LEGITIMIDADE
FILIAÇÃO
PROVA
REGISTO
Sumário


Sumário (da relatora):

1- A propositura de uma ação por quem não tem legitimidade para formular pedidos que pretende ver reconhecidos, uma vez que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, determina a absolvição do réu da instância, extinguindo-se o processo sem a decisão do juiz sobre o mérito da causa, e esta não adquire a força de coisa julgada material, mas de coisa julgada formal, apenas vinculativo dentro daquele processo, o que não impede a propositura de novas ações com o mesmo objeto. O oposto ocorre com a absolvição do pedido, que faz caso julgado material e por isso é mais gravoso para o Autor.
2- A proibição da reformatio in pejus impede que a decisão do recurso (ou a decisão que nele tenha origem, caso este anule a decisão recorrida) seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que o Recorrente possa obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão.
3- A esta figura se reporta o artigo 635º nº 5 do Código de Processo Civil, que dispõe: “os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”, conjugado com os limites do caso julgado.
4- Assim, não é possível ao tribunal de recurso absolver o Réu do pedido em recurso apresentado exclusivamente pelo Autor de decisão que absolveu o Réu da instância.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

- I- Relatório

Vem o presente recurso interposto do despacho saneador proferido nestes autos que absolveu os Réus da instância, por ilegitimidade.
O Autor, na presente ação, pediu: que seja reconhecido como único proprietário da referida metade indivisa dos prédios identificados em 32 do presente articulado, condenando-se os RR. a reconhecerem-no enquanto tal, a absterem-se de praticar quaisquer atos que envolvam os ativos mencionados em 32 do presente articulado e a restitui-los à esfera jurídica do A., com o cancelamento de todos os registos prediais, nomeadamente de aquisição, efetuados com base no falecimento e na abertura da herança de A. F. e nas subsequentes transmissões a favor dos RR. e de seus antecessores.
E invocou para tanto que Autor apurou que é filho de A. F. e por isso intentou ação com vista ao reconhecimento da paternidade, impugnando a paternidade registada. A proceder a mencionada ação judicial o A. será o único e universal herdeiro de A. F., e só a ele compete a titularidade de todos os direitos anteriormente detidos por aquele, pelo que desde já interpõe a presente ação para os RR. se absterem e inibirem de praticar quaisquer atos referentes ao património que integra a herança ilíquida e indivisa em disputa.
Regularmente citados os Réus contestaram, em súmula, invocando que apesar de se verificar a falta do pressuposto processual inominado em que se traduz o interesse em agir, determinante da absolvição da instância; invocando, além do mais, que apesar da ilegitimidade passiva, os Réus devem ser absolvidos do pedido, por este não ter viabilidade, visto que o Autor não alega factos de cuja verificação possa resultar a possibilidade de limitar os direitos dos réus sobre os bens da herança indivisa de quem são herdeiros legais, ao que acresce que o quinhão hereditário, na sequência de preterição de herdeiro legal, tem que ser composto em dinheiro após a anulação da partilha (art.2029.º, n.º 2, do Código Civil).
O Autor respondeu, em súmula, afirmando que tem interesse em agir, por esta ação ser o único meio legal para tornar eficaz do ponto de vista patrimonial o reconhecimento da sua efetiva filiação, evitando que, posteriormente, se tenha de desdobrar em atuações judiciais subsequentes com vista à repetição do indevido ou a reivindicação de terceiros adquirentes ou a obtenção de responsabilidade civil no caso de só acionar judicialmente os RR. após o reconhecimento formal da sua filiação na referida ação.
Foi, em audiência prévia, proferida a absolvição dos Réus da instância, com o fundamento, além do mais, que “enquanto não transitar em julgado sentença que julgue procedentes os pedidos formulados no processo n.º 5501/19.4T8VNF do Juízo de Família e Menores de V. N. de Famalicão, é manifesto que o Autor não tem a qualidade de herdeiro de F. A., pelo que também não é titular de um interesse juridicamente tutelado que conduza à procedência do pedido de reivindicação apresentado, dependente que está do reconhecimento da condição de herdeiro ou proprietário por sucessão.”

É desta decisão que recorre o Autor, apresentando as seguintes
conclusões

1 - O que efetivamente está em causa nos presentes autos é assegurar ao recorrente a tutela preventiva dos seus direitos, In casu, o acesso à herança de seu falecido Pai, que apenas depende do reconhecimento judicial da sua paternidade, considerando até o facto, comprovado nos autos (vd. requerimento e documento junto em 9/3/2021), do recorrente não ser filho do marido de sua Mãe, ainda que o Tribunal recorrido não pareça ter tido em consideração esse documento - relatório pericial efectuado no âmbito do processo de impugnação e de averiguação de paternidade que corre termos no Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão sob o nº 5501/19.4T8VNF.
2 - O objetivo da presente ação visa apenas acautelar os efeitos patrimoniais da quase certa declaração de paternidade, porquanto, a não ser assim, os prédios dos autos serão transferidos para terceiros, ficando inacessíveis e inalcançáveis pelo único e universal herdeiro do falecido A. F., o aqui recorrente.
3 - Não se diga que, uma vez reconhecida a paternidade, o recorrente poderá lançar mão de processo de anulação de partilha, uma vez que pretende-se obter uma tutela efetiva e com efeito útil e, por um lado, os terceiros formal ou materialmente adquirentes de tais prédios irão assumir a posição de que não estão, nem estarão, obrigados a aceitar voluntariamente o seu ingresso na herança em causa e, por outro lado, a eventual composição do quinhão hereditário do recorrente estará sempre dependente da solvência dos recorridos e da sua suficiência de meios para o efeito.
4 - Pretende-se, pois, uma tutela efetiva (que, no nosso ordenamento jurídico, tem dignidade constitucional) e não uma tutela meramente formal ou aparente que nada acautela, em especial os efeitos irreversíveis e irreparáveis da transferência pelos recorridos da titularidade dos prédios dos autos para terceiros, como, de resto, já tentaram fazer, como decorre do documento que agora se junta, face ao que consta do Douto Despacho na penúltima página da acta da audiência prévia a propósito do meio processual adequado aos fins visados pelo recorrente.
5 - Aliás, a sufragar-se a opção por uma providência cautelar, sempre teria que intentar a ação principal e quer nesta, quer na providência cautelar, persistiria a questão da ilegitimidade ativa tal como referida na Douta Decisão recorrida.
6 - Visando alcançar um efeito útil do reconhecimento da paternidade, o recorrente considera que os presentes autos constituem o meio processual adequado e apto aos fins em vista, face até à evolução que o processo de impugnação e averiguação de paternidade tem vindo a sofrer, o que, no limite, poderá sustentar a suspensão dos presentes autos, por pendência de causa prejudicial, ou seja até que a paternidade do recorrente esteja definida no processo respetivo (que já se encontra pendente e em fase de exames periciais, conforme consta dos autos).
7 - O recorrente aceita e reconhece que, nesta data, ainda não pode invocar a qualidade judicialmente reconhecida de único e universal herdeiro de seu Pai, mas também considera que essa circunstância não é impeditiva de formular as pretensões dos presentes autos e ainda que o fosse, também o seria para a providência cautelar aludida no Douto Despacho recorrido, sob pena de podermos estar em presença de um caso de denegação de Justiça, por não ser reconhecida e atribuída ao recorrente a tutela de que carece para prevenir a ocorrência de danos irreversíveis e irreparáveis.
8 - Importa ainda fazer referência da ponderação entre os efeitos da opção por uma absolvição como a de que se recorre e a opção pela tramitação subsequente dos presentes autos.
9 - Se a absolvição for confirmada e transitada em julgado, os recorridos (enquanto sobrinhos do autor da herança) poderão transferir e/ou onerar livremente o património que integra a herança do Pai do recorrente e, quando o recorrente vir a sua paternidade judicialmente reconhecida, já será tarde demais e não poderá aceder aos prédios dos autos (entretanto transferidos para terceiros), nem conseguirá qualquer anulação efetiva da partilha ou composição adequada do seu quinhão hereditário.
10 - Ao invés, se os recorridos (que são apenas sobrinhos do autor da herança e que nada dispenderam para aceder aos prédios dos autos) não puderem desfazer-se dos prédios dos autos, não sofrerão qualquer dano e apenas terão de aguardar que a paternidade seja averiguada no processo supra-identificado.
11 - Se, por mera hipótese académica, o Tribunal não vier a declarar a paternidade do recorrente como este pretende, os recorridos poderão vender os então seus prédios (de que nunca foram privados).
12 - Mas se o Tribunal declarar a ali peticionada paternidade do recorrente, o efeito útil (do ponto de vista patrimonial) de tal declaração não dependerá de ulteriores atuações judiciais, uma vez que o recorrente não terá de avançar com novas (e de eficácia duvidosa) ações para anular a partilha e exigir aos recorridos o pagamento do valor dos prédios entretanto já transferidos para terceiros.
13 - Pesando os prós e os contras de cada opção, considera o recorrente que a única forma de alcançar a Justiça e de salvaguardar os interesses e os direitos de todos os interessados é a de atribuir legitimidade ativa ao recorrente, de lhe reconhecer interesse em agir e de ordenar o prosseguimento dos presentes autos, eventualmente com uma suspensão por pendência de causa prejudicial até que a paternidade do recorrente esteja adicionalmente comprovada, sendo estas considerações aplicáveis quer aos presentes autos, quer à providência cautelar aludida no Douto Despacho recorrido.
14 - Quanto ao interesse em agir, sempre o recorrente reafirma o seguinte:
- O recorrente é filho de A. F., que morreu sem quaisquer outros herdeiros legitimários,
- Nesta data e do ponto de vista formal (e enquanto não for reconhecida a paternidade pendente), os recorridos são os seus únicos e universais herdeiros, A paternidade em questão está a ser averiguada no âmbito do processo nº 5501/19.4T8VNF (onde já foi efectuado o relatório pericial junto aos presentes autos em 9/3/2021),
- O acervo hereditário do falecido A. é constituído pelos bens identificados nos presentes autos,
- Sendo reconhecida a paternidade em apreço, será o recorrente o único e universal herdeiro de seu pai A. F..
15 - Parece, pois, manifesto o interesse em agir do recorrente, para que a sentença que venha a reconhecer a filiação tenha efeito útil, também em sede patrimonial, conforme Douta Jurisprudência supra-citada.
16 - O recorrente é filho de seu Pai A. F., e, enquanto tal, titular dos activos identificados nos autos, e, até que tal filiação seja judicialmente reconhecida, os recorridos devem aguardar por tal decisão sem praticar qualquer acto que onere ou disponha de tais activos, sendo manifesta a circunstância de o direito do recorrente carecer de tutela jurisdicional.
17 – O recorrente não dispõe de qualquer outro meio para obter a tutela dos seus direitos, não sendo a tutela efetiva de que carece compatível com uma providência cautelar.
18 – A opção por uma providência cautelar impõe a prova de que os recorridos pretendem vender ou onerar tais prédios, o que acaba por reconduzir-se a uma prova extremamente difícil de obter, pois os recorridos nada farão que possibilite ao recorrente essa prova, que será confrontado com o facto consumado, ou seja, quando tiver conhecimento de qualquer intenção dos recorridos já essa intenção terá sido concretizada e os prédios terão sido irreversivelmente transferidos para terceiros.
19 - É, pois, evidente o interesse em agir do A., constituindo a presente ação o único meio legal para tornar eficaz do ponto de vista patrimonial o reconhecimento da sua efetiva filiação, evitando a presente ação que, posteriormente, se tenha de desdobrar em atuações judiciais subsequentes com vista à repetição do indevido ou a reivindicação de terceiros adquirentes ou a obtenção de responsabilidade civil no caso de só acionar judicialmente os recorridos após o reconhecimento formal da sua filiação na referida ação e sempre sujeito a não conseguir obter efeito útil por eventual inexistência de ativos na esfera jurídica dos recorridos aquando dessa atuação judicial posterior.
20 - Não é, pois, confundível a presente ação e seus pressupostos factuais e de Direito, com aqueles que são aplicáveis a providências cautelares.
21 - São, pois, realidades e enquadramentos distintos a produção dos efeitos irreversíveis e irrecuperáveis para os direitos do recorrente e o perigo da sua produção e necessidade da sua prevenção, merecendo ambas a tutela do Direito, o que o recorrente busca nos presentes autos, para o que tem plena legitimidade, considerando até a forma como o recorrente configura a sua pretensão e a presente ação.
22 – O Douto Despacho recorrido viola o disposto nomeadamente no art.20 CRP, 30, 1092 e 1093 CPC.

Nestes Termos e no mais que for doutamente suprido por V. Exas, Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o Douto Despacho recorrido substituído por Douto Acórdão que determine o prosseguimento dos autos, podendo ainda determinar (por aplicação analógica dos arts. 1092 e 1093 CPC) a suspensão dos autos por pendência de causa prejudicial até ao trânsito em julgado do processo nº 5501/19.4T8VNF.”

Os Recorridos responderam, com as seguintes
conclusões:

“1. O A. é parte ilegítima pois, como foi doutamente decidido pelo Tribunal a quo, não “pode ser declarado titular do direito que invoca, nem os Réus podem ser condenados a reconhecê-lo ou a abster-se de praticar actos sobre os bens em questão nem, consequentemente, pode formular-se um juízo sobre a necessidade de o Autor recorrer à propositura de acção judicial, pois desconhece-se se os Réus, na hipótese de vir a ser declarado o vínculo de parentalidade entre F. A. e Autor, terão ou não actuação violadora dos interesses / direitos do Autor”.
2. Ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que o A. pudesse ser considerado parte legítima, sempre lhe faltaria o interesse em agir para a propositura da presente acção.
3. Caso a acção de investigação de paternidade fosse julgada procedente – o que apenas em tese abstracta se coloca – o A. teria ao seu dispor os instrumentos gerais do Direito Civil, mormente do Direito das Sucessões, para fazer valer a sua suposta posição jurídica relativamente à metade indivisa dos bens elencados na petição inicial.
4. Outrossim, o efeito jurídico pretendido, ou seja, o pedido, não só é legalmente impossível (portanto, ilegal), pois inexiste a possibilidade legal de limitar preventivamente, enquanto decorre a acção constitutiva referida supra, os poderes dos aqui Réus relativamente a metade da herança do A. F., como tal se revela absolutamente desnecessário e inútil.
5. A inviabilidade liminar da presente acção, por falta de interesse em agir, é manifesta, uma vez que o A. não alega quaisquer factos de cuja verificação possa resultar a possibilidade de constranger, restringir ou limitar os poderes de disposição ou de oneração dos Réus sobre os bens da herança indivisa do de cuius de quem são herdeiros legais.
6. Mesmo que a questão fosse postulada em sede de procedimento cautelar, que não foi evidentemente a via agora seguida pelo autor na presente acção, tão pouco foram invocados na petição inicial factos ou circunstâncias consubstanciadores de qualquer periculum in mora e fumus iuris (in casu, a possibilidade de o autor poder, com êxito, na referida ação que moveu aos ora réus no Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º de Processo 5501/19.4T8VNF, vir a ser considerado o filho do falecido A. F., tio dos ora réus) das quais pudesse resultar a perda ou a impossibilidade de fruir de um seu futuro (ou hipotético) quinhão hereditário relativo à herança deixada por óbito de A. F..
7. Mas ainda que o ora autor viesse a ser, mais tarde, considerado o filho do falecido (tio dos ora réus na acção supra mencionada cujos autos correm no Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão) – hipótese que apenas se admite agora por simples dever de correcto e diligente patrocínio judiciário –, sucede que o seu quinhão hereditário, na sequência de preterição de herdeiro legal, teria que ser composto em dinheiro após a anulação da partilha (art. 2029.º, n.º 2, do Código Civil).
8. Jamais, portanto, o ora A., hoje ou no futuro, se poderá arrogar na pretensão de impor limitações, restrições, constrições ou onerações de qualquer espécie aos poderes jurídicos que os herdeiros de A. F. desfrutam sobre os actuais bens da herança deste de cuiús.
9. Não goza (nem pode exibir), por conseguinte, o ora autor de qualquer carência de tutela jurisdicional para a pretensão que formula na presente acção.
10. Aliás, tal pretensão também chocaria de frente com a tutela da propriedade privada, cujo constrangimento ou ablação junto da esfera jurídica patrimonial dos seus titulares apenas poderá ser efetuado no quadro de determinados procedimentos cautelares, ações executivas, ações de insolvência e processos de expropriação por utilidade pública ou constituição de servidão administrativa (ou outras restrições de utilidade pública).
Assim se constata que a douta decisão recorrida não enferma de qualquer erro de julgamento.
Deve, por conseguinte, esta decisão recorrida ser inteiramente confirmada pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, julgando o presente recurso de apelação totalmente improcedente.”

- II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Assim, face ao alegado nas conclusões das alegações, é a seguinte a questão que cumpre apreciar:
1– se se verifica a exceção de ilegitimidade passiva.

- III- Fundamentação de Facto

Já foram descritos os factos processuais relevantes a decisão deste recurso.

- IV- Fundamentação de Direito

Importa verificar, por ser esse o conteúdo da decisão em apreço, se o Autor tem legitimidade (processual) para intentar a presente ação.
A legitimidade é um pressuposto processual ligado ao interesse substantivo, que decorre da posição da parte relativamente à relação jurídica do litigio.
Está já consagrada na lei a tese subjetivista, que defende que a legitimidade processual deve ser apurada em função da relação controvertida, tal como configurada unicamente pelo autor na petição inicial, como decorre do nº 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil.
E assim, nos termos dos nºs 1 e 3 deste artigo, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer; estes têm interesse direto na causa quando são sujeitos da relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor.
A legitimidade processual é uma aptidão para o processo, para certa ação, para se estar em juízo, face ao objeto processual nos termos em que foi construído pelo Autor e distingue-se da legitimidade substantiva, a qual tem que ver com a titularidade do direito ou de uma situação jurídica que permita o seu exercício e que respeita, já, ao mérito da causa.
Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 129, esclarece de forma límpida a noção de legitimidade processual: “Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida”.
A legitimidade é aferida em função da relação jurídica objeto da ação, tendo em conta os fundamentos da ação e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos, nos termos em que foi alegada pelo Autor.
A legitimidade ativa cabe ao titular da pretensão afirmada na ação e a passiva ao titular do interesse que se opõe a ação.
Isto posto, há que ter em conta que, tal como o Autor configurou a ação na petição inicial, é filho de A. F. e logo seu herdeiro e porque já intentou ação para a explicitação do seu progenitor, deve ser declarado que é o “único proprietário da referida metade indivisa dos prédios” que identifica e os Réus condenados a reconhecer tal direito e a abster-se de praticar atos relativamente a tais bens.
É certo que já no recurso, fazendo tábua rasa do primeiro pedido que formulara, o Autor vem afirmar que pretende assegurar uma “tutela preventiva dos seus direitos”, aceitando que “o acesso à herança de seu falecido Pai [que apenas] depende do reconhecimento judicial da sua paternidade”, e “acautelar os efeitos patrimoniais da quase certa declaração de paternidade”.
Mas na demarcação da causa de pedir, vale a forma como a ação foi configurada na petição inicial, que não pode ser livremente alterada (artigos 265º, 266º e 588º do Código de Processo Civil), nem nesta fase processual, pelo que esta alteração do exposto na petição inicial não é aqui de considerar.
O Autor pede em primeiro lugar que se declare que é proprietário de metade indivisa de determinados prédios, afirmando para tanto que tal direito lhe advém da qualidade de herdeiro de A. F., por ser seu filho, embora tal paternidade não esteja reconhecida e, como consequência, peticiona que os réus sejam condenados a absterem-se de praticar quaisquer atos que envolvam esses ativos.
Ora, numa ação em que se pretende que se declare a titularidade de um direito e se condenem outros a não agir de forma a prejudicar tal direito tem legitimidade ativa quem se arroga a titularidade do direito real.
No entanto, o próprio Autor invoca que (ainda?) não foi reconhecida a filiação que alega e que ainda se encontra registada a paternidade do seu presumido progenitor.
O artigo 1802º do Código Civil estabelece limitações à prova da filiação, impondo que, “salvo nos casos especificados na lei” a prova da filiação só pode fazer-se pela forma estabelecida nas leis do registo civil”. Por seu turno, o artigo 211º do Código do Registo Civil determina nos nºs 1 e 2 que “Os factos sujeitos a registo (como a filiação, ex vi artigo 1º, nº 1 alínea b deste diploma) e o estado civil das pessoas provam-se pelo acesso à base de dados do registo civil ou por meio de certidão” ou, nos casos em que não se mostre efetuado nenhum averbamento de mudança de sexo nem processo de adoção, pela disponibilização da informação constante da certidão em sítio da Internet.
Por outro lado, “A prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas ações de estado e nas ações de registo”, nem os factos registados podem ser impugnados em juízo sem que seja pedido o cancelamento dos registos correspondentes.
Acresce que a paternidade presumida é tida como uma paternidade verdadeira e efetiva, apenas deixando de o ser se for ilidida essa presunção pelo meio próprio e tem de constar do registo de nascimento do filho (só são admitidas menções que o contrariem, se a mãe o declarar e, no caso de filhos concebidos antes do casamento, também o pai o pode fazer).
Assim, é claro que neste caso o Autor não pode fazer valer direito que se baseie em facto que contraria a sua filiação tal como está (ainda?) estabelecida, não podendo fazer prova do contrário.
Na sentença defendeu-se que, porque apenas quem tiver legalmente reconhecida a qualidade de filho se pode arrogar tal qualidade, não tendo o Autor tal reconhecimento, nem se arrogando que tem a sua filiação estabelecida em termos diversos da que se mostra registada no momento em que pede a declaração do direito, nos termos em que desenha a ação, não é detentor dos atributos necessários para poder pedir a declaração de um direito fundado nessa qualidade de herdeiro.
Enfim, apesar de dizer que é filho biológico do autor da herança, não alega factos de onde resulte que possa ser juridicamente considerada tal filiação, pelo que lhe falha um pressuposto processual: a legitimidade que lhe adviria da qualidade de herdeiro (deve por isso dar-se a absolvição dos réus da instância).
No entanto, visto que o Autor se arroga titular do direito e dele beneficiário, entendemos que verificar se o mesmo existe ou não, se o pode ou não provar, é já uma questão de mérito.
Enfim, entendemos que o autor invocou um direito que lhe adviria da qualidade de filho e que não se mostra reconhecido e que, por isso, legalmente não tem, pelo que não é titular da relação jurídica que invoca. Tal determinaria a absolvição do pedido.
No entanto, nesta sede esta nunca poderia ocorrer, sob pena de se prejudicar o Recorrente. A proibição da reformatio in pejus impede que a decisão do recurso (ou a decisão que nele tenha origem, caso este anule a decisão recorrida) seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que o Recorrente possa obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão.
Por um lado, tal funda-se na ideia de que o tribunal não pode ir além do que foi peticionado, à necessidade de não desincentivar as partes a defenderem os seus direitos, por medo de saírem prejudicadas, conjugado com os princípios do caso julgado (embora se corra o risco de fomentar a interposição temerária de recursos).
A esta figura se reporta o artigo 635º nº 5 do Código de Processo Civil, que dispõe: “os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”, conjugado com os limites do caso julgado. Tem sido afirmado que esta condicionante à decisão do recurso tem como causa o facto de no nosso direito o recurso ter como objeto a reapreciação da decisão recorrida (na parte impugnada) e não um novo julgamento da causa.
Neste sentido, entre muitos e por recente, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça , de 03/03/2021 , no processo 1310/11.7TBALQ.L2.S1 , disponível em www.dgsi.pt (assim como todos os demais que sejam invocados sem menção de fonte): “A decisão do tribunal não pode ser mais desfavorável para o recorrente que a decisão impugnada, e da qual a parte contrária não recorreu, atento o princípio da proibição da “reformatio in pejus” (art.º 635º, n.º 5, do CPC: “.II. Se uma sentença proferiu condenação dos réus e se só estes interpuseram recurso, tendo a Apelação determinado a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, não pode a sentença que venha a se proferida posteriormente, agravar a condenação anterior uma vez que se encontram salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objecto de recurso.”
Esta limitação é aliás, muito clara nestes autos, visto que os réus, afirmando que se verificava uma exceção dilatória, defenderam expressamente que a mesma não impedia que fosse proferida decisão de mérito, e pediram a sua absolvição do pedido; apesar de só terem sido absolvidos da instância, conformaram-se com simples decisão de forma.
Com efeito, a propositura de uma ação por quem não tem legitimidade para formular pedidos que pretende ver reconhecidos, uma vez que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, determina a absolvição do réu da instância, extinguindo-se o processo sem a decisão do juiz sobre o mérito da causa, e esta não adquire a força de coisa julgada material, mas apenas de coisa julgada formal, apenas vinculativo dentro daquele processo, o que não impede a propositura de novas ações com o mesmo objeto. O oposto ocorre com a absolvição do pedido, que faz caso julgado material e por isso é mais gravoso para o Autor.
(Não obstante, foi discutido se não se deve impedir que a causa seja repetida quando também na segunda voltam a verificar-se as mesmas circunstâncias levam à mesma exceção dilatória, pelo menos quando o pressuposto lacunoso tenha ligação direta ao direito substantivo, como ocorre com a legitimidade, que depende da análise da relação jurídica substantiva (cf pág. 560, anotação 2 ao art. 289 do CPC, diz Lebre de Freitas apud acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 13/7/2017 no processo 2702/06.9TBALM-2))
Dúvidas não há, pois, que o primeiro pedido de declaração de propriedade de um direito não pode proceder (se ou enquanto não se alterar a situação registal).
Mas o segundo pedido também depende em absoluto deste direito: o Autor pretende que os atuais herdeiros se abstenham de praticar os atos inerentes a essa qualidade e que restituam os bens à esfera jurídica do Autor, baseando-se em filiação que não pode demonstrar neste processo.
No entanto, o Autor, assumindo já que o pedido não pode proceder sem que esteja reconhecida a sua filiação, pede agora que se suspenda a presente até a decisão onde aquela está a ser discutida. Esta suspensão, como também o mesmo reconhece, ao pretender, neste processo comum, a aplicação de normas destinadas a regular o processo especial de inventário, não tem cobertura legal direta. Mas também a não tem indireta, visto que ali se está a fazer a partilha de bens e nestes o que é peticionada é a simples declaração de um direito que (ainda?) não existe, por se fundar num facto que o Autor não pode demonstrar nestes autos e a condenação dos Réus na omissão de atos com base nesse direito (por ora?) inexistente.
O Autor afirma, em sede de recurso, que pretende acautelar o seu direito, mas a presente ação não é um procedimento cautelar, esse sim admissível para defesa de interesses emergentes de decisões a proferir em ações constitutivas (artigo 362º nº 2 do Código de Processo Civil), nem invoca um risco concreto, sério e grave a tal direito que esteja iminente.
Tudo posto, nem o recurso, nem a ação podem proceder.

- V- Decisão

Por todo o exposto, julga-se o recurso improcedente e em consequência mantém-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo apelante (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).

Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves