PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
RECUSA
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário


I- O nº 8º, do artigo 17º -F, do CIRE, cuja redacção foi introduzida pelo Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho (cfr. respectivo artigo 3º), veio resolver a dúvida interpretativa que se levantava no que respeita a saber se o impedimento de instauração de novo processo especial de revitalização no período de dois anos, previsto no artigo 17º-G, nº 6, abrangia, ou não,  as situações em que o plano era aprovado pelos credores mas em que se verificava a recusa da sua homologação judicial.
II- Na estipulação deste prazo de dois anos teve-se em especial consideração a tutela dos interesses dos credores quanto à possibilidade de livre exercício do seu direito de acção para a efectivação dos créditos contra a devedora que, de outra forma, correriam o risco de ficarem sucessivamente bloqueados e paralisados pela instauração de novos processos especiais de revitalização, desde logo, face à aplicação do disposto no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE.
III- A “válvula de segurança” contida na parte final do nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE, igualmente introduzida pelo artigo 3º do Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, terá o seu campo de aplicação quando estiver em causa o cumprimento ou o incumprimento de plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente, atendendo-se, nestas circunstâncias, a eventuais alterações sócio-económicas, empresariais ou outras, especialmente sensíveis e imprevisíveis, que, nada tendo a ver com o plano aprovado, explicam e justificam objectivamente as inultrapassáveis dificuldades em executá-lo, concedendo-se, nesta medida e em termos excepcionais, uma nova oportunidade ao devedor para, sem qualquer dilação temporal, propor de novo a sua recuperação por via do PER.
IV- Inexiste qualquer violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa em resultado da interpretação que se perfilha das citadas disposições legais, dado que todas as entidades que se encontrarem na situação descrita não poderão beneficiar de uma segunda oportunidade para a instauração de um novo PER, dentro do limite temporal de dois anos indicado.
V- O que o comando constitucional invocado proíbe terminantemente é o arbítrio no tratamento de situações de facto com as mesmas características essenciais, dando o legislador tratamento desigual ao que não é substancialmente diferenciável, fazendo-o sem fundamento material aceitável, sendo certo que nada disso se passa na situação sub judice, 

Texto Integral




Revista nº 1974/20.0T8VRL.G1.S1.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.

No processo especial de revitalização instaurado por Socopul Sociedade de Construções e Obras, S.A., nos termos previstos nos artigos 17º-A a 17º-H, a requerente pediu a revitalização da sua empresa, defendendo a admissibilidade legal desta sua pretensão com base no disposto no art.17º-F/13 do CIRE.
Alegou essencialmente:
Para além das razões que determinaram a sua degradação económica e financeira na crise mundial e na crise em Portugal da última década, determinantes da instauração do PER nº 1034/16….., em 2016, e, após, outro PER em 2019 (no qual, apesar de não poder regularizar as dívidas a pronto ou a curto prazo, os seus credores acreditaram na sua revitalização, nomeadamente os seus trabalhadores, processo no qual foi homologado plano, que foi objeto de recurso que se encontra pendente), sofreu circunstâncias excecionais decorrentes da pandemia de Covid 19 (em que a economia parou com impactos nas empresas), que determinaram dificuldades em dar integral cumprimento ao Plano de Revitalização (encontrando-se o mesmo desajustado e carecendo de outro ajustado ao panorama atual), a um decréscimo do volume de negócios, a uma perda de liquidez e a desequilíbrios financeiros: desde março de 2020 houve uma suspensão e encerramento generalizados da atividade de construção civil (com efeitos na da requerente); o município …… suspendeu todas as obras em março e abril; houve limitações de movimento das pessoas, o que a impediu de mobilizar mão de obra para a região de execução de montagem técnicas (nomeadamente na …..); ocorreram quebras de fornecimentos, determinantes de paragens de obras mesmo após o desconfinamento; não teve acesso ao lay-off por causa das regras de acesso ao mesmo e teve de suportar a totalidade dos salários e tendo pago já 30% do subsídio de Natal de 2020; teve um aumento de custos, nomeadamente de transportes (garantindo 70% do transporte dos seus 100 trabalhadores), de aluguer de equipamento ou paragens de obras pelo atraso na disponibilidade de equipamento (peças).
A 29 de Outubro de 2020 foi proferido despacho a receber o requerimento apresentado e a nomear administrador judicial provisório.
Por ofício junto a 3 de Novembro de 2020, foram informados os presentes autos «de que no Processo Especial de Revitalização (CIRE), 719/19……. foi proferido Acórdão no Tribunal da Relação ….., ….. Secção, de não homologação do plano em 18 de Junho de 2020, o qual transitou em julgado em 12 de Outubro de 2020», com remessa de certidão do acórdão transitada em julgado.
A 5 de Novembro de 2020 foi proferido o seguinte despacho: «Uma vez que já se mostra transitado o acórdão proferido naqueles autos que não homologou o plano de revitalização, notifique a devedora para querendo se pronunciar quanto à verificação da excepção de litispendência.»
A 13 de Novembro de 2020, a requerente Socopul Sociedade de Construções e Obras, S.A., opôs-se à declaração da extinção por litispendência, defendendo que o PER anterior estava arquivado por despacho de 4 de Novembro de 2020 e que entre ambos os PER não existia identidade de causa de pedir.
A 17 de Novembro de 2020 foi proferido despacho que declarou legalmente inadmissível e improcedente o presente processo especial de revitalização.
Inconformada com tal decisão, interpôs requerente Socopul Sociedade de Construções e Obras, S.A., recurso de apelação.
O Tribunal da Relação …., no seu acórdão de 8 de Abril de 2021, julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Apresentou, agora, a requerente Socopul Sociedade de Construções e Obras, S.A., recurso de revista, com fundamento em oposição de julgados, nos termos do artigo 14º, nº 1, do CIRE.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos:  
1. A recorrente instaurou o presente processo judicial, tendo em 29.10.2020 sido proferido despacho a receber o requerimento e a nomear o administrador judicial provisório.
2. Por decisão de 4.12.2020 o tribunal de 1ª Instância declarou inadmissível e improcedente o presente processo especial de revitalização.
3. A recorrente interpôs recurso de apelação e por acórdão do Tribunal da Relação datado de 8 de Abril de 2021, foi declarado improcedente o recurso.
Posto isto:
4. O acórdão da Relação …. de que ora se recorre está em oposição com outro aresto proferido pela Relação de Évora (cfr.312.18.7T8STR.E1de 10-05-2018) relatado por Tomé de Carvalho, disponível para consulta em (www.dgsi.pt), o qual conheceu da mesma questão fundamental de direito da dos autos de recurso apresentado, no domínio da mesma legislação, decidindo de forma divergente da Relação ……., encontrando-se, assim, preenchido o prescrito no art.º 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de empresas- CIRE.
5. A recorrente, no recurso que interpôs da decisão proferida pela 1ª instância, defendeu que o art.º 17-F, n.º 13 do CIRE permite ao devedor a possibilidade de recorrer a novo procedimento antes de decorridos 2 anos, contado sobre a decisão prevista no n.º 7 do art.º 17-F, desde que demonstre ´´no respetivo requerimento inicial, que executou integralmente o plano ou  que o requerimento de novo processo especial de revitalização é motivado por fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente é alheia à empresa`` tendo, elencado um conjunto de circunstâncias passiveis de serem analisadas à luz desse entendimento.
6. O Tribunal recorrido entendeu que “… a requerente, ao abrigo do disposto no nº 6 do art.17º-G do CIRE, aplicável ex vi do nº 8 do art.17º-F aos casos em que o Plano de recuperação prévio não foi homologado judicialmente, está impedido de recorrer a novo PER durante dois anos, independentemente de ter sofrido causas de agravamento da sua situação económica por circunstâncias alheias à sua vontade.”
7. O acórdão que está em oposição com a decisão recorrida proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (cfr. 312.18.7T8STR.E1 de 10-05-2018) relatado por Tomé de Carvalho, disponível para consulta em (www.dgsi.pt), decidiu que: Caso o plano de recuperação tenha sido aprovado pela maioria dos seus credores nos termos previstos no artigo 17º-F, nºs 1 a 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sempre que o processo venha a ser encerrado devido a uma decisão de não homologação, desde que se mostrem verificados os requisitos legais exigidos para o efeito, o requerente pode apresentar-se a novo processo de revitalização na hipótese de se encontrar em situação económica difícil ou de insolvência iminente sem necessidade de aguardar o prazo de dois anos consignado no nº 6 do artigo 17º-G do diploma em apreciação. (sublinhado e negrito nosso)
8. É entendimento do Tribunal da relação ….., que acolhe essencialmente os  motivos elencados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de novembro de 2018, proferido no processo nº 312/18.7T8STRE.E1S1, relatado por Pinto de Almeida, que o nº 8 e nº 13 do art. 17-F do CIRE, aplicam-se, respectivamente às situações de não homologação e homologação do plano de recuperação, procedendo à interpretação da norma na sua letra, na sua inserção sistemática e no contexto de controvérsia doutrinal e jurisprudencial existente.
9. A Recorrente não acolhe esse fundamento, defendendo a linha da argumentação apresentada com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, aqui apresentado em oposição com a decisão do acórdão recorrido, reforçada no seguinte entendimento, essencialmente, por DOIS motivos, o primeiro pelo facto de o nº 13 do art.º 17 - F do CIRE tratar de EXCEPÇÕES e o segundo pelo facto de o nº 8 do art.º 17 do CIRE, não colidir com aquele artigo, mas sim COMPLEMENTÁ-LO.
10. A Recorrente socorre-se dos fundamentos baseados na inserção sistemática, na letra da lei, nos princípios orientadores do PER e na doutrina e jurisprudência.
Inserção Sistemática
11. Por razões de ordem sistemática, entende a Recorrente que tem que ser feita a análise cuidada do teor das referidas normas e forçosamente passar por uma comparação da redacção anterior com a actual redacção do CIRE, pois, o referido nº 8 do art.º 17-F, do CIRE foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho em simultâneo com o n.º 13 do mesmo artigo.
12. O legislador, quis colocar e colocou o nº 8 e o nº 13 no art.º 17 F do CIRE sob a epígrafe “Conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização da empresa” ou seja, quis colocar estas normas nos casos em que se obtém a aprovação de um plano de recuperação (sublinhado nosso)
13. A alteração preconizada neste artigo 17-F do CIRE, e sobretudo a inclusão do seu nº 13º, respeita o que foi querido pelo legislador no sentido em que pretendeu de facto criar uma válvula de escape a situações excecionais, permitindo ao devedor, dentro de certas condicionantes, o benefício do prazo.
14. O que se mostra compatível com as hipóteses imprevisíveis, inesperadas e supervenientes (fora do domínio do devedor) ali contempladas cuja verificação o devedor tem de demonstrar.
15. Circunstâncias essas as quais o devedor em nada contribuiu e que constituem, por si só, uma verdadeira novidade/surpresa na sua gestão corrente, aptas, portanto, a alterar totalmente a realidade conhecida da empresa e com a qual ela podia contar,
16. Neste plano de exceção, condicionante da realidade empresarial como um todo, coloca-se a questão se é lícito coartar ao tecido empresarial a possibilidade de justificadamente, demonstrar a necessidade de um novo PER, com base num contexto absolutamente diferente do anterior e ao qual é estranho.
17. Estas razões de excepção afastam e contrariam claramente os objectivos precípuos que se podem retirar da medida legislativa em causa, no sentido de prevenir potenciais situações abusivas de conluio com credores, impedindo que o PER e os efeitos a ele associados sejam instrumentalizados e mal-usados.
18. Conclui a Recorrente que o citado n.º 13 do art.º 17-F do CIRE constitui uma inovação legislativa que complementa o n.º 8 e que o mesmo, pode aplicar-se cumulativamente com o nº 13º do artigo 17 F do CIRE.
Da letra da lei
19. Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido, a fim de se entender a sua correta aplicação a um caso concreto. O primeiro desses elementos a que a interpretação jurídica se deve recorrer são as palavras em que a lei se expressa (elemento literal).
20. Este elemento também apelidado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação.
21. O art.º 9 do CC, nos seus nºs 1 e 2, prescrevem esta necessidade, remetendo para a teoria da alusão, uma vez que, nunca se pode chegar a um resultado interpretativo que não tenha compatibilidade com o respectivo texto.
22. A Recorrente entende que a letra da lei é clara, não sendo aqui necessária fazer qualquer interpretação extensiva ao nº 13 do art.º 17 F do CIRE conforme referida na decisão do acórdão recorrido ou no acórdão do Supremo já referido.
23. Este artigo nº 13 enquadra-se num regime excepcional, como a situação actual de Pandemia, que era impossível de prever e que alterou todos os sectores da sociedade e as condições incluídas em todo e qualquer Plano aprovado, quer seja homologado ou não homologado.
24. Entende ainda a recorrente que olegislador, nonº13 do art.º17-F do CIRE, veio, através do nº 8 do mesmo artigo, dizer em que momento é que se faz a contagem do prazo de dois anos – remetendo para o nº 7 – para planos homologados e não homologados e abre um regime excepcional para duas situações em concreto:…(1) exceto se a empresa demonstrar, no respetivo requerimento inicial, que executou integralmente o plano ou
(2) que o requerimento de novo processo especial de revitalização é motivado por fatores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente é alheia à empresa``
25. Conclui que letra da lei do nº 13º do art.º 17º F, está em harmonia com o seu espírito e finalidade, pelo que, se o legislador quis dar aquele sentido à norma do nº. 13º do art.º 17-F do CIRE, deve presumir-se que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento
26. O nº 13 do art.º 17 F do CIRE não colide com o nº 8, do mesmo artigo, gera complementaridade e que se aplica as exceções ali contidas a todos os casos de aprovação (com ou sem homologação)
27. Tese que é reforçada, pelo próprio texto da lei, quando manda, no citado número 13 do art.º 17-F, contar dois anos da decisão de HOMOLOGAÇÃO OU DE NÃO HOMOLOGAÇÃO, sinal inequívoco de que aquele número se aplica, também, às duas situações.
28. E, se o legislador entendesse em sentido diverso, teria dado ao nº 13 a seguinte redacção, ou com o mesmo sentido “… contando-se o prazo de dois anos da decisão de homologação prevista no 7 do presente artigo….” o que não fez.
princípios orientadores/doutrina e jurisprudência
29. Não se deve esquecer que esta norma se enquadra no âmbito de um regime excepcional, em que é necessário que exista uma alteração substancial do mercado ou outro factor exógeno à empresa que embora não ligado com o Plano, surta como efeito a necessidade de a empresa apresentar novo Plano, tendo o anterior sido homologado ou não, não concebendo a aqui devedora, nem tão pouco aceitando, que possa existir, no CIRE, tamanha violação do princípio da igualdade, que originasse regimes diferentes em casos de aprovação de um Plano, independentemente do resultado final – homologação ou não homologação, oque para além de consubstanciar uma ilegalidade, constituirá com toda a certeza uma inconstitucionalidade da norma, ao ser interpretada esta norma como limitativa de recurso àquele procedimento pelos motivos aduzidos.
30. A génese da introdução do Processo Especial de Revitalização, no nosso ordenamento jurídico, foi arranjar um mecanismo que permitisse às empresas a sua recuperação, evitando-se a Insolvência das sociedades e todas as suas consequências nefastas.
31. Entende a Recorrente que o legislador com a sua alteração pelo Decreto – Lei 79/2017, de 30 de junho, não quis estabelecer um regime que prejudicasse as empresas e as encaminhasse para a insolvência, mesmo não preenchendo os requisitos do pedido de insolvência,
32. Até porque, se por maioria de razão, não ocorre a preclusão da possibilidade de apresentação de novo plano de insolvência, mesmo depois de transitada a decisão, que em recurso, rejeitou a homologação do primeiro, também nos parece que, na busca do lugar paralelo, por via da inferência lógica de regras imanentes, fora das hipóteses de catálogo expressamente referidas no ar. 17-G de desrespeito das normas aplicáveis à votação e aprovação, o interessado não fica impedido de recorrer àquele procedimento pelo prazo de dois anos, quando sem culpa do requerente do processo especial de revitalização ocorra um acto de não homologação do plano de insolvência.
33. A Recorrente almejou demonstrar que o recurso a um novo PER antes de decorridos 2 anos assenta e justifica em causa externas e a alteração superveniente das circunstâncias que estivaram envolvidas no primeiro PER, conforme fez questão de demonstrar nos artigos 25º a 69º do Requerimento inicial.
34. O recurso a esta possibilidade, de cariz absolutamente excecional, não se confunde com os fundamentos que subjazem à limitação temporal de 2 anos, a qual foi criada e pensada, para circunstâncias normais e com uma finalidade preventiva que se aceita como perfeitamente compreensível.
35. Nada disso colide com a exceção em apreço, antes a reforça e se compatibiliza com os princípios que levam a considerar, como é exemplo no caso de um plano aprovado mas não homologado, merece, dentro de certas circunstâncias, uma nova oportunidade.
36. Conclui a recorrente que no seu entendimento o Legislador, tal qual se infere pelos mecanismos já supra elencados de interpretação da lei, quis precisamente prevenir este tipo de situações.
37. Pois, sobre o início de um procedimento desta natureza e a sua conclusão com trânsito em julgado podem, muitas das vezes, decorrer, um, dois ou mais anos, até porque, que a economia é um corpo dinâmico, os fundamentos que lhe deram fundamento foram-se alterando naturalmente
38. a tal ponto que todo o enquadramento político, financeiro, social, a nível nacional ou mundial que lhe está na origem, forçosamente, tiveram implicações na sua gestão.
39. neste sentido, faz todo o sentido permitir a uma empresa nestas condições o recurso a este procedimento antes de decorridos dois anos sobre o termo do processo anterior.
Tudo ponderado,
40. Nos termos do disposto no art.º 17-F, n.º 13 do CIRE, é forçoso concluir que deve ser concedida a possibilidade à devedora cujo plano anterior, apesar de aprovado, não tenha sido homologado, o recurso a um novo procedimento especial de revitalização antes de decorridos dois anos desde que seja capaz de demonstrar que “é motivado por fatores alheios ao próprio plano e alteração superveniente é alheia à empresa”.
Foi reconhecida a oposição de julgados (com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 10 de Maio de 2018, no processo nº 312/18.7STR.E1) e admitida a presente revista nos termos do artigo 14º, nº 1, do CIRE.


II – FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado:
No Processo Especial de Revitalização nº 719/19……, que correu termos no Juízo de Comércio ….., instaurado por Socopul - Sociedade de Construções e Obras, SA., a 2 de Maio de 2019, após a homologação do Plano de Revitalização com oposição do administrador provisório, foi proferido acórdão, em 18 de Junho de 2020, na …..ª Secção do Tribunal da Relação ……, transitado em julgado, que decidiu:
«Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento ao recurso interposto pelo BCP, CGD e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, não se homologando o mencionado plano de revitalização, por falta de quórum deliberativo.».
 A 25 de Outubro de 2020, a Socopul-Sociedade de Construções e Obras, SA, requereu novo Plano de Revitalização de Empresas, inserido nos presentes autos.


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1 – Inadmissibilidade legal da instauração de novo processo especial de revitalização, nos termos do artigo 17º-G, nº 6, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE), pelo facto de haver sido anteriormente instaurado, pela requerente, processo da mesma natureza no qual foi recusada a homologação judicial do plano aprovado pelos credores, há não mais de dois anos. Invocação do fundamento excepcional previsto no nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE. Da sua inaplicabilidade às situações de recusa de homologação judicial do plano no processo especial de revitalização antecedente.
2- Inconstitucionalidade da interpretação realizada pelas instâncias, que conduziu à conclusão da existência de impedimento à instauração do novo processo especial de revitalização, por pretensa violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
Passemos à sua análise:   
1 – Inadmissibilidade legal da instauração de novo processo especial de revitalização, nos termos do artigo 17º-G, nº 6, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE), pelo facto de haver sido anteriormente instaurado, pela requerente, processo da mesma natureza no qual foi recusada a homologação judicial do plano aprovado pelos credores, há não mais de dois anos. Invocação do fundamento excepcional previsto no nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE. Da sua inaplicabilidade às situações de recusa de homologação judicial do plano no processo especial de revitalização antecedente.
A questão jurídica essencial que é objecto do presente recurso de revista consiste em saber se existe, ou não, impedimento legal à instauração pela requerente de um novo processo especial de revitalização pelo facto de haver sido recusada a homologação judicial de um plano aprovado em processo da mesma natureza, igualmente instaurado pela ora recorrente, há não mais de dois anos.
Concretamente, o presente processo especial de revitalização deu entrada em juízo em 25 de Outubro de 2020, quando ora recorrente já havia instaurado anteriormente dois processos da mesma natureza, ou seja, o nº 1034/16…… que correu termos no Tribunal da Comarca ….., Juízo de Comércio ….., com início em 10 de Agosto de 2016, onde o plano de revitalização foi aprovado e homologado em 20 de Junho de 2017, mas que não veio a ser cumprido; o nº 719/19…… que correu termos no Tribunal da Comarca ….., com início em 2 de Maio de 2019, onde o plano de revitalização foi aprovado e homologado em 1ª instância, mas recusada a sua homologação pelo Tribunal da Relação ….. de 18 de Junho de 2020, por falta de quorum deliberativo, tendo sido ordenado o seu arquivamento por despacho de 4 de Novembro de 2020.
Está, portanto, em causa a aplicação à situação sub judice do disposto no artigo 17º-G, nº 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE), segundo o qual “O termo do processo especial de revitalização efectuado de harmonia com os números anteriores impede a empresa de recorrer ao mesmo pelo prazo de dois anos”.
A aplicação desta disposição legal resulta directamente do disposto no artigo 17º-F, nº 7, do CIRE, onde se estabelece: “Caso o juiz não homologue o acordo aplica-se o disposto nos nºs 2 a 4, 6 e 7 do artigo 17º-G”.
Contudo, argumenta a recorrente em sentido oposto:
1º - A instauração deste novo processo especial de revitalização é permitida pelo nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE, isto é, desde que a devedora demonstre “no respectivo requerimento inicial que executou integralmente o plano ou que o requerimento de novo processo especial é motivado por factores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente é alheia à empresa”.
2º - A alteração introduzida pelo Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, com a inclusão do nº 13, revela que o legislador pretendeu criar uma válvula de escape, em situações excepcionais, permitindo ao devedor, dentro de certas condicionantes, o benefício do prazo.
3º - Trata-se de uma inovação legislativa que complementa o nº 8 do artigo 17º-F, do CIRE, sendo que este último esclarece em que momento é que se faz a contagem do prazo de dois anos – remetendo para o nº 7 – no que concerne a planos homologados e não homologados.
4º - O legislador, com alteração promovida pelo Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, não quis estabelecer um regime que prejudicasse as empresas e as encaminhasse para a insolvência, mesmo não preenchendo os requisitos do pedido de insolvência.
5º - A recorrente almejou demonstrar que o recurso a um novo PER antes de decorridos dois anos assenta e justifica-se devido a causas externas e à alteração superveniente das circunstâncias que estiveram envolvidas no primeiro PER.
Vejamos:
Perfilhamos inteiramente o entendimento adoptado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 2018 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 312/18.7T8STR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Fundamentam a nossa posição concordante as seguintes razões essenciais:
1ª – O nº 8º, do artigo 17º -F, do CIRE, cuja redacção foi introduzida pelo Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho (cfr. respectivo artigo 3º), veio resolver a dúvida interpretativa que se levantava no que respeita a saber se o impedimento de instauração de novo processo especial de revitalização no período de dois anos previsto no artigo 17º-G, nº 6, abrangia, ou não,  as situações em que o plano era aprovado pelos credores mas em que se verificava a recusa da sua homologação judicial.
(Sobre este ponto, vide Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina 2020, 7ª edição, página 483).
Tal dúvida - que dividiu a jurisprudência - ficou assim sanada, com a aplicação expressa e indiscutível do nº 6 do artigo 17º-G, do CIRE (implicando o citado impedimento legal à instauração de novo PER durante o período de dois anos) à não homologação judicial do plano de revitalização aprovado pelos credores.
(Fazendo desenvolvida referência à dissidência jurisprudencial em causa vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2017 e de 7 de Novembro de 2017 (relator José Manso Rainho em ambos), proferidos nos processos nºs 6427/16.9T8FNC.L1.S1 e 515/17.1T8VIS-A.C1.S1, publicados in www.dgsi.pt, sendo que no segundo dos arestos já é feita referência ao Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, que entrou em vigor em 1 de Julho de 2017).   
2ª – Na estipulação deste prazo de dois anos teve-se em especial consideração a tutela dos interesses dos credores quanto à possibilidade de livre exercício do seu direito de acção para a efectivação dos créditos contra a devedora que, de outra forma, correriam o risco de ficarem sucessivamente bloqueados e paralisados pela instauração de novos processos especiais de revitalização, desde logo, face à aplicação do disposto no artigo 17º-E, nº 1, do CIRE.
(sobre este ponto, vide Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in “PER. O Processo Especial de Revitalização. Comentário aos artigos 17º-A e 17-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Coimbra Editora, Março de 2014, a página 169, onde referem: “O que dizer, porém, do caso em que o plano é aprovado, mas não homologado pelo tribunal? Pode dar-se início, imediatamente, a outro PER? A resposta terá que ser negativa. De outra forma, os credores – designadamente os que votaram contra o plano – poderão ficar eternamente impedidos de exercer os seus direitos, bastando que uma maioria de credores insista em aprovar um plano ilegal e que o administrador não requeira a insolvência do devedor. Seria aliás estranho que a maioria que aprova um plano ilegal pudesse sujeitar a minoria discordante a mais um PER”).
3ª – A “válvula de segurança” contida na parte final do nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE, igualmente introduzida pelo artigo 3º do Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, terá o seu campo de aplicação quando estiver em causa o cumprimento ou o incumprimento de plano de revitalização aprovado e homologado judicialmente, atendendo-se, nestas circunstâncias, a eventuais alterações sócio-económicas, empresariais ou outras, especialmente sensíveis e imprevisíveis, que, nada tendo a ver com o plano aprovado, explicam e justificam objectivamente as inultrapassáveis dificuldades em executá-lo, concedendo-se, nesta medida e em termos excepcionais, uma nova oportunidade ao devedor para, sem qualquer dilação temporal, propor de novo a sua recuperação por via do PER.
(Sobre a interpretação a conferir ao nº 6 do artigo 17º-G e nºs 8 e 13 do artigo 17º-F, do CIRE, escreve Catarina Serra in “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, Fevereiro de 2021, 2ª edição, a página 391: “Há, assim, como que uma presunção de que o recurso a novo PER antes de decorridos dois anos sobre aquela data configura uma situação de incumprimento do plano, ressalvando-se, em consonância, os casos em que é produzida prova em sentido contrário. A segunda ressalva, assentando em dois requisitos cumulativos (o requerimento ser motivado por factores alheios ao plano e a alteração superveniente ser alheia à empresa), não tem uma formulação muito clara. Compreende-se, porém, a intenção do legislador: admitir apenas os casos em que a empresa só não conseguiu cumprir o acordo porque sobrevieram factores exógenos e incontroláveis por ela, como, por exemplo, a crise generalizada do sector de actividade económica em que a empresa se integra”.).
Quanto a este último ponto, cumpre tecer algumas considerações adicionais.
A análise do enquadramento legal do nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE, permite compreender o seu âmbito, sentido e alcance.
A norma é parte integrante de uma disposição legal subordinada à epígrafe “Conclusão das negociações com a aprovação do plano”.
Os seus nºs 1 a 7 e 10 referem-se aos diversos procedimentos e possíveis vicissitudes que decorrem desde o depósito final no tribunal da versão última e definitiva do plano de revitalização até à decisão judicial de homologação ou recusa de homologação e respectivas consequências (o que, na versão anterior às alterações introduzidas pelo artigo 3º do Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho, correspondia aos nºs 1 a 6).
Já o nº 8, inovatório e que reveste claramente natureza interpretativa, visa ressalvar uma finalidade específica: deixar bem definidas e totalmente clarificadas, neste domínio, as exactas e concretas consequências associadas à não homologação judicial do plano, não obstante a sua aprovação pelos credores.
Para a aplicação do nº 13, onde se prevê que “é aplicável o disposto no artigo 6º do artigo seguinte, contando-se o prazo de dois anos da decisão prevista no nº 7 do presente artigo (homologação ou recusa de homologação judicial), excepto se a empresa demonstrar, no respectivo requerimento inicial, que executou integralmente o plano ou que o requerimento de novo processo especial de revitalização é motivo por factores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente é alheia à empresa”, ficam reservadas as situações em que existiu homologação judicial do plano, em conformidade com a previsão do nº 10 - que logicamente, em termos de percurso intelectual do legislador, o antecede -, o que se encontra claramente revelado pela expressão “demonstrar (...) que executou integralmente o plano” ou que, pressupondo-se que não houve execução integral do plano aprovado e homologado (ou seja, nos casos em que o mesmo foi, de algum modo, incumprido), tal ficou a dever-se a “factores alheios ao próprio plano e a alteração superveniente alheia à empresa”.
O sistema legal instituído, contrariando a aparente generalidade ou abrangência da previsão do nº 13 do artigo 17º-F, do CIRE, continua a não permitir – após a entrada em vigor das alterações promovidos pelo artigo 3º do Decreto-lei nº 79/2017, de 30 de Junho – a instauração de um segundo PER no período de dois anos subsequente à recusa da homologação judicial de um processo antecedente.
O que se compreende.
Se o dito plano não reunia as condições legais para poder ser aceite pelo tribunal e vincular todos os credores envolvidos, não faz sentido algum permitir ou conceder nos tempos mais próximos (concretamente no período temporal de dois anos) nova oportunidade para a instauração de outro PER, com todas as consequências profundamente prejudiciais para a efectivação dos direitos dos respectivos credores que se lhe encontram automaticamente associadas. 
O que a lei diferentemente admite, em termos muito mais restritos do que pretendido pela recorrente, é que, uma vez homologado judicialmente o plano de recuperação, encontrando-se em curso o seu cumprimento ou verificando-se a superveniente dificuldade da recuperanda em cumpri-lo, se ficar demonstrado (pela requerente) de que tal se ficou a dever a factores alheios ao plano e a alterações (sérias, imprevistas e insuperáveis) alheias ao controlo da empresa, se dê então a possibilidade (compreensível) de instauração  de novo PER, sem dilação temporal.
O que se justifica e se aceita pela segurança e credibilidade que resultam da vigência de um anterior plano homologado judicial e que só não foi devidamente executado pelo facto de o devedor, querendo, não o poder, sem culpa, realizar.
Na situação sub judice, a homologação do plano teve lugar por acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2020, devido a falta de quorum deliberativo, tendo sido ordenado o seu arquivamento por despacho de 4 de Novembro de 2020.
Logo em 25 de Outubro de 2020 (quatro meses após o aresto e antes da prolação do próprio despacho de arquivamento) já estava recorrente a apressar-se a instaurar este novo PER, com absoluto, frontal e inegável, desrespeito pelo que se dispõe nos artigos 17º-G, nº 6 e 17º-F, nº 8, do CIRE.
Carece obviamente de razão, portanto, na interposição da presente revista.
2- Inconstitucionalidade da interpretação realizada pelas instâncias, que conduziu à conclusão da existência de impedimento à instauração do novo processo especial de revitalização, por pretensa violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
Não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa em resultado da interpretação das citadas disposições legais e que se perfilha.
Todas as entidades que se encontrarem na situação descrita não poderão beneficiar de uma segunda oportunidade para a instauração de um novo PER, dentro do limite temporal de dois anos indicado.
Nenhum tipo de discriminação ou desigualdade de tratamento é provocado através desta interpretação dos normativos legais, em si plenamente justificados, lógicos e compreensíveis.
O que o comando constitucional invocado proíbe terminantemente é o arbítrio no tratamento de situações de facto com as mesmas características essenciais, dando o legislador tratamento desigual ao que não é substancialmente diferenciável, fazendo-o sem fundamento material aceitável.
Nada disso se passa na situação sub judice, como é óbvio.
Nega-se, por conseguinte, a revista.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Julho de 2021.

Luís Espírito Santo (Relator).

Ana Paula Boularot.

Pinto de Almeida.

(Tem o voto de conformidade dos Exmºs Adjuntos Conselheiros Ana Paula Boularot e Fernando Pinto de Almeida, que compõem este colectivo, nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março).


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.