também citado no Acórdão do STJ referido na nota anterior.
[5] In Contrato de Trabalho e Meios de Vigilância da Actividade do Trabalhador (Breves Considerações), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, Coimbra Editora, 2003, Vol II, pág. 817.