INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BEM COMUM
BEM PRÓPRIO DE UM DOS CÔNJUGES
Sumário

I – O inventário é o meio processual próprio para a partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges, mesmo quando há desacordo sobre a natureza (bem comum ou bem próprio) do único bem a partilhar;
II - Sendo certo que o pagamento da indemnização de antiguidade é desencadeado pela rotura contratual, é a constituição do vínculo laboral e o seu desenvolvimento que justificam e moldam essa compensação indemnizatória;
III – No regime de bens de comunhão de adquiridos, será comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento e têm de ser excluídos da massa comum os bens que resultam do esforço, trabalho ou diligência de, apenas, um deles, ou seja, aqueles para cuja obtenção o outro cônjuge não deu qualquer contributo relevante;
IV - Nesse enquadramento, será de considerar bem próprio a indemnização de antiguidade recebida por um dos cônjuges na parte proporcional ao tempo em que a relação laboral decorreu fora do período da comunhão conjugal; será comum na parte restante.

Texto Integral

Processo n.º 2579/20.1T8GDM.P1
Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Gondomar (Juiz 2)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
B… instaurou no Cartório Notarial da Dra. C…, sito em Valongo, processo de inventário (a que foi atribuído o n.º 6171/2018) ao abrigo do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, alegando que foi casada com D… sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado em 16.03.2018 (decisão transitada na mesma data) no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que, sob o n.º .../2018, correu termos na 2.ª Conservatória do Registo Civil do Porto, e que existem bens comuns a partilhar.
Em 08.07.2019, a requerente apresentou a relação de bens e como verba única do activo indicou o seguinte:
«Indemnização paga ao Inventariado D… em 25/01/2015 pelo E… na sequência de rescisão, por mútuo acordo, do contrato de trabalho com aquela instituição bancária --------------------------- € 76.739,49».
Em 21.01.2020, realizou a conferência preparatória, na qual o interessado D… não esteve presente nem se fez representar, o que inviabilizou deliberação sobre a composição de quinhões prevista no artigo 48.º, n.º 1, do RJPI.
Após realização da conferência de interessados (na qual também não esteve presente, nem se fez representar, o ora recorrente), a Sra. Notária proferiu, em 26.02.2020, o seguinte despacho determinativo da forma da partilha:
«1- Procede-se a Inventário por divórcio de B… e D… que foram casados sob o regime da comunhão de adquiridos.
2- O casamento foi dissolvido por dissolvido por divórcio por decisão de 16-03-2018, proferida pela 2ª Conservatória do registo Civil do Porto, transitada na mesma data
3-Realizou-se a conferencia de interessados não tendo sido apresentadas propostas de adjudicação.
Procede-se à partilha do património conjugal do seguinte modo:
Forma da Partilha
O valor do bem comum divide-se em duas partes iguais, que constitui a meação de cada um dos interessados.
No preenchimento dos quinhões, não existindo propostas para a adjudicação do bem relacionado, e na falta de acordo dos interessados, atender-se-à ao principio do equilíbrio na distribuição com a atribuição em compropriedade.
Notifiquem-se os interessados de que podem impugnar este despacho, querendo, nos termos do artigo 57º, nº4 da Lei 23/2013, para o tribunal da 1ª Instância, no prazo de trinta dias a contar da notificação.»
Foi elaborado o mapa da partilha, sendo a única verba relacionada, a mencionada indemnização no montante de € 76.739,49, dividida em partes iguais, cabendo a cada interessado a quantia de € 38.369,75.
Só então, na sequência da notificação nos termos e para o efeito do disposto no artigo 57.º, n.º 4, do RJPI, o recorrente dirigiu à Sra. Notária, em 01.09.2020, requerimento em que alega a nulidade do mapa da partilha por preterição das normas imperativas contidas nos artigos 1789.º, 1733.º, n.º 1, al. d), do Código Civil, o que obstaria à prolação da sentença de homologação da partilha.
No entanto, em 18.09.2020, a Sra. Notária remeteu o processo ao Juízo de Família e Menores de Gondomar «para homologação da partilha, nos termos do 66/1 da Lei nº23/2013, de 5 de Março (RJPI)».
Com data de 25.09.2020, foi proferida a seguinte sentença:
«Nestes autos de inventário judicial requeridos para partilha do património comum do casal constituído por B… e D…, na sequência da respectiva dissolução por divórcio, homologo pela presente sentença a partilha do mapa de 20/07/2020 adjudicando aos interessados os bens que nele, expressa e respectivamente, lhes foram designados para composição das respectivas meações.
Custas a cargo dos interessados, em parte iguais (art. 80 do Regime Jurídico do processo de Inventário).
Registe e notifique.»
Pelas 18:12:01 desse mesmo dia, o recorrente dirigiu àquele Juízo o seguinte requerimento:
«D…, Interessado e Requerido nos autos de processo de inventário 6171/2018, agora remetido a V.ª Ex.ª para homologação da partilha, vem oferecer e requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:
1.º
Em 01.09.2020, após a notificação da Senhora Notária, para requerer qualquer rectificação ou reclamar contra qualquer irregularidade do mapa de partilha, datada de 21.07.2020, em plenas férias judiciais, pronunciou-se o ora Interessado requerendo a declaração da nulidade do mapa e da partilha,
Porquanto,
2.º
A composição dos quinhões constante do mapa de partilha é totalmente inválida e ilegal, por preterição das normas imperativas dos art.º 1789.º, 1733.º, n.º1, al. d), todos do CPC, bem como do princípio da especialidade ínsito no art.º 546.º do Código de Processo Civil e no art.º 2.º, n.3, do RJPI, tudo conforme documento que se junta sob o n.º1.
3.º
Da pronúncia e reclamação apresentada, o ora Interessado não obteve qualquer resposta por parte daquele cartório ou sequer a contraparte se pronunciou, tendo sido o processo remetido para decisão homologatória da partilha,
4.º
Sem sequer ter sido, também, o ora Interessado notificado da remessa do processo para a presente instância, pois que só o soube por consulta electrónica directa na plataforma inventarios.pt.
Ora,
5.º
A reclamação apresentada não foi alvo de decisão pelo cartório, desconhecendo até o ora Requerido se da remessa do processo consta o requerimento apresentado em 01.09.2020.
6.º
Assim, porque o mapa e o despacho determinativo e a própria partilha se encontram em preterição de normas imperativas, que determinam a nulidade dos actos praticados e dos despachos proferidos, que não permitem derrogações, e que são de conhecimento oficioso, requer-se a V.ª Ex.ª se digne não homologar a partilha.»
Foi, então, proferido o seguinte despacho (com data de 29.09.2020):
«Tendo-se esgotado o poder jurisdicional com a prolação da sentença, não pode o Tribunal se pronunciar sobre o requerido.
Devolva.»
Perante essa abstenção, o interessado D… veio recorrer da sentença homologatória da partilha, sintetizando assim os fundamentos da apelação:
………………………………
………………………………
………………………………
A requerente/recorrida contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo) por despacho de 26.01.2021.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre das conclusões transcritas, a questão fundamental que o recorrente submete à apreciação deste tribunal de recurso consiste em determinar qual a natureza da indemnização por si percebida como compensação pela cessação, por mútuo acordo, do contrato de trabalho que mantinha com uma instituição bancária (o “E…”, quando deixou de operar em Portugal): bem próprio ou bem que integra o património comum do casal?
Previamente, haverá que decidir a arguição de nulidades que o recorrente descortinou, quer na sentença, quer na tramitação do processo.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e vicissitudes processuais relevantes para a decisão são os que constam do antecedente relatório.

2. Fundamentos de direito
2.1 Nulidade da sentença
A lei estabelece os parâmetros a que devem obedecer os actos processuais e o não cumprimento das exigências legais acarreta consequências diversas em função da natureza do acto decisório.
É sabido que existe um regime específico para as sentenças, previsto nos artigos 607.º, 608.º e 609.º do Código de Processo Civil[1] e um regime para os demais actos processuais, previsto nos artigos 195.º e segs. do mesmo compêndio normativo.
A inobservância de algum ou alguns desses parâmetros pode originar a nulidade da sentença, estabelecendo o n.º 1 do artigo 615.º um elenco de causas de nulidade e o n.º 4 do mesmo artigo o regime da sua arguição[2].
Assim, a nulidade da sentença (ou do acórdão proferido em recurso) é cominada para o excesso de pronúncia e para a omissão de pronúncia sobre as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal, ou, nas palavras da lei, a sentença é nula quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» (alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º)
Tal como, na primeira instância, são as partes a circunscrever o thema decidendum através do(s) pedido(s) que formulam e da causa de pedir, também em sede recursiva é o recorrente quem delimita o objecto do recurso através das alegações (mais exactamente, das respectivas conclusões), sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC).
Uma questão, para este efeito, é um aspecto de um problema sobre o qual pode recair uma decisão autónoma.
Qual é a questão sobre a qual o tribunal terá omitido uma decisão?
Segundo o recorrente, antes da remessa dos autos de inventário para homologação judicial da partilha, arguiu a sua nulidade por esta violar as normas imperativas contidas nos artigos 1789.º, 1733.º, n.º 1, al. d), e 1724.º do Código Civil, mas, nem o “jugador notarial”, nem o tribunal emitiram pronúncia sobre essa questão. A partilha acabou por ser judicialmente homologada sem que o tribunal se pronunciasse sobre o requerimento apresentado, pelo que a decisão homologatória da partilha «padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.1, al. d), do CPC, dado que não conheceu de todas as questões que lhe foram acometidas» (conclusões X), AA) e EE)).
Como consta do antecedente relatório, o ora recorrente, argumentando que o despacho determinativo da partilha e a própria partilha são inválidos por preterição das referidas normas, requereu ao tribunal que recusasse a homologação da partilha.
Porém, tal requerimento foi remetido a tribunal já depois (ainda que no mesmo dia) de ter sido proferida a sentença homologatória posta em crise e por isso outra atitude não poderia ter o Sr. Juiz do tribunal a quo que não fosse a de se abster de apreciar tal pedido, por estar esgotado o seu poder jurisdicional e não se verificar, no caso, nenhum dos desvios a essa regra (cfr. artigo 613.º do CPC).
É manifesto que não houve omissão de pronúncia e restava ao interessado D… reagir contra a sentença interpondo recurso, como veio a fazer.
Razão por que não se mostra violado qualquer preceito constitucional ou os princípios do contraditório, da legalidade e da protecção da confiança.

2.2 Outras nulidades
O recorrente argui, ainda, nulidades que identifica como sendo consequências de erro na forma de processo e de preterição de norma imperativa (conclusão O)).
Porém, do próprio discurso argumentativo plasmado na alegação de recurso decorre que não foram cometidas as nulidades arguidas.
Para concluir pela sua ocorrência, o recorrente argumenta que, à data da dissolução do casamento, a verba relacionada e objecto de partilha não existia «como pretenso bem comum», pelo que a utilização do processo de inventário configuraria uma violação de norma imperativa (a norma do artigo 1789.º do Código Civil) e erro na forma de processo (conclusões C), D), O) e R)).
Está bem de ver que o recorrente parte do pressuposto de que a indemnização em causa é bem próprio e defende doutamente essa posição. Ao fazer uso do processo de inventário, a requerente, ora recorrida, partiu do pressuposto contrário, ou seja, que esse bem faz parte da comunhão conjugal, não foi, oportunamente, partilhado e pretende que essa partilha se faça agora e por esta via.
Seguindo a orientação doutrinal e jurisprudencial que o próprio recorrente invoca, segundo a qual é em face da pretensão deduzida que se deve apreciar a propriedade ou inadequação da forma da providência solicitada, chega-se, sem qualquer esforço, à conclusão de que a requerente só podia lançar mão do processo de inventário para ver apreciada a sua pretensão, pois é essa uma das finalidade que o artigo 2.º, n.º 3, do RJPI define para este processo: partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.
Estando o recorrente em frontal desacordo quanto à natureza do bem objecto de partilha, podia discuti-la no âmbito do processo e, como é bem sabido, o meio adequado seria a reclamação contra a relação de bens, requerendo a sua exclusão (artigo 32.º, n.º 1, al. b), do RJPI).
Para tanto, foi devidamente notificado, mas nada fez. Não pode vir agora tentar corrigir as consequências da sua inércia arguindo nulidades inexistentes.
Chegando-se à conclusão de que a indemnização em causa é um bem próprio, então ter-se-á cometido um erro de interpretação e aplicação de normas jurídicas, um error in judicando que não configura uma nulidade (como, de resto, admite o recorrente na conclusão E)).
Cabe, ainda, referir que, mesmo que alguma nulidade tivesse sido cometida, não sendo uma nulidade da sentença, não seria em sede recursiva que poderia ser arguida e conhecida, mas nos termos previstos nos artigos 195.º a 201.º do CPC.
Impõe-se, pois, julgar improcedente a arguição de nulidades.

2.3 Indemnização por cessão do contrato de trabalho: bem próprio do cônjuge ou bem comum d0 casal quando o regime de bens é o da comunhão de adquiridos?
Esta é, como se disse, a questão fundamental a decidir e, quer na doutrina, quer na jurisprudência é marcante a diversidade de opiniões.
Um breve bosquejo pela doutrina que aborda esta temática revela-nos essa divergência.
Segundo Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[3], são comuns «os bens adquiridos em substituição de salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo, através de planos-poupança-reforma, e as indemnizações por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição ou capacidade de ganho».
No seu “Manual de Direito da Família” (Almedina, 2021, pág. 237-238) Guilherme de Oliveira (em colaboração com Rui Moura Ramos), a propósito dos bens considerados incomunicáveis, elencados no artigo 1733.º do Código Civil, reafirma esse ponto de vista:
«Não é pacífico que mereçam este regime as indemnizações que pretendam reparar uma incapacidade de ganho ou se meçam por uma perda de salário. Será o caso das indemnizações recebidas por acidente de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada, despedimento, etc.
Nestes casos, as somas recebidas vêm substituir os salários “cessantes”, que teriam a qualidade de bens comuns, as indemnizações deviam entrar para o património comum».
Na esteira dos autores citados, o Sr. Conselheiro Roque Nogueira escreve em artigo publicado na Revista “Julgar”, n.º40, págs. 46-47:
«(…) encontrando-se os cônjuges ainda casados, por ocasião em que a compensação pecuniária de natureza global por créditos salariais foi recebida por um deles, o mesmo bem, ao entrar na esfera patrimonial deste, assumiu, imediatamente, a qualidade de bem comum do casal, passando a estar sujeito, desde a propositura da acção, ao regime da partilha dos bens comuns em consequência de divórcio, a que aludem os artigos 1688.º e 1689.º do Código Civil, sendo certo que a retroação dos efeitos do divórcio à data da instauração da acção abrange a totalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, qualquer que seja a sua fonte, e não apenas aquelas que dependam de facto próprio de cada um deles».
A justificar esta asserção, expende:
«Efectivamente, o cônjuge em apreço e a sua ex-entidade patronal, ao convencionarem a aludida compensação global em substituição de todos os créditos já vencidos à data da cessação do contrato de trabalho ou exigíveis em virtude dessa cessação, mais não fizeram do que extinguir todos esses créditos por meio da criação de uma nova obrigação, em lugar deles, nos termos do preceituado pelo artigo 857.º do Código Civil, cujo fundamento imediato deixa de ser o contrato de trabalho para passar a ser um outro contrato revogatório, que põe fim àquela relação, surgindo o novo crédito como consequência desta revogação»[4].
Na jurisprudência, seguiram este entendimento, entre outros, as seguintes decisões:
- Ac. TRP de 22.01.1996
«I - A indemnização por cessação de contrato de trabalho auferida por um dos cônjuges na constância do casamento celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos qualifica-se como bem comum do casal e deve ser incluída na relação de bens do processo de inventário para partilha subsequente ao divórcio.»
- Ac. TRL de 25.01.2011 (processo n.º 2119/10.0TMLSB-A.L1-7)
«II - A indemnização por despedimento, porque destinada a substituir os “salários cessantes”, ingressará no património comum, desde que efectivamente adquirida na constância do matrimónio.
III -Não será bem comum, se adquirida já após a separação de facto dos cônjuges e se o divórcio vier a ser decretado com fundamento na separação de facto, fazendo retroagir os respectivos efeitos patrimoniais à data da separação.»
Na respectiva fundamentação, podemos ler:
«Na sequência da discussão gerada à volta de tal questão, a doutrina tem vindo a entender que as indemnizações recebidas por acidentes de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada e despedimento – pelo facto de as somas recebidas virem “substituir” os salários cessantes – terão a qualidade de bens comuns.
Assim, em princípio e por regra, e até face à presunção de comunicabilidade contida no art. 1725º, desde que tal indemnização seja atribuída na constância do matrimónio, ingressará no património comum.»
- Ac. TRE de 14.01.2021 (processo n.º 980/20.0T8FAR-A.E1), publicado com o seguinte sumário:
«A indemnização por cessação da relação laboral deve considerar-se bem que integra o património comum dos cônjuges, nos termos do disposto no artigo 1724.º, alínea a), do Código Civil, na medida em que tem em vista compensar o trabalhador da rutura da relação laboral e da perda de salários subsequente àquela rutura com os quais o primeiro contribuía para os encargos da vida familiar.»
Da respectiva fundamentação, destacamos o trecho seguinte:
«Pese embora na alínea a) do art. 1724.º do Código Civil esteja previsto como bem que integra a comunhão o «produto do trabalho dos cônjuges», isto é, todos os proventos decorrentes da existência e normal desenvolvimento do contrato de trabalho, na sua ratio há-de integrar-se também a indemnização devida ao trabalhador pela cessação daquela relação laboral na medida em que aquela visa compensar o trabalhador da perda de salários subsequente àquela rutura e com os quais o primeiro contribuía para os encargos da vida familiar.»

Contra este entendimento, manifesta-se Jorge Duarte Pinheiro (O Direito de Família Contemporâneo, Almedina, 5.ª edição, pág. 432) para quem estas indemnizações são bens próprios nos termos dos artigos 1699.º, n.º 1, al. d), e 1733.º, n.º 1, al. d), do Código Civil.
Embora algo ambíguo, parece ser, também, o entendimento de J.P. Remédio Marques (anotação ao artigo 1773.º in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Coord. Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pág. 457) quando anota:
«Todavia, parece que as indemnizações que se alicerçam na supressão ou na diminuição da capacidade de ganho de qualquer um dos cônjuges desfrutam de natureza de direitos estritamente pessoais, pelo que, neste sentido, devem ser excetuados da massa dos bens comuns, ao abrigo dos disposto nas alíneas d) e e) do art. 1733 CC, aplicável a fortiori ao regime da comunhão de adquiridos»[5].
Nesta linha de orientação se posicionou a Relação de Coimbra no acórdão de 10.11.2015 (processo n.º 2281/11.5 TBFIG-B.C1)[6], publicado com o seguinte sumário:
«1. É a afectação estritamente individual dos bens que justifica a incomunicabilidade prevista no art.º 1733º, do CC.
2. Perante situações de perda do emprego por facto não imputável ao trabalhador (v. g., em caso de encerramento da empresa), o valor correspondente à compensação por antiguidade destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae).
3. Trata-se, pois, de um bem pessoal (próprio) do cônjuge, que, em princípio/regra - sem prejuízo do posicionamento dos cônjuges ou ex-cônjuges e porventura de outros aspectos relacionados com a relação conjugal - deverá ser excluído da comunhão conjugal.
4. (…)»
Antes de tomarmos posição nesta querela, impõe-se proceder a algumas precisões e clarificações.
A expressão “cessação do contrato de trabalho” designa todas as formas por que é possível pôr termo à relação laboral, designadamente as elencadas no artigo 340.º do Código do Trabalho: a) Caducidade; b) Revogação; c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador; d) Despedimento colectivo; e) Despedimento por extinção de posto de trabalho; f) Despedimento por inadaptação; g) Resolução pelo trabalhador; h) Denúncia pelo trabalhador.
Nem todas conferem o direito a “indemnização de antiguidade” e assim sucede na revogação por mútuo acordo (prevista no artigo 349.º do Código do Trabalho).
Mas, geralmente, a revogação por mútuo acordo tem na sua origem a necessidade de reduzir/eliminar postos de trabalho ou, como sucedeu neste caso, a cessação, total ou parcial, da actividade da entidade empregadora e para evitar litígios as partes acordam no pagamento de um montante pecuniário que abrange não só a indemnização de antiguidade mas também créditos salariais vencidos (remuneração mensal, subsídio de alimentação, remuneração de trabalho extraordinário, retribuição de férias vencidas, subsídios de férias e de Natal, partes proporcionais destes subsídios, etc.).
Usa-se, então, a expressão «compensação pecuniária global» para significar que o trabalhador fica pago de tudo o que poderia, legalmente, exigir caso não houvesse mútuo acordo revogatório, mas a indemnização não tem a mesma natureza nem se confunde com aqueles créditos.
Os créditos salariais integram a retribuição do trabalhador, entendida esta como correspectivo ou contrapartida da prestação de trabalho (manual ou intelectual), e correspondem ou confundem-se com o «produto do trabalho» a que se refere a alínea a) do artigo 1724.º do Código Civil.
Não assim a indemnização ou compensação por cessação do contrato de trabalho, a qual pode nem existir, ao passo que a retribuição ou «produto do trabalho» existe sempre, se o trabalhador tiver, pelo menos, disponibilizado a sua força de trabalho[7].
Isto apesar de haver quem defenda que os «proventos do trabalho compreendem todas as utilidades em sentido amplo decorrentes da prestação de trabalho»[8].
Por isso que, ressalvado o devido respeito, é manifestamente incorrecto falar-se, como no acórdão do STJ de 02.11.2011, em «compensação pecuniária, de natureza global, referente a indemnização em substituição de créditos laborais».
Quanto aos «proventos do trabalho» dos cônjuges, na referida acepção de contraprestação pela disponibilização da força de trabalho, não há dúvida nem controvérsia sobre a sua natureza de bens comuns e não perdem esta qualidade mesmo que estejam em (ou sejam transferidos para) conta de depósito bancário de que, apenas, um deles seja titular[9].
O nódulo problemático está na indemnização de antiguidade, na sua génese e na sua teleologia.
Ora, se é certo que o pagamento da indemnização é desencadeado pela rotura contratual, é a constituição do vínculo laboral e o seu desenvolvimento que justificam e moldam essa compensação indemnizatória, ou, como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra de 02.07.2013 (processo n.º 988/12.9TMCBR-A.C1), «ela fica a dever-se, na medida em que não se vislumbra outra causa justificativa, à própria existência da relação laboral que então cessa e a todas as contingências positivas e negativas que ela gerou no passado e que projecta ainda no momento actual e no futuro do trabalhador».
Tanto assim que são a retribuição e a duração da relação laboral que relevam para a determinação do quantum da indemnização.
Por isso, está bem de ver que, para o efeito que aqui importa, não é indiferente se a relação laboral se inicia e termina na vigência da comunhão conjugal ou fora dela.
Como se referiu, de acordo com uma das teses em confronto, a indemnização por cessação do contrato de trabalho é um substituto dos “salários cessantes” e, sendo estes bens comuns nos termos do artigo 1724.º, al. a), do Código Civil, também aquela deve entrar para o património comum. Mas esse ingresso no património comum só ocorrerá se o direito à indemnização for adquirido na constância do matrimónio, pois de contrário será bem próprio do (ex)cônjuge (vide o citado acórdão da Relação de Lisboa de 25.01.2011).
Não é difícil perceber que este entendimento é gerador de situações de manifesta injustiça. Basta pensar na situação em que um dos cônjuges celebra um contrato de trabalho já na vigência do casamento e trabalha para a empresa durante todo o período em que dura o matrimónio, que é dissolvido por divórcio ao fim de 30 anos. Se o contrato de trabalho cessar passado um ano da rotura conjugal, a indemnização de antiguidade que vier a receber, naquela tese, não poderá considerar-se bem comum. Mas na situação inversa (o trabalhador que contrai matrimónio[10] e passado um ano é despedido e recebe uma indemnização correspondente à sua antiguidade de 30 anos na empresa) já a indemnização integraria a massa de bens comuns.
Além de uma função sancionatória quando a relação laboral cessa por despedimento considerado ilícito, a indemnização de antiguidade tem uma finalidade, essencialmente, compensatória: a rotura da relação laboral provoca, naturalmente, uma situação de incerteza, de insegurança e de instabilidade na vida quotidiana do trabalhador, na medida em que este perde a sua única (ou principal) fonte de rendimentos, ficando sem meios para sustento próprio e, geralmente, também da sua família, situação que pode ser mais ou menos duradoura.
A indemnização tem essa função compensatória, é uma prestação única que visa compensar a perda dessa fonte de rendimentos e atenuar as dificuldades inerentes, e não substituir a retribuição cessante.
A perfilhar-se a tese de que a indemnização é um bem próprio, que deve ser excluído da comunhão conjugal dada a sua natureza de direito estritamente pessoal ou, como se diz no citado acórdão da Relação de Coimbra de 10.11.2015, «o valor correspondente à compensação por antiguidade destina-se a ressarcir as consequências inerentes à perca do direito ao trabalho, que é de índole pessoal (intuitu personae)», e por isso enquadra-se na previsão do artigo 1733.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, estar-se-á a pôr em causa aquela função compensatória.
Concordamos com Maria João Vaz Tomé quando, referindo-se aos “direitos estritamente pessoais” daquela alínea c), 2.ª parte, anota que «Deve entender-se a fórmula legislativa no sentido de que o direito, para ser pessoal, deve ter objectivamente uma destinação funcional ligada exclusivamente à pessoa de cada um dos cônjuges, visando satisfazer exigências próprias, também exclusivas de cada um deles»[11] e embora a autora se reporte à pensão de reforma (que considera não revestir estas características e por isso não ser um bem incomunicável) o mesmo é valido para a indemnização por cessação do contrato de trabalho.
Aqui chegados, cumpre-nos tomar posição nesta querela doutrinal e jurisprudencial e decidir a questão que identificámos como a questão fundamental deste litígio.
A resposta, se bem vemos as coisas, está naquilo que podemos designar como o punctum saliens do regime de bens da comunhão de adquiridos e que nos auxiliará na identificação do que sejam bens comuns e dos que o não são.
Ora, neste regime de bens, só será comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento.
Assim, via de regra, são comuns os bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges, mas já não o são os que resultam do esforço, trabalho ou diligência de, apenas, um deles, ou seja, aqueles para cuja obtenção o outro cônjuge não deu qualquer contributo relevante[12].
Se o cônjuge, escassos meses depois de casar, recebe da empresa para a qual trabalhava há 30 anos uma indemnização como compensação pela cessação, por mútuo acordo revogatório, do contrato de trabalho, está bem de ver que não pode afirmar-se que esse bem resulta do esforço conjunto do casal e tem de considerar-se um bem próprio nos termos do artigo 1722.º, al. c), do Código Civil. Na situação inversa (em que a relação laboral se inicia e/ou se desenvolve na constância do matrimónio, ou, pelo menos, coincide, totalmente ou em grande parte, com a duração da comunhão conjugal) já se poderá falar em esforço conjunto dos cônjuges na aquisição desse bem, que integrará o património comum.
Neste enquadramento, a solução que se afigura juridicamente correcta e justa é a adoptada no citado acórdão da Relação de Coimbra de 02.07.2013 (processo n.º 988/12.9TMCBR-A.C1), segundo a qual será bem próprio a indemnização na parte proporcional ao tempo em que a relação laboral decorreu fora do período da comunhão conjugal; será comum na parte restante[13].
No caso sub juditio, apenas sabemos que recorrente e recorrida foram casados entre si, que o casamento foi dissolvido por divórcio decretado em 16.03.2018 e que, em 25.01.2015, aquele recebeu de E… a indemnização de € 76.739,49 como compensação pela revogação, por mútuo acordo, do contrato de trabalho que o ligava a esta instituição bancária.
Ora, pelas razões já expostas e por força da presunção de comunicabilidade estabelecida no artigo 1725.º do Código Civil, haverá de concluir-se que essa indemnização é bem comum e por isso deve ser objecto de partilha entre os (ex)cônjuges.
Claudica, assim, a argumentação recursiva doutamente explanada na alegação de recurso.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação interposta por D… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso serão suportadas pelo recorrente.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 12.07.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_____________
[1] Aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do disposto no n.º 2 do artigo 663.º do CPC.
[2] Também este regime de nulidades se aplica aos acórdãos proferidos na 2.ª instância (ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do CPC).
[3] Curso de Direito da Família, vol. I, 5.ª edição, Coimbra, 2016, pág. 639.
[4] É esta a posição defendida no acórdão do STJ de 21.02.2006 (in www.dgsi.pt) relatado pelo mesmo Sr. Conselheiro, citado na resposta da recorrida.
[5] Porém, imediatamente antes, na mesma anotação, afirma que «(…) já não merecem esta qualidade de bens próprios (…) as indemnizações que tenham na sua génese a intenção de compensar a perda ou a diminuição da capacidade de ganho (…)».
[6] Cabe aqui referir que um dos Srs. Juízes Desembargadores que subscreve este acórdão como adjunto é o Relator do acórdão da Relação de Lisboa de 25.01.2011, também supra citado, em que se decidiu em sentido oposto. Essa aparente contradição diz bem das dificuldades que esta matéria suscita, como se sublinha no texto do acórdão da Relação de Coimbra, havendo que ponderar devidamente todo um conjunto de circunstâncias, entre as quais sobreleva o denominado “esforço conjunto do casal para a manutenção da relação laboral”.
[7] Tal como não é «produto do trabalho» uma indemnização por incapacidade permanente resultante de um acidente laboral, pois não se trata de uma prestação prevista como correspectivo de uma prestação de trabalho.
[8] Maria João Vaz Tomé, anotação ao artigo 1724.º in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Almedina, pág. 426.
[9] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, Coimbra editora, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 428.
[10] Pressupondo, obviamente, que o regime de bens é o da comunhão de adquiridos.
[11] Ob. cit.,
[12] Cfr. J.P. Remédio Marques, Ob. cit., 415.
[13] Solução que foi adoptada, também, no acórdão da Relação de Évora de 28.01.2021 (processo n.º 1200/19.5T8STR.E1).