SEGURO DE VIDA
CONTRATO DE MÚTUO
CLÁUSULA CONTRATUAL
INVALIDEZ
Sumário


I - O conceito relevante de invalidez permanente (ou absoluta e definitiva) enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário, assenta: (i) na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial e (ii) concretiza-se, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), em consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro.
II - Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na capacidade de ganho) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro.

Texto Integral




Processo n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2  

Revista Excepcional – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 2.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA e cônjuge mulher BB intentaram acção declarativa (seguindo o regime do DL 108/2006, de 8 de Junho, depois sob a forma de processo comum) contra «Eurovida – Companhia de Seguros DE VIDA, S.A.» (doravante, «EUROVIDA»), pedindo a condenação da Ré a: (i) ver reconhecida a validade do contrato de seguro subscrito pelos Autores na modalidade “Eurovida Plano Protecção – Duo” com as coberturas complementares morte e invalidez, sem qualquer exclusão de cobertura; (ii) ser condenada a participar o sinistro objecto da  acção com as legais consequências; (iii) ser condenada a pagar a quantia em dívida em nome dos Autores junto da «Banco Popular, S.A».

Para tanto, alegaram, em síntese, que contrataram com a Ré um seguro do ramo Vida que garantia o pagamento de empréstimos (mútuos) contraídos por aqueles, recusando-se a Ré a cumprir o acordado pelo contrato de seguro, não pagando quer as quantias que os Autores entretanto despenderam nas prestações mensais dos empréstimos, quer a sua totalidade à «Banco Popular, S.A.»

2. A Ré apresentou Contestação, aceitando a existência do contrato de seguro, mas excepcionando a anulabilidade do mesmo em virtude de falsas declarações do segurado marido relativamente ao seu estado de saúde, bem como impugnando a não cobertura do seguro por não estarem preenchidas as respectivas cláusulas relativas a “invalidez definitiva absoluta”, pedindo a improcedência da acção e consequente absolvição da Ré do pedido.

3. Depois, em relação ao pedido originário, requereram os Autores (fls. 223 e ss): “1. Condenar a Ré no pagamento da quantia de € 105.570,98 (cento e cinco mil quinhentos e setenta euros e noventa e oito cêntimos) em dívida em nome dos Autores junto do Banco Popular, S.A., bem como, 2. No pagamento do remanescente dessa quantia aos aqui Autores, até ao montante global do capital segurado no valor de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), o qual perfaz a quantia de € 14.429,02 (catorze mil quatrocentos e vinte e nove euros e dois cêntimos)”. A Ré opôs-se à ampliação/alteração e reiterou a invocada absolvição da Ré do pedido formulado pelos Autores.

4. Foi proferido despacho saneador ao abrigo do art. 10º do DL 108/2006, admitindo-se a ampliação do pedido por se ter considerado tratar-se de uma concretização/”liquidação” do pedido inicialmente formulado, relegando-se para final o conhecimento das excepções invocadas. Depois de várias diligências probatórias, foi realizada audiência de discussão e julgamento em 24/10/2017 e 24/1/2017.

5. Foi proferida sentença pelo Tribunal Judicial da Comarca do …, Juízo Central Cível do … – Juiz 2 (que faz fls. 737 e ss), em 16/5/2018, que julgou improcedente por não provada a excepção peremptória de anulabilidade alegada pela Ré e procedente a acção, condenando a Ré a satisfazer os montantes que ainda se mostrem em dívida atinentes aos contratos de mútuo celebrados pelos Autores, garantidos pelos contratos de seguro identificados, bem como a pagar-lhes as quantias por eles pagas no cumprimento desse mútuo bancário, acrescidas de juros contados desde a citação, bem como no remanescente que lhes couber por força dos contratos de seguro.

6. A Ré «Eurovida» interpôs recurso de apelação junto do Tribunal de Relação do Porto, que proferiu acórdão em 7/12/2018, julgando a apelação improcedente e confirmando a sentença recorrida.

7. Novamente inconformada, interpôs então a Ré recurso de revista excepcional junto do STJ, intentando revogar o acórdão recorrido e, para isso, formulando nas alegações as seguintes Conclusões:

“1. Vem o presente recurso de revista excepcional interposto do douto acórdão proferido que julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença recorrida, que havia julgado improcedente, por não provada, a excepção peremptória de anulabilidade alegada pela ré “Eurovida - Companhia de Seguros de Vida, S.A. e julgado procedente a acção e, em consequência condenou a Ré Seguradora aqui recorrente, a satisfazer os montantes que ainda se mostrem em dívida atinentes aos contratos de mútuo celebrados entre os autores AA e mulher, BB, garantidos pelos contratos de seguro em causa nos autos, bem como a pagar aos autores/recorridos as quantias por estes pagas no cumprimento desse mútuo bancário, contados desde a citação, bem como no remanescente que lhes couber por força dos contratos de seguro.

2. Salvo o devido respeito por melhor opinião, é entendimento da Seguradora aqui recorrente que o douto acórdão recorrido – à semelhança da decisão proferida na 1.ª Instância – opera uma desadequada interpretação e consequente desapropriada aplicação do direito, no que concretamente diz respeito à interpretação a conferir ao conceito integrador da cobertura do risco de “invalidez absoluta e definitiva” e às condições de verificação desse mesmo risco no caso concreto.

3. Na verdade, como infra se demonstrará, perante a factualidade que resultou provada, e sempre com o merecido respeito por diverso entendimento, urge considerar que, no caso sub judice, não está verificada uma situação de incapacidade/invalidez absoluta e definitiva enquanto impossibilidade, para o segurado, de exercer toda e qualquer actividade profissional remunerada.

4. Quer a douta sentença proferida na 1.ª Instância, quer o douto acórdão que a confirmou e de que agora se recorre, pronunciaram-se sobre a mesma questão fundamental de direito que agora se submete a douta sindicância deste Supremo Tribunal: As condições de verificação, para efeitos de contrato de seguro do ramo vida, do risco susceptível de accionar a cobertura complementar de incapacidade/invalidez absoluta e definitiva (IAD), concretamente, a interpretação a conferir ao conceito de invalidez absoluta e definitiva, à luz dos critérios contidos nos artigos 10º a 13º do Decreto-lei 445/85.

5. Com efeito, em ambas as aludidas decisões se considerou que, à luz das normas que regulam a interpretação das cláusulas contratuais gerais (nomeadamente os arts. 10.º a 13.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro) se impunha julgar tal cláusula nula, excluindo-a do contrato, por exigir, cumulativamente com a incapacidade de exercício de qualquer actividade, que o segurado tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da vida corrente, e ainda que a cobertura de invalidez absoluta e definitiva deve ser interpretada, de acordo com as regras de integração do negócio jurídico, como ocorrendo quando o segurado, com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer.

6. Considerando, pois, que à luz dessa interpretação, está verificada uma situação de IAD na situação em que o segurado, estando afectado de incapacidade de 39,62%, que o impede de exercer a sua profissão habitual (...), bem como outras profissões que exijam esforços físicos em geral.

7. Sendo este, pois, o segmento decisório que se pretende sindicar agora em sede de revista, e perante este Supremo Tribunal de Justiça.

8. Justifica-se, e face ao que antecede, a interposição e o conhecimento do presente recurso como de revista excepcional, dado estarem preenchidos os pressupostos para tanto exigidos.

Com efeito,

Da admissibilidade do recurso enquanto revista excepcional

9. Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 671.º, n.º 3 do CPC, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância – são as situações de “dupla conforme”.

10. Contudo, e apesar desta restrição de acesso a uma 2.ª instância recursiva, o legislador entendeu consagrar as circunstâncias excepcionais em que apesar de se verificar esta “dupla conforme”, ainda assim é possibilitado às partes o acesso a um terceiro e derradeiro grau de jurisdição.

11. Nesse sentido, estabelece-se, no art.º 672.º, n.º 1 do CPC (intitulado “Revista excepcional”) que, excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do art.º 671.º quando:

a. Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b. Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c. O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação do pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

12. Nos presentes autos foram proferidas, na 1ª instância e posteriormente na Relação, duas decisões de idêntico teor, e que incidiram sobre a interpretação e solução jurídica a conferir à seguinte questão:

Da nulidade da cláusula inserta no contrato de seguro do ramo vida, que estabelece que se verifique o risco susceptível de accionar a cobertura complementar de incapacidade/invalidez absoluta e definitiva (IAD), há que estar diante de uma “Situação em que a Pessoa Segura é considerada clinicamente inapta e incapaz, em consequência de doença ou acidente, de exercer qualquer actividade e, além disso, tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da vida corrente” (Cfr. Cap. V, Coberturas complementares, das Condições gerais e especiais, parágrafo 30. 1, Definições) e da interpretação a conferir ao conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, à luz do artigo 13º n.º 2 do Decreto-lei 445/86, devendo-se considerar que a cobertura de invalidez absoluta e definitiva deve ser interpretada como ocorrendo quando o segurado com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer.

13. O entendimento plasmado pelas duas instâncias espelha-se, sumariamente, no seguinte trecho constante do Douto Acórdão ora posto em crise:

(…) Para se aferir se este A. ficou portador de uma invalidez absoluta definitiva, há que analisar o tipo de doença de que sofre, as limitações dela decorrentes, as suas qualificações profissionais, a sua idade e, sopesando todas as componentes, concluir se pode dedicar-se a qualquer trabalho que não demande esforços físicos. É que, o A. não pode desenvolver actividades que impliquem esforços e a sua preparação profissional, como ..., exige-os. Por isso, a sua actividade profissional normal ou outra no mesmo âmbito está definitivamente afastada, pela apontada razão da exigência de esforços estar fora das suas capacidades físicas.

Restam, pois, trabalhos de secretária. Ora, para esses o A. não tem qualificações.

Assim, no seu enquadramento social, o A. deve considerar-se definitiva e absolutamente inválido. (…)

Já vimos que o que está em causa é a cobertura da “invalidez absoluta e definitiva”, que deve ser interpretada, de acordo com as regras de integração do negócio jurídico, como ocorrendo quando o segurado, com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer. (…)”.

14. A Seguradora aqui recorrente discorda veemente do entendimento vertido no douto aresto.

15. E, salvo o devido respeito por diversa opinião, a tese nele expendida a propósito da interpretação a conferir ao conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, para efeitos de cobertura do contrato de seguro do ramo vida, encontra-se em manifesta contradição com o entendimento constante:

A. Do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.03.2011, proferido no âmbito do Processo n.º 313/07.0TBSJM.P1.S1, disponível na íntegra em www.dgsi.pt, e em que se decidiu:

Uma invalidez absoluta e definitiva será, para um declaratário normal, um estadoda pessoa que o deixa totalmente (completamente, sem restrição), incapaz  para o resto da vida, de exercer a sua actividade, designadamente a laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência”.

B. Do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/06/2013, proferido no âmbito do Processo n.º 3077/08.7TBVCD.P1, disponível na íntegra em www.dgsi.pt, em que se considerou:

Uma invalidez absoluta e definitiva refere-se, segundo um declaratário normal, a um estado de incapacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto da vida”.

16. É patente que, perante situações fácticas muito semelhantes, foram proferidas decisões contraditórias quanto à interpretação do conceito de “Invalidez Absoluta e Definitiva”, para efeitos de accionamento da cobertura do contrato de seguro do ramo vida.

17. É este o ponto em concreto que espelha a contradição das citadas decisões proferidas sobre a mesma questão fundamental de direito, e no domínio da mesma legislação.

18. Face ao supra expendido, e sempre com o máximo respeito, acham-se suficientemente verificados os pressupostos impreteríveis para a admissão do presente recurso de revista excepcional, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 672º n.º 1 al. c) do CPC.

19. O que aqui se deixa alegado para todos os devidos efeitos legais.

Do objecto do recurso

20. Com relevo para a apreciação das questões que agora se submetem a douta sindicância do Supremo Tribunal de Justiça, foram julgados provados, entre outros, os seguintes factos:

“8. Na sequência de enfarte do miocárdio de 2009, que obrigou a efectuar revascularização coronária, a qual faliu parcialmente em 2011, condicionando nova intervenção, desenvolveu quadro de insuficiência cardíaca crónica, como historiado pelo doc de fls 479 a 482, perícia médico-legal que dá por integralmente reproduzido.

9. Concluiu ainda a referida perícia médico-legal relativamente ao autor, nascido em 15.03.1956 que:

“O cálculo da incapacidade permanente resultante das patologias/sequelas consideráveis para o efeito é realizada na forma da tabela abaixo representada, apresentando de acordo com o anexo I do Dec-Lei 352/07, de 23/10, um valor de incapacidade de 39,2% O quadro clinico global, sendo incapacitante para a profissão habitual do examinado (...) bem como para outras profissões que exijam esforços físicos em geral, permitiria o exercício de actividades profissionais que pudessem ser desempenhadas sem recurso a esforços. No entanto, tendo em conta o tipo de trabalho para o qual o examinado estaria previamente habilitado, bem como a sua idade, tal reconversão afigura-se pouco praticável.l

As limitações de que o examinado padece não condicionam necessidade de ajuda permanente de 3ª pessoa para todas as actividades de vida diária.”.

21. Tendo por base a factualidade assim julgada provada, entendeu-se no douto acórdão recorrido que está em situação de invalidez absoluta e definitiva o segurado a que foi fixada uma Incapacidade Permanente de 39,62%, que o torna incapaz para a profissão habitual de ..., bem como para outras profissões que exijam esforços físicos.

22. A Seguradora aqui recorrente não se conforma com a douta decisão assim vertida no douto acórdão agora posto em crise, e no que diz respeito à solução de direito, por se entender, que mesmo que se considere que a cláusula no Cap. V, Coberturas complementares, das Condições gerais e especiais, parágrafo 30. 1, Definições é nula, por não ter sido devida e pessoalmente explicada ao tomador do seguro, e portanto, considerada não escrita (cfr. art.º 8.º, alínea a) do Decreto-Lei 445/86, de 25 de Outubro), a concreta interpretação a conceder à noção de “Invalidez Absoluta e Definitiva” jamais poderá ser a vertida no douto aresto aqui impugnado.

23. Ao Autor aqui recorrido foi fixada uma incapacidade de 39,62%, concluindo-se que o “quadro clinico global, sendo incapacitante para a profissão habitual do examinado (...) bem como para outras profissões que exijam esforços físicos em geral, permitiria o exercício de actividade profissionais que pudessem ser desempenhadas sem recurso a esforços” (cfr. factos provados, alínea 9).

24. Fruto desta facticidade, e após ter declarado nula a cláusula 30.ª, n.º 1 do Cap. V, Coberturas Complementares, Condições Especiais da apólice que continha a definição de Invalidez Absoluta e Definitiva, o douto acórdão recorrido aferiu do enquadramento da situação do A/recorrido na situação de invalidez absoluta e definitiva, não por apelo à citada cláusula – que se excluiu do contrato – mas por referência aos requisitos normais de tal conceito, nos termos do art. 13.º, n.º 2 do Decreto-Lei 445/86, de 25 de Outubro.

25. Entendimento com o qual a Seguradora aqui recorrente não se conforma.

26. Revisitando os doutos acórdãos-fundamento, começa a recorrente por salientar o entendimento consignado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.03.2011, proferido no âmbito do Processo n.º 313/07.0TBSJM.P1.S1.

27. Ora, à semelhança do que sucedeu nos presentes autos, também no caso ali em apreço, se julgou nula a cláusula inserta nas condições especiais do contrato de seguro que estabelecia o conceito de “Invalidez Absoluta e definitiva”, prosseguindo-se com uma interpretação e determinação do objecto da sua garantia, em conformidade com as regras estabelecidas no regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

28. E ali se concluiu da forma que se passa a citar:

Uma invalidez absoluta e definitiva será, para um declaratário normal, um estado da pessoa que o deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua actividade, designadamente a laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.

29. A recorrente Seguradora comunga do entendimento vertido no citado aresto, no sentido de que apenas se verifica invalidez absoluta e definitiva nas situações em que, como o próprio conceito de “absoluto” em si encerra, haja uma total e completa incapacidade do lesado/segurado para desempenhar uma qualquer actividade profissional remunerada.

30. Este conceito de IAD (incapacidade absoluta e definitiva) não se consubstancia com meras incapacidades parciais, que ainda que importem uma total incapacidade para o exercício da função/profissão habitual do lesado, deixam espaço para que este possa exercer uma outra profissão, ainda que fora da sua formação de base.

31. Ainda neste mesmo sentido, impõe-se analisar o teor do, também acórdão-fundamento, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06.06.2013, proferido no âmbito do processo n.º 3077/08.7TBVCD.P1, disponível em www.dgsi.pt, e que versou sobre uma situação fáctica muito semelhante à dos presentes autos:

Como se referiu na decisão da matéria de facto, o A apenas logrou provar que ficou com incapacidade permanente para o exercício da sua profissão, tendo-lhe sido atribuída pensão por invalidez pela Segurança Social, com efeitos desde 21.11.2006.

Assim sendo, a aceitar-se como válida a 1ª parte da referida cláusula estaria liminarmente afastada a integração da factualidade provada no conceito de invalidez absoluta e definitiva nela constante, dado que a mesma pressupõe que a pessoa sinistrada fique total e definitivamente incapacitada de exercer qualquer profissão.

Mesmo que se considere a cláusula inválida na sua totalidade, não se nos afigura, que a situação de incapacidade do autor pode ser qualificada como invalidez absoluta e definitiva e consequentemente abrangida pelo âmbito do risco coberto. (…)

Não se está pois perante uma situação em que o A tenha ficado numa situação de incapacidade permanente absoluta, ou seja, esteja incapacitado de exercer qualquer actividade remunerada. (…)

Não pode, pois, sem mais, afirmar-se, que a situação do A corresponda a um estado de incapacidade absoluta ou completa e definitiva, seja por referência a um prejuízo funcional total, seja, na consideração de estar impossibilitado de obter rendimentos do trabalho.

É evidente que actualmente parte da população está desempregada e que objectivamente a situação de ser portador de uma IPG de 27 pontos e estar impedido de fazer esforços significativos torna ainda mais difícil a possibilidade de encontrar emprego, mas essa realidade sociológica não pode ser transportada para o mundo do direito, de forma a alterar o conceito jurídico de invalidez absoluta e definitiva.

Entende-se, em consequência, que a situação de incapacidade demonstrada não preenche os pressupostos de inclusão na garantia da cobertura, da denominada “Invalidez Absoluta e Definitiva por Doença”.

32. Ainda relativamente à interpretação que tem sido conferida a este conceito de invalidez absoluta e definitiva, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 22.01.2009, publicado na CJ, STJ, Tomo I/2009, p. 78, onde se decidiu:

Sendo o risco coberto, para além da morte, a invalidez absoluta definitiva, mesmo não havendo especificação do conceito dessa invalidez, o declaratário médio e medianamente sagaz, não pode deixar de entender que a mesma se refere a todo e qualquer trabalho que não apenas ao trabalho habitual do segurado”.

33. Igual entendimento foi perfilhado no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 06.06.2013, no âmbito do processo 3077/08.7TBVCD.P1, disponível na íntegra em www.dgsi.pt, , no qual se dispõe:

Uma invalidez absoluta e definitiva refere-se, segundo um declaratário normal, a um estado de incapacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto da vida.

34. E também no mais recentemente proferido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-06-2018, proferido no âmbito do Processo n.º 2300/15.6T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere:

I – Uma incapacidade absoluta e definitiva – enquanto risco coberto por contrato de seguro de vida, individual, celebrado entre a autora, como tomador e pessoa segura, e a ré, como seguradora, em que ficou designado beneficiário irrevogável, o banco, com quem aquela e o marido haviam celebrado contrato de mútuo para aquisição de imóvel – refere-se, segundo um declaratário normal, a uma incapacidade para todo e qualquer trabalho para o resto da vida, ao que não se equipara uma IPP de 80%.

35. Sempre com o máximo respeito por entendimento diverso, temos que não pode deixar de ser aplicado este douto entendimento também no caso sub judice.

36. Posto isto, e coligidos os factos julgados provados, o que se demonstrou – tão somente – é que o Recorrido é portador de uma incapacidade de 39,62% que o impossibilita de exercer a sua profissão de ... e outras que exijam esforços físicos.

37. Mas não toda e qualquer profissão!

38. Citando ainda o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.06.2013, proferido no âmbito do Processo n.º 933/07.3TBILH.C1:

A apólice de seguro que em por objecto o risco de incapacidade absoluta para toda e qualquer profissão ou actividade lucrativa e não a incapacidade para o desempenho da profissão que o segurado exercia, não abrange uma situação em que a incapacidade seja apenas para o exercício da profissão habitual”.

39. É este, pois, o único entendimento a retirar, quer da apólice, quer dos factos provados.

40. Acresce ainda que, no caso em apreço, atenta a incapacidade fixada de 39,62%, concluir-se que mesmo que tivesse sido contratada a cobertura complementar de ITP – situação menos gravosa em termos de incapacidade e com requisitos menos apertados – ainda assim o Autor aqui recorrido não estava em condições de cumprir os pressupostos necessários para o respectivo accionamento.

41. E se assim é, por igual ordem de razão, muito menos está em condições de observar os requisitos necessários para o accionamento da cobertura de IAD que, recorde-se, corresponde a uma invalidez absoluta e definitiva, impeditiva do exercício de qualquer profissão.

42. Entende, assim, a Seguradora Recorrente, que urge considerar que no caso em apreço a situação de incapacidade demonstrada pelo autor não é susceptível de preencher a cobertura de IAD.

43. E prosseguindo tal entendimento, impunha-se julgar a acção improcedente e absolver a recorrente do pedido.

44. A decidir diferentemente, andou mal o Venerando Tribunal a quo, violando, entre o demais, o vertido nos arts. 9.º e 236.º e seguintes do Código Civil e 10.º a 12.º e 13º, n.º 3 do Decreto-Lei 445/86, de 25 de Outubro.”

Em contra-alegações, os Autores e Recorridos defenderam o indeferimento do recurso ou, sendo admitido, a sua improcedência e confirmação do acórdão  recorrido. 

8. A Formação do STJ, prevista no n.º 3 do artigo 672º do CPC, decidiu admitir a revista excepcional (em 30/5/2019, a fls. 935 e ss), assente no art. 672º, 1, c), do CPC e em referência à “verificação de uma divergência quanto ao modo como foi apreciada a questão de direito essencial”, sendo esta “o conceito de invalidez permanente para efeitos de acionamento do contrato de seguro ramo vida”, assumindo “a necessidade de clarificação da matéria em causa e o relevo de uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça num caso que, tendo naturalmente repercussão no concreto litígio, pode ser também determinante para a apreciação de outros litígios congéneres”.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Tendo por fundamento a delimitação feita pelo anterior acórdão da Formação do STJ de apreciação preliminar sumária, que baliza, nos termos do art. 672º, 1, do CPC, o âmbito dos poderes cognitivos para julgamento do recurso, e as Conclusões da Recorrente (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1, CPC), a questão a apreciar é a determinação do conceito de invalidez permanente (“invalidez absoluta e definitiva” nos termos clausulados como “cobertura complementar”[1]) enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário.

2. A factualidade
Os factos dados como provadas pelas instâncias são os seguintes:
1 – Os autores celebraram com o Banco Popular Portugal, S.A., com sede na Rua ..., n.º 00, 0000-000, …, em Setembro de 2009, um contrato de abertura de crédito, para aquisição de um crédito pessoal, bem como celebraram ainda dois contratos de mútuo com garantia hipotecária [aos quais foram][2];

2 – A subscrição dos referidos contratos foi condicionada à celebração de um seguro de vida e de um seguro de protecção de pagamentos, a celebrar com a ré Eurovida, que à data fazia parte do mesmo grupo financeiro daquele;

3 – Em Setembro de 2009, numa reunião levada a cabo na agência do Banco Popular, foi apresentada aos autores a modalidade de plano de seguro, no ramo vida, que melhor se adequaria à situação em concreto dos proponentes, aqui autores – plano “Eurovida Plano Protecção - Duo”;

4 – Por intermédio do Banco Popular, os autores propuseram e subscreveram então o contrato de seguro individual, no ramo vida, adiante designado contrato de seguro, na modalidade “Eurovida Plano Proteção Duo”, com as coberturas constantes dos documentos de fls. 178 a 197, nomeadamente cobertura principal por morte e com oferta complementar de “invalidez absoluta definitiva”, ambas pelo capital de 120.000,00 euros (docs. que se dão por reproduzidos);

5 – Os autores foram informados de que, em situações de invalidez ou morte, o seguro assumiria o pagamento da totalidade da quantia em dívida junto do Banco Popular e que a subscrição do contrato de seguro seria remetida para sede da ré Eurovida com vista à sua aprovação, o que veio a acontecer, passando os autores a pagar os respectivos prémios;

6 – A ré nunca contactou com os autores pessoalmente, nomeadamente para lhes explicar o conteúdo das cláusulas contratuais;

7 – Quando da proposta de seguro, os autores informaram a ré de que o autor AA havia sofrido um enfarte do miocárdio, que tomava medicação e estava naquele momento de boa saúde (doc. de fls. 192, já dado por reproduzido);

8 – Na sequência do enfarte de miocárdio de 2009, que obrigou a efectuar revascularização coronária, a qual faliu parcialmente em 2011, condicionando nova intervenção, desenvolveu quadro de insuficiência cardíaca crónica, como historiado pelo doc. de fls. 479 a 482, perícia médico-legal, que se dá por integralmente reproduzido;

9 – Concluiu ainda a referida perícia médico-legal relativamente ao autor, nascido em 15.03.1956, que:

“O cálculo da incapacidade permanente resultante das patologias/sequelas consideráveis para o efeito é realizada na forma da tabela abaixo apresentada, apresentando, de acordo como anexo I do Dec-Lei 352/07, de 23/10, um valor de incapacidade de 39,62%...

O quadro clínico global, sendo incapacitante para a profissão habitual do examinado (...) bem como para outras profissões que exijam esforços físicos em geral, permitiria o exercício de actividades profissionais que pudessem ser desempenhadas sem recurso a esforços. No entanto, tendo em conta o tipo de trabalho para o qual o examinado estaria previamente habilitado, bem como a sua idade, tal reconversão afigura-se pouco praticável…

As limitações de que o examinado padece não condicionam necessidade de ajuda permanente de 3ª pessoa para todas as actividades de vida diária…”;

10 – Datado de 03.01.2012, o autor obteve o doc. de fls. 39, que se dá por reproduzido, “atestado médico de incapacidade multiuso”, que atesta que, nessa data, é portador de uma incapacidade permanente global de 69%;

11 – Nessa sequência, o autor accionou então a cobertura do seguro de vida da qual é beneficiário, na modalidade “incapacidade total e permanente”, nos termos da participação junta que se mostra junta a fls. 40 (que se dá por reproduzida);

12 – Posteriormente, na sequência de observação médica a solicitação da ré e a que o autor anuiu, em Julho de 2012 a ré informa o autor que declina a sua pretensão, com fundamento, nomeadamente, em que a sua situação clínica é “pré-existente ao início do contrato, estando por isso excluída do âmbito do mesmo nos termos das condições gerais e especiais aplicáveis”, bem como que a patologia em causa não configura uma “incapacidade total e definitiva para toda e qualquer profissão nem uma dependência de 3ª pessoa para a maioria dos atos essenciais da vida corrente” (doc. de fls. 76, que se dá por reproduzido);

13 – À data da entrada da petição inicial em juízo, os débitos contraídos pelos autores (mútuos) e garantidos pelos contratos de seguro acima referidos, eram do valor de 99.092,59 euros (doc. de fls. 230, que se dá por reproduzido, “crédito pessoal” e “crédito à habitação”).

Por outro lado, foram considerados não provados os seguintes factos:

– Que a ré nunca tivesse procedido à entrega de qualquer exemplar dos documentos e/ou clausulados relativos aos contratos de seguro então subscritos;

– Que nunca os autores tivessem sido informados de que qualquer patologia ficaria excluída da cobertura do contrato de seguro.

3. O direito aplicável

3.1. O contrato celebrado entre as partes configura um contrato de seguro, na modalidade do “ramo vida”, que tem por objecto a cobertura do risco de morte ou invalidez, associado aos contratos de financiamento bancário (crédito pessoal e mútuo com hipoteca), garantindo ao tomador do seguro (entidade financiadora) o capital que estiver em dívida à data em que se verifiquem tais eventos – morte (cobertura principal) e invalidez absoluta definitiva (cobertura complementar) da pessoa segura.

É-lhe aplicável o regime legal previsto no DL 72/08, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro – RJCS), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009, e que procedeu à revogação dos artigos 425.º a 462.º do Código Comercial.

Por outro lado, tratando-se igualmente de um contrato de adesão, na medida em que integra cláusulas contratuais gerais elaboradas prévia e unilateralmente (sem negociação individual) pelos seguradores e que os tomadores dos seguros se limitam a aderir ou rejeitar em bloco a esse conjunto de cláusulas padronizadas, aplica-se-lhe o regime do DL 446/85, de 25 de Outubro (v. art. 3º do RJCS).

A decisão do caso implicou o confronto, nas “Condições Gerais e Especiais” da Apólice que titula o contrato de seguro, subscrito pela Ré/seguradora e autor (cfr. fls. 179 e ss dos autos), com a definição constante do capítulo V (“Coberturas Complementares”), no respectivo cap. 30 (“Condições Especiais”), ponto 1. (cfr. fls. 188), em que se define “Invalidez Absoluta e Definitiva” como a “situação em que a Pessoa Segura é considerada clinicamente inapta e incapaz, em consequência de doença ou acidente, de exercer qualquer atividade e, além disso, tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efetuar os atos essenciais da vida corrente”, decretando-se nas duas instâncias como cláusula não escrita e nula de acordo com o DL 446/85.

Por outro lado – o que interessa agora –, essa mesma decisão implicou determinar os “requisitos normais” para se preencher o conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, tendo em conta o disposto pelo art. 13º, 2, do DL 446/85 («A manutenção de tais contratos [«quando algumas dessas cláusulas sejam nulas»] implica a vigência, na parte afectada, das normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.»).

3.2. O contrato de seguro de pessoas «compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas» (art. 175º, 1, RJCS).
Na modalidade (ou subtipo) de seguro de vida, o «segurador cobre o risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa»: art. 183º, 1, RJCS. No seu âmbito, a lei aplica-se a «seguros complementares dos seguros de vida relativos a danos corporais, incluindo, nomeadamente, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em consequência de acidente ou doença» (art. 184º, 1, a), RJCS[3]). Abrangem-se, assim, “todos os seguros em que o risco coberto é o risco morte, ainda que associados a seguros de capitalização, ou o risco de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, mas também os diversos seguros em que o risco coberto é a saúde, ou a verificação de qualquer evento fortuito que altere a saúde do segurado, como os seguros de saúde e de acidentes pessoais”[4].
Para a resolução da questão, porém, teremos que enfatizar a especificidade trazida pelos autos – cfr. factos 1. a 5. – isto é, a conexão constitutiva do seguro com os contratos de crédito (mútuos bancários) celebrados pelo segurado.
Quando estamos perante seguros de vida associados à contratação de crédito bancário (habitualmente impostos a favor do credor mutuante como condição da concessão do crédito), as cláusulas que definem a cobertura de invalidez devem ser interpretadas de acordo com uma adequada ponderação entre o risco do segurado e o compromisso do segurador, de maneira que tal resulte em equilíbrio de prestação das partes contratantes tendo como azimute o interesse do seguro (enquanto elemento essencial do contrato), estando esse ancorado na titularidade do segurado nos termos do art. 43º do RJCS[5]. Na verdade, sendo esse – em primeira linha e sem prejuízo de o tomador do seguro optar por outras modalidades, coberturas, riscos e beneficiários a propósito do seguro conexo com o financiamento – o pagamento do crédito ao banco (tipicamente como primeiro beneficiário do seguro em face do capital coberto e do prazo do contrato de crédito) quando o segurado já não o possa razoavelmente fazer como o terá feito até ao sinistro, por perda da sua capacidade de obtenção de rendimento[6], a densificação das suas coberturas tem necessariamente que ser empreendida de acordo com esse horizonte teleológico, naturalmente ancorado na expectativa legítima do segurado com a celebração desse seguro[7]. Em síntese, garantir a alteração de vida profissional que constitui causa para não se dispor da mesma condição remuneratória com que se contava para o pagamento dos créditos obtidos.
Mobilizando-se a cobertura em caso de invalidez permanente ou definitiva (independentemente da formulação contratual usada), parece ser de sustentar que a exigibilidade de verificação cumulativa de um elenco de pressupostos exigentes e apertados – nomeadamente, somando a um elevado grau de incapacidade, a insusceptibilidade completa e definitiva para o exercício habitual da profissão ou de qualquer outra profissão e a necessidade da assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária – traduz-se em limitação objectivamente excessiva (senão mesmo, em determinados casos, inviabilização prática) da cobertura do seguro, com a consequente frustração do equilíbrio prestacional entre segurado e segurador inerente ao interesse contratualmente visado[8]. Estaríamos a ser de tal modo restritivos na definição da invalidade permanente ou definitiva, relevante para a delimitação do risco segurado, que tal cobertura “só funcionará quando o segurado se encontrar em estado de ‘praticamente defunto’”[9].
3.3. Retornemos, porém, à (já referida) circunstância generalizada de os seguros de vida associados aos créditos bancários (maxime, para aquisição de habitação) serem impostos pela parte mais forte, o financiador mutuante, também geralmente relacionado ou com participação no segurador (em situação plurissocietária de relação de domínio, simples ou grupal), tendo em vista (em complemento às garantias pessoais e reais) ressarcir a perda que pode advir do incumprimento do crédito – sendo, pois, nessa perspectiva de coligação ou união funcional[10], um contrato de seguro obrigatório em sentido impróprio[11] ou fáctico. Daí não se estranhar que o legislador tenha avançado para um quadro legal próprio, instituído pelo DL 222/2009, de 11 de Setembro, destinado a estabelecer regras quanto ao regime dos «contratos de seguro de vida cuja contratação tenha por objectivo o reforço de garantia dos contratos de crédito à habitação, quer resultem de uma imposição das instituições de crédito como condição necessária à celebração destes últimos contratos quer resultem de uma opção do consumidor», tendo como foco a protecção do consumidor segurado (v. arts. 1º e 2º)[12].
Nessa disciplina legal considera-se existir união de contratos «se ambos os contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o contrato de seguro de vida for proposto pela instituição de crédito ou, no caso de o contrato de seguro de vida ser proposto por terceiro, se a seguradora tiver recorrido à instituição de crédito para preparar ou celebrar o contrato de seguro de vida ou se o contrato de seguro de vida estiver expressamente mencionado no contrato de concessão de crédito à habitação ou, ainda, se a instituição de crédito fizer depender a celebração do contrato de crédito à habitação da celebração de um contrato de seguro de vida» (art. 3º, 2). Porém, desta disciplina não surge qualquer definição ou preceito que nos auxilie na tarefa interpretativa que nos move.
Daí não chocar – antes aconselhar – que, por equiparação extensiva com os seguros obrigatórios de responsabilidade civil, ou por integração analógica, se aplique a esses seguros coligados ou em união contratual (mesmo para com outros créditos que não o de aquisição de habitação) o regime legal das «disposições especiais de seguro obrigatório» constantes dos arts. 146º a 148º do RJCS[13]. E, neste regime, assume relevo central para a questão os n.os 3 a 5 do art. 146º, que manifestam o princípio da utilidade do seguro: por um lado, a imposição de que o dano seguro é determinado pela lei geral (remissão para a solução do art. 138º, 2, do RJCS); por outro lado, a proibição de o âmbito da cobertura incluir exclusões contrárias à natureza da obrigação legal do seguro (v. art. 1º do RJCS), sob pena de incumprimento do dever de cobrir os riscos abrangidos pelo contrato. Ora, aplicando-se este regime, não podemos aceitar que se preencha, para efeitos de cobertura contratual, o conceito de invalidez permanente num complexo de pressupostos de accionamento que tornem excluída a cobertura convencionada e, por essa via, frustrem o interesse do segurado e a teleologia do contrato de seguro.
Pois bem – qual o caminho a seguir?
Não existindo uma definição legal, o percurso definidor desse conceito de invalidade permanente tem que considerar as condicionantes aludidas, assumindo natural destaque o interesse (e finalidade racional) do contrato de seguro e o contexto de coligação imposta com os contratos de financiamento[14]. Logo, a nosso ver, não pode deixar de assentar, na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial[15]. Depois, implica esse trilho precisar que esse estado deficitário, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), teve consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro. Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na “capacidade de ganho”[16]) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro[17].
É relevante a invalidez, por isso, que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentadas no momento pré-sinistro. De facto, nela se encontram os requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro. Já não será assim, por exemplo, quando o sinistro provoca uma incapacidade elevada para o trabalho mas a subsequente reconversão profissional para outras tarefas na mesma entidade patronal não conduz a alteração remuneratória[18].

3.4. Em face da matéria de facto provada, o acórdão recorrido alinhou numa fundamentação que segue no essencial o critério proposto e que ora se sustenta como defensável, afinando pelo mesmo diapasão da sentença de 1.ª instância quanto a saber se o Autor, aqui Recorrido, ficou portador de “invalidez absoluta definitiva”.

Destacamos os seguintes trechos:

“há que analisar o tipo de doença de que sofre, as limitações dela decorrentes, as suas qualificações profissionais, a sua idade e, sopesando todas as componentes, concluir se pode dedicar-se a qualquer trabalho que não demande esforços físicos”;

“(…) o A. não pode desenvolver actividades que impliquem esforços e a sua preparação profissional, como ..., exige-os. Por isso, a sua actividade profissional normal ou outra no mesmo âmbito está definitivamente afastada, pela apontada razão [de] a exigência de esforços estar fora das suas capacidades físicas. Restam, pois, trabalhos de secretária. Ora, para esses o A. não tem qualificações”;

Não interessa dizer que abstractamente pode conseguir trabalhar em profissões que não exijam esforços, porquanto essas estão fora do seu alcance, dado que as suas habilitações lhe vedam que as desempenhe. E também não interessa debater abstractamente as possibilidades existentes no espectro das profissões, se este debate não tiver como ponto de partida a realidade concreta do trabalhador”;

“E não se argumente com o grau de incapacidade do A., porque na cl.ª 30/1, considerada nula, nem sequer se referia qualquer grau de incapacidade mínimo como condição do direito ao pagamento do capital seguro. Apenas se aludia à invalidez absoluta e definitiva acrescida da dependência de outra pessoa para os actos essenciais da vida corrente, o que é manifestamente abusivo e violador das regras da boa fé e da proporcionalidade”;

“Assim, no seu enquadramento social o A. deve considerar-se definitiva e absolutamente inválido”, pois “a cobertura da “invalidez absoluta e definitiva” (…) deve ser interpretada, de acordo com as regras de integração do negócio jurídico, como ocorrendo quando o segurado, com qualificação específica para profissão que exige esforços, os não possa fazer”.

Em coerência e conclusão, esta fundamentação e seu resultado decisório não merecem censura, o que faz soçobrar as Conclusões da Recorrente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

*

Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 27 de Fevereiro de 2020

Ricardo Costa – Relator

Assunção Raimundo

Ana Paula Boularot

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[1] Em rigor, a invalidez permanente ou definitiva ou total (as fórmulas contratuais variam) contrapõe-se à invalidez “temporária”, enquanto a invalidez “total” se opõe à invalidez “parcial”.
[2] Aparentemente, e daí a opção da transcrição, a parcela em parêntesis constará indevidamente do ponto 1. dos factos provados (cfr. fls. 739 – sentença de 1.ª instância; cfr. fls. 816 – acórdão recorrido).

[3] Os seguros e operações do chamado “ramo vida” são mais extensos e detalhados nos arts. 184º do RJCS e 9º da L 147/2015, de 9 de Setembro (Regime jurídico de acesso e exercício da actividade seguradora e resseguradora).
[4] LEONOR CUNHA TORRES, Contrato de Seguro Anotada, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, sub art. 183º, pág. 503, com sublinhado nosso.
[5] V. JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 708 e ss.
[6] V., muito recentemente, o Ac. do STJ de 10/12/2019, processo n.º 634/13.3TVPRT.P1.S1, Rel. HÉLDER ALMEIDA, in www.dgsi.pt (“(…) o escopo específico de tal contrato é o de garantir que caso um dos segurados morra ou se veja incapacitado de trabalhar e, consequentemente, de auferir rendimentos, fique assegurado o pagamento ao Banco do “quantum” em dívida, libertando-se o outro desse encargo. É, pois, este, o preciso interesse dos segurados. Já o interesse do Banco, enquanto mutuante, consiste em ver reforçada a garantia de que o montante emprestado, bem como os respectivos juros, lhe serão pagos, ainda que os mutuários possam ficar em situação que impossibilite ou dificulte essa restituição.”).
[7] V., elucidativo, ARNALDO COSTA OLIVEIRA, “Seguro de vida associado ao crédito à habitação: a ‘acordadíssima’ jurisprudência relativa à cobertura de invalidez, seguida de ponto de situação do quadro regulatório aplicável”, RDES n.os 1-3, 2015, págs. 192-193, 213-214.
[8] Esta é a concepção que o STJ tem adoptado em várias decisões, num contexto de reprovação pelo carácter abusivo e desproporcionado de cláusulas limitativas do risco segurado e que aqui deve ser orientadora da densificação pretendida. Assim resulta significativamente dos Acs. de 14/12/2016, processo n.º 1724/11.2TVLSB.L1.S1, Rel. TAVARES DE PAIVA, in www.dgsi.pt (“(…) II – Uma cláusula que prevê a exigência concomitante da impossibilidade de realização de qualquer atividade remunerada, aliada ao grau de incapacidade (inferior a 85%), à necessidade de ajuda de terceira pessoa para a realização (cumulativamente) de todos os atos elementares da vida corrente descritos na cláusula, não é justificada, sendo desproporcionada à caracterização do estado de invalidez permanente que o seguro visou prevenir. III – O segmento duma cláusula que exige, para além do apoio de terceira pessoa, que se encontre incapaz de, cumulativamente, realizar os actos elementares da vida corrente descritos na cláusula 8.2. para efeitos de definição de invalidez absoluta e definitiva, de modo a permitir a cobertura prevista no contrato de seguro, no caso concreto em apreciação, é contrária à boa-fé, por desproporcionalmente violadora dos interesses visados com a celebração de tal contrato, sendo, consequentemente, parcialmente nula (artigo 15.° do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 e artigo 292.° do Código Civil). (…) / V – Sendo ainda de considerar que o preenchimento de todos os requisitos cumulativos previstos na cláusula 8.2., quando a incapacidade é inferior a 85%, é excessivamente limitativa da obrigação assumida contratualmente pela seguradora, enunciada no artigo 4.º pontos 4.1.,4.3.2. das Condições Particulares e cláusula 8, ponto 8.1. das Condições Especiais, em relação ao risco segurado, que retira praticamente utilidade ao contrato de seguro, razão pela qual, no segmento acima considerado, também a mesma se tem por proibida ao abrigo do artigo 21º alínea a), do regime das CCG e, por conseguinte, nula (artigo 12.° do mesmo diploma legal)”) e de 18/09/2014, processo n.º 2334/10.7TBGDM.P1.S1, Rel. GRANJA DA FONSECA, in www.dgsi.pt (“VI – É contrária ao principio da boa-fé e consequentemente proibida, por abusiva, uma cláusula segundo a qual para a atribuição da indemnização contratada em caso de invalidez total ou permanente essa invalidez terá de ser de tal monta que o segurado fique total e definitivamente incapacitado de exercer qualquer profissão mas que, para além disso, o obrigue a recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária. / VII – A incapacidade para o exercício de toda e qualquer profissão deve ser aferida em face da actividade anteriormente desenvolvida bem como das capacidades e habilitações literárias da pessoa segura.”). V. ainda, menos recentemente, os Acs. de 29/4/2010,  processo n.º 1583/06.7TBPRD.L1.S1, Rel. AZEVEDO RAMOS, de 27/5/2010, processo n.º 976/06.4TBOAZ.P1.S1, Rel. OLIVEIRA VASCONCELOS, e de 07/10/2010, processo n.º 1583/06.7TBPRD.L1.S1, Rel. SERRA BAPTISTA, sempre in www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, ARNALDO COSTA OLIVEIRA, “Seguro de vida…”, loc. cit., pág. 224, aderindo à expressão particularmente reveladora e adoptada pelas instâncias de recurso no caso resolvido pelo Ac. do STJ de 27/5/2010, cit. nt. anterior (“V – Haveria um desequilíbrio significativo da situação jurídica dos contraentes em detrimento do autor se, apesar dessa incapacidade, para se preencher aquele pressuposto, ainda fosse necessário que o segurado estivesse num estado de “praticamente defunto”, ou seja, num estado em que já não se podia lavar, alimentar, vestir-se, deslocar-se na sua residência e depender de terceira pessoa para a realização desses actos.”).
[10] ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 378.
[11] Assim: ARNALDO COSTA OLIVEIRA, “Seguro de vida…”, loc. cit., pág. 197.
[12] V. ainda a Norma Regulamentar de 6/2008-R, de 24 de Abril, e a Circular n.º 2/2010, de 25 de fevereiro, do (então competente) Instituto de Seguros de Portugal.
[13] Defendido por ARNALDO COSTA OLIVEIRA, “Seguro de vida…”, loc. cit., pág. 197.
[14] V. uma outra vez ARNALDO COSTA OLIVEIRA, “Seguro de vida…”, loc. cit., págs. 198-199.

[15] Seguimos a inspiração, para a “incapacidade permanente”, do conceito de FERNANDO OLIVEIRA SÁ, Clínica médico-legal da reparação do dano corporal em direito civil, APADAC/IMIC, Coimbra, 1992, págs. 90-91, 137 e ss (com desenvolvimento quanto ao parâmetro de avaliação do dano corporal e suas vertentes na reparação civil).
[16] FERNANDO OLIVEIRA SÁ, Clínica médico-legal… cit., pág. 94.

[17] No Preâmbulo do DL 352/2007, de 23 de Outubro, que aprova a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, refere-se que “no direito laboral, por exemplo, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinando” (sublinhado nosso).

A este propósito, essa distinção em face da “incapacidade de trabalho” foi clarificada pelo Ac. do STJ de 10/12/2019, cit. a nt. 5, o que também esclarece o nosso critério. Em relação à “medida da incapacidade permanente geral fixada, ou (…) o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” em confronto com essa “incapacidade para o trabalho”, “aquele representa o parâmetro de dano que corresponde à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, constitutiva de um défice que pode ter eventual repercussão nas actividades da vida diária e na actividade profissional, mas que é independente desta, sendo avaliado em relação à capacidade integral do indivíduo. E daí que um défice, ainda que fixado em menor percentagem daquele que, face ao acervo factual provado, foi fixado ao autor, possa ter como consequência uma incapacidade total para o trabalho habitual; ao passo que um fixado em maior percentagem pode não ter nessa actividade qualquer repercussão em termos de impedir o seu desempenho, ainda que com esforços acrescidos – tudo dependendo, afinal, das limitações de que a pessoa afectada tenha ficado a padecer e, bem assim, das tarefas e esforços que aquela actividade demande”.
[18] Como se decidiu no Ac. do STJ de 10/1/2017, processo n.º 3135/12.3TBVIS.C1.S1, Rel. JOÃO CAMILO, com Sumário (realce para o ponto II.: “Tendo-se provado que o mutuário segurado sofreu um acidente vascular cerebral em que ficou com uma taxa de incapacidade permanente para o trabalho de 80%, mas apurando-se que o mesmo exercia a data do sinistro as funções de gerente bancário e após o mesmo sinistro passou a desempenhar outras funções bancárias menos complexas e de menor responsabilidade e  afastado do contacto com o público, mas que, por isso, não sofreu alteração do seu nível remuneratório, não se encontra preenchida a referida cláusula contratual do seguro.”) disponível in Boletim Anual 2017. Secções Cíveis (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/civel2017.pdf).