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CONTRATO DE TRABALHO
HORÁRIO FLEXÍVEL
TRABALHADORA
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
CONCILIAÇÃO ENTRE VIDA PROFISSIONAL E VIDA PRIVADA
Sumário
I.–O trabalhador com filho menor de doze anos tem direito a que lhe seja fixado um regime de horário flexível, em que possa escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário (art.º 56.º, n.os 1 e 2 do CT).
II.–Como manifestação do seu poder de direcção na relação de trabalho estabelecida com o trabalhador, é ao empregador que cabe estabelecer o horário de trabalho flexível, não podendo aquele escolher os dias em que descansará e não prestará trabalho (art.os 56.º, n.º 3 e 212.º, n.º 1 do CT).
(Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–Relatório.
AAA. intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra BBB, pedindo que fosse declarado que esta aceitou o pedido de trabalho em regime de flexibilidade de horário que lhe apresentou e que, consequentemente, não tem a mesma direito a escolher os dias de descanso semanais devendo por isso trabalhar em qualquer dia da semana que lhe indique, alegando, resumidamente, que: –celebrou com a ré um contrato de trabalho em 14 de Junho de 2017 na qual esta se obrigou a exercer, mediante retribuição mensal, as funções de operadora de loja, funções que ainda mantém na loja sita no Centro Comercial de … – a ré remeteu-lhe, em 11 de Novembro de 2019 uma carta solicitando o que, no seu entender, correspondia a um pedido de horário flexível mais propriamente solicitando a fixação das folgas semanais rotativas para o sábado e domingo, carta essa que mereceu resposta da Autora em 18 de Novembro de 2019 e pela qual foi-lhe negada tal pretensão. – após resposta da ré em Novembro de 2019 enviou uma carta à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego datada de 21 de Novembro de 2019 na qual solicitou um parecer favorável à sua posição o qual, por missiva de 18 de Dezembro de 2019 foi-lhe negado por aquela entidade. – assim, não recusou o pedido de trabalho em regime de horário flexível uma vez que no seu entender, o horário flexível apenas respeita aos seus limites diários não cabendo no regime de trabalho prestado em regime de flexibilidade a dispensa de trabalho aos fins de semana ou em qualquer dia.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.
Para tal notificada, a ré contestou, alegando, em resumo, que: –tem dois filhos menores, respectivamente com 11 e 1 ano sendo que a mais nova frequenta uma creche que funciona de segunda a sexta feira das 07.00 às 18.30 horas, ambos os progenitores trabalham aos fins de semana e não têm com quem deixar os menores ao fim de semana. –cumpriu com todos os requisitos do pedido de horário flexível não tendo a autora apresentado qualquer razão imperiosa que obste à atribuição de horário flexível, mencionando que a inclusão do pedido que formulou se enquadra na definição de horário flexível uma vez que só este permite, no caso concreto, a conciliação da vida profissional com a vida familiar do trabalhador com filhos menores de 12 anos.
Proferido despacho saneador, foi dispensada a convocação da audiência prévia, julgada a instância válida e regular, fixado o objecto do processo e os temas de prova, dispensada a selecção da matéria de facto, admitidas as provas arroladas pelas partes e designada a data para realização da audiência de julgamento.
Realizada a audiência de julgamento, o Mm.º Juiz preferiu a sentença, na qual julgou a acção procedente e, em consequência, declarou que a ré não tinha o direito a escolher os dias de descanso semanais devendo trabalhar em qualquer dia da semana que a autora indique.
Inconformada, a ré interpôs recurso, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"DA IMPUGNAÇÃO DO PONTO C DOS FACTOS PROVADOS
1.–Face à prova documental, por declarações de parte e testemunhal produzida a ré/recorrente impugna o ponto C dos factos dados como provados: 'ocasionalmente a Ré e o marido trabalham aos fins de semana', pois, face à mesma, devia, sim, e quando muito, ter sido dado como provado que 'ocasionalmente a ré e o marido folgam aos fins de semana'; 2.–Da prova documental [Declaração n.º 22/2019 da Câmara Municipal de …. e Documentos 1 a 7 juntos com o requerimento de 08-10-2020, com a referência 36725871] resulta claro que 1) O Horário de Trabalho do marido da Ré é por turnos, em semanas alternadas e aos fins-de-semana; e (2) O Horário de trabalho da ré é, tendo em conta a sua natureza parcial, de 5 horas diárias e de 25 horas por semana, compreendidas de segunda-feira a domingo. 3.–Conjugando-se a prova documental, com a prova por declarações de parte e testemunhal resulta claro que (1) O Horário de Trabalho do marido da ré é por turnos, em semanas alternadas e aos fins de semana, folgando uma vez por mês ao fim de semana e (2) O Horário de trabalho da ré é, tendo em conta a sua natureza parcial, de 5 horas diárias e de 25 horas por semana, compreendidas de segunda feira a domingo, folgando rotativamente, no mínimo, cinco fins de semana por ano e 15 domingos e que nunca o Tribunal a quo poderia dar como provado que 'ocasionalmente a Ré e o marido trabalham aos fins de semana', mas, sim, quando muito, que 'ocasionalmente a ré e o marido FOLGAM aos fins de semana'. 4.–Pelo que, o trabalho da ré/recorrente e do marido, ao fim de semana, nada tem de ocasional, casual, fortuito, acidental, imprevisto, eventual, impugnando-se o referido ponto C e devendo o mesmo ser corrigido nos termos seguintes: 'ocasionalmente a ré e o marido folgam aos fins de semana' ou, de modo mais correcto que (1) O Horário de Trabalho do marido da ré é por turnos, em semanas alternadas e aos fins de semana, folgando uma vez por mês ao fim de semana e (2) O Horário de trabalho da ré é, tendo em conta a sua natureza parcial, de 5 horas diárias e de 25 horas por semana, compreendidas de segunda feira a domingo, folgando rotativamente, no mínimo, cinco fins de semana por ano e 15 domingos.
DA INCLUSÃO DO DESCANSO SEMANAL NO REGIME DE FLEXIBILIDADE DE HORÁRIO.
5–A autora/recorrida, recusou, sem qualquer justificação atendível, o pedido de trabalho em regime de horário flexível da ré/recorrente, apesar de estar o pedido devidamente fundamentado e comprovado documentalmente pela mesma e de se inserir nos artigos 56.º e 57.º do CT.
6.–A autora/recorrida recusou o referido pedido com o único fundamento de que não se inseria no artigo 56.º do CT, tendo, no entanto, circunscrito o objecto do litígio 'a saber se ao abrigo do pedido de horário flexível (cfr. art.º 56.º do CT) poderá ou não incluir as folgas de que beneficia pelo que deverá o Tribunal pronunciar-se sobre o art.º 57.º, n.º 7 do mencionado diploma. 'cfr. quarto parágrafo da fundamentação de direito da douta sentença.
7.–A ré/recorrente não efectuou qualquer 'escolha' de horário tendo solicitado o horário flexível nos únicos termos em que o poderia fazer, não trabalhando aos fins de semana que coincidam com os do seu marido, uma vez que, só assim, poderá conseguir, conciliar a sua vida profissional com a sua vida familiar, nos fins de semana em que ambos trabalham, já que os filhos menores, nomeadamente, a menor de um ano, face ao horário e funcionamento da creche (fechada aos fins de semana) nesse período, não tem com quem ficar, pois, também o progenitor trabalha ao fim de semana e não existem outros familiares que possam cuidar dela.
8.–Tendo sido requerido pela ré/recorrente, um horário flexível, entre as 10h00 e as 23h00 ou 24h com 1 hora de almoço, de 2.ª a 6.ª feira, e o sábado e domingo como dias de folga (nos fins de semana em que o seu marido, igualmente, trabalhe) motivado pela circunstância de não ter ninguém que possa ficar com a sua filha menor de um ano, quando o infantário que a mesma frequenta está encerrado, o horário requerido enquadra-se na definição de horário flexível, prevista no artigo 56.º do Código do Trabalho. 9.–Tendo a ré/recorrente indicado as horas de início e termo do período normal de trabalho diário, com folgas aos fins de semana que pretende, deve considerar-se que observou o disposto no art.º 57.º n.º 1, do Código do Trabalho, pois, cumpriu todos os requisitos do pedido de horário flexível, nomeadamente, solicitou o horário ao empregador com 30 (trinta) dias de antecedência, indicou o prazo previsto, dentro do limite aplicável e apresentou comprovativos de que os menores residem consigo em comunhão de mesa e habitação. 10.–A formulação de tal pedido continua a deixar a determinação do concreto horário de trabalho a cumprir, na esfera da autora/recorrida e o específico horário requerido permite observar os limites consagrados nos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Código do Trabalho, e dentro dos limites indicados, procurando possibilitar a conciliação da vida profissional com as responsabilidades da vida familiar da ré/recorrente, que tem a seu cargo dois filhos menores – que constitui, afinal, o fundamento e a base do horário flexível – e cabia à autora/recorrida e devia a mesma ter determinado o concreto horário de trabalho, a cumprir em cada momento, nos termos do art.º 212.º, n.º 1 do CT. 11.–A organização dos horários, nomeadamente a definição dos intervalos de descanso e dos períodos de presença obrigatória, dentro dos limites pretendidos pela ré/recorrente, nunca deixariam de pertencer à autora/recorrida, devendo, sempre, ser a mesma a determinar o concreto horário de trabalho. 12.–Assim entende a ré/recorrente que, face à aplicação do regime de flexibilidade de horário e às circunstâncias de facto dadas como provadas (sem prejuízo da impugnação do ponto C), o descanso semanal estará incluído, nesse conceito normativo, até porque o pedido formulado pela ré/recorrente, continua a deixar a determinação do concreto horário de trabalho a cumprir, na esfera da autora/recorrida, permitindo, o específico horário requerido, observar os limites consagrados nos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Código do Trabalho e, assim, apesar do horário solicitado ter horas fixas de início e termo do período diário de trabalho e abranger os dias de folga, o mesmo não deixa de ser um horário de trabalho flexível de acordo com a definição legal, pois, trata-se de um horário que visa adequar os tempos laborais às exigências familiares da ré/recorrente, em função dos seus filhos menores, um com onze anos e outra com um ano. 13.–E, deste modo, deveria o Tribunal a quo ter decidido e ordenado à autora/recorrida, a elaboração nos termos requeridos, do horário flexível à ré/recorrente, de acordo com o previsto nos n.os 3 e 4 do artigo 56.º do Código do Trabalho, de modo a permitir o exercício do direito à conciliação da actividade profissional com a vida familiar, consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, e a promoção da conciliação da actividade profissional com a vida familiar e pessoal dos/as trabalhadores/as, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 127.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 212.º, ambos do Código do Trabalho. 14.–E esta, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, é a melhor interpretação e a verdadeira essência, fundamento e núcleo da definição de horário flexível e não a interpretação e conceitos normativos estanques, isolados, literais e que não levam em conta nem se coadunam com a dinâmica e necessidades práticas dos trabalhadores na vida real".
A autora não contra-alegou.
Os autos foram com vista ao Ministério Público tendo o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto neles aposto o visto.
Colhidos os vistos,[1] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo apelante.
A apelante impugna a decisão proferida relativamente ao facto julgado provado em C., pretextando que "face à prova documental, por declarações de parte e testemunhal produzida a ré/recorrente impugna o ponto C dos factos dados como provados: 'ocasionalmente a Ré e o marido trabalham aos fins de semana', pois, face à mesma, devia, sim, e quando muito, ter sido dado como provado que 'ocasionalmente a ré e o marido folgam aos fins de semana', para o efeito especificando provas constituídas (documental) e constituendas (por declarações de parte e testemunhal).
O advérbio "ocasionalmente" significa "por acaso, de vez em quando, de modo incerto e pouco frequente",[2] o que, como está bem de ver, se traduz num conceito vago e indeterminado.
Ora, a doutrina[3] e a jurisprudência[4] tendem a considerar, em face do agora estatuído pelo art.º 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que relativamente a esse tipo de expressões pertinentes para a apreciação do litígio não deverão ser consideradas e, sendo-o, devem em recurso, mesmo ex officio,[5] ser eliminadas pois que só os factos proprio sensu relevam para o enquadramento jurídico destes.
Assim sendo, eliminar-se-á o vocábulo em questão da matéria de facto julgada provada.
O que atrás se disse vale, mutatis, mutandis, para a matéria julgada provada no segmento final do facto E), a saber: "… mas, tendo em conta o valor da sua retribuição, tal solução revelou-se incomportável".
Importa, portanto, apreciar apenas a seguinte a questão: – a apelante tinha direito a que a apelada lhe fixasse um horário flexível com descanso aos fins-de-semana em que também o seu cônjuge folgasse.
***
II–Fundamentos.
1.- Factos julgados provados.
"Por acordo:
1.–A Autora é uma sociedade comercial cujo objecto abrange a exploração, administração, gestão e desenvolvimento de espaços comerciais, bem como de todas as actividades com estes estabelecimentos relacionadas, nomeadamente o comércio, importação, distribuição e armazenagem de artigos não especificados, nomeadamente artigos para o lar, decoração, vestuário, calçado, artigos de uso e consumo pessoal e doméstico, produtos têxteis, electrodomésticos, equipamentos electrónicos, produtos alimentares, bebidas e tabaco, joalharia, ourivesaria, mobiliário, livros, papelaria, tabacaria, perfumes, produtos químicos e farmacêuticos, instrumentos musicais, bicicletas, veículos mecânicos de propulsão e actividades de restauração, hotelaria, decoração e cultura e lazer, transporte, exploração de teatros e cinemas, compra e venda, investimento e revenda de móveis e imóveis adquiridos para esse fim, consultoria para negócios e gestão, prestação de serviços, participação em outras sociedades com objecto análogo como forma do exercício de actividades económicas e tudo o mais que esteja relacionado ou seja conveniente para o desenvolvimento do objecto social aqui referido.
2.–Os estabelecimentos são caracterizados por terem uma área comercial ampla e situarem-se em centros comerciais, os quais estão em funcionamento durante os sete (7) dias de semana e com horário de abertura às 10:00 horas e encerramento entre as 23:00 e as 24:00 horas, todos os dias.
3.–Estando a Autora obrigada a manter as lojas abertas todos os dias e durante o horário de funcionamento dos respectivos centro comerciais, sob pena de lhe serem aplicadas penalizações comerciais em caso de incumprimento.
4.–Deste modo, a empresa realiza o seu objecto através da exploração de dez (10) lojas espalhadas por Portugal, a saber: …..
5.–A Autora e a Ré celebraram um contrato que apodaram de contrato de trabalho em 14 de Junho de 2017, no qual a última se obrigou a prestar trabalho à primeira sob as suas ordens e direcção, contra o pagamento de uma retribuição mensal.
6.–No início do contrato a Ré foi contratada para exercer as funções de operadora de loja.
7.–Funções que mantém actualmente.
8.–A descrição das funções desempenhadas pela Ré consiste em fazer atendimento ao cliente, caixa e reposição.
9.–A Ré exerce actualmente funções na loja … sita no Centro Comercial … com morada em ….
10.–No passado dia 11/11/2019 a Ré remeteu à Autora uma carta com o seguinte teor:
'Eu, BBB, portadora do cartão de cidadão …. colaboradora da empresa AAA situada no Centro Comercial …, venho por este meio expor a minha situação actual a qual peço a vossa atenção. Acerca de 1 mês dirigi-me aos Recursos Humanos do meu local de trabalho a expor as minhas dificuldades e impossibilidades de conseguir conciliar a minha vida familiar com a profissional, fiz o pedido para puder ter as minhas folgas aos fins de semana mas, foi recusado.
Tenho 2 filhos menores de 12 anos, o mais crescido com 10 anos e a mais nova com apenas 6 meses. O meu marido trabalha por turnos em semanas alternadas e fins-de-semana. A creche da minha filha funciona de 2.a F a 6.a F das 7horas às 18h30.
Por estes motivos que dou a conhecer venho solicitar a V. Exa a fixação das minhas folgas semanais rotativas para o sábado e domingo.
Agradeço a atenção dispensada para o me caso.
11.–Com a missiva supra indicada, juntou ainda dois atestados da junta de freguesia de … e …, uma declaração da Cresce e Jardim-de-infância 1.º de Maio e uma declaração numerada como … da Câmara Municipal de …. 12.–A carta foi recepcionada a no próprio dia. 13.–A Autora respondeu à Ré por carta entregue em mão em 18 de Novembro de 2019.
14.–A resposta apresentava o seu seguinte teor:
'Exma. Senhora,
Em resposta à V/carta em epígrafe, recepcionada nos nossos serviços a 11.11.2019, informamos que a decisão tomada pela AAA foi a seguinte:
Do seu pedido não resulta uma solicitação de horário flexível embora seja esse o regime jurídico aplicável. Assim, e à luz do dito regime de protecção da parentalidade, informamos que o regime de horário flexível não compreende a escolha dos dias de descanso, pelo que V. Exa., a não manter a rotatividade dos mesmos, será apenas porque a AAA entende que pode, algumas vezes, aceitar o seu pedido à luz do princípio da conciliação da vida privada com a Profissional. Contudo, esta cedência a existir será meramente temporária e durará pelo período que seja possível manter essa regalia.
Ou seja: não estará sujeita aos limites, mas sim sempre que for possível atender ao seu pedido.
Não existindo na AAA aceitação de fixação de dias de descanso.
Ficamos a aguardar que nos confirme se a solução acima indicada é satisfatória nos termos descritos, de modo a que possamos organizar os meios.
Com os melhores cumprimentos.
15.–Por carta entregue em Novembro Ré apresentou resposta à anterior missiva com o seguinte teor:
'Eu, BBB, portadora do CC …, colaboradora com o num. 10080370 da Empresa AAA do … venho por este meio, mais uma vez solicitar a V. Exa. a fixação das minhas folgas semanais rotativas para os fins de semana, pelo motivo de ter 2 filhos menores, um com 10 anos e uma bebé de 6 meses os quais vivem em comunhão de mesa e habitação comigo. O meu esposo trabalha por turnos incluindo fins-de-semana como dito na carta anterior, logo não é possível estarmos os dois ausentes ao fim de semana tendo uma bebé. Não havendo creche ao fim de semana e não tendo familiares com quem deixar (3 avós falecidos) e uma avó que mora em Inglaterra, não tenho como conciliar a vida familiar e profissional com as folgas rotativas.
Peço por favor a vossa compreensão para a minha necessidade, se não fosse assim não pediria. Sei que ao fim de semana as vendas são muito superiores em relação aos dias de semana sendo principalmente um Centro Comercial mas sendo a AAA uma empresa grande com um número alto de colaboradores (cerca de +- 100 julgo eu!) e com bastante organização diária, no meu ver não iria prejudicar o funcionamento da loja, nem é essa a minha intenção.
Mais uma vez agradeço a atenção dispensada,
16.–Recebida a resposta da Ré, a Autora enviou uma carta à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) datada de 21 de Novembro de 2019 (registo RH 4648 8894 2PT) e recebida a 25 de Novembro de 2019 com o seguinte teor:
'Assunto: Intenção de recusa da prestação de trabalho com flexibilidade de horário - descansos semanais fixos
Exmos. Senhores,
Vimos, em cumprimento do disposto no artigo 57.º, n.º 5, do Código do Trabalho, remeter o processo relativo à trabalhadora AAA.
Na sequência da missiva da mencionada trabalhadora, através da qual solicita a prestação de trabalho em regime de flexibilidade de horário vimos, pela presente, expor o seguinte:
A trabalhadora solicitou a prestação do trabalho em regime de flexibilidade de horário e concretamente que os dias de descanso semanal obrigatório e complementar coincidissem com o sábado e domingo.
A AAA apreciou de imediato e devidamente o pedido da trabalhadora e, em resposta, comunicou à trabalhadora que não entra no conceito de flexibilidade a escolha dos dias de descanso semanal.
Nos termos do artigo 56.º do Código do Trabalho (doravante designado por CT), o horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve: a)-Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário; b)-Indicar os períodos para o início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento; c)-Estabelecer um período para o intervalo de descanso não superior a duas horas.
Entende-se por horário flexível, aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário.
Assim, é ao empregador a quem lhe corresponde nos termos do artigo n.º 56 do CT estabelecer esses limites dentro dos quais este direito deve ser exercido. Em outros termos, é o empregador quem deve fixar o horário de trabalho, não sendo permitido que o trabalhador determine os dias em que pretende trabalhar.
A título de exemplo, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto n.º 2608/16.3T8MTS.P1 de 2 de Março de 2017 e do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 1080/14.7T8BRR.L1-4 de 18 de Maio de 2016.
Com efeito, resulta do referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o pedido de horário flexível com folgas fixas/descansos semanais fixos não se enquadra dentro da noção legal de trabalho flexível nos termos do artigo 56.º do CT. Consequentemente, se é ao empregador a quem lhe corresponde fixar os limites dos quais o trabalhador pode praticar o seu direito de flexibilidade horária, em nenhum caso pode ser aceite, que seja o trabalhador que determine os dias em que pretende trabalhar (e a sensu contrario, folgar).
17.–Onde juntou: i) a carta da Ré (e anexos); ii) a resposta da Autora (e anexos) e; iii) a pronúncia da Ré à carta anterior enviada pela Autora. 18.–Através de missiva datada de 18 de Dezembro de 2019 a CITE emitiu parecer desfavorável à intenção de recusa da Autora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível, apresentado pela Ré. 19.–Após receber o parecer desfavorável por parte da CITE aos 23 de Dezembro de 2019, a Autora entregou em mão à Ré aos 27 de Dezembro de 2019 uma missiva, dando-lhe conhecimento do mesmo.
Face à prova produzida em audiência de julgamento: A.-A Ré tem dois filhos menores, um menino com onze anos e uma menina, com um ano. B.-A menor mais nova frequenta uma creche que funciona de segunda a sexta-feira das 07.00 às 18.30. C.-Provado apenas que a Ré e o marido trabalham aos fins-de-semana. D.-Provado apenas que a Ré e o marido não têm com quem deixar os menores nos fins-de-semana em que trabalham. E.-A Ré tentou encontrar uma ama para os menores. F.-Os menores residem consigo. G.-A Ré, não tem qualquer suporte familiar para deixar os seus filhos.
2.–O direito.
Vejamos então a questão atrás enunciada, a qual, lembramos, consiste em saber se à apelante assistia o direito a que a apelada lhe fixasse um horário flexível de modo a que descansasse aos fins-de-semana em que também o seu cônjuge folgasse.[6]
O art.º 68.º da Constituição da República Portuguesa estabelece no n.º 1 que "Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país" e no n.º 2 que "A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes".
Enuncia ainda no art.º 59.º que "1. Todos os trabalhadores, (...) têm direito (...) a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar".
Em concretização daqueles princípios, veio o art.º 56.º do Código do Trabalho estatuir o seguinte:
"1.-O trabalhador com filho menor de 12 anos (…) tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos. 2.-Entende-se por horário flexível aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário. 3.-O horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve: a)-Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário; b)-Indicar os períodos para início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento; c)-Estabelecer um período para intervalo de descanso não superior a duas horas. 4.-O trabalhador que trabalhe em regime de horário flexível pode efectuar até seis horas consecutivas de trabalho e até dez horas de trabalho em cada dia e deve cumprir o correspondente período normal de trabalho semanal, em média de cada período de quatro semanas.
(…)".
Posto isto, pode dizer-se que o trabalhador com filho menor de doze anos tem direito a que lhe seja fixado um regime de horário flexível, ou seja, num horário em que pode escolher, dentro de certos limites, as horas de inicio e termo do período normal de trabalho diário (n.os 1 e 2 do citado art.º 56.º).
No entanto, o direito a estabelecer o horário de trabalho continua a pertencer ao empregador (n.º 3 do mesmo normativo), como manifestação, de resto, do seu poder de direcção na relação de trabalho estabelecida com o trabalhador.[7] Todavia, "o empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável".[8]
De tudo isto decorre que o direito em apreço a um horário flexível não é uma mera expressão da disponibilidade económico-financeira do trabalhador, seja na relação laboral com a empresa, seja na economia da família, mas é também e sempre que possível valorativa da relação parental-afectiva daquele com o filho, que conhece apenas como limites atendíveis "as exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou a impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável" (assim, por exemplo, mesmo que seja impossível substituir o trabalhador, o empregador pode negar o horário flexível a trabalhador indispensável mas não ao dispensável).
Assim e considerando o disposto no art.º 342.º, n.os 1 e 2 do Código Civil, pode dizer-se que ao trabalhador incumbe o ónus da prova das circunstâncias que compõem o seu direito ao estabelecimento de um horário flexível (art.º 56.º, n.º 1) e ao empregador os motivos para tal recusar.[9]
Num voo rápido sobre a jurisprudência publicada sobre esta temática vê-se com clareza que na sua generalidade tende para afastar pretensões em tudo similares àquela que a apelante colocou nos autos: foi assim no acórdão da Relação de Lisboa de 18-05-2016, no processo n.º 1080/14.7T8BRR.L1-4, citado pela apelante ("… muito menos lhe caberia determinar os dias em que pretende trabalhar – o horário flexível diz respeito aos limites diários...") e também nos acórdãos da mesma Relação de Lisboa, de 25-11-2020, no processo n.º 2748/19.7T8BRR.L1-4 ("II. No regime de horário flexível previsto no artigo 56.º n.º 1 do CT, o trabalhador apenas pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário, não já assim os dias de descanso semanal, que são definidos pelo empregador") e de 29-01-2020, no processo n.º 3582/19.0T8LRS.L1-4 ("IV. Tendo sido requerido pela trabalhadora demandada, que tem um horário semanal de 35 horas, um horário flexível, entre as 08h00 e as 16h00 horas de 2.ª a 6.ª feira, sendo o sábado e domingo dias de folga, apenas motivado pela circunstância de o marido também trabalhar por turnos, tal significa que a mesma se colocou fora do âmbito da prestação da actividade aos fins-de-semana e que, sem motivo suficientemente premente, em situação de beneficiária exclusiva – ao contrário do que acontece com os colegas – de um horário fixo, impedindo na prática o empregador de qualquer determinação que vá além da mera gestão do intervalo de descanso (art.º 213.º e 56.º, n.º 4, CT). Isto porque acabaria sempre por entrar e sair às horas que indicou, quaisquer que sejam os imperativos da actividade prosseguida pelo empregador. V. Nestas circunstâncias, que ultrapassam a razão de ser do direito, é de concluir que a trabalhadora não indicou um horário flexível, não tendo o empregador qualquer escolha razoável, e que o empregador tem motivo justificativo para recusar o seu pedido"), todos publicados em http://www.dgsi.pt.
O acento da solução propugnada nos arestos citados, com a qual concordamos, está na circunstância de não ser admissível que o trabalhador delimite o cumprimento da sua prestação a alguns dos dias do período de funcionamento do empregador uma vez que é a este que a lei confere a faculdade de fixar não só o horário como o próprio horário flexível (art.os 212.º, n.º 1 e 56.º, n.º 3 do Código do Trabalho); no pressuposto, naturalmente, de que nisso não exceda manifestamente os limites económicos e sociais desse direito (art.º 334.º do Código Civil).
Baixando ao caso concreto, vimos que se provou que a apelante tem dois filhos menores que com ela vivem em comunhão de mesa e habitação (um menino com 11 anos e uma menina com 1 ano),[10] que o seu cônjuge trabalha por turnos em semanas alternadas e fins-de-semana,[11] que a creche da filha funciona apenas durante os dias úteis da semana entre as 07:00 horas e as 18:30 horas[12] e que a família não tem estrutura alternativa para nos períodos coincidentes de trabalho dos pais confiar a custódia dos menores.[13]
Assim sendo, não custa concluir que cumpriu a parte que a lei lhe reservou do ónus da prova e que lhe assiste, em tese, o direito a que a apelada lhe fixe um horário flexível, mas não a delimitá-lo a certos dias do tempo de trabalho acordado.
Deste modo e não sendo caso de exercício abusivo do direito por parte da apelada,[14] não pode ser concedida a apelação antes confirmada a sentença apelada.
Apesar da apelação proceder quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, as custas serão integralmente suportadas pela apelante visto que tal se mostrou afinal irrelevante para a decisão do mérito da causa (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
***
III–Decisão.
Termos em que se acorda:
a)–no que concerne à decisão da matéria de facto:
i.-conceder provimento à apelação e eliminar a palavra "ocasionalmente" do facto julgado provado em C.; ii.-oficiosamente, eliminar o segmento "… mas, tendo em conta o valor da sua retribuição, tal solução revelou-se incomportável" do facto julgado provado em E.;
b)– no mais, negar provimento à apelação e confirmar a sentença apelada.
Custas pela apelante (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 30-06-2021.
(António José Alves Duarte) (Maria José Costa Pinto) (Manuela Bento Fialho)
[1]Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. [2]https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ocasionalmente. [3]Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, 1987, Coimbra Editora, volume III, páginas 206, 207 e 209 e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra Editora, páginas 391 e 392. [4]Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-03-2014, no processo n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1 e de 24-03-2015, no processo n.º 10795/09.0T2SNT.L1.S1 e da Relação de Coimbra, de 24-04-2012, no processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, da Relação de Évora, 28-06-2018, no processo n.º 170/16.6T8MMN.E1, da Relação do Porto, de 10-02-2020, no processo n.º 566/16.3T8ETR.P1, de 09-03-2020, no processo n.º 3789/15.9T8VFR.P1 e de 23-11-2020, no processo n.º 6107/18.0T8MTS.P1, da Relação de Guimarães, de 27-04-2017, no processo n.º 636/14.2T8VVD-F.G1, de 06-12-2018, no processo n.º 20/17.6T8TMC.G1 e de 30-04-2020, no processo n.º 1441/16.7T8BRG.G1 e da Relação de Lisboa, de 09-07-2014, no processo n.º 606/13.8TCFUN.L1-1,
de 12-11-2019, no processo n.º 5657/14.2 Y1PRT.L3-1,
de 09-07-2014, no processo n.º 606/13.8TCFUN.L1-1 e da Relação de Évora, 28-06-2018, no processo n.º 170/16.6T8MMN.E1, publicados em http://www.dgsi.pt. [5]Art.º 663.º, n.º 2 do Código de Processo Civil; neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, página 262. [6]Note-se que se poderá ter resultado dúvidas acerca do pedido da apelante à apelada ser de horário flexível, a questão ficou desde logo ultrapassada com a resposta que esta lhe deu, conforme resulta do facto provado n.º 14. [7]Acórdão da Relação do Porto, de 18-05-2020, no processo n.º 9430/18.0T8VNG.P1, publicado em http://www.dgsi.pt. [8]Art.º 57.º, n.º 2 do Código do Trabalho. [9]Acórdão da Relação de Évora, de 11-07-2019, no processo n.º 3824/18.9T8STB.E1, publicado em http://www.dgsi.pt. [10]Factos provados A. e F. [11]Factos provados 10., 14., 15. e C. [12]Facto provado B. [13]Facto provado D. a G. [14]Como resulta dos factos provados n.os 2, 3, 8 e 17.