PROCESSO ABREVIADO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
INQUÉRITO
NULIDADE
Sumário

Não há preterição de qualquer formalidade pelo facto de o recorrente não ter sido interrogado como arguido, antes da dedução da acusação para julgamento em processo abreviado e nesta forma de processo não é igualmente obrigatória a realização de inquérito.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


1.No âmbito do Processo Abreviada nº 5428/20.7T9CSC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Juízo Local de Pequena Criminalidade de Cascais, veio o Ministério Público interpor recurso do despacho proferido no dia 06 de Abril de 2021, que decidiu rejeitar a acusação em processo abreviado, declarando-a nula, por não terem sido praticados em sede de inquérito os actos legalmente impostos e devidos ao abrigo dos artigos 272.°, n.° 1 e 120.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Penal, formulando as conclusões que se transcrevem:

1°.O despacho recorrido declarou nula a acusação para julgamento em processo especial abreviado deduzida pelo Ministério Público.
2°.O Tribunal a quo entendeu que: "Partindo da correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º nº 5, da Constituição da República), bem como dos princípios do contraditório e da oficialidade, a solução maioritariamente seguida pela jurisprudência é a de que a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de actos obrigatórios e já não também a quaisquer outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade (Ac. TRG de 06-11-2017, proc. 220/14.0GBCMN.G1). Sucede, porém, que são actos legalmente obrigatórios os dispostos nos artigos 58. ° e 272. °, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, para o que releva, ou seja, a constituição do arguido e a sua inquirição enquanto tal. Analisados aturadamente os autos verifica-se, ao invés, que após remessa da certidão processual deste Juízo Local de Pequena Criminalidade ao DIAP, para investigação de eventual prática de crime de desobediência, foi imediatamente deduzida acusação, sem que sequer tenha sido constituído o arguido nessa qualidade e consequentemente ouvido a respeito dos factos denunciados. Aliás, Jurisprudência Uniformizada é clara a tal respeito: a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120. °, n. ° 2, alínea d), do Código de Processo Penal (AUJ n. ° 1/2006, de 23 de Novembro de 2005, publicado no Diário da República, n.° 1/2006, Série I-A de 2006.01.02). Nesta medida, declara-se a nulidade do despacho que determinou o encerramento do inquérito sem que no mesmo tenham sido praticados os actos legalmente impostos e devidos (nos termos conjugados dos artigos 272. °, n.° 1 e 120. °, n. ° 1, alínea d), do Código de Processo Penal). Em consequência e atento o regime disposto no artigo 122°, do Código de Processo Penai, importa também declarar inválidos todos os actos funcionalmente dependentes daquele despacho de encerramento do inquérito, determinando-se, pois, a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público".
3°.Constata-se que o Tribunal a quo aplicou a regra geral do processo comum, ou seja, o artigo 262.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, ao caso em apreço, que respeita a acusação deduzida em processo especial abreviado.
4°.A regulamentação do processo especial abreviado encontra-se prevista nos artigos 391°-A a 391°-G, do Código de Processo Penal e só na falta de regulamentação específica, se aplica o regime geral.
5°.Este regime não colide com a regulamentação geral, sendo que o próprio artigo 262.°, n.° 2, do Código de Processo Penal dispõe que "ressalvadas as excepções previstas neste Código (de Processo Penal), a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito".
6°.Uma dessas excepções é o processo especial abreviado, regulado no Título II do Livro VIII, no artigo 391.°-A e seguintes do Código de Processo Penal.
7°.Com o processo abreviado, pretende-se a celeridade da Justiça Penal nos casos de criminalidade menos grave, em que o julgamento em processo sumário se mostra inviável ou em que a prova é inequívoca ou evidente e de simples produção.
8°.Neste sentido a Jurisprudência tem-se pronunciado de forma pacífica que não é obrigatória a realização de inquérito, nem existe obrigatoriedade de interrogar previamente o arguido.
9°.Ao requerer o julgamento em processo abreviado, nos termos do artigo 391°-A, do Código de Processo Penal, o Ministério Público entendeu que as provas existentes nos autos eram simples e evidentes, delas resultando indícios suficientes de se ter verificado o crime imputado ao arguido.
10°.Da documentação junta aos autos, nomeadamente da certidão da decisão proferida no processo n.° 112/19.7GELSB, verifica-se que o arguido foi condenado na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de 6,00€ (seis euros) e aplicada a pena acessória de proibição de condução pelo período de 5 (cinco) meses.
11°.O arguido foi pessoalmente notificado da sentença condenatória, constando da referida notificação o prazo de 10 (dez) dias para entregar o título de condução, sob pena de incorrer na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.
12°.O arguido acabou por juntar o referido documento no dia 17 de Dezembro de 2020, após a dedução da acusação em processo especial abreviado por crime de desobediência.
13°.Sendo certo que, anteriormente, havia procedido ao pagamento da multa e das custas em que foi condenado no âmbito do processo n.° 112/19.7GELSB.
14°.Quanto aos requisitos para o julgamento em processo abreviado, os mesmos encontram-se estabelecidos no artigo 391.°-A, n.° 1, do Código de Processo Penal, ou seja, que o crime seja punível com pena de multa, ou de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de crimes, havendo provas simples e suficientes de que resultem indícios de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
15°.O artigo 391.°-A, n.° 1, in fine, do Código de Processo Penal, ao referir que, uma vez verificados os requisitos enunciados na 1ª parte da norma, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado, não acrescenta novos requisitos para dedução de acusação em processo abreviado, os quais, como se viu, se encontram enunciados na 1ª parte da norma, nem esgota a possibilidade da aquisição de provas simples e evidentes de que resulte indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
16°.Resulta do disposto no artigo 391.°-A, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a inclusão no conceito de prova simples e evidente, os casos de prova essencialmente documental.
17°.Conforme já referido nesta forma processual imperam razões de celeridade e, constitui um poder vinculado do Ministério Público deduzir acusação, havendo prova documental que só por si, constitui prova bastante de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, sendo desnecessária a realização de um inquérito sumário, com a realização de diligências que se revelariam totalmente inúteis para o fim visado.
18°.A própria certidão extraída constitui inquérito, constituindo a mesma prova bastante da materialidade de facto subsumível ao crime (de desobediência) que é imputado ao arguido.
19°.Por tudo o exposto, ao contrário do que decorre do decidido em primeira instância a acusação proferida em processo especial abreviado não viola o princípio do acusatório, nem sequer decorre da mesma a nulidade prevista no artigo 120.°, n.° 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
20°.Ao declarar nula a acusação do Ministério Público proferida em processo especial abreviado, o Tribunal a quo violou as normas previstas nos artigos 120.°, n.° 2, alínea d), 262.°, n.° 2 e 391.°-A a 391.°-G, do Código de Processo Penal.
21°.Termos em que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que aceite a acusação deduzida em processo especial abreviado.
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Respondeu o arguido PD ao recurso interposto, concluindo:
 
i)-O arguido, aqui recorrido, notificado que foi, do douto despacho da Mmª Juiz do Tribunal a quo, a designar a data e hora para a realização da audiência de julgamento, bem como da douta acusação deduzida pelo Ministério Público, apresentou nos ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 315.° do CPP, a sua Contestação, no âmbito da qual suscitou/arguiu a nulidade da falta de inquérito, revista no artigo 120.°, n.° 1 alínea d), do CPP;
ii)-Na sequência, alicerçado em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência propalado pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, foi propalado pela Mmª juiz do Tribunal a quo douto despacho que declarou a nulidade do despacho que determinou o encerramento do inquérito, em virtude de, na decorrência do mesmo, não terem sido praticados os actos legalmente impostos e devidos, nos termos conjugados dos artigos 272.°, n.° 1 e 120.°, n.° 1 al. d) do CPP e, consequentemente, considerando o regime disposto no artigo 122.° do CPP, declarou inválidos todos os actos funcionalmente dependentes daquele despacho de encerramento do inquérito, determinando, ainda, a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público;
iii)-Em face do teor do douto despacho propalado pelo Tribunal a quo nos termos acima descritos, o Ministério Público, discordando das razões ali invocadas, interpõe recurso do predito despacho com os fundamentos vertidos nas alegações do petitório recursivo;
iv)-Em apertada síntese, do cotejo entre o teor e fundamentos da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo e o arrazoado fundamentante do recurso interposto pelo Ministério Público, resulta a questão de saber se os preceitos jusprocessuais que integram a parte geral do Código Processo Penal, designadamente, os artigos 58.°, 60.°, 61.° e 64.°, bem como aqueles que disciplinam a realização do inquérito, designadamente, os artigos 262.°, 267.°, 272.°, n.° 1, todos do CPP, são também aplicáveis no âmbito do processo abreviado e, caso assim se entenda, quais as consequências legais da sua não concreta observância;
v)-Como ponto de partida, cumpre fazer referência ao disposto no artigo 2.° do CPP, o qual, como é sabido, alberga o princípio da legalidade processual, em virtude de este princípio, entre outras funções que desempenha e elencadas nas alegações supra, impõe a prática de todos os actos processuais legalmente previstos, constituindo por isso, uma garantia que deve ser considerada um direito fundamental, a qual encontra abrigo nos artigos 20.°, 27.° e 32.°, da CRP e artigo 5.°, parágrafo 1.° e 6.°, par. I, da CEDH;
vi)-Na esteira do afirmado precedentemente, importa reiterar o afirmado na douta sentença objecto do interposto recurso aqui em referência, mormente, quando é asseverado que, partindo da correta ponderação da estrutura acusatória do processo penal, artigo 32.°, n° 5, da CRP, bem como dos princípios do contraditório e da oficialidade, cumpre salientar que aquela aludida estrutura acusatória do processo criminal não significa de modo algum que a acção penal apenas se inicie com a acusação, pois, com esta, o que começa é a fase acusatória mas, no processo criminal a acção penal desencadeia-se logo com a entrada em juízo do denunciado crime ou com a sua instauração, por dever de ofício, pelo Ministério Público e não se circunscreve àquela fase;
vii)-Com efeito, não obstante a criação de uma nova forma de processo especial - o processo abreviado - o qual situa-se no cerne da questão a dirimir, através da Proposta de Lei n.° 157/VII, que que esteve na base da Lei n.° 59/98, de 25/08, importa não olvidar que aquela Proposta de Lei n.° 157/VII, no n.° 6 da sua exposição de motivos, não deixa de esclarecer que o objectivo prosseguido de celeridade processual, se pretende compatível com as garantias de defesa do arguido - aliás, em consonância com o disposto no artigo 32.°, n.° 2. Da CRP/76;
viii)-Além de ser também asseverada a obrigatoriedade da realização de interrogatório como arguido da pessoa determinada contra quem corre inquérito, justamente, nos termos do preconizado no artigo 272.°, n.° 1, do CPP, devendo ainda, nas situações em que a constituição de arguido ocorra, concomitantemente, com a dedução da acusação, não podendo ser preteridas as regras inscritas no artigo 58.° do CPP, mormente, aquelas que consubstanciam a garantia constitucional do exercício de todos os direitos de defesa, nos termos do disposto no artigo 32.°, n.° 1, da CRP/76, garantia que assume expressamente as vestes de direito fundamental, cuja tutela encontra-se constitucionalmente atribuída ao Estado, melhor dito, a todos os órgãos do Estado, conforme decorre do disposto do artigo 18.°, n.° 1, da Lei Fundamental;
ix)-Por outro lado, mas em total conexão com o alegado nos pontos precedentes, facilmente se constata que a imposição constante do artigo 272.°, n.° 1, segundo a qual, no inquérito, quando o mesmo se processe contra pessoa determinada e seja possível a sua notificação é obrigatório interrogá-la como arguida mais não é que o corolário lógico, por um lado, dos fins e do âmbito do inquérito e das finalidades do processo criminal e, por outro lado, das garantias de defesa (todas as garantias de defesa) que a Constituição da República proclama o processo criminal dever assegurar - cfr., artigo 32.°, n.° 1;
x)-E assim se entende, uma vez que, tendo o inquérito por fim a decisão sobre a acusação (cfr., artigo 262.°, n.° 1) para a qual se torna indispensável a averiguação sobre a ocorrência de um crime, a determinação dos seus agentes e respectiva responsabilidade, e tendo o processo criminal por fim último a descoberta da verdade e a realização da justiça (ou mesmo só esta última, já que também perante ela surge a descoberta da verdade como mero pressuposto), dúvidas não restam da necessidade de audição daquele ou daqueles contra quem o inquérito corre, necessidade que resulta, também, das garantias de defesa que a Constituição da República consagra;
xi)-Sucede que, os pressupostos fundamentantes do recurso ao processo abreviado, que irradiam da dimensão normativa do preceito codicístico em causa, id est, artigo 391- A, n.° 1, do CPP, traduzem-se as seguintes condicionantes; 1) - a existência de provas simples e evidentes; 2) - a existência de auto de notícia ou; 3) - após realização de inquérito sumário;
xii)-Ora, como resulta dos autos em referência, as pressupostas provas simples e evidentes, nos termos alegados pelo Ministério público - certidão extraída dos autos do processo n.° 112/19.7GELSB -, não decorrem de auto de notícia, o qual corresponde a uma investigação criminal simplificada, reconhecendo-se que uma peça processual, neste caso um auto de notícia, pode substituir uma fase processual, uma das várias funções atribuídas ao auto de notícia;
xiii)-Como também resulta evidente que não decorrem da realização de um qualquer inquérito sumário que tenha sido realizado pelo Ministério Público, no âmbito do qual tenha permitido que o arguido se pronunciasse (fosse ouvido, inquirido, previamente à dedução da acusação) sobre os factos que lhe eram imputados e passíveis de consubstanciar a prática do crime de que acabou por ser acusado de forma automática e surpreendente;
xv)-Acresce que decorre do disposto no artigo 391.°-A do CPP, que, não assentando a imputação dos factos em auto de notícia, se realize inquérito, ainda que sumário, algo que não se verifica nos autos em apreço, como foi anotado e bem pelo Tribunal a quo;
xvi)-Dessarte, ao agir como agiu, o Ministério Público, apoiando-se numa interpretação quer atomística, quer redutora e simplista do normativo jusprocessual abrigado no artigo 391.°-A, n.° 1, do CPP, viola o preconizado nos artigos 2.°, 58.°, 61.°, n.° 1, alínea g) e 272.°, n.° 1, todos do CPP e;
xvii)-Consequentemente, contende com o preceituado nos artigos 18.°, n.° 1, 32.°, n.°s 1 e 2, segunda parte, e 219.°, n.° 1, in fine, da CRP/76, razão pela qual, o Tribunal a quo, decidiu e bem nos termos que decidiu, ou seja, ter declarado a nulidade do despacho que determinou o encerramento do inquérito, por não terem sido praticados os actos legalmente impostos e devidos, nos termos conjugados do disposto nos artigos 272.°, n.° 1 e 120.°, n.° 1 alínea d) do CPP e;
xvii)-Logo, atendendo ao regime disposto no artigo 122.° do CPP, declarou também inválidos todos os actos funcionalmente dependentes daquele despacho de encerramento do inquérito, determinando a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público, não merecendo o douto despacho qualquer réstia de censura;
xvii)-Justamente por o mesmo mostrar-se correctamente respaldado nos normativos jusprocessuais em destaque, no quadro de uma correcta hermenêutica conforme à Constituição da República, devendo por isso, ser o predito despacho mantido e o recurso interposto pelo Ministério Público declarado improcedente, com as inerentes consequências legais, o que se requer por assim se entender ser de Direito e de Justiça, no quadro do vigente Estado Constitucional de Direito.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-geral Adjunto, emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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2.– Nos presentes autos, o arguido, notificado do douto despacho da Mmª Juiz do Tribunal a quo, a designar a data e hora para a realização da audiência de julgamento, bem como da douta acusação deduzida pelo Ministério Público, apresentou, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 315.° do CPP, a sua Contestação, no âmbito da qual suscitou/arguiu a nulidade da falta de inquérito, revista no artigo 120.°, n.° 1 alínea d), do CPP, tendo ainda sido alegado que o arguido apenas foi constituído nesta qualidade, aquando da notificação da acusação, na qual consta ainda a determinação de nomeação de Ilustre Defensor que o representasse.
Na sequência, foi proferido pela Mmª juiz do Tribunal a quo douto despacho que decidiu declarar nula a acusação do Ministério Público em processo abreviado, por entender verificar-se insuficiência material do inquérito ao abrigo do artigo 120.°, n.° 2, alínea d), do Código de Processo Penal, com o seguinte teor:
«(…) Devida e regularmente compulsada a mesma, decorre do ali exposto, ainda que de forma imperfeitamente expressa, a arguição da nulidade da falta de inquérito, p. no art. 120.°, n.° 1 al. d) do CPP, estando ali descrito que o arguido apenas foi constituído nesta qualidade aquando da notificação da acusação, na qual consta ainda a determinação de nomeação de I. Defensor que o represente.
Ora, tratando-se que questão fulcral, ainda que dependente de arguição, no pressuposto do regime jurídico aplicável e acima mencionado, importa apreciar:
Só a falta absoluta da prática dos atos que a lei obrigatoriamente imponha é passível de gerar a nulidade a que alude o artº120º, nº 2, al. d), do CPP e não já a eventual insuficiência material do inquérito (...)
Partindo da correta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (artº 32º, nº 5, da CRP), bem como dos princípios do contraditório e da oficialidade, a solução maioritariamente seguida pela jurisprudência é a de que a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de atos obrigatórios e já não também a quaisquer outros atos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade. (Ac. TRG de 06.11.2017, proc. n.° 220/14.0GBCMN.G1).

Sucede, porém, que são actos legalmente obrigatórios os dispostos nos art. 58.° e 272.°, n.° 1, todos do CPP, para o que releva, ou seja, a constituição de arguido e a sua inquirição enquanto tal.

Analisados aturadamente os autos verifica-se, ao invés, que após remessa de certidão processual deste Juízo Local de Pequena Criminalidade ao DIAP, para investigação de eventual prática de crime desobediência, foi imediatamente deduzida acusação, sem que sequer tenha sido constituído o arguido nessa qualidade e consequentemente ouvido a respeito dos factos denunciados.

Aliás, Jurisprudência Uniformizada é clara a tal respeito: 
A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120°, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal (AUJ n.° 1/2006, de 23.11.2005, publicado no Diário da República nº 1/2006, Série I-A de 2006.01.02).
Nesta medida, declara-se a nulidade do despacho que determinou o encerramento do inquérito sem que no mesmo tenham sido praticados os actos legalmente impostos e devidos (nos termos conjugados dos art. 272.°, n.° 1 e 120.°, n.° 1 al. d) do CPP).
Em consequência e atento o regime disposto no art. 122.° do CPP, importa também declarar inválidos todos os actos funcionalmente dependentes daquele despacho de encerramento do inquérito, determinando-se, pois, a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público.
Fica, sequentemente prejudicada a realização da diligência para amanhã designada.
Notifique, desconvoque e D.N., pela via mais expedita».
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É deste despacho que recorre o MºPº, por entender que a regulamentação do processo especial abreviado encontra-se prevista nos artigos 391°-A a 391°-G, do Código de Processo Penal e só na falta de regulamentação específica, se aplica o regime geral e este regime não colide com a regulamentação geral, sendo que o próprio artigo 262.°, n.° 2, do Código de Processo Penal dispõe que "ressalvadas as excepções previstas neste Código (de Processo Penal), a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito", pelo que não é obrigatória a realização de inquérito, nem existe obrigatoriedade de interrogar previamente o arguido.

Assim, a questão levantada, e que cumpre apreciar e decidir, prende-se com a necessidade de saber se se verifica a nulidade da acusação, por falta de inquérito.

Vejamos:
Como bem salienta o Digno Magistrado do MºPº, constata-se que o Tribunal a quo aplicou a regra geral do processo comum, ou seja, o artigo 262.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, ao caso em apreço, que respeita a acusação deduzida em processo especial abreviado.

Porém, a regulamentação do processo especial abreviado encontra-se prevista nos artigos 391°-A a 391°-G, do Código de Processo Penal e só na falta de regulamentação específica, se aplica o regime geral.

Este regime não colide com a regulamentação geral, sendo que o próprio artigo 262.°, n.° 2, do Código de Processo Penal dispõe que "ressalvadas as excepções previstas neste Código (de Processo Penal), a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito" e, uma dessas excepções é o processo especial abreviado, regulado no Título II do Livro VIII, no artigo 391.°-A e seguintes do Código de Processo Penal.

Ao requerer o julgamento em processo abreviado, nos termos do artigo 391°-A, do Código de Processo Penal, o Ministério Público entendeu que as provas existentes nos autos eram simples e evidentes, delas resultando indícios suficientes de se ter verificado o crime imputado ao arguido.

Da documentação junta aos autos, nomeadamente da certidão da decisão proferida no processo nº 112/19.7GELSB, verifica-se que o arguido foi condenado na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de 6,00€ (seis euros) e condenado na pena acessória de proibição de condução pelo período de 5 (cinco) meses, atendendo ao crime praticado de condução de veículo em «estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas», previsto e punido pelos artigos 69.°, n.° 1, alínea a) e 292.°, n.° 1, do Código Penal.

O arguido foi pessoalmente notificado da sentença condenatória, constando da referida notificação o prazo de 10 (dez) dias para entrega do título de condução, sob pena de prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.

Decorrido o prazo mencionado o arguido não entregou o título de condução em cumprimento de pena acessória, isto apesar de ter procedido ao pagamento da pena de multa e das custas processuais. O arguido acabou por juntar o referido documento no dia 17 de Dezembro de 2020, ou seja, após a dedução da acusação em processo especial abreviado por crime de desobediência.

Pelo que estão, desta forma, recolhidos todos os indícios necessários para acusar em processo abreviado, sem necessidade de realização de diligências adicionais.

É pacífico que no processo abreviado não é obrigatória a realização de inquérito (v. art. 391-A, n.º1 do CPP, constituindo uma excepção à regra do n.º2 do art. 262 do CPP) e consequentemente também o interrogatório do arguido.

O processo abreviado, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, é “um procedimento caracterizado por uma substancial aceleração das fases preliminares”, destinado a casos “de prova indiciária sólida e inequívoca que fundamenta, face ao auto de notícia ou perante um inquérito rápido, a imediata sujeição do facto ao juiz, concentrando-se, desta forma o essencial do processo na sua fase crucial, que é o julgamento” (Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º157/VII).

Assim, a lei não impõe, obrigatoriamente, a fase de inquérito no processo abreviado [cfr. v.g., Helena Leitão, Processos especiais: os processos sumário e abreviado no Código de Processo Penal (após a revisão operada pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto), in www.cej..mj.pt, pág. 1].

Ora, os requisitos essenciais para o julgamento em processo abreviado encontram-se estabelecidos, no art° 391º-A n° 1 do CPP, ou seja, que o crime seja punível com pena de multa, ou de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de crime, havendo provas simples e suficiente de que resultem indícios de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

O n° 2 do artigo 391°-A do CPP, considera que há provas simples e evidente quando:
a)-O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não poder efectuar-se sob a forma de processo sumário;
b)-A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução de acusação;
c)-A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.

Os art°s 391º-B a 391º-F, limitam-se a regular a subsequente tramitação do processo abreviado, naquilo em que ele diverge do processo comum e de que se salienta a obrigatoriedade da dedução da acusação no prazo de 90 dias contados da notícia do crime [nos crimes públicos], ou da apresentação da queixa [nos crimes semi-públicos e particulares], nos termos do n° 2 do artº 391º-B;
A parte final do n°1 art° 391º-A do CPP, ao referir que, uma vez verificados os requisitos enunciados na 1ª parte da norma, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado, não acrescenta novos requisitos para dedução de acusação em processo abreviado, os quais, como se viu, se encontram enunciados na 1ª parte da norma, nem esgota a possibilidade de aquisição da aquisição de provas simples e evidentes de que resulte indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente;
Resulta do disposto no art° 391°-A, nº 3, alínea b), a inclusão no conceito de prova simples e evidente, os casos de prova essencialmente documental.

A própria certidão extraída constitui inquérito, constituindo a mesma prova bastante da materialidade de facto subsumível ao crime (de desobediência) que é imputado ao arguido.

Concordamos que, numa forma processual, relativa à pequena e média criminalidade, em que imperam razões de celeridade e que constitui um poder vinculado do Ministério Público, havendo prova documental que, por si só, constitui prova bastante de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, tivesse, ainda, assim, de se proceder a inquérito sumário, com a realização de diligências que se revelariam totalmente inúteis para o fim visado.

Por outro lado, no processo abreviado, atenta a sua natureza especial, também não tem aplicação o disposto no art. 272º do CPP.

Isso significa que, mesmo quando há inquérito sumário, não existe a obrigação de interrogar o agente do crime como arguido previamente à dedução da acusação para julgamento em processo abreviado.

Aliás, também no processo sumário não é obrigatório o interrogatório do arguido (cf. art. 382º do CPP, onde o interrogatório sumário do arguido pelo Ministério Público apenas tem lugar no condicionalismo aí indicado, caso aquele Magistrado “o julgar conveniente”).

Por isso, não há preterição de qualquer formalidade pelo facto de, neste caso concreto, o recorrente não ter sido interrogado como arguido antes da dedução da acusação para julgamento em processo abreviado (neste sentido, cfr. ” Ac. TRL de 13-11-2008; Ac. TRL de 14-11-2007; Ac. TRP de 1-10-2014, de 6-11-2013 e 3-01-2013).

Nestes termos, concede-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação deduzida e designe data para realização do julgamento.
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3.Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (5ª) deste Tribunal em Julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, revogar a decisão proferida substituindo-a por outra que receba a acusação e designe dia para julgamento.
  
Sem tributação


Lisboa, 6 de Julho de 2021



Cid Geraldo
Ana Sebastião