COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL DO TRABALHO
ACÇÕES DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
Sumário

Em face do teor do artigo 128.º, n.º 1, da LOSJ (praticamente igual ao do artigo 89.º, n.º 1, da anterior lei orgânica dos tribunais, a LOFTJ), subsistem as razões que levaram os tribunais, sobretudo o STJ, com o apoio da doutrina, a realizar uma interpretação restritiva do artigo 89.º, n.º 1, al. d), da LOFTJ, por forma a abranger na competência material dos tribunais de comércio (agora, juízos de comércio), apenas, as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, excluindo-se dessa competência as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais de outras pessoas colectivas, nomeadamente das cooperativas.

Texto Integral

Processo n.º 697/20.5 T8MAI.P1

Comarca do Porto
Juízo Local Cível da Maia (J4)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
IRelatório
Em 20.02.2020, B… intentou no Juízo Local Cível da Maia a presente acção declarativa sob a forma de processo comum (que qualificou como “acção de anulação de deliberações sociais”) contra “C…, C.R.L.” pedindo que:
a) seja «declarada a nulidade da deliberação de não aprovação da transmissão de títulos de capital tomada em Assembleia Geral de dia 14/12/ 2019 e 21/01/2020, por violação do disposto nos normativos constitucionais, cooperativos, estatutários e regulamentares supra citados, nos termos do disposto no artigo 56.º, n,º 1, al. d) do CSC, aplicável ex vi art.º 9.º do Cód. Cooperativo, com todas as demais e legais consequências, ou que
b) seja «anulada a referida deliberação, por violação do disposto nos normativos cooperativos, estatutários e regulamentares supra citados, ao abrigo do disposto na al. a) e b) do n.º 1 do artigo 58.º do CSC, aplicável ex vi artigo 9º do Código Cooperativo, nos termos e com os fundamentos acima expostos».
Para o que aqui importa, alegou o seguinte:
A ré é uma cooperativa que tem por objeto, além do mais, a criação e manutenção de estabelecimentos de ensino superior e o autor é seu fundador e cooperador desde 17 de Março de 1990, detendo 150 títulos nominativos do capital social da Ré, com o valor nominal global de €7.500,00.
Pretende transmitir esses títulos para o Sr. Dr. D… e, no dia 19.11.2019, o Conselho de Administração da Ré reuniu e deliberou, por unanimidade, «admitir como Cooperador da C… o Dr. D1…, nos termos da candidatura por si apresentada, por se considerarem cumpridos os requisitos previstos na lei, Estatutos e Regulamento Interno, e realizados o objecto e fins estatutários da Cooperativa, admissão essa condicionada à aprovação, pela Assembleia Geral, dos termos da transmissão dos títulos de capital a favor do futuro adquirente e candidato aqui admitido». Foi, ainda, deliberado requerer ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré a convocatória de uma Assembleia Geral extraordinária, «tendo em vista autorizar os termos da transmissão onerosa e inter vivus, pelo valor nominal de €7.500,00, da totalidade dos títulos de capital que é titular o cooperador B…, a favor do Dr. D…, o qual foi admitido como Cooperador, de modo condicionado, por decisão deste Conselho de Administração».
A requerida Assembleia Geral realizou-se nos dias 14.12.2019 e 21.01.2020, tendo como ponto único da ordem de trabalhos a autorização da transmissão dos títulos de capital do autor para o Sr. Dr. D1… e, após votação por escrutínio secreto, apurou-se o resultado de 7 votos a favor e 8 votos contra essa autorização.
Entende o autor que tal deliberação padece de vários vícios que a ferem de nulidade ou, quando menos, a tornam anulável, por violação de princípios e normas constitucionais e cooperativos, dos estatutos da ré e até do Código das Sociedades Comerciais (aplicável ex vi do artigo 9.º do Código Cooperativo).
Em 09.11.2020, foi proferido despacho[1] com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo este tribunal incompetente em razão da matéria para decidir a presente causa, sendo competente para tal a Secção de Comércio da Instância Central e, nos termos do disposto no artigo 99º, nº 1, do Código de Processo Civil, julgo o presente procedimento cautelar improcedente, absolvendo a requerida da instância.»
Inconformado, o autor recorre desta decisão, sintetizando assim os fundamentos da apelação:
«1º. A Ré C…, C.R.L, aqui Recorrida, é uma cooperativa do ramo do ensino, que tem, por objeto, entre outros, a criação e manutenção de estabelecimentos de ensino superior, que se rege pelos seus Estatutos e pelas disposições da lei, em específico pelas normas contidas no Código Cooperativo.
2º. Ao abrigo do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
3º. Princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais que também tem ressonância no artigo 64º do Cód. de Processo Civil (“CPC”).
4º. Nos termos do artigo 65º do CPC: “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.”
5º. Determina o artigo 128.º, n.º 1, al. d) da Lei de Organização do Sistema Judiciário (“LOSJ”) que os tribunais do comércio são competentes para preparar e julgar as ações de suspensão de anulação de deliberações sociais.
6º. Ora, daqui resultaria, numa interpretação meramente literal, que todas as ações de anulação de deliberações sociais seriam da competência dos tribunais do Comércio, porém, a interpretação da norma do artigo 128.º da LOSJ não se pode restringir à sua mera interpretação literal, mas sim tendo em conta o seu enquadramento teleológico, hermenêutico e sistemático.
7º. Do elenco das competências da LOSJ, bem como dos trabalhos preparatórios da criação dos Tribunais do Comércio resulta que a competência dos Tribunais de Comércio, no que diz respeito às ações de suspensão e anulação das deliberações sociais, apenas são aptas às deliberações tomadas por pessoas coletivas de fins lucrativos.
8º. Isto é, pelas sociedades comerciais que têm por objeto a prática de atos de comércio e adotem um dos quatro tipos previstos no Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) (artigo 1.º, n.º 2 do CSC) ou por sociedades a elas equiparadas nos termos do nº. 4 do mesmo artigo 1º do CSC.
9º. Ora, nem no Código Comercial, nem o Código das Sociedades Comerciais, nem na restante legislação mercantil se encontra qualquer menção às cooperativas.
10º. Com efeito, as Cooperativas são objeto de diploma próprio, a Lei n° 119/2015, de 31/08, que aprovou o Código Cooperativo, sendo que a ausência de espírito lucrativo é inerente à noção de cooperativa e o princípio corolário das cooperativas.
11º. Nos termos artigo 2° n.º 1 do Código Cooperativo, “As cooperativas são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles.” (destacado nosso)
12º. As cooperativas não são assim sociedades comerciais pois não têm intuito lucrativo.
13º. Ora, a competência dos Tribunais de Comércio respeita a questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e, nessa medida, limita-se às deliberações tomadas pelas pessoas colectivas de fins lucrativos, isto é, pelas sociedades comerciais que têm por objecto a prática de actos de comércio e adoptam um dos tipos previstos no CSC ou sociedades a elas equiparadas.
14º. E, em consequência, os conflitos e litígios em sede de Direito Cooperativo não cabem na esfera de competências do Tribunais de Comércio, nem as cooperativas podem ser consideradas como sociedades.
15º. Com efeito, resulta amiúde na jurisprudência que os Tribunais de Competência Cível são os Tribunais competentes para dirimir um conflito de anulação de deliberações sociais de uma cooperativa.
16º. Donde resulta que a sentença recorrida decidiu mal quando declarou a incompetência absoluta do Tribunal recorrido.
17º. Assim, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal recorrido competente para dirimir o conflito em causa dos autos.»

Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo) por despacho de 28.01.2021.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
O pressuposto processual que é a competência do tribunal em razão da matéria afere-se, grosso modo, pela pretensão de tutela jurisdicional formulada e pelo substracto fáctico em que se alicerça, ou seja, pela causa de pedir.
Sendo a natureza da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor, que determina a competência material do tribunal e considerando que, no caso que se aprecia, o autor alega que um dos órgãos sociais (a assembleia geral) da cooperativa ré, tomou uma deliberação que está afectada de vários vícios que a tornariam inválida, pretende que o tribunal declare a sua nulidade, a questão que aqui importa apreciar e decidir consiste em saber se para o julgamento deste litígio é materialmente competente a Secção de Comércio (agora Juízo de Comércio) da Instância Central da Comarca do Porto, como se entendeu na decisão recorrida, ou o Juízo Cível, como entende a recorrente.
IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e vicissitudes processuais relevantes para a decisão são os que constam do antecedente relatório.
2. Fundamentos de direito
Em termos simples, pode dizer-se que a competência de um tribunal é a parcela do poder de julgar, a parcela de jurisdição que, nos termos da lei, lhe cabe.
A distribuição desse poder de julgar pelos diferentes órgãos judiciários faz-se em função de determinadas regras.
Assim, pressuposta a competência internacional, o fraccionamento do poder jurisdicional pelos diferentes tribunais portugueses faz-se em razão da matéria, da hierarquia, do território, da forma de processo e do valor.
Não se questionando que o julgamento desta causa seja da competência dos tribunais judiciais, importa ter presente o artigo 40.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário, de ora em diante, LOSJ), que dispõe:
«2 — A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.»
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro, a referência às “secções” deve entender-se como referida aos “juízos” e o artigo 81.º, n.º 3 prevê os seguintes juízos de competência especializada:
«3 - Podem ser criados os seguintes juízos de competência especializada:
a) Central cível;
b) Local cível;
c) Central criminal;
d) Local criminal;
e) Local de pequena criminalidade;
f) Instrução criminal;
g) Família e menores;
h) Trabalho;
i) Comércio;
j) Execução.»
No que tange à competência em razão da matéria, para os juízos de comércio, dispõe o artigo 128.º:
«1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras»
Para o caso, interessa a alínea d) e, como admite o recorrente (conclusão 6.ª), da letra da lei resulta que, materialmente competente para a preparação e julgamento desta acção seria o Juízo de Comércio da Comarca do Porto, pois está em causa a anulação de uma deliberação social, visto que uma deliberação da assembleia geral de uma cooperativa é, obviamente, uma deliberação social.
Porém, argumenta o recorrente, «do elenco das competências da LOSJ, bem como dos trabalhos preparatórios da criação dos Tribunais do Comércio resulta que a competência dos Tribunais de Comércio, no que diz respeito às ações de suspensão e anulação das deliberações sociais, apenas são aptas às deliberações tomadas por pessoas coletivas de fins lucrativos» e não é o caso das cooperativas que, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código Cooperativo, são pessoas colectivas sem fins lucrativos (conclusões 7.ª e 11.ª).
Em bom rigor, os tribunais de comércio foram criados pela Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ), que no seu artigo 78.º previa:
«Podem ser criados os seguintes tribunais de competência especializada:
a) De instrução criminal;
b) De família;
c) De menores;
e) Do trabalho;
f) De comércio;
g) Da propriedade intelectual;
h) Da concorrência, regulação e supervisão;
i) Marítimos;
j) De execução das penas»
No artigo 89.º do mesmo diploma legal estava assim definida a competência material dos tribunais de comércio:
«1 - Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) O processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) (…)
g) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
h) (…)
i) Acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
j) Acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 182/VII, que esteve na origem da Lei n.º 3/99, explicava-se que se visou «ampliar prudentemente a competência em razão da matéria dos tribunais de recuperação da empresa e de falência, não para reatar o antigo modelo dos clássicos tribunais de comércio, mas fazendo-os actuar em questão para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade» e concluía-se:
«Assim, os tribunais de recuperação da empresa e de falência, que passam a designar-se por tribunais de comércio, serão competentes para as acções relativas ao contencioso das sociedade comerciais, ao contencioso da propriedade industrial, às acções e recursos previstos no Código do Registo Comercial, aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência».
Neste contexto, a jurisprudência[2] orientou-se, praticamente sem discrepâncias, no sentido de que a competência dos tribunais de comércio prevista na alínea c) do n.º 1 daquele artigo 89.º cingia-se à suspensão e anulação de deliberações sociais que pudessem qualificar-se como actos objectiva e/ou subjectivamente comerciais e só assim sucederia em relação às deliberações das sociedades comerciais e das sociedades civis sob a forma comercial, como se pode constatar pela seguinte passagem do acórdão do STJ de 05.02.2002 (processo 01A4091): «a competência dos Tribunais de comércio no que se refere às acções de suspensão e anulação das deliberações sociais, […] queda[-se] pelas deliberações tomadas por pessoas colectivas de fins lucrativos, ou seja, pelas sociedades comerciais que têm por objecto a prática de actos de comércio e adoptem um dos quatro tipos previstos no Código das Sociedades Comerciais (artigo 1/2), ou por sociedades a elas equiparadas nos termos do art. 1/4 do CSC. Na verdade, a competência dos Tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial […]».
Estariam, pois, excluídas as deliberações das sociedades civis sem forma comercial, as associações e… as cooperativas.
Relativamente às associações civis, são frequentes as decisões que têm por objecto deliberações das assembleias gerais de clubes e federações desportivas, como sucedeu com o acórdão do STJ de 08.03.2001 (Agravo n.° 3275/00)[3], no qual se decidiu que materialmente competente para julgar providência de suspensão (e a correspondente acção de anulação) de deliberação da assembleia geral do Sport Lisboa e Benfica seria o tribunal cível que, embora de competência especializada, funcionaria como tribunal com competência material residual.
O citado acórdão mereceu uma anotação de Paula Costa e Silva[4] na qual esta ilustre jurista considerou necessário perscrutar a razão que motivou o STJ «a analisar a natureza da deliberação quando o legislador não faz depender a competência dos tribunais de comércio, pelo menos numa primeira leitura do art. 89.° da LOFTJ, da natureza comercial dos actos de que deverá conhecer», uma vez que na alínea d) do n.º 1 daquele preceito legal «o legislador não disse que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais que devam ser qualificadas como actos de comércio subjectivos ou objectivos (caso se admita que o art. 2.° do CCom pode ser estendido a outros actos jurídicos para além de contratos e obrigações)».
Na resposta à questão que equacionou, a referida Professora discreteou assim:
«A questão que imediatamente se coloca é a de saber se o legislador, ao prever, sem qualquer restrição, a competência dos tribunais de comércio para conhecer das acções e, por aplicação do art. 89.°/3 da LOFTJ, das providências de anulação e suspensão de deliberações sociais, quis ir tão longe na fixação da competência dos tribunais de comércio quanto o conceito de deliberação social permite. Na verdade, tanto resultam submetidas à competência dos tribunais de comércio as deliberações tomadas por órgãos de uma sociedade comercial, como as deliberações tomadas por órgãos de uma sociedade não comercial. Ambos os actos a impugnar são deliberações sociais.
Este resultado não pode deixar de ser considerado anómalo. Com efeito, o critério da especialização da competência dos diversos tribunais não atende ao tipo de acção, mas à matéria sobre a qual o órgão jurisdicional se irá pronunciar.
Pelo que o intérprete pode concluir que o legislador disse mais do que queria quando previu a competência dos tribunais de comércio para a suspensão e anulação de deliberações sociais.
A semelhante resultado chegou o Supremo quando afastou do âmbito de incidência do art. 89.°/1d) da LOFTJ parte dos casos por ele regulados.»
E, a concluir, expendeu:
«Atendendo ao critério da especialização da competência dos tribunais em razão da matéria que devem apreciar, concluiu o Supremo que o tribunal de comércio não deve conhecer das acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais de não comerciantes, pois que a especialização não resulta do tipo de acção (suspensão ou anulação de deliberações sociais), mas do tipo de pessoa colectiva cujas deliberações são impugnadas.
A suspensão e a anulação de deliberações sociais de quaisquer outras pessoas colectivas que não sejam comerciantes não devem correr pelos tribunais de comércio, mas sim pelos tribunais cíveis.
Se o nome tribunal de comércio não é uma expressão sem qualquer sentido, a razão parece estar com o Supremo quanto ao modo como interpretou o art. 89.°/1d) da LOFTJ.
Pena é que não tivesse afirmado expressamente que, ao proceder à ponderação da natureza do acto a impugnar, estava a realizar uma interpretação restritiva do art. 89.°/1d) da LOFTJ, pois que foi isso que efectivamente fez.»
No que respeita às deliberações dos órgãos sociais das cooperativas, também se verificava a mesma unanimidade de entendimento no sentido de que a competência material dos tribunais de comércio não se estendia às acções de anulação dessas deliberações[5] (uma vez que da própria essência da cooperativa não faz parte a obtenção de lucro).
Fácil é constatar que o conteúdo do artigo 128.º, n.º 1, da LOSJ é, basicamente, o mesmo que o do artigo 89.º, n.º 1, da anterior lei orgânica dos tribunais (LOFTJ), tendo-se substituído a referência aos tribunais de comércio pela referência aos juízos de comércio.
Por isso, subsistem as razões que levaram os tribunais, sobretudo o STJ, com o apoio da doutrina, a realizar uma interpretação restritiva do artigo 89.º, n.º 1, al. d), da LOFTJ, por forma a abranger na competência material dos tribunais de comércio (agora, juízos de comércio), apenas, as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, excluindo-se dessa competência as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais de outras pessoas colectivas.
É essa a posição defendida por Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais, CEJ, 2018) quando escreve:
«Nos termos dos arts. 78/1-c e 128/1-d da LOSJ, se a providência cautelar visar a suspensão de uma deliberação social tomada pela assembleia-geral de uma sociedade comercial ou de uma sociedade civil sob a forma comercial, é materialmente competente para o conhecimento dessa providência o juízo de comércio (caso este se encontre previsto e instalado no tribunal judicial da comarca competente para o conhecimento do litígio), sendo, por isso, absolutamente incompetentes, em razão da matéria, o juízo central cível ou o juízo local cível. A este respeito, muito embora o art. 128/1-d da LOSJ aluda, de forma indiferenciada, a “acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais”, parece-nos que esta competência deve restringir-se às deliberações sociais de sociedades comerciais ou de sociedades civis sob forma comercial, ficando, por isso, excluídas deste âmbito as deliberações tomadas por assembleias gerais de outras sociedades, associações ou pessoas colectivas de natureza diversa»[6].
A questão que se pode colocar é a de saber se o melhor critério para determinar a competência material do tribunal é o fim lucrativo visado, ou não, pela pessoa jurídica que tomou a deliberação cuja validade é posta em causa ou se deve antes privilegiar-se o critério do normativo jurídico aplicável a essas pessoas[7].
Apesar de lhes ser subsidiariamente aplicável o Código das Sociedades Comerciais e de ser debatida na doutrina a sua natureza jurídica[8], as cooperativas regem-se, antes de mais, pelos respectivos estatutos e pelo Código Cooperativo (aprovado Lei n° 119/2015, de 31/08) que exclui, expressamente, o escopo lucrativo do seu objecto.
Em suma, deve continuar a entender-se que a competência material dos juízos de comércio agora prevista no artigo 128.º, n.º 1, al. d), da LOSJ se restringe às acções de anulação de deliberações das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, pelo que não pode manter-se a decisão recorrida.
III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação interposta por B… e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo prosseguir no Juízo Local Cível da Maia a preparação do processo para julgamento.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 12 de julho de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
______________________
[1] Notificado às partes por expediente electrónico elaborado em 10.11.2020.
[2] Veja-se a resenha feita pelo Sr. Juiz Francisco Costeira da Rocha em “Breve anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Janeiro de 2008” publicado na revista Cooperativismo e Economia Social, n.º 31 (2008-2009), págs. 255-260.
[3] Acessível in www.dgsi.pt
[4] Publicada na Revista de Ordem dos Advogados de 2002, vol. I, págs. 201 a 215
[5] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 22-06-2005, Agravo n.º 1771/05 («Os tribunais de comércio são incompetentes em razão da matéria para prepararem e julgarem as acções de suspensão e de anulação das deliberações sociais das sociedades cooperativas»), de 11.02.2003, Revista n.º 4002/02 («I – As cooperativas podem ser classificadas como pessoas colectivas de fim económico não lucrativo, integradas no grupo mais amplo de pessoas colectivas de fim interessado ou egoístico. II - O escopo visado interessa aos associados, mas interessa ao mesmo tempo à comunidade, pelo que as cooperativas não tendo intuito lucrativo, não são sociedades comerciais. III - Do teor do art.º 89, n.º 1, alínea d), da LOFTJ e da génese dos tribunais de comércio conclui-se que a competência de tais tribunais limita-se às deliberações tomadas pelas pessoas colectivas de fins lucrativos, ou seja, pelas sociedades comerciais que têm por objecto a prática de actos de comércio e adoptam um dos tipos previstos no CSC ou por sociedades a elas equiparadas, sendo da competência do tribunal cível (varas cíveis) o conhecimento da acção de anulação de deliberação social tomada em Assembleia de cooperativa») e de 05.12.2002, Agravo n.º 3486/02 («A competência dos tribunais do comércio, estabelecida na al. d) do n.º 1 do art.º 89 da LOFTJ, não se estende às deliberações das cooperativas.»).
[6] Assim, também o acórdão da Relação do Porto de 07/03/2016, proc. n.º 3231/14.2TBVFR.P1.
[7] Sobre este ponto, a propósito da anulação de deliberação de uma sociedade de advogados, cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 10.01.2019 (processo n.º 16694/18.8 T8LSB).
[8] Prevalecendo, no entanto, o entendimento de que não podem ser qualificadas como sociedades comerciais.