PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
PERICULUM IN MORA
Sumário

I - Através da produção antecipada de prova, visou o legislador salvaguardar a possibilidade de produzir prova quando a espera pelo momento processual próprio para o efeito coloque em risco a demonstração dos factos que da mesma serão objeto.
Seja por que então tal prova será impossível de produzir, seja por que se tornará muito difícil.
Em causa estará portanto e sempre o periculum in mora para a produção da prova.
II - Ao contrário do que acontece nos procedimentos cautelares não pressupõe o deferimento deste procedimento a alegação e demonstração da probabilidade séria da existência do direito (que para aqueles é exigida – vide artigo 368º do CPC), mas tão só do periculum in mora aferido pela prova que se pretende produzir.

Texto Integral

Processo nº. 3710/20.2T8MTS-A.P1
3ª Secção Cível
Relatora: Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Apelação em separado
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Central Cível da Póvoa de Varzim
Apelantes/B…, Unipessoal e C…
Apelada/D…

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
D… requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 419º e 420º do CPC a produção antecipada de prova, contra “B…, Unipessoal, Lda.” e C….

Para tanto alegou (em requerimento que deu entrada em 31/08/2020):
- ser dona dos imóveis identificados na p.i. e ter a 1ª requerida, no exercício da sua atividade, realizado obras em tais prédios;
- em 13/03/2020 os requeridos comunicaram estar a obra concluída e em condições de ser entregue;
- o 2º requerido responde pelos atos da 1ª requerida quanto a terceiros;
- ambos os requeridos assumiram perante a requerente o compromisso de boa execução da obra;
- a obra não foi terminada – não tem água e luz – e por tal as entidades competentes não instalam os ramais e contadores dos serviços essenciais – água e luz;
- a obra foi executada com vários defeitos que descreveu e que mais alegou foram aos requeridos reclamados para correção, sem sucesso;
- a inércia dos requeridos causa prejuízos materiais e morais à requerente que já procedeu na integra ao pagamento às obras realizadas.
Neste conspecto tendo em concreto alegado:
(19) “1ª e 2º Requeridos, com a sua inércia perante o não cumprimento da conclusão da obra e da reparação de todos os defeitos/danos/estragos/inconclusões provocaram e provocam prejuízos materiais e morais à Requerente que a seu tempo serão revindicados nos termos legais aos Requeridos.”;
(20) “Assim impõe-se que desde já seja efetuada perícia aos prédios da Requerente param determinação do estado em que se encontram os prédios identificados em 1”;
(21) “Se não se produzir, já e antecipadamente essa prova, antes do momento processual, que o decurso dos autos o comportaria, a mesma corre o risco de ser perder, e de se apagarem os vestígios dos factos que se pretende verificar.”;
(…)
(24) “O decurso do tempo, as humidades, o uso das coisas, estraga, desgasta e altera a conformidade dos materiais e até a própria consistência dos mesmos”;
(25) “Os defeitos/danos/estragos causados e a não conclusão da obra carecem de uma análise às patologias dos edificados, a efetuar por técnico credenciado”;
(26) “Tais defeitos, danos e estragos, e inconclusão da obra provocaram e provocam, como aliás é do conhecimento dos Requeridos, prejuízos e danos nos edificados”;
(…)
(28) “Todo o elencado causa estragos nos edificados, nomeadamente, madeiras apodrecidas, tetos e paredes, humidades nas paredes e tetos, cheiro a mofo, bolor, rachaduras, entre outros por todos os edificados”;
(29) “A Requerente tem justo receio que venha a perder-se a possibilidade de determinar o estado em que os Requeridos deixaram as obras dos Edificados, o decurso do tempo, as humidades, o uso das coisas estraga, desgasta e altera as conformidades materiais e até a própria consistência dos mesmos”;
(30) “Tal revela-se com o tempo, com consequências negativas para a Requerente e Requeridos”;
(…)
(35) “A antecipação da prova pericial relativamente ao momento normal da sua produção encontra-se justificada pela impossibilidade de conservação da fonte de prova em questão”.
Assim tendo peticionado a realização antecipada - art. 467º e ss do CPC - inspeção/vistoria ao local, a fim de se apurar em Perícia Colegial (art. 457º e ss do CPC) e colher prova antecipada (art. 419º a 421º do CPC) dos factos descriminados em 23 do r.i. e a final.

Notificados os requeridos, impugnaram a admissão do incidente, nos termos e para efeitos dos artigos 420º e 415º do CPC.
Em suma tendo alegado:
- estar ultrapassado o prazo de 30 dias consignado no artigo 1220º do CC, concluindo assim “pela inexistência de qualquer direito de ação referente aos defeitos de obra elencados no artigo 23º da petição, razão pela qual o presente incidente deverá ser liminarmente indeferido, o que se REQUER.”
- não estar justificada a necessidade de antecipar a prova, por não concretizado o periculum in mora. Pelo que também por este motivo concluem dever ser o incidente rejeitado.
No mais impugnaram o alegado.
Tendo concluído pelo indeferimento da “REALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA (…)”.

*
Em 20/01/2021 foi proferido o seguinte despacho:
“A A. D… veio requer a produção antecipada de prova, mais concretamente perícia colegial com vista à determinação de defeitos que identifica nas obras de construção civil que a 1.ª R., de que o 2.º R. é sócio gerente, realizou em prédios seus (da A.), justificando a sua realização antecipada com o objetivo de determinar o estado dos prédios intervencionados, sob pena de se correr o risco de se apagarem os vestígios dos factos que se pretende verificar.
De acordo com o art. 419.º do CPC a perícia pode ser realizada antecipadamente, até antes de ser proposta a ação quando houver justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos factos através desse meio de prova.
Assim, em face das razões alegadas para a necessidade da requerida produção antecipada de prova, os factos a ser objeto da requerida perícia e os requisitos legais exigidos a este respeito, afigura-se-nos conveniente ouvir as partes sobre o preenchimento desses requisitos.
Pelo exposto, e ao abrigo do art. 3.º do CPC, notifique as partes para se pronunciarem sobre o supra exposto e sobre a admissibilidade da requerida produção antecipada de prova.”

No exercício do contraditório respondeu a requerente, alegando, entre o mais:
“10. Padece a obra de vários defeitos/danos/estragos/inconclusões, que a Requerente é obrigada a proceder brevemente às suas conclusões, reparações, substituições, alterações, de forma urgente, por forma aos imóveis não ficarem ainda mais danificados com as chuvas, intempéries, alterações climáticas, entre outros.
11. Não é possível manter mais tempo a situação dos imóveis nos estados atuais, daí que seja necessário concluir a obra por forma a dotar os imoveis de condições de habitabilidade.
12. Assim como, o projeto camarário em curso, não terminado pelos Réus, Requerer várias diligências por parte da Requerente e pagamento das mesmas, sob pena do mesmo ficar caduco e ser necessário interpor novo processo de licenciamento.
13. De salientar que, para a conclusão dos projetos camarários, a colocação dos contadores de água e luz, e os respetivos ramais, é obrigatória a conclusão de obra.
14. Será a Requerente obrigada a efetuar uma série e inúmeras obras e intervenções nos imóveis, de forma urgente, para colmatar todos os defeitos/danos/estragos/inconclusões existentes neste para tornar os mesmos habitáveis e obter a devida licença de utilização por parte da Camara Municipal, e os devidos ramais dos serviços essenciais – água, luz, saneamento, gás, telefone, internet, entre outros para o imóvel.
15. Isto porque, não pode a Autora e seu agregado familiar usufruir de uma habitação em condições de higiene e conforto como deveria ter.
16. Na verdade a Autora, quer a sua família estarão impedidos de respirar convenientemente, atendendo aos bolores, os fungos e humidades.
17. E, especialmente no Inverno, os cheiros no interior da habitação agravam-se, em consequência do devido à chuva e humidades
18. Está a Autora e o seu agregado familiar impedido de ter água canalizada, luz, saneamento, entre outros bens essenciais.
19. É necessário, e muito urgente, conforme requerido, proceder à produção antecipada de prova, por forma a determinar tecnicamente os defeitos da obra e quantificar o custo da sua conclusão bem como da eliminação e/ou correção dos defeitos.
20. É patente o receio de se tornar impossível ou muito difícil a produção da prova em causa mais tarde.
21. Ora, com o decurso do tempo e a delonga da presente lide, a Requerente tem fundado e justo receio que se a mesma não for produzida antecipadamente, deixe de ser possível.
22. Acresce que não é possível obter a licença de utilização/habitabilidade do imóvel com os defeitos que hoje apresentam os imoveis, pelo que é imperioso modificar/corrigir a situação atual para esse fim.
23. Receia a Requerente que mesmo a segurança dos mesmos, se não houver já intervenção adequada, venha a ser posta em causa com mais um, ou mais Invernos e o aumento das infiltrações.
24. O que poderá originar a queda dos tetos, degradação das fachadas, aumento das infiltrações e obrigar a obras mais profundas, por forma a manter a segurança do edifício perdendo-se, assim, a prova que se pretende produzir antecipadamente.
(…)
28. O decurso do tempo, as humidades, o uso das coisas estraga, desgasta e altera a conformidade dos materiais e até a própria consistência dos mesmos.
29. Os defeitos / danos / estragos causados carecem de uma análise às “patologias” do edificado, a efetuar por técnico credenciado
30. A Autora tem justo receio que venha a perder-se a possibilidade de determinar o estado em que o empreiteiro deixou a obra
31. Torna-se muito gravoso à Requerente aguardar a fase de produção de prova da ação ordinária para a realização de arbitramento (perícia), pelo que Requer a perícia colegial por vistoria ao imóvel nos termos do artigo 467º e 468º do C. P. Civil”

Responderam os requeridos, reiterando o já antes alegado e no mais alegando ainda:
“- A despeito das mais elementares regras processuais, a Requerente aproveitou a oportunidade concedida pelo Tribunal para se pronunciar no presente incidente, para trazer aos autos factos novos e reformular a causa de pedir.
4. Alegando que, afinal de contas, a necessidade de recolha antecipada da prova está relacionada com a realização urgente de obras, em total contradição com o que carreou no requerimento inicial.
5. Afirma, com aturados sublinhados e negritos, que se encontra «… obrigada a proceder brevemente às suas conclusões, reparações, substituições, alterações, de forma urgente…» e que «Não é possível manter mais tempo a situação dos imoveis nos estados atuais, daí que seja necessário concluir a obra por forma a dotar os imoveis de condições de habitabilidade.» (sublinhados nossos)
6. Traz à colação que «… o projeto camarário em curso, não terminado pelos Réus, requer várias diligências por parte da Requerente e pagamento das mesmas, sob pena do mesmo ficar caduco e ser necessário interpor novo processo de licenciamento…».
7. Sem nunca ter mencionado ou relevado a pendência de qualquer projeto de licenciamento no seu requerimento inicial!
8. E ainda que a Requerente está obrigada «… a efetuar uma série e inúmeras obras e intervenções nos imoveis, de forma urgente, para colmatar todos os defeitos/danos/estragos/inconclusões existentes…».
9. O que é uma novidade absoluta, uma vez que se limitou a indicar inicialmente que a urgência na recolha da prova estava fundamentada no «… decurso do tempo, as humidades, o uso das coisas, estraga, desgasta e altera a conformidade dos materiais e até a própria consistência dos mesmos.»
10. Toda a argumentação vertida no requerimento da Requerente é nova e não constava do seu requerimento inicial do presente incidente.
11. Ficando patente que a Requerente, apenas quando confrontada com o teor dos artigos 14º a 21º da Impugnação, se apressou a emendar a mão e a fabricar factos novos para sustentar o periculum in mora, inventando obras e todo o tipo de intervenções urgentes.
12. O que apenas corrobora o total desnorte e desorientação da Requerente, bem como falta de consideração pelo rigor e pela verdade!
13. Numa atitude processual inaceitável e reprovável.
Acresce que,
14. Os factos novos que traz aos autos não têm qualquer correspondência com a prova que requereu, formulada através dos quesitos para a prova pericial.
15. Nenhum dos quesitos indicia que possa estar em causa a segurança dos edifícios ou problemas estruturais que obriguem a intervenção urgente, o que se afere pela mera leitura dos mesmos.
16. Sendo, no mínimo, obrigação da Requerente concretizar onde reside o periculum in mora em termos concretos, ou seja, quais são os elementos dos prédios onde a recolha de prova se tornou urgente sob pena da mesma se perder.
17. Porém, a Requerente nada concretiza, recorrendo a formulações genéricas e meramente conclusivas, sem cuidar de apresentar qualquer meio de prova por mais ténue que seja.
18. Nomeadamente, quando à necessidade de realizar obras urgentes para efeitos de conclusão de licenciamento camarário, facto que não vem sustentado por qualquer documento da Câmara Municipal … ou qualquer outro tipo de suporte probatório, que certamente estaria ao dispor da Requerente.
19. Pelo que resta concluir, das duas uma: ou os factos alegados são pura e simplesmente falsos ou a Requerente voluntariamente não cumpre o ónus de provar o que alega.
20. Pelo que não existe o mais ténue fumus iuris quanto à probabilidade de existência dos seus direitos.
Acresce que,
21. A Requerente não nada diz quanto a caducidade do seu direito de ação por falta de denúncia dos defeitos de obra.
22. Pelo que não existindo o direito de acionar os Requeridos, nem causa de pedir, não há qualquer fundamento de direito para deferir o presente incidente.
Por outro lado,
23. Nunca é demais salientar que o presente incidente é perfeitamente anómalo e só pode ser deferido em casos de excecional e inadiável necessidade de recolha de prova.
24. A convicção quanto à necessidade imperiosa da recolha antecipada da prova há de ser formada mediante a existência de fortes indícios do direito da Requerente, que não se verificam no presente caso.
25. Não há qualquer indício quanto à urgência na recolha da prova quanto aos 462 (!!!) quesitos formulados pela Requerente ou sequer da necessidade urgente de realizar qualquer tipo de obra.
26. Muito menos qual a obra em causa, sua dimensão, alcance, quais os elementos a intervir, o respetivo caderno de encargos.
27. Sendo certo que sem tais elementos e informação não está o Tribunal em condições de considerar a existência de qualquer periculum in mora, pois não está na posse de indícios que lhe permitam fazer qualquer tipo de avaliação da factualidade alegada pela Requerente.
28. Razão pela que não restará outra alternativa se não indeferir a pretensão da Requerente, o que se Requer!
TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, REQUER SE DIGNE A INDEFERIR A REALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA, FICANDO AS CUSTAS DO PRESENTE INCIDENTE A CARGO DA REQUERENTE.”
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Após o exercício do contraditório, foi proferida decisão apreciando o requerido e decidindo nos seguintes termos:
“A A. D… veio requer a produção antecipada de prova, mais concretamente perícia colegial com vista à determinação de defeitos que identifica nas obras de construção civil que a 1.ª R., de que o 2.º R. é sócio gerente, realizou em prédios seus (da A.), justificando a sua realização antecipada com o objetivo de determinar o estado dos prédios intervencionados, sob pena de se correr o risco de se apagarem os vestígios dos factos que se pretende verificar.
De acordo com o art. 419.º do CPC a perícia pode ser realizada antecipadamente, até antes de ser proposta a ação quando houver justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos factos através desse meio de prova.
Em face das razões alegadas para a necessidade da requerida produção antecipada de prova, os factos a ser objeto da requerida perícia e os requisitos legais exigidos a este respeito, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre o preenchimento desses requisitos, respondendo a A., em síntese, que carece o quanto antes de fazer as obras necessárias a, por uma lado, tornar os prédios habitáveis e a evitar a sua deterioração por força das intempéries e, por outro, a aproveitar os processos de licenciamento camarário e de abastecimento de bens e serviços, como água, luz, saneamento, etc., ao que os RR. se opuseram por se tratar de circunstancialismo novo que não havia sido alegado no Requerimento Inicial.
Cumpre decidir, sendo o Tribunal competente para o efeito.
A produção antecipada de prova, tal como sucede nos procedimentos cautelares, depende da existência do requisito do periculum in mora que a este respeito se traduz num risco de desaparecimento de determinada prova ou de dificuldade na sua produção no momento previsto para o efeito.
No caso concreto, pese embora não tenha no seu Requerimento Inicial alegado de forma completa a factualidade necessária ao preenchimento de tal requisito, a verdade é que já então a Requerente aludia ao receio de se vir a tornar impossível ou muito difícil a verificação de certos factos através da perícia por perda dos vestígios dos factos a verificar, o que, agora melhor se compreende em virtude das alegadas contingências climáticas e da necessidade de obras, além do mais, para evitar o agravamento dos danos.
Assim sendo, porque entre o Tribunal e as partes vigora o princípio, a que se refere o art. 7.º do CPC, da cooperação entre si de molde a alcançar com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, afigura-se-nos que o circunstancialismo ora trazido pela Requerente, porque completa os factos carreados para os autos no Requerimento Inicial, devem ser considerados e admitidos.
E, em face do conjunto da factualidade alegada pela Requerente é de concluir que está suficientemente demonstrado o risco de a prova pericial pretendia, com o decurso do tempo e com a necessidade da realização de obras, se tornar extremamente difícil, se não mesmo impossível, e, como tal, ao abrigo do art. 419,ºdo CPC, admite-se a antecipação da sua produção.
Pelo exposto, admito a produção antecipada da requerida perícia colegial.
(…)
Notifique a Requerida sobre o objeto proposto para a perícia nos termos e para os efeitos do art. 476.º, n.º 1 do CPC.”
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Inconformados com o assim decidido, interpuseram os requeridos recurso de apelação, pugnando pela revogação de tal decisão, para tanto apresentando as seguintes conclusões:
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Contra alegou a recorrida, em suma concluindo pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo.
Foram dispensados os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem questões a apreciar:

- Nulidade por falta de fundamentação e ininteligibilidade nos termos do artigo 615º nº 1 als. b) e c) do CPC: vide concussões III e XX, XXI;
- erro na aplicação do direito.

III. FUNDAMENTAÇÃO
Para apreciação do assim decidido, importa considerar as vicissitudes processuais acima já elencadas.
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Apreciando e conhecendo.
Cumpre em primeiro lugar apreciar se a decisão recorrida padece da arguida nulidade, por falta de fundamentação e ininteligibilidade.
Para tanto tendo os recorrentes alegado não se extrair da decisão por que motivos se considera existir risco de desaparecimento da prova.
Os vícios de nulidade da sentença - aplicáveis ex vi do artigo 613º nº 3 do CPC à decisão recorrida - encontram-se previstos de forma taxativa no artigo 615º do CPC[1].
De entre eles destaca-se, para o que ora releva, o previsto nas als. b) e c) do nº 1 do citado artigo:
“1. É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
É pacificamente aceite que as causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC, respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[2], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[3].
De igual forma é entendimento uniforme na jurisprudência e com apoio na doutrina que a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e apenas esta e já não a deficiência, em que assenta a decisão, são causa de nulidade da mesma.
E embora todas as questões submetidas a apreciação devam ser conhecidas pelo juiz, sob pena de ocorrer nulidade por total omissão quando ocorra o não conhecimento de uma questão submetida a apreciação, não tem o juiz que esgotar nessa apreciação a análise da argumentação das partes.
Da análise da decisão recorrida que acima deixámos reproduzida resulta claro ser manifesta a improcedência da arguida nulidade com fundamento na falta de fundamentação.
Os recorrentes poderão desta discordar, conforme o recurso interposto o evidencia.
Mas fundamentou o tribunal recorrido a sua decisão.
Fundamentação que se apresenta clara e escorreita. Percetível para o declaratário normal colocado na posição do real declaratário (vide artigo 236º do CC).
Assim e tal como consta em tal decisão:
- o tribunal a quo após elencar os pressupostos de que depende a procedência da pretensão formulada -“A produção antecipada de prova, tal como sucede nos procedimentos cautelares, depende da existência do requisito do periculum in mora que a este respeito se traduz num risco de desaparecimento de determinada prova ou de dificuldade na sua produção no momento previsto para o efeito.”
- especificou os motivos por que entendeu estar verificado o mencionado periculum in mora - “No caso concreto, pese embora não tenha no seu Requerimento Inicial alegado de forma completa a factualidade necessária ao preenchimento de tal requisito, a verdade é que já então a Requerente aludia ao receio de se vir a tornar impossível ou muito difícil a verificação de certos factos através da perícia por perda dos vestígios dos factos a verificar, o que, agora melhor se compreende em virtude das alegadas contingências climáticas e da necessidade de obras, além do mais, para evitar o agravamento dos danos.
Assim sendo, porque entre o Tribunal e as partes vigora o princípio, a que se refere o art. 7.º do CPC, da cooperação entre si de molde a alcançar com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, afigura-se-nos que o circunstancialismo ora trazido pela Requerente, porque completa os factos carreados para os autos no Requerimento Inicial, devem ser considerados e admitidos.
E, em face do conjunto da factualidade alegada pela Requerente é de concluir que está suficientemente demonstrado o risco de a prova pericial pretendia, com o decurso do tempo e com a necessidade da realização de obras, se tornar extremamente difícil, se não mesmo impossível, e, como tal, ao abrigo do art. 419,ºdo CPC, admite-se a antecipação da sua produção.
Pelo exposto, admito a produção antecipada da requerida perícia colegial.
Em suma, evidencia a decisão recorrida os motivos por que concluiu pelo deferimento da pretensão formulada. Motivos que se encontram expostos de forma clara, escorreita e percetível ao declaratário normal.
Termos em que se julga improcedente a arguida nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e/ou ininteligibilidade.
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Em segundo lugar, cumpre apreciar se a decisão recorrida padece de erro na aplicação do direito.
Para tanto argumentaram os recorrentes que a recorrida:
i- não demonstrou a existência dos direitos alegados, nomeadamente o direito de ação atenta a caducidade do direito de acionar os recorrentes – conclusões IV, XXIV a XXXIII;
ii- não alegou no r.i. o periculum in mora e assim a urgência na recolha da prova – conclusões V e VI;
iii- alegou factos novos (em causa o articulado da requerente/recorrida subsequente ao despacho de 20/01/21) em contradição com o alegado no r.i. – conclusão VIII;
iv- não provou
. os factos novos alegados quanto à pendência do procedimento de licenciamento e que o mesmo impõe a realização de determinada obra;
. nem a necessidade urgente de realizar obras para acorrer a problemas de segurança dos edifícios ou problemas estruturais;
. nem a existência, ainda que indiciária, de tais problemas estruturais e de segurança dos edifícios (X a XIX).

A apreciação das questões suscitadas implica um prévio enquadramento deste procedimento.
Enquadrado no Título V “Da instrução do Processo” do Livro II “Do Processo em Geral” do CPC, capítulo I (Disposições Gerais), preceitua o artigo 419º do CPC:
“Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação.”
Tal como deste normativo se infere, visou o legislador através do mesmo salvaguardar a possibilidade de produzir prova quando a espera pelo momento processual próprio para o efeito coloque em risco a demonstração dos factos que da mesma serão objeto.
Seja por que então tal prova será impossível de produzir, seja por que se tornará muito difícil.
Em causa estará portanto e sempre o periculum in mora para a produção da prova.
Ao contrário do que acontece nos procedimentos cautelares não pressupõe o deferimento deste procedimento a alegação e demonstração da probabilidade séria da existência do direito (que para aqueles é exigida – vide artigo 368º do CPC), mas tão só do periculum in mora aferido pela prova que se pretende produzir[4].
Afastado o ónus de alegar e demonstrar a probabilidade da existência do direito que é causa deste procedimento e como pressuposto do seu deferimento, carecem de fundamento os obstáculos pelos recorrentes invocados quanto a uma eventual caducidade do direito da recorrida em acionar os recorrentes ou quanto a uma eventual inexistência do direito que a mesma visa salvaguardar (vide ponto i).
Tais são questões a dirimir em sede de ação a intentar para o efeito.
Por outro lado e no que se refere ao periculum in mora, alegou a requerente logo no início – nos termos que também já deixámos supra transcritos – que os vestígios dos factos cuja verificação pretende, correm risco de se apagar com o tempo, pelo decurso do tempo, humidades, uso das coisas que estraga, desgasta e altera a conformidade dos materiais e até a própria consistência dos mesmos.
Carecendo os defeitos que elencou de uma análise às patologias dos edificados.
Defeitos que causam estragos nos edificados, nomeadamente madeiras apodrecidas, tetos e paredes, humidades nas paredes e tetos, cheiro a mofo e bolor, rachaduras entre outros.
Receando a requerente que “venha a perder-se a possibilidade de determinar o estado em que os requeridos deixaram as obras do edificado” pelo decurso do tempo, humidades, uso, desgaste e alteração da conformidade e consistência dos materiais (vide 29 do r.i.).
E se atentarmos nos vícios que a requerente elencou temos que invocou:
- em relação ao interior e de forma transversal a todas as habitações que identificou, a existência de humidades e bolores na carpintaria, pavimento flutuante a empolar ou tinta e reboco da parede a soltar-se (entre o mais) [vide ponto 23), als. a) e b) do r.i.];
- em relação ao exterior de todas as habitações tendo precisado, entre o mais, estar o telhado executado de forma defeituosa e por finalizar; defeituosa sendo também a impermeabilização de paredes contíguas e a estrutura de suporte das telhas, prevendo no futuro um agravamento na estrutura do telhado [vide 23º c) do r.i.].
Decorre das regras da experiência e senso comum que as humidades e bolores, empolamentos de tintas ou rebocos poderão ter como causa provável uma deficiente impermeabilização na execução da obra, como aliás a requerente também o invoca.
Das mesmas regras da experiência comum resulta que a não eliminação de tais causas provocará um agravamento da situação, tão mais gravoso quanto maior forem as deficiências que originam este resultado.
E tal agravamento resultará ainda numa maior dificuldade, senão mesmo impossibilidade, em demonstrar como a obra ficou aquando da entrega ao dono da obra pela empreiteira.
Impossibilidade e agravamento da situação que tanto poderá resultar em prejuízo para a requerente como, acrescenta-se, para as requeridas.
A gravidade da situação, o risco de agravamento e em especial o receio de mais tarde – em momento próprio no decurso de ação a instaurar pela requerente – fazer prova do estado em que a obra foi a si requerente entregue, encontra-se nesta medida justificado logo ab initio[5].
Adicionalmente em resposta ao convite formulado pelo tribunal a quo, veio a requerente alegar factos novos, tal como as recorrentes agora o assinalam – alegando a necessidade de concluir a obra para conferir aos imóveis condições de habitabilidade para o seu agregado familiar; para evitar a caducidade do processo camarário e para garantia da segurança dos imóveis.
A alegação assim efetuada não é, ao contrário do alegado pelos recorrentes, contraditória com o inicialmente alegado. Antes complementar tal como o tribunal a quo o considerou.
E como tal admissível, já que se enquadra no objeto do procedimento instaurado.
Conclusão a que se chega, levando em consideração os seguintes pressupostos:
i- o objeto do processo é definido na petição inicial, conformado pelo pedido e causa de pedir.
ii- a causa de pedir é definida em função dos factos alegados pelo autor como fundamento da sua pretensão e que serão objeto de oportuna instrução.
Incidindo esta sobre:[6]
- os factos essenciais alegados pelas partes [constitutivos da causa de pedir - vide artigo 5º n.º 1 do CPC] que servem de pressuposto às normas de direito aplicáveis de acordo com a causa de pedir e pedido formulado;
- factos complementares ou concretizadores de factos essenciais à procedência do mencionado pedido [vide artigo 5º n.º 2 al. b) do CPC];
- e ainda factos instrumentais, indiciários dos factos principais ou complementares e relevantes para a decisão da causa [vide artigo 5º n.º 2 al. a) do CPC];
iii- são factos essenciais aqueles que fundamentam a pretensão do autor e identificam o facto jurídico gerador da causa de pedir; factos concretizadores aqueles “que especificam, clarificam, ou esclarecem conceitos ou expressões jurídicas utilizadas pelas partes nos articulados” e factos complementares “os que consubstanciam aditamentos ou acrescentos quando em causa tipos legais integrados por uma pluralidade de pressupostos de facto (tipos legais complexos).”[7],“aqueles que na economia de uma fattispecie normativa complexa, desempenham claramente uma função secundária ou acessória relativamente ao núcleo essencial da causa de pedir ou da defesa”[8].
Sempre se limitando uns e outros a “concretizar a relação material controvertida”, em observância pelos princípios estruturantes do processo civil do dispositivo e do contraditório e ainda da igualdade de armas e da imparcialidade do juiz, emanações do processo equitativo consagrado no artigo 20º nº 4 da CRP[9]
A causa de pedir / fundamento do procedimento instaurado foi o alegado risco de se vir a tornar impossível ou muito difícil a produção da prova da realidade alegada pela requerente.
Dificuldade sustentada em suma no risco de deterioração do executado nos termos alegados.
E quanto a este conspecto a requerente nada alegou de inovador.
Acrescentou factualidade nova, sim, relevantes para os prejuízos que a defeituosa execução da obra lhe carretam.
Bem como quanto à urgente necessidade de concluir a obra pelos motivos que elencou, questão que antes não invocara.
Mas quanto ao receio de mais tarde ser incapaz de realizar a prova do estado em que a obra lhe fora entregue, já inicialmente a requerente invocara o essencial – fundado na deterioração progressiva da obra pelo decurso do tempo, uso e desgaste.
O demais alegado quanto ao receio de progressiva deterioração da obra e mesmo segurança dos imóveis enquadra-se neste contexto na categoria de factos complementares, tal como o tribunal a quo o considerou.
Em suma não ocorreu alteração da causa de pedir nem do objeto processual.
Sendo legítima a consideração dos factos complementares alegados.
Nesta fase não recaía igualmente sobre a requerente fazer prova dos factos por si alegados, mormente dos defeitos que alegou existirem.
Essa prova é antes a própria essência do procedimento.
Através do mesmo visa-se demonstrar a existência dos defeitos.
Sobre a requerente recaía apenas invocar e demonstrar o periculum in mora que pelos motivos já expostos, de forma cabal e suficiente justificou.
Do exposto, resulta a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
***
IV. Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Porto, 2021-05-24.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
____________
[1] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[2] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Manuel Tomé Gomes, in www.dgsi.pt
[3] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[4] Cfr. neste sentido CPC Anotado José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, 2º volume, em anotação ao artigo 419º do CPC; ainda
[5] Sobre a forma de aferir a verificação do alegado periculum in mora com recurso às regras da experiência e senso comum cfr. Ac. TRC de 06/11/2007, nº de processo 1439/07.6TBFIG.CL; Ac. TRP de 30/05/2013, nº de processo 313/08.3TBGDM.P1 sobre o requisito específico do receio de impossibilidade ou dificuldade de realização da prova; Ac. TRG de 12/11/2003 nº de processo 1783/03-1 onde foi ponderado o risco da degradação da obra como fundamento bastante para justificar o periculum in mora para a prova do estado em que a obra foi entregue. Todos in www.dgsi.pt
[6] Francisco Almeida in Direito Processual Civil, Vol. II ed. Almedina 2015, p. 224 e segs..
[7] Maria José Capelo in RLJ, ano 143º, março abril de 2014, nº 3985 p. 295 citada igualmente por Francisco Almeida in ob. cit., p. 76/77, notas 104 e 107.
[8] Ac. STJ 24/04/2013, Relator Lopes do Rego in www.dgsi.pt/jtstj
[9] Tal como decidido no Ac. do STJ de 19/01/2017, nº de processo 873/10.9T2AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt em cujo sumário se pode ler:
“I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.
II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.
III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.”