PRINCÍPIO DA ADESÃO
CULPA DO LESADO
CULPA DO SINISTRADO
CULPA EXCLUSIVA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Sumário


I. Se é certo que relevantes interesses públicos estão na base da consagração do princípio da adesão obrigatória do pedido civil à acção penal, o legislador não foi indiferente aos direitos e interesses dos lesados, permitindo-lhes, nas situações taxativamente previstas nas al. a) a i) do n.º 1 do art. 72.º do CPP, a dedução do pedido de indemnização civil, em separado.
II. No caso dos autos, estando em causa pedido indemnizatório inferior ao capital mínimo obrigatório (art. 64.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 291/2007, de 21/08), a acção deve ser interposta apenas contra a seguradora, verificando-se, assim, a situação de excepção ao princípio da adesão prevista no art. 72.º, n.º 1, al. f), do CPP.
III. A interpretação da norma do art. 570.º do CC em conformidade com o DUE (cfr. art. 13.º, n.º 3 da Directiva Consolidada 2009/103/CE), impõe que, na apreciação da verificação de culpa do lesado, não se atribua relevância ao conhecimento pelo mesmo lesado de que o condutor do veículo sinistrado conduzia sob a influência de álcool.
IV. Havendo que distinguir entre causalidade do acidente e causalidade dos danos, em face da factualidade provada, não merece censura a ponderação feita pela Relação, segundo a qual: por um lado, o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do tractor que, ao sair da faixa de rodagem, entrando na valeta e passando por um aqueduto com 40 cm, desrespeitou regras do CE; e, por outo lado, a vítima mortal, mãe dos autores, ao aceitar ser transportada em veículo que não se destinava ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança nem arcos de protecção, contribuiu causalmente e com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos, na proporção de 30%.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, BB, CC e DD interpuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Generali – Companhia de Seguros, S.A. (actual Generali Seguros, S.A.) , com fundamento em responsabilidade civil emergente de acidente de viação, pedindo a condenação da R. a pagar-lhes, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 60.000,00, mais €10.000,00 pelo sofrimento da sua mãe entre o momento do acidente e a sua morte; e a pagar à 2.ª A. quantia não inferior a €15.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos na sequência do óbito da sua mãe. Tudo acrescido de juros legais desde a citação.

Alegam para tanto, e em síntese, que:

- No dia … de junho de 2014, pelas 18 horas e 26 minutos, na E.M. …, a cerca de 1200 metros da placa indicativa da localidade  “.......”, freguesia  ....., concelho  ......., circulava o tractor agrícola de matrícula ..-..-HI, no sentido ......./....., conduzido por EE; durante a sua marcha saiu da faixa para o lado direito saindo da estrada; e as três pessoas que transportava na caixa de carga, a saber, FF, GG e HH, esta, mãe dos AA., com o solavanco originado pelo desnível da estrada e o sítio por onde passou a circular, provocou a queda dos passageiros, o seu ferimento e por consequência a morte da referida HH por paragem cardíaca respiratória; tendo o condutor de seguida abandonado o local; antes de falecer, a mãe dos AA. teve dores e previu a morte, vivendo momentos de grande sofrimento físico; tinha 69 anos, era saudável, alegre e cheia de vida; com o seu falecimento, o direito à indemnização pelos danos sofridos transferiu-se para a esfera patrimonial dos AA., seus únicos e universais herdeiros. Os quais ficaram tristes, abalados e revoltados com a morte da sua mãe.

Violou o condutor normas do Código Estrada, pelo que é o único responsável pelo acidente, agindo com culpa. A responsabilidade transferiu encontra-se transferida para a R. Generali, Companhia de Seguros, S.A, mediante o contrato de seguro com o n.º de Apólice ....890.

Contestou a R., por excepção, alegando a caducidade da acção com base no disposto no art. 298.º, n.º 2 do Código Civil, uma vez que os AA. não deduziram o pedido de indemnização civil no processo crime, não o podendo deduzir agora em separado. E também por impugnação, não contrariando em nada o circunstancialismo alegado pelos AA., mas contrapondo: que o mini reboque não tinha qualquer dispositivo que prendesse os ocupantes ao veículo; que os mesmos ocupantes sabiam que esse mini reboque não se destinava ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança nem de arco de protecção; que o condutor, no momento do acidente, apresentava uma taxa de alcoolémia de 2,38/g/l, o que lhe causava diminuição de reflexos; que os passageiros sabiam do estado do condutor; que, mesmo assim, a falecida mãe dos AA. aceitou ser transportada nessas circunstâncias, pelo que só ela agiu com culpa ou culpa exclusiva. Finalmente alegou serem os valores peticionados excessivos.

Requereu a intervenção acessória do condutor EE. Para tal, além do mais, alegou a possibilidade de vir a exigir o reembolso do montante pago na eventual condenação, através do direito de regresso que fosse também demandado.

O qual, foi demandado conforme requerido não tendo contestado.

Por decisão de 05.11.2018, foi admitida a intervenção acessória provocada.

Por sentença de 5 de Janeiro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«a) - Julgar a alegada exceção perentória da caducidade da ação improcedente e não provada;

b) - condenar a ré nos exatos termos do pedido, à exceção no segmento do direito à vida que se reduz para € 40.000,00 e assim, decide-se condenar a ré a pagar aos autores:

Pela perda do direito à vida da sua mãe a quantia de € 40.000,00; mais € 10.000,00 pelo sofrimento da sua mãe ocorrido no período entre o acidente e a sua morte. A pagar a cada um dos autores, AA, CC e DD, a quantia de € 10.000,00 a cada um dos autores, a título de danos de natureza não patrimonial; E á autora BB, também a título de danos de natureza não patrimonial a quantia de €15.000,00. Juros moratórios contados da decisão.»

Inconformada, a R. Seguradora interpôs recurso para o Tribunal da Relação …, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 15 de Outubro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e absolvem a ré seguradora da instância por incompetência do tribunal em razão da matéria referente à autora AA, e condenam-na a pagar:

1. Ao autor CC a quantia de 18.750€.

2. Ao autor DD a quantia de 18.750€.

3. À autora BB a quantia de 22.250€. No resto mantem-se o decidido.

Custas a cargo dos autores e ré na proporção de decaimento.»


2. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1 - É admissível o recurso de revista quanto à fixação dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 3 in fine do CPC, uma vez que foram violados os artigos 364.º do Código Civil e artigo 607.º, n.º 5 do CPC, que exigem documento autêntico para prova dos factos.

2 - Da certidão judicial junta pela Ré na audiência prévia não consta a acusação, nem resultam narrados os factos a que se refere a acusação deduzida no processo n.º 38/14.0GDBGC e, por isso, não faz prova quanto aos factos originadores da responsabilidade civil em apreço.

3 – Ao abrigo dos artigos 363.º, n.º 1, 364.º, n.º 1, 369.º e 383.º do Código Civil e artigo 607.º, n.º 5 do CPC, para que Tribunal a quo pudesse considerar provados os factos 8-A e 8-B, seria necessário e indispensável que fosse junta aos autos certidão judicial com a acusação proferida no processo-crime.     

4 – Dada a ausência de certidão judicial nesse sentido, nada podia ter sido dado como provado a respeito da existência de processo-crime referente aos factos originadores da responsabilidade civil em apreço nos presentes autos.

5 – Não tendo sido provados os factos 8-A e 8-B, o tribunal cível é materialmente competente para conhecer do pedido indemnizatório da Autora AA, ao abrigo dos artigos 71.º e 72.º, n.º 1 al. i) do CPP e artigo 342.º, n.º 1 do CC.

6 – Ainda que se considerem provados os factos 8-A e 8-B, uma vez que foi claramente ultrapassado o prazo de oito meses a contar da notícia do crime para a dedução da acusação, é aplicável a alínea a), do n.º 1 do artigo 72.º do CPP.

7 – Ao abrigo do artigo 9.º, n.º 2 e 3 do Código Civil, não se pode interpretar o artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do CPP no sentido de o lesado apenas poder deduzir pedido de indemnização junto do tribunal cível no período decorrido entre o final do prazo de 8 meses a contar da notícia do crime e a dedução da acusação.

8 – A Autora AA, conjuntamente com os seus irmãos, deduziu o pedido indemnizatório dos autos apenas e só contra a seguradora, pessoa com responsabilidade meramente civil e, por isso, à luz da alínea f) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, sempre podia fazê-lo no foro civil, em separado de processo-crime.

9 - Uma vez que o valor do pedido dos autos ascende a €115.000,00, sempre a Autora podia reclamar no foro civil a referida indemnização, ao abrigo da al. g) do n.º 1 do dito artigo 72.º do CPP que ainda se mantém em vigor e deve ser interpretada no sentido de:

a) se considerar que o lesado poderá optar pelo tribunal civil para peticionar a indemnização dos danos sofridos na sequência de um crime, quando o valor do pedido seja igual ou superior a €30.000,01, uma vez que o tribunal coletivo tinha competência para julgar as questões de facto nas ações de valor superior à alçada dos Tribunais da Relação.

b) se considerar que o lesado poderá optar pelo tribunal civil para peticionar a indemnização dos danos sofridos, quando o processo crime correr termos no Juízo Local Criminal e, se atento o seu valor (superior a €50.000,00), o julgamento do pedido de indemnização civil competisse aos Juízos Centrais Cíveis.

10 - O tribunal civil é, portanto, competente para julgar o pedido e o direito de acção da Autora AA, não se verificando a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria referente à autora AA.

11 – Nos termos do artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, para que haja repartição da responsabilidade entre o lesante e o lesado, é necessário que a conduta censurável imputável à vítima se mostre causal da produção do acidente ou ao agravamento dos seus danos.

12 - “A mera verificação da violação das referidas normas estradais, ainda que revestindo natureza contra-ordenacional, não é por si só suficiente para estabelecer o nexo causal com a produção do acidente. Torna-se, pois, necessário indagar se tal comportamento ilícito e culposo consubstancia, em concreto, causa adequada do evento ocorrido.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2018 (Processo 595/14.1TVLSB.L1.S1).

13 - O responsável pela ocorrência do acidente foi o condutor do tractor, que saiu da faixa de rodagem para a berma e depois para um terreno que ladeava a via. O risco criado em abstrato pela sinistrada não se materializou no evento gerador da responsabilidade civil em apreço – o despiste do veículo - e, nessa medida, não pode ser considerada culpada na produção dos danos.

14 – No acórdão proferido, o Tribunal da Relação …., para justificar a culpa da lesada no agravamento dos danos, limitou-se a tecer considerações de carácter genérico e conclusivo, não ponderando o nexo de causalidade desse comportamento com o agravamento dos seus danos.

15 – Sem a consideração da casualidade concreta do comportamento da sinistrada para a produção ou agravamento dos danos do acidente, a consideração de existência de culpa da lesada e as proporções fixadas pela Tribunal da Relação …. afiguram-se arbitrárias.

16 – Para aplicação do artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, seria necessário que a lesada tivesse produzido efectivamente um acto dinâmico (uma actividade propriamente dita) que tenha agravado os danos resultantes do acidente e que a tornavam responsável perante terceiro, caso o dano atingisse este último. O que não aconteceu nos presentes autos.

17 – As lesões provocadas pelo acidente poderiam ter ocorrido, ainda que a lesada fosse transportada num veículo destinado ao transporte de passageiros e que cumprisse todas as normas de segurança.

18 – Não se encontra preenchido o requisito do nexo de causalidade entre o comportamento da lesada e o resultado, pelo que, não é possível assacar qualquer responsabilidade à sinistrada e, nessa sequência, tal como entendeu o Tribunal da 1.ª instância, “a culpa do tratorista é exclusiva”.

19 - Apesar de ser ilícito, o acto da lesada – aceitar ser transportada na caixa de carga de um tractor - é prática comum e não é gravemente censurado ou reprovado.

20 - Considerando que a lesada contribuiu para o agravamento dos danos – o que não se aceita -, a proporção da culpa deverá ter por base um critério de justiça, tendo em conta a gravidade das culpas do lesante e da lesada e o resultado delas resultantes.

21 – A existir alguma divisão de responsabilidades sempre deveria fixar-se em 95% para o condutor do veículo e 5% para a mãe dos Autores, uma vez que a lesada não contribuiu para o evento gerador de responsabilidade civil, que sempre cabia ao condutor verificar se estavam reunidas as condições para a condução do veículo e que o acto imputável à lesada, não obstante ser ilícito, não é gravemente censurado.

22 - Caso o alto Tribunal entenda fixar a culpa da lesada em proporção inferior à julgada pelo Tribunal a quo, não se pode diminuir a indemnização fixada pela perda do direito à vida, na proporção da culpa da lesada, uma vez que se estaria a “aplicar a redução da indemnização em duplicado”.

23 - Ao julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pela Ré, fez o tribunal a quo incorrecta interpretação dos factos e do direito, tendo violado o disposto nos artigos 7.º, 9.º, n.º 2 e 3, 363.º, 364.º, 369.º e 383.º do Código Civil, artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, artigos 71.º e 72.º, n.º 1, alínea a), f), g) e i) do Código de Processo Penal e artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil.»

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido.

A Recorrida contra-alegou, invocando que a questão suscitada pelos AA. a respeito dos factos aditados 8-A e 8-B não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça, e, de qualquer forma, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do acórdão recorrido.

A R. Seguradora interpôs recurso subordinado, por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional, concluindo nos termos seguintes:

«1.ª Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que este decidiu que a lesada apenas deveria ser responsabilizada em 30% pelos danos decorrentes do acidente, em vez de julgar totalmente procedente a excepção peremptória de total exclusão da indemnização em virtude de culpa da lesada, invocada pela Ré.

DA ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO DE REVISTA SUBORDINADO

Como Recurso de Revista Subordinado normal

2.ª A decisão proferida pelo Tribunal a quo é passível de recurso, porquanto não se verifica dupla conforme prevista no artigo 671.º, n.º 3 do CPC, dado que, para além de as decisões serem distintas, a respectiva fundamentação é essencialmente diferente: a primeira instância fundamentou a sua decisão exclusivamente no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos, considerando o acidente e as consequências dele decorrentes totalmente imputáveis à conduta do Interveniente Acessório, e o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base no instituto da culpa do lesado, previsto no artigo 570.º do Código Civil, embora em concurso com um facto ilícito e culposo do Interveniente Acessório.

3.ª O STJ já se pronunciou acerca da inexistência de dupla conforme, precisamente em virtude de a fundamentação ser essencialmente diferente, em casos semelhantes ao da situação sub iudice, de que são exemplos os acórdãos de 10/09/2019 (proferido pela 6.ª Secção, na revista n.º 5699/11.0TBMAI.P1.S1, sendo relator José Raínho), 20/12/2017 (proferido pela 6.ª Secção, na revista n.º 4485/13.7TBVLC.P1.S1, sendo relatora Maria Olinda Garcia) e de 05/05/2016 (proferido pela 7.ª Secção, na revista n.º, em sede 36/12.9TBVVD.G1.S1, sendo relator Távora Victor).

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso por via excepcional]

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

12.ª A Ré de Contestação, invocou a excepção peremptória de total exclusão da indemnização e da responsabilidade em virtude da culpa da lesada, pelas condições de transporte que esta assumidamente aceitou e, bem assim, por ter aceitado fazer-se conduzir pelo Interveniente Acessório em estado de embriaguez.

13.ª O Tribunal a quo entendeu ter existido culpa da lesada, no agravamento dos danos, na proporção de apenas 30%, imputando os restantes 70% da responsabilidade ao Interveniente Acessório, decisão contra a qual a Ré se insurge.

14.ª HH e os demais ocupantes, ao fazerem-se transportar nas condições descritas nos factos provados 1 a 3 e 28 a 36, violaram ostensivamente o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 54.º, nºs 3 e 4, 82.º, n.º 1, 106.º, n.º 2, al. a) e 108.º, n.º 1, todos do Código da Estrada, o que constitui presunção natural de culpa.

15.ª A violação de tais normas pode ser assacada a HH, atendendo aos factos provados 34 a 36, 38 e 39, dos quais resulta que aquela conhecia todas as condições precárias em que se faria transportar e, mesmo assim, assumiu o propósito de ser transportada naquele mesmo veículo e por aquele mesmo condutor.

16.ª Era exigível a um bom pai de família colocado naquelas concretas situações de facto que não se fizesse voluntariamente transportar naquela caixa de carga, por ser previsível a forte probabilidade da ocorrência de qualquer circunstância fortuita que pudesse vir a originar uma oscilação do mini-reboque, uma travagem brusca, uma perda de controlo do veículo.

17.ª Verificou-se assim um facto culposo da lesada – concretamente, os factos provados sob os nºs 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 39 e 40 – que provocou os danos verificados, devendo a situação sub iudice subsumir-se ao disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Cvil.

18.ª Em face dos factos 1 a 3, 6, 34, 38 e 39, é também por demais evidente que o facto de a lesada ter assumido o firme propósito de se fazer transportar naquele veículo e ser conduzida por um indivíduo com o estado de embriaguez do Interveniente Acessório constitui, também, um facto que demonstra um grau de culpa elevado.

19.ª Um bom pai de família colocado perante tais circunstâncias de facto teria decidido não se deixar conduzir por um indivíduo em condições de visível embriaguez, pois anteciparia como possível ou provável que os efeitos do álcool na condução levassem a uma perda de controlo da viatura e à ocorrência de um grave acidente, como o que sucedeu.

20.ª O conhecimento do estado de embriaguez do Interveniente Acessório e a decisão de HH de, ainda assim, ser por ele conduzida, aliado às precárias condições de segurança em que se fazia transportar, demonstram, de forma inequívoca, que os factos culposos que concorreram para a produção dos danos sofridos foram particularmente graves e grosseiros, o que também deve ser apreciado nos quadros do artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil.

21.ª Se é certo que o Interveniente Acessório incorreu num facto ilícito e culposo, é também certo que ficou provado que os danos verificados são exclusivamente imputáveis aos factos culposos da própria lesada, como decorre do facto 40.

22.ª Se HH se tivesse feito transportar num veículo automóvel, sentada em bancos devidamente presos ao veículo e destinados ao transporte de passageiros e protegida por cinto de segurança, mesmo que ocorresse a perda de controlo do veículo pelo Interveniente Acessório e a saída para fora da faixa de rodagem, nunca ocorreria uma oscilação como a que a caixa de carga sofreu e nunca se verificaria a morte nem qualquer dano corporal minimamente grave.

23.ª A tudo isto acresce a sujeição à condução por parte de condutor com uma taxa de alcoolemia de 2,83 g/L, que fazia prever como muito provável a ocorrência de um desfecho deste tipo.

24.ª Ao abrigo do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, considerando a concorrência de um facto culposo da lesada para a produção dos danos, o seu grau de culpa e a contribuição do mesmo para as consequências verificadas, deve a indemnização ser totalmente excluída.

25.ª O douto acórdão do Tribunal a quo violou o disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, por considerar a lesada responsável pelos danos decorrentes do acidente em apenas 30%, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que julgue totalmente procedente, por provada, a excepção de culpa da lesada e, consequentemente, considere totalmente excluída a indemnização, absolvendo, em consequência, a Ré da totalidade do pedido.»


Os AA. contra-alegaram, concluindo da seguinte forma:

«1 - Ambas as instâncias concluíram pela responsabilidade civil do Interveniente Acessório por actos ilícitos e com base na mesma fundamentação, pelo que existe dupla conforme entre as duas decisões.

2 - A única diferença entre as decisões proferidas é que, enquanto o Tribunal de 1.ª instância considerou que o acidente se deveu, exclusivamente, ao condutor do tractor, o Tribunal a quo considerou que, para além da culpa do Interveniente Acessório, a lesada também teve alguma culpa.

3 – Uma vez que existe dupla conforme entre as duas decisões, quanto à responsabilidade do lesante, não poderá ser peticionada a redução/exclusão da responsabilidade do deste, por força do artigo 671.º, n.º 3 do CPC.

4 – As situações relatadas nos acórdãos citados pela seguradora para fundamentar a "revista subordinada" são distintas da dos autos, uma vez que naqueles existiu uma alteração da fundamentação de fundo, e, por isso, não podem ser confundidas com o nosso caso.

5 - Considerando que, no que concerne à culpa do Interveniente Acessório, a decisão recorrida é igual à da 1.ª instância e assenta na mesma fundamentação (existindo dupla conforme nesta parte) e que a decisão do Tribunal a quo foi mais favorável aos recorrentes do que a decisão da 1.ª instância, não é admissível o recurso de revista interposto pela Ré.

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso por via excepcional]

16 – Ainda que assim não se considere, para que haja exclusão da indemnização é necessário a conduta do sinistrado se revele como a única causa típica do resultado ou, pelo menos, que se revele como a causa essencialmente determinante do acidente, que desculpabilize a actuação do Interveniente Acessório.

17 - A responsabilidade pelas infrações que respeitem às condições de circulação do veículo (nomeadamente as enumeradas pela Ré) cabe ao proprietário do mesmo, ou seja, ao Interveniente Acessório (conforme resulta do ponto 2 dos factos provados), pelo que se presume a culpa deste na produção do acidente.

18 - Por outro lado, ainda que se considere que a lesada violou normas estradais, tal não é suficiente para estabelecer o nexo causal com a produção do acidente, sendo necessário indagar se o comportamento da lesada consubstancia causa adequada do resultado.

19 - O responsável pela ocorrência do acidente foi o condutor do tractor, que saiu da faixa de rodagem para a berma e depois para um terreno que ladeava a via. O risco criado em abstrato pela sinistrada não se materializou no evento gerador da responsabilidade civil em apreço – o despiste do veículo - e, nessa medida, não pode ser considerada culpada na produção dos danos.

20 - Para que a lesada seja responsabilizada nos danos que lhe advieram, é essencial que o acidente esteja descrito de forma a que seja clara a causalidade entre actuação da lesada e os danos resultantes, o que nem o Tribunal a quo, nem a Ré fizeram.

21 - O facto de a lesada aceitar ser transportada na caixa de carga do trator, não é, de per si, suficiente para estabelecer o nexo causal com os danos produzidos, muito menos que a lesada seja “a causa única” dos danos.

22 - As lesões provocadas pelo acidente poderiam ter ocorrido, ainda que a lesada fosse transportada num veículo destinado ao transporte de passageiros e que cumprisse todas as normas de segurança.

23 – Perante o exposto, conclui-se que a Ré não contribuiu de qualquer forma para a produção do acidente ou para o agravamento dos seus danos.

24 – Por sua vez, o responsável pela ocorrência do acidente foi o condutor do tractor, que saiu da faixa de rodagem para a berma e depois para um terreno que ladeava a via.

25 – Uma vez que o condutor do tractor circulava, no momento do acidente, com uma taxa de alcoolemia de 2,83 g/L, o que constitui a prática de um crime (artigo 292.º do Código Penal), presume-se, também por esta via, a culpa do Interveniente Acessório.

26 – Ainda que existisse a violação de normas estradais pela lesada, não se pode, de forma alguma, desculpabilizar a actuação do Interveniente Acessório, que cometia um crime, que saiu da faixa de rodagem e se despistou.

27 – O facto de o condutor do veículo ter ingerido bebidas alcoólicas – sem se saber ao certo a quantidade de álcool ingerida - não o torna, por si só, incapaz de conduzir o veículo (artigo 81,º, n.º 2 a contrario do Código da Estrada).

28 – Uma vez que a lesada não sabia a quantidade de álcool ingerida pelo Interveniente Acessório, não sabia que este não estava em condições de conduzir o tractor.

29 – Acresce que, ao abrigo do artigo 135.º, n.º 3 do Código da Estrada, cabia ao condutor do veículo (aqui Interveniente Acessório) a responsabilidade pela verificação das condições de segurança para o exercício da condução e ao proprietário do veículo (que é o mesmo Interveniente Acessório) a responsabilidade de verificação das condições de segurança do veículo.

30 – Pelo que, sempre cabia a EE verificar se estava ou não apto a conduzir o veículo (uma vez que tinha ingerido bebidas alcoólicas) e proibir a circulação do veículo, por não cumprir as condições de segurança.

31 – Conclui-se que o único responsável pela produção do acidente é o condutor do veículo segurado pela Ré, não se podendo assacar qualquer responsabilidade à lesada pela produção do acidente.

32 – Do exposto resulta que a lesada HH não teve qualquer culpa na produção do acidente, nem no agravamento dos danos produzidos e, nessa sequência a indemnização pelos danos sofridos não pode ser excluída, nem mesmo reduzida.

33 - Ainda que se considere que a actuação da lesada (ao aceitar ser transportada nas condições em que o foi) agravou os danos produzidos, conforme decidido pelo Tribunal a quo – o que não se aceita e meramente se equaciona -, não será de excluir totalmente a indemnização.

34 - Para que a indemnização seja excluída é necessário:

1) que a actuação da lesada tenha contribuido de forma muito intensa para o resultado danoso;

2) que a culpa do condutor do veículo seja leve ou com escassa relevância.

35 – Admitindo que a lesada tem alguma responsabilidade – o que não se aceita -, uma vez que, a vítima não produziu qualquer acto que contribuísse para a produção do acidente, a responsabilidade limitar-se-á pelo facto de aceitar “ser transportada nas condições que sabia que não lhe garantiam segurança no caso de um eventual acidente”.

36 – Assim, se a lesada não teve qualquer influência no despiste, não se pode considerar que a sua actuação contribuiu de forma tão acentuada para o resultado que exclua a responsabilidade da Ré.

37 - Por outro lado, não se pode considerar, de forma alguma, que foi de diminuta relevância a falta imputável ao condutor do veículo, que não proibiu a circulação do veículo, que este conduzia o tractor com uma taxa de alcoolemia de 2,83 g/L – o que constitui a prática de um crime -, que saiu da faixa de rodagem, sem motivo aparente, e se despistou.

38 - De modo que a Ré sempre será responsável civilmente perante os aqui Autores e, nessa sequência, devem improceder as alegações de revista apresentadas pela Ré.»

Terminam pugnando pela inadmissibilidade do recurso subordinado e, subsidiariamente, pela sua improcedência.


3. Quanto à questão da (in)admissibilidade do recurso da R. Seguradora, suscitada pelos AA. Recorridos, há que ter presente que, de acordo com a orientação prevalecente, ainda que não unânime, da jurisprudência deste Supremo Tribunal, é de integrar no conceito de dupla conformidade entre as decisões das instâncias, a situação – que se verifica nos autos – em que a Relação decidiu em sentido quantitativamente mais favorável ao Recorrente.  

Estando em causa recurso subordinado, e sendo o recurso principal dos AA. admissível, poderia ser de convocar a aplicabilidade do regime do n.º 5 do art. 633.º do CPC. A questão, porém, foi resolvida, em sentido negativo, pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2020 (publicado no Diário da República, I.ª Série, de 30.01.2020):

«O recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do art.º 671.º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o n.º 5 do art.º 633.º do mesmo Código».

Temos, pois, que – de acordo com a orientação fixada por este AUJ – o recurso da R. Seguradora apenas será admissível se, como invocado pela Recorrente, ocorrer fundamentação essencialmente diferente entre as decisões das instâncias (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC).

Compulsada a fundamentação de ambas as decisões, verifica-se que, efectivamente, a sentença atribuiu ao condutor do veículo acidentado a culpa exclusiva pelo sinistro e consequentes danos, enquanto o acórdão da Relação entendeu que a culpa da vítima, a falecida mãe dos AA., contribuiu causalmente para o dano sofrido, reduzindo proporcionalmente a indemnização fixada.

Considera-se que tal configura fundamentação essencialmente diferente, pelo que se admite o recurso subordinado.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1.º- No dia … de junho de 2014, pelas 18 horas e 26 minutos, na E.M. …, a cerca de 1200 metros da placa indicativa da localidade ".......", freguesia ...., concelho ......, circulava o trator agrícola de matrícula ..-..-HI, no sentido ......./......

2.º- O referido veículo era conduzido pelo seu proprietário, EE, solteiro, agricultor, residente na .........., n.º.., ........., .... ..... - .......

3.º- Na caixa de carga que o trator trazia acoplada à retaguarda eram transportadas três pessoas: FF, GG e HH, mãe dos Autores.

4.º- Durante a marcha, o veículo saiu da estrada pelo lado direito e passou com as rodas da frente e da retaguarda por um aqueduto que se encontrava na valeta direita com a profundidade de 40 centímetros em relação à via.

5.º- Apesar de tal desnível, o trator prosseguiu em linha reta e só se imobilizou na margem do lado direito, num campo de castanheiros, em cota paralela em relação à faixa de rodagem, a cerca de 6,90 metros de distância da faixa de rodagem e a 37,40 metros do “ponto fixo inalterável” fixado na Participação de Acidente de Viação – manilhas da passagem para o dito souto -, com a frente direcionada para a localidade......

6.º- Após a imobilização do veículo, o condutor ausentou-se do local.

7.º- Em consequência do despiste, dos três passageiros que seguiam na caixa de carga do trator apenas foi projetado para fora da mesma FF enquanto as duas mulheres ficaram na Caixa.

8º- A mãe dos Autores faleceu devido às lesões vertebro-medulares e abdominais provocadas pelo embate de que foi vítima, na sequência do despiste do veículo– CFR. relatório da autópsia, de fls. 58 e ss.

8-A: O acidente de viação em causa nos presentes autos e as respetivas consequências deram origem a um processo-crime, que correu termos sob o n.º 38/14.0GDBGC, no Juízo Local Criminal ....... [artigo 2.º da Contestação];

- 8-B: A Autora AA figura no referido processo-crime como lesada e foi notificada do teor da acusação e para, querendo, deduzir o pedido de indemnização civil em requerimento articulado, na pessoa do seu Ilustre Mandatário em 20/02/2017 e pessoalmente em 21/02/2017 [artigo 4.º da Contestação].

9º- À data do acidente, a mãe dos Autores, nasceu no dia .. de agosto de 1942, e era uma pessoa saudável, muito alegre e cheia de vida e antes de falecer viveu momentos de sofrimento físico, angústia.

17.º- Os autores, são os seus únicos e universais herdeiros – CFR. habilitação de herdeiros FLS 40 e ss.

18.-ºOs Autores sempre tiveram com a sua mãe uma relação de grande cumplicidade e companheirismo.

19.ºA sua mãe sempre foi a sua melhor amiga e confidente, tendo com ela uma relação muito próxima.

20.º- A 1ª, o 3º e 4º Autores residem em França, e sempre que podiam levavam-na consigo, passando ela temporadas em França em casa dos filhos ou vinham a Portugal visitá-la.

21.º- A 2.ª Autora era de todos os irmãos a que mais próxima era da mãe, pois reside em Portugal.

22.º- A 2ª Autora mantinha um contacto diário com a sua mãe, e levava-a para sua casa todos os fins-de-semana e sempre que ela não estava em França com os outros Autores.

23.º- Os Autores ficaram muito tristes, abalados e revoltados com a morte de sua mãe.

24.º- Os Autores sentem muito a falta de sua mãe, companheira e amiga de toda a vida.

25.º- A notícia da morte da mãe foi para os Autores um grande choque.

26.º- Os Autores ficaram inconsoláveis, e ainda hoje, volvidos mais de três anos após o acidente, choram de saudade da mãe, principalmente a 2ª Autora, que mantinha um contacto mais frequente e presencial com a sua mãe.

27.º- Os passageiros transportados na caixa do trator, nomeadamente a mãe dos Autores, nada puderam fazer para evitar as consequências do embate e ficaram feridos.

28 - O referido mini reboque, com 1,60 metros de comprimento, 1,20 metros de largura e 0,70 metros de altura, e era de caixa aberta.

29 - Destinava-se exclusivamente ao transporte de pequenas mercadorias.

30 - Era ladeado por ferros transversais, que se elevavam da caixa numa altura de aproximadamente 30 cm, em três dos quatro lados, exceto na retaguarda.

31 - O mini reboque não possuía qualquer documento de identificação ou matrícula.

32 - Não se destinava ao transporte de passageiros, pois que não possuía acentos, cintos de segurança ou arcos de proteção.

33 - No dia do acidente, HH estava com FF, GG e EE nas festas em honra ....., na localidade com este nome.

34 - A dada altura, HH, FF e GG decidiram regressar à localidade em que são residentes, ......., fazendo-se transportar no mini reboque acoplado ao trator HI, conduzido por EE.

35 - HH e os outros dois ocupantes faziam-se transportar sentados à exceção do FF numa tábua improvisada, colocada sobre o mini reboque, sem cinto de segurança ou qualquer outro dispositivo que os prendesse ao veículo.

36 - Quando decidiram fazer-se transportar no mini reboque, HH e os demais ocupantes bem sabiam que o mesmo não se destinava ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança ou de arcos de proteção,

37 - O condutor do trator, EE, circulava, no momento do acidente, com uma taxa de alcoolemia de 2,83 g/L.

38 - HH e os demais ocupantes bem sabiam que o condutor do trator tinha ingerido bebidas alcoólicas.

39 - Ainda assim, HH e os demais ocupantes assumiram o propósito de ser por ele conduzidos e transportados num mini reboque com as condições supra descritas.

40 - Os danos sofridos por HH apenas ocorreram em consequências das condições do transporte que esta assumidamente aceitou.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, os presentes recursos têm por objecto as seguintes questões:

Recurso dos AA.

- Os factos 8-A e 8-B, aditados pela Relação, não podiam ser dados como provados com base na certidão judicial junta aos autos pela R.;

- O tribunal cível deve ser considerado competente para conhecer o pedido formulado pela A. AA;

- Existe culpa exclusiva do condutor na produção do acidente ou, subsidiariamente, a repartição da culpa deve ser de 95% para o condutor do veículo e 5% para a vítima mortal, mãe dos AA..

Recurso da R. Seguradora

- Existe culpa exclusiva da falecida mãe dos AA. pelo dano sofrido.

Constata-se que a questão da culpa na produção do acidente e dos anos é suscitada por ambas as partes pelo será apreciada em conjunto.

No que se refere à questão da (in)competência do tribunal cível para conhecer do pedido formulado pela A. AA, esclareça-se que, ainda que o recurso dos AA. seja único, como a decisão de absolvição da instância apenas afecta aquela A., apenas ela tem interesse em recorrer pelo que só ela pode recorrer (cfr. art. 631.º, n.º 1, do CPC).


6. Alegam os AA. que os factos 8-A e 8-B, aditados pela Relação, não podiam ser dados como provados com base na certidão judicial junta aos autos pela R., uma vez que o seu conteúdo é insuficiente para o efeito.

Tendo em conta que a prova de que o acidente de viação em causa nos presentes autos, e respectivas consequências, deram origem a um processo-crime, se faz, necessariamente, por certidão (que a R. tem legitimidade para requerer – art. 89.º, n.ºs. 1 e 4, do Código de Processo Penal) do teor de auto de notícia do acidente e, ante o seu recebimento pelo Ministério Público, da consequente abertura de inquérito-crime, ou do teor do despacho de acusação, ambos documentos autênticos como resulta do confronto do disposto nos arts. 243.º e 283.º do CPP, com o disposto no art. 363.º, n.ºs. 1 e 2, do Código Civil, encontramo-nos perante uma das hipóteses em que, nos termos da parte final do art. 674.º, n.º 3, do CPC, a decisão de facto é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Contudo, a apreciação de tal questão poderá ficar prejudicada pela resolução da questão da (in)competência do tribunal cível para conhecer do pedido de indemnização formulado pela A. AA, se se vier a afirmar tal competência com fundamento para o qual, tanto a existência com os contornos do processo-crime, sejam irrelevantes.

Vejamos pois.


7. O tribunal a quo entendeu ser o tribunal cível incompetente, em razão da matéria, para apreciar o pedido da A. AA porque, constando esta do processo-crime como lesada e tendo sido notificada da acusação e da possibilidade de deduzir pedido cível, não o fez no processo-crime.

Insurge-se a A. contra esta decisão, invocando ser aplicável o regime do art. 72.º do Código de Processo Penal que, em determinadas hipóteses, admite excepções ao princípio da adesão consagrado no art. 71.º do mesmo Código, vigorando em tais hipóteses o princípio da opção.

A este respeito, socorremo-nos da explanação feita no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.05.2020, proferido no proc. n.º 900/19.4T8CTB-A.C1.S1 e consultável em www.dgsi.pt[1]:

«Como refere M. Maia Gonçalves [2: In Código de Processo Penal, Anotado, 10ª ed. , nota 5 ao art. 71º, pág. 214], «A prática de uma infracção criminal é possível fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes: uma acção penal, para julgamento, e, em caso de condenação, aplicação das reacções criminais adequadas, e uma acção cível, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. …»

Estamos, neste último caso, perante um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime que, por força do princípio da adesão consagrado no art. 71º [3: Cuja constitucionalidade  foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão  nº 451/97, que  considerou que esta norma  não viola o  direito fundamental de acesso aos tribunais], do CPP, tem de ser deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

Tal como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, este artigo, contempla, como regra, o princípio da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal e, como exceção, a dedução do pedido civil fora do processo penal, que apenas é permitida nas situações, expressamente, previstas no art. 72º do CPP.

Trata-se de uma opção de política legislativa que foi consagrada no nosso sistema jurídico-penal, atenta a complexidade do facto material (infração penal) que dá origem à ação penal e à ação cível e a necessidade de assegurar uma posição de equilíbrio entre os interesses públicos, subjacentes ao princípio da adesão obrigatória, e os interesses dos lesados.

Como sublinha Henriques Gaspar [4: In “Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, pág. 228], a lei processual acolheu o sistema da interdependência das duas ações ou da adesão, que tem como elemento essencial a obrigatoriedade de  juntar a acção civil  à acção penal, permitindo que a jurisdição penal se pronuncie  sobre o objecto da acção civil, mas cujos objetos, «não obstante  a identidade  do facto material que constitui  a referência  dos pressupostos respetivos, mantém-se  distintos e autónomos, valendo para cada um as regras substantivas [5: No plano substantivo, a autonomia da ação civil enxertada  no processo penal está expressa  no  art. 129º  do C. Penal, onde se afirma que «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil»] e, mesmo processuais [6: A autonomia da ação civil enxertada no processo penal revela-se « nomeadamente, na suscetibilidade de intervenção e pessoas com mera responsabilidade civil, nos conceitos e estatutos processuais  de demandante (lesado), demandado e intervenientes na ação civil enxertada, força de caso julgado da ação civil, partes civis e penal da sentença, potencial maior amplitude do direito de recurso da parte civil da sentença, atentas, respetivamente, as normas dos artigos 73º, nºs 1 e 2, 74, nºs 1 e 3, 84º, 377, nº1 e 400º, nº3, do CPP». Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in, “Comentário  do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª edição, 2011, pág. 229 e Cristina Dá Mesquita, in, “ Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal», in “Julgar Online”, janeiro de 2018, pág. 4], que são próprias da natureza de cada um».

E fê-lo, quer por razões práticas de economia processual, que exigem que «o mesmo tribunal  e no mesmo processo, decida sobre os danos originados pelo mesmo facto», quer por razões de segurança e certeza jurídicas,  de celeridade e de proteção das vítimas, na medida em que a «adesão constitui um mecanismo processual apto a promover o resultado de uniformização de julgados», a «permitir  uma realização  mais rápida e eficaz  do direito do lesado à indemnização» e «a assegurar  uma eficaz protecção  a muitas  vítimas de uma infracção penal» [7: Neste sentido, Henriques Gaspar in “Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, págs. 228 e 229].

 Mas se é certo terem sido estes os interesses públicos que ditaram a regra da adesão obrigatória da ação civil à ação penal, a verdade é que, como salienta ainda Henriques Gaspar [8:   In “Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, pág. 228], este princípio «mostra-se temperado por exceções no sentido da alternatividade ou da opção».

Isto porque, tal como já se deixou dito, o legislador não foi indiferente aos direitos e interesses dos lesados, permitindo-lhes, nas situações taxativamente  previstas nas alíneas a) a i) do nº1 do art. 72º do CPP, a dedução do pedido de indemnização civil, em separado, ou seja, a instauração, perante o tribunal civil, de ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime[negritos nossos]

No caso dos autos, alegam os AA. (rectius, cfr. supra, ponto 5. do presente acórdão, alega a A. AA) que a situação dos autos se subsume às previsões das alíneas a), f) e g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP.

Se a aplicabilidade das invocadas alíneas a) e g) depende dos contornos do próprio processo-crime, e portanto se encontra, também ela, dependente da resolução da questão enunciada no ponto 6. do presente acórdão, já a eventual aplicação do regime da alínea f) depende apenas dos contornos da presente acção.

Prescreve o art. 72.º, n.º 1, alínea f), do CPP:

«1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

(...)

f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;

(...)».

Nas palavras de Henriques Gaspar (anotação ao art. 72.º, in AAVV, Código de Processo Penal Comentado, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 240):

«A adesão justifica-se pela economia de tempos e actos permitida pelo aproveitamento do processo penal, contrariando a finalidade da adesão acrescentar complexidade dos meios de processo civil, que seja exclusivamente causada pelo pedido cível; a adesão tem como finalidade auxiliar a reparação dos danos do lesado pelo crime e não dificultar ou adensar a complexidade do processo penal. A alínea f) não impõe a adesão nos casos de haver responsáveis meramente civis ou em que tenha sido provocada a intervenção principal do arguido; por isso, se o lesado tiver demandado nos tribunais civis o arguido e pessoas com responsabilidade meramente civil, ou apenas estas e tiver sido provocada a intervenção principal do arguido, não poderá ser suscitada a incompetência dos tribunais cíveis por não ser caso de adesão obrigatória.»

A situação paradigmática é precisamente a das acções cíveis, como a presente, em que é demandada a seguradora, cuja responsabilidade é meramente civil. Na verdade, prescreve o art. 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto:

«1 - As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:

a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;

b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.

2 - Nas acções referidas na alínea a) do número anterior pode a empresa de seguros, se assim o entender, fazer intervir o tomador do seguro.

(...)».

Estando em causa, na presente acção, pedido indemnizatório inferior ao capital mínimo obrigatório (n.º 1, alínea a)), a acção deve ser interposta apenas contra a seguradora. Trata-se, assim, de uma situação típica de aplicação da excepção do princípio da adesão prevista no, supra referido, art. 72.º, n.º 1, alínea f), do CPP. Neste sentido, cfr. Lopes do Rego, “As partes civis e o pedido de indemnização deduzido no processo penal”, in Revista do Ministério Público,1989, págs. 61-70, Manuel Simas Santos / Leal Henriques, Código de Processo Penal, anotado, I Vol., 3ª ed., Rei dos Livros, Lisboa, 2008, pág. 502, e Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 107.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ver, entre outros, a decisão do supra referido acórdão de 07.05.2020 (proc. n.º 900/19.4T8CTB-A.C1.S1).

No caso dos autos, conclui-se, assim, pela competência do tribunal cível para conhecer do pedido formulado pela A. AA, confirmando-se que fica prejudicada a resolução da questão da suficiência ou não da certidão judicial junta aos autos para o tribunal a quo dar como provados os factos 8-A e 8-B.


8. Relativamente a atribuição da culpa pelo acidente e pelos danos, invocam os AA. que tal culpa deve ser atribuída exclusivamente ao condutor do tractor acidentado e que, se assim não se entender, deve ser repartida em 95% para o condutor e apenas 5% para a vítima mortal, mãe dos AA.. Por seu turno, a R. Seguradora pretende que a culpa pelos danos sofridos seja imputada exclusivamente à vítima.

Quid iuris?

Relevam os seguintes factos provados:

27 - Os passageiros transportados na caixa do trator, nomeadamente a mãe dos Autores, nada puderam fazer para evitar as consequências do embate e ficaram feridos.

28 - O referido mini reboque, com 1,60 metros de comprimento, 1,20 metros de largura e 0,70 metros de altura, e era de caixa aberta.

29 - Destinava-se exclusivamente ao transporte de pequenas mercadorias.

30 - Era ladeado por ferros transversais, que se elevavam da caixa numa altura de aproximadamente 30 cm, em três dos quatro lados, exceto na retaguarda.

31 - O mini reboque não possuía qualquer documento de identificação ou matrícula.

32 - Não se destinava ao transporte de passageiros, pois que não possuía acentos, cintos de segurança ou arcos de proteção.

33 - No dia do acidente, HH estava com FF, GG e EE nas festas em honra ........, na localidade com este nome.

34 - A dada altura, HH, FF e GG decidiram regressar à localidade em que são residentes, ..........., fazendo-se transportar no mini reboque acoplado ao trator HI, conduzido por EE.

35 - HH e os outros dois ocupantes faziam-se transportar sentados à exceção do FF numa tábua improvisada, colocada sobre o mini reboque, sem cinto de segurança ou qualquer outro dispositivo que os prendesse ao veículo.

36 - Quando decidiram fazer-se transportar no mini reboque, HH e os demais ocupantes bem sabiam que o mesmo não se destinava ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança ou de arcos de proteção,

37 - O condutor do trator, EE, circulava, no momento do acidente, com uma taxa de alcoolemia de 2,83 g/L.

38 - HH e os demais ocupantes bem sabiam que o condutor do trator tinha ingerido bebidas alcoólicas.

39 - Ainda assim, HH e os demais ocupantes assumiram o propósito de ser por ele conduzidos e transportados num mini reboque com as condições supra descritas.

40 - Os danos sofridos por HH apenas ocorreram em consequências das condições do transporte que esta assumidamente aceitou.

Consideremos os termos em que o acórdão recorrido apreciou a questão:

«6. Se é de julgar procedente a exceção perentória deduzida pela apelante no que respeita à exclusão da indemnização em virtude da culpa da vítima ao aceitar ser conduzida no atrelado do trator.

O tribunal recorrido considerou que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do trator onde era transportada a vítima, porque violou o Código da Estrada ao sair da faixa de rodagem, entrando na valeta e passando por um aqueduto com 40 cm, que provocou um solavanco no trator, causando um impacto forte no corpo da vítima, que sofreu várias lesões ao nível da coluna vertebral e abdómen, que lhe causaram a morte. Excluiu qualquer culpa à vítima, no acidente, porque a responsabilidade pela condução da viatura pertencia ao dono do trator segurado na ré, não tendo aquela interferido na condução da viatura.

A ré seguradora/apelante defende que a vítima contribuiu para a produção dos danos, uma vez que o atrelado do trator onde era transportada não tinha condições para o transporte de pessoas, e tinha consciência deste facto. Assaca-lhe, assim, a culpa exclusiva nos danos produzidos pelo acidente, cuja indemnização deverá ser excluída ao abrigo do disposto no artigo 570 n.º 1 do C. Civil.

No caso em apreço a vítima sabia que o atrelado do trator não tinha condições de segurança para transportar pessoas, sendo ilegal, e apesar disso, assumiu o risco de se deslocar no mesmo para casa. Daí que o seu comportamento, ao aceitar ser conduzida numa viatura que não podia transportar pessoas, estando destinada aos afazeres agrícolas, seja ilícito e censurável, tendo contribuído para o agravamento dos danos.

Na verdade, o acidente, em si, não foi suficientemente grave para provocar os danos físicos na vítima. Eles ocorreram porque o veículo não estava adequado a transportar pessoas, não possuindo amortecedores e banco para suportar o impacto do solavanco, causador dos ferimentos, que acabaram por ser fatais.

E julgamos, que neste caso, a culpa da lesada, no agravamento dos danos, seja de 30%. E isto porque incumbia ao dono do trator proibir a sua condução. Mas não se pode excluir de todo o comportamento da vítima que acedeu a ser transportada nas condições que sabia que não lhe garantiam segurança no caso de um eventual acidente, pelo que é culpada no agravamento dos danos nos termos do artigo 570 n.º 1 do C. Civil.» [negritos nossos]

Insurgem-se os AA. contra esta decisão, alegando essencialmente que:

- “O responsável pela ocorrência do acidente foi o condutor do tractor, que saiu da faixa de rodagem para a berma e depois para um terreno que ladeava a via” pelo que o “O risco criado em abstrato pela sinistrada não se materializou no evento gerador da responsabilidade civil em apreço – o despiste do veículo - e, nessa medida, não pode ser considerada culpada na produção dos danos”

- Para aplicação do artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, seria necessário que a lesada tivesse produzido efectivamente um acto dinâmico (uma actividade propriamente dita) que tenha agravado os danos resultantes do acidente e que a tornavam responsável perante terceiro, caso o dano atingisse este último”

- “As lesões provocadas pelo acidente poderiam ter ocorrido, ainda que a lesada fosse transportada num veículo destinado ao transporte de passageiros e que cumprisse todas as normas de segurança”

Por sua vez, alega a R. Seguradora no essencial o seguinte:

- “Era exigível a um bom pai de família colocado naquelas concretas situações de facto que não se fizesse voluntariamente transportar naquela caixa de carga, por ser previsível a forte probabilidade da ocorrência de qualquer circunstância fortuita que pudesse vir a originar uma oscilação do mini-reboque, uma travagem brusca, uma perda de controlo do veículo”

- “Verificou-se assim um facto culposo da lesada (...) que provocou os danos verificados, devendo a situação sub iudice subsumir-se ao disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil”

- “[É] também por demais evidente que o facto de a lesada ter assumido o firme propósito de se fazer transportar naquele veículo e ser conduzida por um indivíduo com o estado de embriaguez do Interveniente Acessório constitui, também, um facto que demonstra um grau de culpa elevado.”

 Em relação aos argumentos invocados, comecemos por esclarecer que o conhecimento, pela lesada, que o condutor do veículo ingerira bebidas alcoólicas não permite, por si só, concluir que a lesada soubesse que esse consumo tinha sido excessivo. Mais importante, porém, é ter presente que, em qualquer caso, o conhecimento de que a condução de um veículo automóvel foi feita sob a influência de álcool não é oponível aos lesados passageiros nem, concomitantemente, aos herdeiros destes.

Com efeito, de acordo com o regime de direito da União Europeia respeitante ao seguro automóvel obrigatório (que aqui se cita pela versão da Directiva Consolidada 2009/103/CE, do Parlamento e do Conselho):

«Cada Estado-Membro toma as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro que exclua os passageiros dessa cobertura pelo facto de terem conhecimento ou deverem ter tido conhecimento de que o condutor do veículo estava sob a influência do álcool ou de qualquer outra substância tóxica no momento do acidente seja considerada nula no que se refere a esses passageiros (art. 13.º, n.º 3)

Quer isto dizer que a interpretação da norma do art. 570.º do Código Civil português em conformidade com o direito da União Europeia, impõe que, na apreciação da verificação de culpa do lesado, não se atribua relevância ao conhecimento pelo lesado de que o condutor do veículo sinistrado conduzia sob a influência de álcool.

Deste modo, na ponderação da existência de culpa da vítima mortal apenas releva que tenha sido provado que “Quando decidiram fazer-se transportar no mini reboque, HH e os demais ocupantes bem sabiam que o mesmo não se destinava ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança ou de arcos de proteção” (facto 36) e que “Os danos sofridos por HH apenas ocorreram em consequências das condições do transporte que esta assumidamente aceitou” (facto 40).

Sob a epígrafe “Responsabilidade pelas infrações”, prescreve o art. 135.º do Código da Estrada:

«1 - São responsáveis pelas contraordenações rodoviárias os agentes que pratiquem os factos constitutivos das mesmas, designados em cada diploma legal, sem prejuízo das exceções e presunções expressamente previstas naqueles diplomas.

(...)

3 - A responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:

a) Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução;

b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infrações que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infrações referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor;

c) Locatário, no caso de aluguer operacional de veículos, aluguer de longa duração ou locação financeira, pelas infrações referidas na alínea a) quando não for possível identificar o condutor;

d) Peão, relativamente às infrações que respeitem ao trânsito de peões.

(...)».


Em face da factualidade provada, não merece censura a ponderação feita pela Relação, segundo a qual, por um lado, o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do tractor que, ao sair da faixa de rodagem, entrando na valeta e passando por um aqueduto com 40 cm (cfr. factos provados 4.º a 8.º), desrespeitou regras do Código da Estrada; e, por outo lado, a vítima mortal, mãe dos AA., contribuiu causalmente e com culpa para o agravamento dos danos por si sofridos, na proporção de 30%.

Deve, pois, distinguir-se entre a causalidade do acidente, imputável à conduta do condutor do veículo (cfr. art. 135.º, n.º 1 e n.º 3, al. a), do CE), e a causalidade dos danos, imputável tanto à conduta do condutor como à conduta da própria vítima (cfr. art. 135.º, n.º 1, do CE). Sendo de recusar tanto a perspectiva da R., ao invocar a irrelevância da conduta do condutor para o dano de perda da vida da mãe dos AA., como a perspectiva dos AA., ao invocarem a irrelevância da conduta da mesma vítima para o resultado verificado.

Conclui-se, assim, pela não verificação de erro de julgamento nesta parte.


9. Aqui chegados, porém, tendo-se concluído supra pela competência do tribunal cível para conhecer do pedido formulado pela A. AA, e não vigorando no recurso de revista a regra da substituição (cfr. art. 679.º, in fine, conjugado com o art. 665.º, ambos do CPC), devem os autos retornar ao tribunal a quo para fixação da indemnização devida à dita A. AA.


10. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso da Ré e parcialmente procedente o recurso dos Autores, na parte relativa ao pedido formulado pela Autora AA, decidindo-se:

a) Revogar parcialmente a decisão do acórdão recorrido, declarando-se ser o tribunal cível competente para conhecer do pedido formulado por AA e determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para fixação da correspondente indemnização;

b) No mais, manter a decisão do acórdão recorrido.


Custas no recurso da Ré pela Recorrente.

Relativamente ao recurso dos Autores, custas na acção e nos recursos a final, em função da decisão definitiva quanto ao valor da indemnização.


Lisboa, 14 de Julho de 2021


Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (relatora)

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[1] Relatado pela Senhora Conselheira Maria Rosa Tching, primeira Adjunta no presente acórdão.