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USUCAPIÃO
ANIMUS POSSIDENDI
PRESUNÇÃO
ANIMUS DOMINI
Sumário
I- A posse, o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr. artigo 1251º do Código Civil), integra dois elementos: o corpus possessório e o animus possidendi, sendo que a posse que releva para a usucapião tem de conter estes dois elementos, presumindo-se, no entanto, a posse (em nome próprio) naquele que tem o corpus. II- A aquisição de um direito, por usucapião, depende da verificação dos seguintes pressupostos: a existência de posse; que essa posse contenha determinadas características (a posse, suscetível de conduzir à usucapião, terá de ser, necessariamente, pública e pacífica e exercida em nome próprio); que o direito a constituir seja usucapível; que a posse se mantenha pelos prazos legais previstos e que seja invocada. III- Uma vez assente o exercício de um poder de facto sobre a coisa deve presumir-se que quem o exerce o faz em nome próprio (cfr. n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil), recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse idónea para adquirir por usucapião.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I. Relatório
A. R. e esposa M. C., residentes na Rua …, n.º …, Fafe intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra M. F., residente na Rua ..., n.º …, Fafe, pedindo seja a Ré condenada a: A. Reconhecer o direito de propriedade (raiz) dos Autores sobre o prédio identificado em 1; B. Restituir aos Autores a parcela de terreno de que se apropriou bem como a proceder à reconstrução do muro, recolocar a rede, grades e portão como antes ali existiam e C. Pagar aos Autores uma indemnização pelos danos causados, em montante que vier a ser fixado em execução de sentença.
Alegam, para tanto e em síntese, que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, com a área total de 2.386 m2, constituído por casa de habitação de rés-do-chão, com terreno de logradouro, sito na Rua ..., n.º ..., ..., Fafe, o qual lhes foi doado em 21/08/2015, com reserva de usufruto a favor da doadora.
Mais alegam que por si e antepossuidores há mais de 20/30 anos usam o dito prédio, de forma contínua, com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré e que o seu prédio se encontrava totalmente delimitado dos terrenos confinantes pois tinha muro de todos os lados, encimado com grades em ferro na frente para a Rua e rede de arame nas outras confrontações, mantendo-se inalterada a configuração do prédio, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 15, 20 anos.
Alegam ainda que este seu prédio confronta a poente com um terreno inculto de que a Ré se arroga proprietária e esta, desde há alguns meses a esta parte, começou a propalar que o mesmo se prolongava para dentro do prédio dos Autores, tendo depois, invadido o prédio dos Autores e ocupado uma faixa de terreno do logradouro, com cerca de 130 m2, tendo construído um muro novo no interior do prédio dos Autores e pretendendo que este constitua o limite do logradouro.
Que, para tal, a Ré ordenou e procedeu à remoção de um portão e das grades em ferro que encimavam o muro de vedação frente à Rua, numa extensão de cerca de 9 metros; procedeu à remoção da rede de vedação que encimava o muro na confrontação com o terreno inculto, numa extensão de cerca de 24 metros, demoliu o muro de vedação de blocos de cimento, na confrontação poente do prédio dos Autores, com cerca de 24 metros de extensão e 1 metro de altura e construiu um muro novo no interior do logradouro do prédio dos Autores, pretendendo com tal muro deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 9 metros para nascente, procedeu à retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno de que se apropriou, procedeu ao revolvimento da terra da parcela de terreno que ocupou, de modo a que esta tenha o mesmo aspecto do seu terreno inculto. Por fim, alegam os autores que se sentem ameaçados e muito constrangidos com a espoliação de que foram vítimas.
A Ré contestou, afirmando que a faixa de terreno que ocupou sempre lhe pertenceu, tendo apenas permitido à ora usufrutuária do prédio dos Autores, na altura proprietária, que ocupasse a dita parcela, visto que tinham boas relações de família e foi-lhes dito que a casa seria deixada em testamento aos seus filhos; e que, tendo a usufrutuária doado o prédio aos Autores, não o deixando, portanto, aos seus filhos, decidiu recuperar a dita parcela.
Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, bem como o despacho que definiu o objecto do litígio e fixou os temas de prova.
Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva: “Em conformidade com o exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaro os autores proprietários (da raiz) do prédio descrito em 1.1. da matéria de facto dada como provada, no qual se inclui a parcela identificada em 1.13., determinando-se ainda que a Ré proceda à restituição desta aos autores. Mais se determina que a Ré proceda à reconstrução do muro demolido, à colocação da respectiva rede, grades e portão, nos termos em que antes ali existiam. Relega-se para liquidação de sentença o apuramento do concreto valor dos prejuízos causados pela retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno supra referida. No mais, improcede a acção.
*
As custas da acção correm a cargo de autores e ré, na proporção de 1/5 para os primeiros e 4/5 para a segunda. Registe e notifique.”
Inconformados, os Autores vieram interpor recurso da sentença, tendo sido proferida Decisão Singular nesta Relação em 19/12/2019 determinando, ao abrigo do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 662º do Código de Processo Civil, a anulação da sentença e repetição do julgamento com vista à ampliação da matéria de facto relativamente aos seguintes factos:
“1. A doadora / usufrutuária do prédio melhor identificado no artigo 1.º da Petição Inicial, dona de uma parcela de terreno que confronta do lado poente com um prédio rústico do aludido irmão da aqui Ré, construiu aí uma casa e mais tarde quis vedar o seu espaço?
2. E para não seguir os seus limites, quis e procedeu ao alinhamento do terreno ocupando uma parcela de terreno do falecido irmão e da cunhada, a aqui Ré, com a largura de sensivelmente 6 metros e comprimento de 20 metros?
3. Mas bem sabendo que esse terreno não era sua propriedade e nem estava na sua posse, atendendo ao bom relacionamento existente entre os irmãos e cunhadas, a ré e seu falecido marido toleraram que ocupasse a dita parcela de terreno do seu prédio;
4. Sob a condição da casa, com o terreno da Ré e de seu falecido marido integrado, ficar em testamento para este ou para os seus filhos?
5. Tendo a Ré conhecimento dessa doação, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade e que deixou aquela ocupar nas aludidas condições?
6. A usufrutuária reconhece e sempre reconheceu que de facto ocupava a dita parcela de terreno referidas condições?”
Realizado o julgamento veio a ser proferida sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva: “Em conformidade com o exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, declaro os autores proprietários (da raiz) do prédio descrito em 1.1. da matéria de facto dada como provada, no qual se inclui a parcela identificada em 1.13., determinando-se ainda que a Ré proceda à restituição desta aos autores. Mais se determina que a Ré proceda à reconstrução do muro demolido, à colocação da respectiva rede, grades e portão, nos termos em que antes ali existiam. Relega-se para liquidação de sentença o apuramento do concreto valor dos prejuízos causados pela retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno supra referida. No mais, improcede a acção.
*
As custas da acção correm a cargo de autores e ré, na proporção de 1/5 para os primeiros e 4/5 para a segunda. Registe e notifique”.
Inconformados, os Autores vieram interpor recurso da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 28/10/2020
2. Com recurso à reapreciação da prova gravada, a Recorrente impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 1.4, 1.8, 1.10, 1.13, 1.14 dos factos julgados provados, e dos pontos 2.3, 2.4, 2.5 e 2.6 dos factos julgados não provados.
3. Os meios de prova infra descriminados demandam que, sobre aqueles factos, seja proferida a seguinte decisão:
1.4 – Não provado.
1.8 – Não provado.
1.10 – PROVADO APENAS QUE em data não concretamente apurada, a Ré construiu um muro;
1.13 – PROVADO APENAS QUE a Ré demoliu um muro de vedação de blocos de cimento;
1.14 – Não provado.
2.3 – PROVADO QUE a doadora / usufrutuária bem sabia que a parcela de terreno descrita em 1.17 não era sua propriedade e nem estava na sua posse, posto que, atendendo ao bom relacionamento existente entre os irmãos e cunhadas, a Ré e seu falecido marido toleraram que ocupasse a dita parcela de terreno do seu prédio;
2.4. PROVADO QUE o falecido marido da Ré tolerou a ocupação na condição de a doadora / usufrutuária lhe deixar o prédio descrito em 1.1 em testamento, ou para os seus filhos;
2.5 – PROVADO QUE tendo a Ré conhecimento da doação descrita em 1.3, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade;
2.6 – PROVADO QUE a doadora / usufrutuária reconhece e sempre reconheceu que de facto ocupava a dita parcela de terreno nos termos supra descritos em 2.3 e 2.4.
4. Há discrepância entre o julgado provado e o vertido na motivação da decisão da matéria de facto:
a. Julga-se provado no ponto 1.14 que a Recorrente se apoderou dos objecto ali descrito, porém, de acordo com a motivação da decisão da matéria de facto, as testemunhas arroladas pelos AA. apenas descreveram que a Ré retirou as coisas que existiam na dita parcela de terreno, nada tendo dito sobre o facto de aquela se ter apropriado das mesmas ou sobre o local onde elas se encontram actualmente.
b. Julga-se provado no ponto 1.13 que a Ré pretendeu “deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 6 metros para nascente”, porém, de acordo com a motivação da decisão da matéria de facto, as testemunhas inquiridas mencionaram “valores” tão dispares como 4, 5 e 6 metros, sendo certo que não foi realizada perícia e nem inspecção judicial, não dispondo o Tribunal a quo de quaisquer outros meios de prova que permitem, com a necessária segurança, concluir por uma eventual ocupação superior a 4 metros de largura;
5. A prova judicial deve ser unívoca (e não equivoca), sendo que a mera possibilidade do contrário torna a prova insuficiente, como nos dá conta, além do mais, o disposto no artigo 346.º do Código Civil;
6. São patentes as contradições e imprecisões detectadas na prova testemunhal produzida pelos AA.:
a. » F. G. afirmando não saber há quanto tempo está vedado o prédio que hoje é dos AA., apesar de viver no local há cerca de 25 anos;
» A. P. afirmando que os muros (sem especificar quais) foram construídos pela D. P. C. alguns meses depois da construção da casa que hoje é dos AA.;
» A. C. afirmando que o muro em causa foi construído pelo falecido marido da Recorrente, muito tempo antes da construção da casa (apontando para cerca de 30 anos);
» M. N. afirmando que os muros foram todos construídos em simultâneo, depois de concluída a construção da casa;
b. » F. G. afirmando que o prédio que hoje é dos AA. era um campo de cultivo enquanto o prédio da Recorrente era uma bouça;
» A. P. afirmando que não havia distinção entre
o terreno da D. P. C. e o terreno da Recorrente, que ambos eram “bouças”;
» A. C. afirmando que o prédio que hoje é dos AA. era um campo de cultivo enquanto o prédio da Recorrente era uma mata, existindo uma “parede” antiga que os dividia, ficando o campo mais baixo que a mata, e passando um rego de água no sopé daquela “parede” antiga;
» M. N. afirmando que havia distinção entre os dois prédios e que a D. P. C. lhe comentou que, aquando da construção do muro antigo, ocupou um “bocado de terreno” da bouça do irmão;
c. » F. G. afirmando que não sabe se primeiro foi construído o novo muro ou destruído o antigo;
» A. P. afirmando que antes da demolição do muro antigo, foi primeiro construído o muro novo, tendo a Recorrente acedido ao local através do portão que foi aberto para o efeito e na presença da D. P. C.;
» A. C. afirmando que a Ré primeiro demoliu o muro antigo e só depois construiu o muro novo;
» M. N. afirmando que primeiro foi construído o novo muro, sem qualquer reacção ou constrangimento dos AA., só depois tendo sido destruído o muro antigo, tendo a obra sido realizada de forma pacífica e sem oposição;
d. » F. G. não sabendo se o muro antigo respeitava os limites dos terrenos da D. P. C. e da Recorrente;
» A. P. reiterando que não havia distinção entre o terreno da D. P. C. e o terreno da Recorrente, que ambos eram “bouças”;
A. C. deixando “escapar” que do poço para cima era a “mata”, » isto é, o terreno da Recorrente…;
» M. N. admitindo que a Dr. P. C. lhe comentou que, aquando da construção do muro antigo, ocupou um “bocado de terreno” da bouça do irmão, esclarecendo que “Eles eram todos amigos… E o irmão… Ela dava-lhes a eles e eles davam-lhe a ela… Isso era uma cominação entre eles”…
7. Devidamente conjugados, os depoimentos das testemunhas arroladas pelos AA. já indiciavam:
a. Existir uma delimitação bem patente entre o campo de cultivo que hoje é o prédio urbano dos AA. e a bouça que hoje é o prédio rústico da Recorrente;
b. Que o muro foi construído no interior do prédio rústico da Recorrente; c. Que houve um acordo entre a D. P. C. (anterior proprietária do prédio
dos AA.) e o falecido marido da Recorrente relativamente à parcela de terreno em causa;
d. Que esse acordo, com toda a probabilidade, seria também do conhecimento dos próprios AA., uma vez que, segundo afirmou a testemunha M. N., não reagiram e nem ficaram incomodados quando tomaram conhecimento da construção do novo muro pela Recorrente;
8. A prova produzida pelos RR. permitiu colmatar todas as imprecisões, incertezas e contradições evidenciadas pelas testemunhas arroladas pelos AA., tornando claros os contornos em que foi construído o muro antigo, sendo o mais importante desses depoimentos o de P. C., usufrutuária e anterior plena proprietária do prédio urbano que hoje é dos AA., que apesar de ter 86 anos, apresentou-se absolutamente lúcida, tendo afirmado à saciedade que:
a. Não doou e nem podia doar aos AA. aquilo que não lhe pertence, insistindo por mais do que uma vez que o seu falecido irmão, marido da Recorrente, não lhe deu a parcela de terreno em causa, pelo contrário, era ela que pretendia deixar-lhe em testamento todo o seu prédio, assim ficando resolvida e ultrapassada a questão do local onde foi construído o muro;
b. Mandou fazer um poço de água para abastecimento daquela, o que fez no limite do seu prédio, em local onde existia uma borda / muro de silvas e terra;
c. Quis vedar o seu prédio mas, porque não pretendia seguir os seus limites, mercê da localização do poço de água e não querendo estrangular o acesso ao mesmo, quis e procedeu ao alinhamento do terreno ocupando uma parcela de terreno do falecido irmão e da cunhada, a aqui Recorrente;
d. Foi chamada à atenção pelo seu irmão e bem sabia que esse terreno não era sua propriedade;
e. Atendendo ao bom relacionamento existente entre o irmão, a quem tratava como um filho, e à circunstância daquela pretender fazer testamento a favor daquele (o que fez), deixando-lhe a dita casa de habitação e todo o terreno de logradouro, o seu falecido irmão tolerou que ocupasse a parcela de terreno;
f. Como, entretanto, o irmão da usufrutuária faleceu e mais tarde a testemunha fez doação da raiz ou nua propriedade do prédio à A. esposa, a Recorrente, tendo tomado conhecimento dessa doação, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade e que deixou aquela ocupar nas aludidas condições;
g. Sempre reconheceu que de facto ocupava o terreno nas referidas condições, não sendo sua proprietária;
h. Concordou e aceitou que a Recorrente construísse o novo muro e demolisse o velho, tendo dado o seu aval às obras, que acompanhou, e tendo permitido o acesso à parcela de terreno, por forma a demarcar ambos os prédios pelos seus verdadeiros limites;
i. Era do conhecimento dos AA. que a dita parcela de terreno tinha sido ocupada nos termos sobreditos, sendo certo que aqueles nunca nada fizeram na mesma;
j. As obras feitas no seu prédio, designadamente a colocação da telha, após a doação, foram por si pagas, tendo ascendido ao montante de €5.000,00.
9. O depoimento de P. C., é de todo consistente com os demais meios de prova produzidos, porque além de ter sido parcialmente confirmado pelas testemunhas arroladas pelos AA., foi ainda integralmente corroborado pelas demais testemunhas arroladas pela Recorrente.
10. J. C. sobrinho da Recorrente e da D. P. C., e irmão da A. esposa, revelou conhecimento directo dos factos e vive no local há 49 anos, e contrariamente ao vertido na motivação da decisão da matéria de facto, circunstanciou no tempo, de forma devidamente fundamentada, o momento da construção do muro, afirmando que foi no ano de 2000: «Eu comecei a construir em 2000 e foi antes uns quinze dias a três semanas que dividiram, que eles fizeram aquele muro lá»;
11.Mais declarou o seguinte:
a. Inicialmente e antes da construção da casa que hoje é dos AA., havia uma clara distinção entre o prédio da D. P. C. (que eram dois campos de cultivo) e o prédio da Recorrente (que era uma bouça), havendo até um desnível de cerca de 2 a 3 metros, estando aquele mais baixo e este mais alto;
b. A cerca de 40 a 50cm de distância do limite das duas propriedades, local onde passava um rego de consortes, o seu pai construiu o poço de água que ainda hoje existe no local e é visível nas fotografias juntas aos autos;
c. A D. P. C., ao construir o muro de vedação, tinha perfeita consciência de que ocupava cerca de 5 a 6 metros da bouça do irmão, o que este tolerou porque, como a própria D. P. C. transmitiu a todos os sobrinhos, incluindo a A. mulher, prometeu que o prédio ficaria para o irmão em testamento;
d. Tais planos ficaram gorados com a prematura e inesperada morte do falecido marido da Recorrente, sendo que, a partir de então, sempre a D. P. C. transmitiu às pessoas a quem ia prometendo “dar” ou “deixar” o prédio urbano que hoje é dos AA. que, um dia, teriam de se entender com a Recorrente relativamente à dita parcela de terreno que por ela foi ocupada, o que disse, inclusive, à testemunha, a quem também chegou a prometer “dar” ou “deixar” o aludido prédio;
e. A D. P. C. sempre teve plena consciência de que tinha ocupada uma parcela de terreno que não lhe pertencia e que sempre disse, como ainda hoje diz, que a mesma pertence ao falecido irmão.
f. Foi ele próprio que descobriu a doação da D. P. C. aos AA., através do solicitador M. P., e que a reposição da situação anterior, com a construção de um novo muro (com licença camarária) e demolição do antigo foi realizado de forma pacífica, com a presença e o acordo da D. P. C., que muito bem conhecia os limites de ambos os prédios.
12.A testemunha C. A., pai da A. esposa e da testemunha que antecede, declarou o seguinte:
a. Foi ele que faz o poço de água que ainda hoje existe no prédio dos AA.; b. Inicialmente e antes da construção da casa que hoje é dos AA., havia uma clara distinção entre o prédio da D. P. C. (que eram dois campos de cultivo) e o prédio da Recorrente (que era uma bouça), havendo até um desnível entre os dois prédios, estando aquele mais baixo e este mais alto;
c. Construiu o poço rente ao limite do prédio que era da D. P. C., havendo apenas uma distância de 50cm para o início da borda da bouça da Recorrente, local onde passava um rego de água de consortes.
d. A D. P. C., ao construir o muro de vedação, tinha perfeita consciência de que ocupava uma parcela de terreno da bouça do irmão, tanto assim sendo que sempre o reconheceu ao longo dos anos, o que transmitiu à própria testemunha, dizendo que a dita parcela de tereno que ocupou era do seu falecido irmão e, actualmente, da Recorrente e dos filhos.
13.A testemunha J. F., que vive no local dos factos desde 1978, declarou o seguinte:
a. Inicialmente e antes da construção da casa que hoje é dos AA., havia uma clara distinção entre o prédio da D. P. C. (que eram dois campos de cultivo) e o prédio da Recorrente (que era uma bouça), estando aquele mais baixo e este mais alto;
b. Entre os dois prédios passava um rego de consortes, precisamente encostado ao poço de água que ainda hoje existe no local e é visível nas fotografias juntas aos autos;
c. A D. P. C., ao construir o muro de vedação, ocupou cerca de 5 metros da bouça do irmão, o que este tolerou porque, como a própria D. P. C. lhe transmitiu, esta tinha-lhe prometido que, à sua morte, o prédio urbano e todo o terreno lhe ficaria a pertencer por herança;
d. A testemunha que a D. P. C. falava abertamente sobre o tema, tendo por várias vezes confirmado que fez testamento a favor do falecido marido da Ré e, posteriormente, também favor de um dos filhos desta;
e. A D. P. C. sempre teve plena consciência de que tinha ocupada uma parcela de terreno que não lhe pertencia e que sempre disse, como ainda hoje diz, que a mesma pertence ao falecido irmão;
f. a D. M. F. construiu o novo muro na presença da D. P. C. e sem qualquer oposição desta, não tendo ocupado mais terreno do que aquele que lhe pertence, uma vez que até deixou mais espaço relativamente ao poço de água.
14.Em síntese, a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo não respalda na prova produzida, incluindo nos próprios depoimentos das testemunhas arroladas pelos AA., senão vejamos:
a. Quanto ao ponto 1.4, não há notícia de que os AA. alguma vez tenham tomado posse do prédio, uma vez que nele continua a habitar, como sempre sucedeu, a testemunha P. C., sendo certo que as obras entretanto realizadas foram sempre suportadas pela dita testemunha, que o confirma;
Também os AA. não apresentaram qualquer elemento probatório passível de desmentir a aludida testemunha, designadamente, documentos comprovativos do pagamento de alguma obra ou benfeitoria.
b. Quanto ao ponto 1.8, a verdade é que a única testemunha que logrou estabelecer no tempo, com segurança e com a devida fundamentação e sustentação factual, o ano da construção do muro, foi J. C., que garantiu que foi no ano de 2000;
A este respeito, as testemunhas arroladas pelos AA. foram absolutamente inconsistentes e equívocas, sempre tomando por referência o momento da construção da casa que hoje é dos AA.; Quando, o certo é que, não ficou provado, ou sequer indiciado, nos autos o ano da construção da casa dos AA.
c. Quanto aos pontos 1.10 e 1.13, todas as testemunhas inquiridas, incluindo as arroladas pelos AA., deixaram bem claro que, inicialmente e antes da construção da casa que hoje é dos AA., havia uma clara distinção entre o prédio da D. P. C. (que eram dois campos de cultivo) e o prédio da Recorrente (que era uma bouça), estando aquele mais baixo e este mais alto;
Concretizaram ainda que entre os dois prédios passava um rego de consortes, precisamente encostado ao poço de água que ainda hoje existe no local e é visível nas fotografias juntas aos autos;
E que a D. P. C., ao construir o muro de vedação, ocupou cerca de 6 metros da bouça do irmão, o que aquela sempre reconheceu;
Pelo que não se pode concluir, como fez o Tribunal a quo, que a Recorrente tenha construído um novo muro “no interior do prédio referido em 1” ou que tenha pretendido “com tal muro deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 6 metros para nascente”, especialmente quanto resultou da prova produzida que a Recorrente construiu o novo muro na presença da D. P. C., sem qualquer oposição desta, não tendo ocupado mais terreno do que aquele que lhe pertence, uma vez que até deixou mais espaço relativamente ao poço de água do que existia antes.
d. Quanto ao ponto 1.14, as testemunhas arroladas pelos AA. apenas descreveram que a Ré retirou as coisas que existiam na dita parcela de terreno, nada tendo dito sobre o facto de aquela se ter apropriado das mesmas ou sobre o local onde elas se encontram actualmente.
15.Daí que este Tribunal ad quem esteja em condições de proceder à alteração da decisão da matéria de facto, nos termos supra alegados na conclusão 3;
16.Concomitantemente, com base nos mesmos meios de prova, a Recorrente logrou provar, à saciedade, os factos alegados nos artigos 11.º a 24.º, 26.º e 27.º da Contestação (condensados e levados aos pontos 2.3 a 2.6 dos factos julgados não provados), que devem ser aditados à matéria de facto provada com a redacção constante da conclusão 3;
17.Ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, mesmo em face da factualidade fixada pela primeira instância, não está verificado o requisito do “animus”, tanto mais que os próprios AA. não ousaram fazer tal alegação;
18.Na realidade, os factos alegados pelos AA. nem sequer permitem o preenchimento do requisito do “corpus”, isto porque se limitaram a alegar que, “Por si e antepossuidores, os Autores há mais de 20/30 anos usam o dito prédio, de forma contínua, com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré” [sublinhado nosso];
19.Os próprios AA. só alegaram que “O terreno de logradouro encontrava-se cultivado e cuidado”, sendo também assim que o Tribunal a quo julgou provado o constante do ponto 1.7, nada se dizendo sobre quem o cultivava e cuidava;
20.O mero “uso” da coisa, tal qual alegado e provado nos autos, não se subsume ao conceito de posse, porque não traduz, em si, o exercício do poder de facto sobre a coisa, por forma correspondente ao exercício material do direito de propriedade ou de outro direito real;
21.Em face dos factos alegados e provados, nem sequer se coloca a situação de dúvida que autoriza o recurso à presunção do art.º 1252.º, n.º 2 do Código Civil, porque não está provado o exercício do poder de facto pelos AA.;
22.Sem prescindir, o certo é que, perante a alteração da decisão da matéria de facto que se impõe, dúvidas não subsistem que os AA. não lograram provar o direito de propriedade sobre a parcela de terreno ocupada pela Recorrente.
23.Ainda, perante a prova dos factos alegados na Contestação, de onde resulta à saciedade que a antecessora dos AA. (testemunha P. C.) sempre reconheceu estar a ocupar uma parcela de terreno propriedade da Recorrente e com a mera tolerância desta, sempre se ilidiria a presunção decorrente do 1252.º, n.º 2 do Código Civil;
24.Não se tendo provado que a Recorrente destruiu ou se apoderou de algum dos objectos descritos no ponto 1.14 da fundamentação de facto, não pode esta ser condenada a indemnizar os AA. pelo seu valor;
25.Sem prescindir, a factualidade apurada nos pontos 1.16, 1.17, 2.3, 2.4, 2.5 e 2.6 é passível de integrar uma solução ou instituto jurídico incompatível com a alegada aquisição do direito de propriedade sobre a questionada parcela de terreno, designadamente, uma substituição fideicomissária (art.º 962.º do Código Civil), posto que, a considerar-se que houve uma “cedência” da parcela de terreno, sempre a mesma teve como condição o prédio ser deixado em testamento ao falecido marido da Ré ou aos filhos desta.
26.A douta sentença recorrida viola os art.os 962.º, 1252.º, n.º 2 e 1253.º do Código Civil”.
Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso e pela consequentemente revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1 - Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 1.4), 1.8), 1.10), 1.13) e 1.14) dos factos provados e quanto aos pontos 2.3), 2.4), 2.5) e 2.6) dos factos não provados;
2 - Determinar se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos Factos considerados provados em Primeira Instância: 1.1. Está descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º .../19930617, da freguesia de ..., o prédio urbano, constituído por casa de habitação de rés-do-chão, com terreno de logradouro, sito na Rua ..., nº ..., ..., Fafe, inscrito na matriz sob o art. ...; 1.2. Este prédio está inscrito a favor dos aqui autores pela apresentação n.º … de 2015/08/25; 1.3. Por documento particular feito ao abrigo da Lei 116/2000 de 4 de julho, datado de 21-08-2015, denominado contrato de doação P. C. declarou doar e os aqui autores declararam aceitar a doação do prédio supra referido, com reserva de usufruto a favor da primeira; 1.4. Logo nessa data os Autores tomaram posse do seu prédio e procederam a obras de reparação dos edifícios; 1.5. Por si e antepossuidores, os Autores há mais de 20/30 anos usam o dito prédio, de forma contínua, com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré; 1.6. O prédio dos Autores encontrava-se totalmente delimitado dos terrenos confinantes pois tinha muro de todos os lados, encimado com grades em ferro na frente para a Rua e rede de arame nas outras confrontações; 1.7. O terreno de logradouro encontrava-se cultivado e cuidado. 1.8. Mantendo-se inalterada a configuração do prédio dos Autores, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos. 1.9. O prédio dos Autores confronta a poente com um terreno inculto de que a Ré se arroga proprietária; 1.10. Em data não concretamente apurada, a Ré construiu um muro novo no interior do prédio referido em 1º; 1.11. A Ré procedeu à remoção de um portão e das grades em ferro que encimavam o muro de vedação frente à Rua; 1.12. Procedeu à remoção da rede de vedação que encimava o muro na confrontação com o terreno inculto; 1.13. A Ré demoliu o muro de vedação de blocos de cimento, na confrontação poente do prédio dos AA., com cerca de 20 metros de extensão e 1 metro de altura e construiu um muro novo no interior do logradouro do prédio dos AA., pretendendo com tal muro deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 6 metros para nascente. 1.14. A Ré procedeu à retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno de que se apropriou. 1.15. A Ré procedeu ao revolvimento da terra da parcela de terreno que ocupou; 1.16. A doadora / usufrutuária do prédio melhor identificado no artigo 1.º da Petição Inicial, dona de uma parcela de terreno que confronta do lado poente com um prédio rústico do aludido irmão da aqui Ré, construiu aí uma casa e mais tarde quis vedar o seu espaço; 1.17. E para não seguir os seus limites, quis e procedeu ao alinhamento do terreno ocupando uma parcela de terreno do falecido irmão e da cunhada, a aqui Ré, com a largura de sensivelmente 6 metros e comprimento de 20 metros.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância: 2.1. Para a reposição da situação anterior, os Autores terão de contratar pessoal e máquinas, adquirir materiais e outros, onde terão de gastar um montante nunca inferior a € 10.000,00. 2.2. Os Autores sentiram-se ameaçados e muito constrangidos com a espoliação de que foram vítimas;
2.3. Mas bem sabendo que esse terreno não era sua propriedade e nem estava na sua posse, atendendo ao bom relacionamento existente entre os irmãos e cunhadas, a ré e seu falecido marido toleraram que ocupasse a dita parcela de terreno do seu prédio;
2.4. Sob a condição da casa, com o terreno da Ré e de seu falecido marido integrado, ficar em testamento para este ou para os seus filhos.
2.5. Tendo a Ré conhecimento dessa doação, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade e que deixou aquela ocupar nas aludidas condições;
2.6. A usufrutuária reconhece e sempre reconheceu que de facto ocupava a dita parcela de terreno referidas condições.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto
Sustentam os Recorrentes que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 1.4), 1.8), 1.10), 1.13) e 1.14) dos factos provados e quanto aos pontos 2.3), 2.4), 2.5) e 2.6) dos factos não provados, devendo ser proferida a seguinte decisão: “1.4 – Não provado. 1.8 – Não provado. 1.10 – PROVADO APENAS QUE em data não concretamente apurada, a Ré construiu um muro; 1.13 – PROVADO APENAS QUE a Ré demoliu um muro de vedação de blocos de cimento; 1.14 – Não provado. 2.3 – PROVADO QUE a doadora / usufrutuária bem sabia que a parcela de terreno descrita em 1.17 não era sua propriedade e nem estava na sua posse, posto que, atendendo ao bom relacionamento existente entre os irmãos e cunhadas, a Ré e seu falecido marido toleraram que ocupasse a dita parcela de terreno do seu prédio; 2.4. PROVADO QUE o falecido marido da Ré tolerou a ocupação na condição de a doadora / usufrutuária lhe deixar o prédio descrito em 1.1 em testamento, ou para os seus filhos; 2.5 – PROVADO QUE tendo a Ré conhecimento da doação descrita em 1.3, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade; 2.6 – PROVADO QUE a doadora / usufrutuária reconhece e sempre reconheceu que de facto ocupava a dita parcela de terreno nos termos supra descritos em 2.3 e 2.4”.
Vejamos se lhes assiste razão.
Os factos em causa têm a seguinte redacção: “1.4. Logo nessa data os Autores tomaram posse do seu prédio e procederam a obras de reparação dos edifícios; 1.8. Mantendo-se inalterada a configuração do prédio dos Autores, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos. 1.10. Em data não concretamente apurada, a Ré construiu um muro novo no interior do prédio referido em 1º; 1.13. A Ré demoliu o muro de vedação de blocos de cimento, na confrontação poente do prédio dos AA., com cerca de 20 metros de extensão e 1 metro de altura e construiu um muro novo no interior do logradouro do prédio dos AA., pretendendo com tal muro deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 6 metros para nascente. 1.14. A Ré procedeu à retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno de que se apropriou. 2.3. Mas bem sabendo que esse terreno não era sua propriedade e nem estava na sua posse, atendendo ao bom relacionamento existente entre os irmãos e cunhadas, a ré e seu falecido marido toleraram que ocupasse a dita parcela de terreno do seu prédio; 2.4. Sob a condição da casa, com o terreno da Ré e de seu falecido marido integrado, ficar em testamento para este ou para os seus filhos. 2.5. Tendo a Ré conhecimento dessa doação, reclamou a parcela de terreno, que é sua propriedade e que deixou aquela ocupar nas aludidas condições; 2.6. A usufrutuária reconhece e sempre reconheceu que de facto ocupava a dita parcela de terreno referidas condições”.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto. In casu mostram-se cumpridos pelos Recorrentes os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil.
Conforme decorre do disposto no artigo 607º n.º 5 do CPC a prova é apreciada livremente; prevê este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).
A prova há-de ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica. Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, página 384) “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, página 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a “livre apreciação da prova” não se traduz numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Obra Cit. página 655); o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É, por isso, comumente aceite que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto; neste sentido salienta Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, página 609) que “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
De facto, a questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1.ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Analisemos então os motivos da discordância da Recorrente começando por referir que a mesma pretende, no essencial, que devia ter sido dada como provada a sua versão dos factos, isto é, que a doadora e usufrutuária sabia que a parcela de terreno em causa não era sua propriedade e nem estava na sua posse, e que a Ré e seu falecido marido toleraram que a ocupasse na condição daquela lhe deixar o prédio descrito em testamento, ou para os seus filhos, o que é, e sempre foi, reconhecido que a doadora e usufrutuária (vide artigos 15º a 21º da contestação).
Na verdade, ouvida integralmente toda a prova (o depoimento de parte da Ré e os depoimentos das testemunhas indicadas pelos Autores e pela Ré), e tal como é salientado pelo tribunal a quo, torna-se evidente que a doadora e usufrutuária P. C., usa e sempre usou o prédio, designadamente desde a construção da casa, e nele sempre esteve integrada a parcela em causa.
Tal como resulta da conjugação e análise crítica dos depoimentos ouvidos a delimitação do prédio dos Autores – com esteios e rede e posteriormente com muro – existe, desde que a casa foi construída, sem alteração, há mais de 20 anos e que desde essa altura a Ré não mais praticou atos sobre a referida parcela (até ao momento em que construiu o novo muro).
E tal resulta também da própria posição da Ré plasmada na sua contestação; a Ré aceita que a doadora e usufrutuária era dona de uma parcela de terreno que confronta do lado poente com um prédio rústico do irmão e da aqui Ré (artigo 14º), que construiu aí uma casa e mais tarde quis vedar o seu espaço (artigo 15º) e para não seguir os seus limites, quis e procedeu ao alinhamento do terreno ocupando uma parcela de terreno do falecido irmão e da cunhada, a aqui Ré (artigo 15º); tais factos foram, aliás, julgados provados pelo tribunal a quo (pontos 1.16 e 1.17 dos factos provados).
O que não resulta efectivamente claro é o contexto em que a doadora procedeu ao alinhamento ocupando a parcela que era do prédio da Ré e de seu falecido marido, irmão daquela, mas a que não será seguramente alheia a boa relação e amizade entre os dois, que foi salientada pela generalidade das testemunhas; o que ressalta da prova é que tal ocorreu e foi decorrendo até à construção do muro (e demais atos) pela Ré sem qualquer oposição, tendo a parcela em causa sido sempre tratada pela doadora e usufrutuária como sua e como parte integrante do seu prédio.
Analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, e desde já antecipando a nossa decisão, entendemos não assistir razão à apelante quando pretende que devia ser julgada provada a sua versão relativamente aos termos em que foi ocupada a parcela e ao acordo que alega ter existido e que devia ser valorado de forma distinta o depoimento da doadora e usufrutuária, a testemunha, P. C..
O tribunal a quo, na análise da prova produzida em audiência, equacionou a prova testemunhal produzida, bem como a prova documental e o depoimento prestado pela Ré. E fê-lo de forma crítica e fundamentada, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, designadamente porque não deu mais credibilidade às declarações prestadas pela testemunha P. C. que, pela sua razão de ciência (foi ela que procedeu ao alinhamento ocupando a parcela) constituiria um testemunho importante.
Conforme se pode ler na motivação da sentença recorrida (que aqui transcrevemos na parte que releva):
“(…) Não somos alheios ao depoimento prestado pela testemunha P. C., anterior proprietária do prédio descrito que, em várias ocasiões, nos afirmou saber que não era dona daquela parcela, mas cremos que mais do que estas palavras, temos de atentar na sua actuação nos últimos 20 anos, vendando, ocupando e tratando como sua a dita parcela de terreno. Note-se que foram várias as testemunhas (da Ré, inclusivamente) que disseram não ser de confiar na palavra da dita testemunha que hoje diz uma coisa, amanhã outra, hoje promete dar a casa a um e amanhã a outro, pelo que também este tribunal não deu relevância ao seu depoimento.
Não foi por isso possível estabelecer que a Ré (e o seu falecido marido) apenas tenham deixado a ora usufrutuária ocupar a parcela em causa por aquela lhes ter prometido que lhes deixaria a casa e que, por isso, tudo seria deles um dia. De facto, realçamos, mais uma vez, a testemunha P. C. (hoje, usufrutuária do imóvel) fazia este tipo de afirmações a muitas pessoas, familiares e vizinhos, não sendo levada a sério por ninguém. Acresce ainda que, nenhuma prova se fez, que a dita usufrutuária, enquanto proprietária daquela casa, a tivesse deixado em testamento ou tivesse efectuado doação da mesma à Ré, ou ao seu marido ou ainda aos seus filhos, facto que, a ter ocorrido, poderia ser – ele sim - um indício claro da referida promessa. sem quaisquer elementos objectivos e, na dúvida gerada pela prova testemunhal, não podia o tribunal dar como provada a versão da Ré”.
Em face dos depoimentos ouvidos não vemos que possa imputar-se ao tribunal a quo erro no julgamento da matéria de facto não provada nos termos pretendidos pela Ré; pelo contrário, as testemunhas ouvidas referem efetivamente a testemunha P. C. como uma pessoa em cuja palavra se não pode confiar, a qual foi prometendo a várias pessoas, desde família a vizinhos, a sua casa. Assim, a testemunha M. N. afirmou que a Ré prometia a casa a toda a gente; a testemunha J. C. (que não vemos ter sido por qualquer forma hostilizado pelo tribunal a quo, ao contrário do que sustenta a Recorrente), irmão da Autora, referiu que a tia P. C. prometia dar a todos e não dava a ninguém, tendo também prometido que lhe dava a si; e a testemunha J. F., vizinho e cunhado da Ré, disse que a P. C. prometia ao irmão que o prédio seria dele, mas afirmou também que a mesma prometeu dar aquela casa à testemunha J. C. e até a ele e a outros vizinhos, não sendo mulher de palavra, pois hoje diz uma coisa e amanhã outra, acrescentando ainda que não a levam a sério quando promete.
Acresce dizer, que da prova produzida ressalta ainda que estamos perante algumas pessoas, vizinhos e familiares, que têm conflitos entre si; assim, a testemunha M. N. afirmou desde logo não se dar bem com a Ré, que tem um processo contra si, e ter sido muito amiga da P. C., não o sendo agora, sendo esta agora muito amiga da Ré; a testemunha J. C., irmão da Autora, não se dá bem com esta há 23 anos e dá-se bem com a Ré, que lhe deu um terreno, mas não cumpriu a promessa de lhe dar a casa. E a testemunha C. A., pai da Autora, também afirmou dar-se mal com a filha.
Por outro lado, sendo do conhecimento público de vizinhos e familiares que a testemunha P. C. prometia dar a casa a toda a gente, não sendo levada a sério, não é crível, segundo as regras da experiência, que a Ré continuasse a achar que aquela ia dar a casa a si ou a seus filhos.
De salientar ainda que segundo a testemunha J. C. a tia (P. C.) prometia a todos e acabou por “dar a quem deu e já está arrependida”; não podemos deixar de considerar que este arrependimento não será certamente alheio à relação de amizade da testemunha P. C. com a Ré e à forma como aquela esteve presente a ver os trabalhos mandados fazer pela Ré sem levantar problemas (v. declarações da testemunha A. P., da testemunha J. F. e da testemunha M. N.).
Assim, ouvidos os depoimentos prestados pela Ré e pelas testemunhas e analisada toda a prova no seu conjunto de forma critica entendemos não resultar demonstrado com segurança que a Ré e seu falecido marido tolerassem que a testemunha P. C. ocupasse a parcela de terreno sob a condição da casa, com o terreno da Ré e de seu falecido marido integrado, ficar em testamento para este ou para os seus filhos e nem que tivesse existido tal acordo quando aquela procedeu ao alinhamento do terreno ocupando a parcela de terreno, não sendo de alterar a matéria de facto julgada não provada pelo tribunal a quo.
Quanto aos pontos da matéria de facto julgada provada, que a Recorrente pretende ver alterada, importa começar por referir que o facto de existirem algumas “contradições e imprecisões” nas declarações prestadas pelas testemunhas, designadamente como aponta a Recorrente nas testemunhas indicadas pelos Autores, daí não decorre que os seus depoimentos não devam ser considerados; pelo contrário, depoimentos absolutamente uníssonos e sincronizados é que seguramente levariam a duvidar da credibilidade dos mesmos, em particular quando as testemunhas se pronunciaram sobre factos ocorridos há 20 e mais anos.
Por outro lado, importa também salientar que não foram apenas duas testemunhas que afirmaram ter sido efectuada uma ocupação de 4/5 metros ou de 5/6 metros de largura. A testemunha F. G. referiu ter sido ocupada cerca de 4/5 metros de largura por 20 de comprimento e a testemunha A. P. em 5/6 metros de largura por vinte e tal de comprimento; a testemunha J. C. mencionou que quando a testemunha P. C. vedou o seu prédio ocupou 5/6 metros para dentro do terreno da Ré, e a testemunha J. F. referiu 7 metros de largura por 25 de comprimento. Se considerarmos que a Ré invoca ter reclamado a parcela de terreno que fora ocupada pela testemunha P. C. quando procedeu ao alinhamento, e que ao construir o novo muro não o fez em linha reta por causa do poço, não entendemos que o tribunal a quo não pudesse ter considerado uma ocupação aproximada de cerca de 6 metros.
Vejamos então os pontos impugnados. Quanto ao ponto 1.4 da matéria de facto provada
Ao contrário do que refere a Recorrente “há notícia” na prova produzida que os Autores tomaram posse do prédio, e a tal não obsta o facto da testemunha P. C. nele continuar a habitar considerando a sua qualidade de usufrutuária. Assim, a testemunha A. P. afirmou que os Autores depois da doação fizeram obras no prédio, designadamente no telhado, pintura exterior e obras no interior e que a sua filha foi para lá morar; a testemunha A. C. referiu também que o Autor mandou colocar telha nova, pintou e fez obras no interior e que quando receberam o prédio a filha dos Autores foi para lá morar e as obras começaram logo que a filha mudou para lá; o mesmo foi referido pela testemunha M. N. que confirmou que vivem no prédio a testemunha P. C. e a filha dos Autores e que foram feitas as obras (telhado e pintura) que segundo a testemunha P. C. lhe disse foram feitas pelo Autor.
Quanto ao ponto 1.8 da matéria de facto provada
É certo que a testemunha J. C. garantiu que o muro foi construído no ano de 2000, mas afirmou também que antes da construção do muro já lá tinha uns esteios e malha sol, e mais tarde uma rede, e que em 2000 foi construído o muro nesse sítio; também a testemunha C. A., que situou a construção do muro em 2000 (sem contudo o saber explicar) esclareceu também que estava vedado com uma rede e depois no mesmo sítio fizeram o muro; nesse sentido também as declarações da testemunha J. F.. Assim, e antes da construção do muro já o prédio se encontrava delimitado. Não vemos, por isso, que deva ser julgada não provado que a sua configuração se manteve inalterada, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos.
Quanto aos pontos 1.10 e 1.13 da matéria de facto provada
O tribunal a quo julgou provado que em data não concretamente apurada, a Ré construiu um muro novo no interior do prédio identificado no ponto 1.1 dos factos provados e que A Ré demoliu o muro de vedação de blocos de cimento, na confrontação poente do prédio dos Autores, com cerca de 20 metros de extensão e 1 metro de altura e construiu um muro novo no interior do logradouro do prédio dos Autores, pretendendo com tal muro deslocar a linha divisória das propriedades cerca de 6 metros para nascente; a Recorrente entende que deve ser apenas julgado provado que a Ré construiu um muro e que a Ré demoliu um muro de vedação de blocos de cimento.
Considerando a matéria de facto provada como um todo e que, conforme já referido, resulta da prova produzida nos autos que o prédio dos Autores se encontrava totalmente delimitado dos terrenos confinantes pois tinha muro de todos os lados, encimado com grades em ferro na frente para a Rua e rede de arame nas outras confrontações (ponto 1.6 dos factos provados), o terreno de logradouro encontrava-se cultivado e cuidado (ponto 1.7 dos factos provados) e que se manteve inalterada a configuração do prédio, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos (ponto 1.8 dos factos provados) entendemos não ser de alterar a redacção dos pontos 1.10 e 1.13.
Quanto ao ponto 1.14 da matéria de facto provada
Sustenta a Recorrente que deverá ser julgado não provado que a Ré procedeu à retirada de árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim existentes na parcela de terreno de que se apropriou.
Alega para o efeito que as testemunhas arroladas pelos Autores apenas descreveram que a Ré retirou as coisas que existiam na parcela nada tendo dito sobre o facto de se ter apropriado das mesmas ou o local onde se encontram actualmente.
Resulta da alegação da Recorrente que estará apenas em causa o facto de ter sido julgado provado que se apropriou das coisas; e, na verdade, resulta das declarações prestadas pelas testemunhas (F. G., A. P., A. C. e M. N.) que, para além de ter demolido o muro existente a Ré retirou da parcela de terreno árvores de fruto, arbustos e de candeeiros de jardim.
Quanto ao facto da Ré se ter apropriado dos mesmos resulta do próprio facto de os ter retirado e os não ter entregue aos Autores. De facto, não resultou demonstrado da prova produzida (testemunhal ou documental), e nem sequer alegado, que a Ré tivesse entregue aos Autores os referidos bens que retirou ou sequer que lhes tivesse comunicado o local onde os mesmos se encontrariam. O que resulta da prova produzida é que a Ré entrou na parcela em causa, demoliu o muro de vedação existente e construiu um novo muro e retirou da parcela em causa árvores de fruto, arbustos e candeeiros de jardim que lá se encontravam, pelo que temos de concluir que efectivamente se apropriou dos mesmos.
De todo o exposto decorre não resultar fundamento para alterar a decisão recorrida quanto à matéria dada como provada e não provada e nem proceder a qualquer aditamento, pelo que, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida mantém-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção
Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, começando por analisar os demais fundamentos constantes da apelação da Ré.
Importa referir em primeiro lugar que, em face da manutenção da decisão da matéria de facto, não se coloca a questão dos factos poderem configurar uma substituição fideicomissária uma vez que a Recorrente não logrou demonstrar que houve uma cedência de terreno com a condição do prédio ser deixado em testamento ao seu falecido marido ou aos seus filhos.
Nos termos previstos no artigo 962º do Código Civil são admitidas substituições fideicomissárias nas doações (n.º 1) e a essas substituições são aplicáveis, com as necessárias correcções, os artigos 2286º e seguintes (n.º 2); por sua vez o referido artigo 2286º estabelece que se diz substituição fideicomissária, ou fideicomisso, a disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído o encargo de conservar a herança para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem; o herdeiro gravado com o encargo chama-se fiduciário, e fideicomissário o beneficiário da substituição.
Não tendo resultado provado que fosse cedido terreno com a condição do prédio ser deixado em testamento ao seu falecido marido ou aos seus filhos, mas apenas que a doadora/usufrutuária do prédio quis vedar o seu espaço e para não seguir os seus limites, quis e procedeu ao alinhamento do terreno ocupando uma parcela de terreno do falecido irmão e da cunhada, a aqui Ré, e ainda que a configuração do prédio se manteve inalterada, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos, não há que fazer apelo à figura da substituição fideicomissária, inexistindo, por essa via, qualquer incompatibilidade com a aquisição do direito de propriedade (raiz) por parte dos Autores.
Sustenta ainda a Recorrente que perante a alteração da matéria de facto que propugna não se suscitam dúvidas que os Autores não demonstraram o seu direito de propriedade sobre a parcela, mas, mesmo a manter-se a matéria de facto inalterada, tal como fixada em 1ª Instância, também não se mostra verificado o requisito do animus, não podendo os Autores beneficiar da presunção decorrente do artigo 1252º n.º 2 do Código Civil.
Vejamos então.
Decorre do n.º 2 do referido artigo 1252º do Código Civil que em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.
De facto, a posse, o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr. artigo 1251º do Código Civil), integra dois elementos: o corpus possessório e o animus possidendi, sendo que a posse que releva para a usucapião tem de conter estes dois elementos, presumindo-se, no entanto, a posse (em nome próprio) naquele que exerce o poder de facto, ou seja, naquele que tem o corpus.
Desta forma, vem sendo decidido no sentido de que quem tem o poder de facto, ou o corpus está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente; aliás no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14/05/96, publicado no DR II série, de 24/06/96, extraiu-se a conclusão de que “[P]odem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”; ou seja, que uma vez assente o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, se deve presumir que quem o exerce o faz em nome próprio, recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse idónea para adquirir por usucapião.
No presente recurso entende a Recorrente que não resultam provados factos suficientes para caracterizarem o corpus, pelo que não podem beneficiar os Autores da referida presunção.
Decorre da factualidade julgada provada que por documento particular feito ao abrigo da Lei 116/2000 de 4 de Julho, datado de 21/08/2015, denominado contrato de doação, P. C. declarou doar e os aqui Autores declararam aceitar a doação do prédio urbano, constituído por casa de habitação de rés-do-chão, com terreno de logradouro, sito na Rua ..., n.º ..., ..., Fafe, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º .../19930617, da freguesia de ..., com reserva de usufruto a favor da primeira.
Tal prédio encontra-se inscrito a favor dos aqui Autores pela apresentação n.º 2636 de 2015/08/25.
Tal como decorre do artigo 7º do Código de Registo Predial o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Por força destas presunções, o titular registal não carece de alegar e provar factos demonstrativos da existência, validade e eficácia do direito registado, nem factos pertinentes à qualificação, conteúdo e amplitude do referido direito e nem de alegar e provar que tal direito lhe pertence. Os Autores pretendem nos presentes autos a condenação da Ré a reconhecer o seu direito de nua propriedade (ou raiz) do referido prédio, onerado com o direito de usufruto a favor da doadora P. C., e beneficiam da presunção decorrente do registo de que esse direito de nua propriedade existe e lhes pertence; presunção que não foi afastada pela Recorrente. Aliás, o que resulta demonstrado nos autos é que o prédio manteve inalterada a sua configuração, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos.
Resulta ainda da matéria de facto que logo os Autores tomaram posse do seu prédio e procederam a obras de reparação dos edifícios e que, por si e antepossuidores, há mais de 20/30 anos usam o dito prédio, de forma contínua, com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré.
Como é consabido o direito de propriedade pode adquirir-se por usucapião (cfr. artigo 1316º do Código Civil), estando em causa uma forma de aquisição originária.
Conforme decorre do preceituado no artigo 1287º do Código Civil a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, é o que se chama usucapião.
E, sendo a posse o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, o legislador distingue ainda a posse da simples detenção (cfr. artigo 1253º), sendo dois os elementos necessários para que haja posse: o corpus (elemento empírico), que consiste no exercício de poderes de facto sobre uma coisa, e que é menos um contacto com esta do que a sua imissão na zona de disponibilidade empírica do sujeito e o animus (elemento psicológico-jurídico), que se traduz na exigência de que tal exercício seja em termos de um direito real, sendo que a intenção de domínio terá apenas de poder inferir-se do próprio modo de actuação ou utilização (Cfr. Orlando de Carvalho, RLJ, Ano 122, n.º 3781, página 105).
Possuidor é, assim, aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem, tem não só o corpus, mas também o animus possidendi ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio (cfr. anotação de Henrique Mesquita ao Acórdão do STJ, de 09/01/1997, RLJ, Ano 132, página 19 e seguintes).
Podemos sintetizar dizendo que a aquisição de um direito, por usucapião, depende da verificação dos seguintes pressupostos: a existência de posse, tal como já definida; que essa posse contenha determinadas características (a posse, susceptível de conduzir à usucapião, terá de ser, necessariamente, pública e pacífica e exercida em nome próprio); que o direito a constituir seja usucapível; que a posse se mantenha pelos prazos legais previstos e que seja invocada.
Quanto aos prazos necessários à usucapião variam consoante se trate de bem imóvel ou móvel e em conformidade com as características da posse que é exercida: se é titulada ou não titulada, de boa ou má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (vide artigos 1258º a 1262º e 1294º a 1297º, todos do Código Civil). Estando em causa bens imóveis (apenas nos referiremos a estes por não relevarem, em face da matéria de facto provada, as regras referentes aos bens móveis) e sendo a posse titulada o prazo de usucapião é de 10 anos, contados da data do registo do título, se for de boa-fé [artigo1294º alínea a), ou de 15 anos, se a posse for de má-fé (artigo 1294º alínea b)]; não havendo registo do título de aquisição, mas havendo registo da mera posse, o prazo da usucapião é de 5 anos, contados da data do registo, se for de boa-fé [artigo 1295º n.º 1 alínea a)], ou de 10 anos, se for de má-fé [artigo 1295º n.º 1 alínea b)].
Sendo a posse de boa-fé, não obstante a ausência de registo do título ou da mera posse, o prazo para usucapião é de 15 anos e se for de má-fé, de 20 anos (artigo 1296º).
De referir ainda que é titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º n.º 1) e que a posse titulada se presume de boa-fé, e a não titulada, de má-fé (artigo 1260º n.º 2); sendo que, no entanto, o título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca (artigo 1259º n.º 2).
Assim, sendo a posse titulada, isto é, fundada em qualquer modo legítimo de adquirir (independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico), presume-se de boa-fé, ou seja, presume-se que o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (cfr. artigos 1259º n.º 1 e 1260º n.º 1).
Verificados em concreto os indicados pressupostos poderá o possuidor invocar a usucapião para reconhecimento do direito por forma correspondente ao qual vinha atuando, designadamente do direito de propriedade.
Tal como já adiantamos uma vez verificado o corpus, logo se presume o animus, pelo que, uma vez verificado o corpus terão os Autores a seu favor tal presunção, estando dispensados da prova do animus, recaindo sobre a Recorrente o ónus da prova da falta do mesmo.
Sustenta a Recorrente que não resultam provados factos suficientes para caracterizarem o corpus, pelo que não podem beneficiar os Autores da referida presunção; entendemos, contudo, que não lhe assiste razão.
Os Autores demonstraram que o prédio lhes foi doado em 21/08/2015 e que logo nessa data tomaram posse do prédio e procederam a obras de reparação dos edifícios; mais demonstraram que por si e antepossuidores, há mais de 20/30 anos usam o dito prédio, de forma contínua, com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré.
O prédio dos Autores encontrava-se totalmente delimitado dos terrenos confinantes pois tinha muro de todos os lados, encimado com grades em ferro na frente para a Rua e rede de arame nas outras confrontações, encontrando-se o terreno de logradouro cultivado e cuidado e mantendo-se inalterada a configuração do prédio dos Autores, sem a oposição de quem quer que seja, nos últimos 20 anos.
Para a apreciação da verificação do requisito do corpus não podemos ainda esquecer que está em causa a raiz e não a propriedade plena, pois que a doadora P. C. reservou para si o usufruto.
Ora, o usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância (cfr. artigo 1439º do Código Civil), podendo o usufrutuário usar e administrar o bem, de boa-fé, tal como faria se fosse sua propriedade. Assim, e no caso dos imóveis ficam a seu cargo as despesas ordinárias do mesmo, incluindo o pagamento dos respectivos impostos, ficando as reparações extraordinárias, ou obras de melhoramento, asseguradas pelo nu-proprietário.
Assim, estando em causa a raiz ou nua propriedade, a atuação dos Autores que, logo que foi efectuada a doação, tomaram posse do prédio e realizaram obras de reparação dos edifícios, usando o prédio por si e pela doadora/antepossuidora, há mais de 20 anos com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, nomeadamente da Ré, é reveladora, segundo entendemos, do elemento do corpus.
Importa ter presente quanto ao corpus que vem sendo entendimento jurisprudencial, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, que da nossa lei (cfr. artigo 1257º n.º 1 do Código Civil) resulta uma conceção de corpus como uma relação social e não meramente traduzida em atos materiais (vide entre vários outros ao Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/06/2016, Processo n.º 7487/11.4TBVNG.P2.S1, Relator Conselheiro José Rainho, de 17/04/2018, Processo n.º 158/14.1TBMRA.E1.S1, Relator Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves e de 29/01/2019, Processo n.º 376/10.1TBLNH.L1.S1 , Relatora Conselheira Catarina Serra, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Segundo a lição de Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 4.ª Edição, página 471): “As dificuldades e divergências abrangem ainda (...) a noção de corpus. Na verdade, não é óbvio o que seja aquilo que acima designámos por «materialidade da situação». Alguns Autores parecem entender o corpus da posse como meros actos materiais, mas outros referem – e no direito português essa ideia tem base no art. 1257.º, n.º 1 do Código Civil, que afirma que a posse se mantém não apenas enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito, como também enquanto existir a possibilidade de a continuar – que a posse pode ou não se revelar por atos materiais. Nas palavras de Oliveira Ascensão, o corpus é uma relação «não material, mas social», em cujos termos os bens se consideram «em conexão com a esfera de certa pessoa».”
Como refere Durval Ferreira (Posse e Usucapião, página132) “para que a coisa entre na disponibilidade fáctica, na esfera empírica da relação de senhorio do sujeito, dum modo geral pode dizer-se que é preciso atender à energia do acto de apreensão, à sua perdurabilidade e à natureza do direito que se pretende adquirir. Basta, se o acto ou série de actos têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que, entre uma coisa e determinado indivíduo, se estabeleceu uma relação duradoura. Assim, um só acto pode evidenciar a posse.”
Entendemos, por isso, que a atuação dos Autores logo após a doação da nua propriedade revela a presença do corpus (o exercício material do direito); acresce ainda que, conforme referido na apreciação da impugnação da matéria de facto, torna-se evidente da prova produzida nos autos, que a doadora P. C. usa (é usufrutuária) e sempre usou o prédio, designadamente desde a construção da casa, e nele sempre esteve integrada a parcela em causa, há mais de 20 anos, e que desde essa altura a Ré não mais praticou atos sobre a referida parcela (até ao momento em que construiu o novo muro e demoliu o existente).
Verificado o corpus, a posse presume-se naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252º n.º 2 do Código Civil), mostrando-se a factualidade provada suficiente para se concluir por uma situação de posse exercida pelos Autores sobre o prédio e a parcela em causa que dele sempre fez parte integrante há mais de 20 anos; sendo certo que verificado o corpus a Recorrente não demonstrou a falta do animus.
Podemos, por isso, concluir que os Autores vêm exercendo atos de posse sobre a totalidade do seu prédio no qual se integra a faixa de terreno em causa; assim, e independentemente da natureza da posse exercida pelos Autores, considerando o lapso de tempo decorrido, podemos concluir que estarem verificados os pressupostos para a aquisição por usucapião.
Por último, e relativamente à indemnização pelo valor dos prejuízos causados pela retirada das árvores de fruto, arbustos e candeeiros cujo apuramento foi relegado para liquidação de sentença, tendo-se mantido inalterada a matéria de facto terá também de manter-se o decidido pelo tribunal a quo, tanto mais que a alteração da decisão jurídica no sentido pretendido pela Recorrente, mesmo na perspectiva desta, pressupunha a alteração da decisão de facto, pelo que, não tendo procedido a sua pretensão, terá de manter-se, também nesta parte, a decisão proferida pelo tribunal a quo.
Em face de todo o exposto, improcede, pois, integralmente a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade da Recorrente atento o seu decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)
I - A posse, o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr. artigo 1251º do Código Civil), integra dois elementos: o corpus possessório e o animus possidendi, sendo que a posse que releva para a usucapião tem de conter estes dois elementos, presumindo-se, no entanto, a posse (em nome próprio) naquele que tem o corpus. II - A aquisição de um direito, por usucapião, depende da verificação dos seguintes pressupostos: a existência de posse; que essa posse contenha determinadas características (a posse, susceptível de conduzir à usucapião, terá de ser, necessariamente, pública e pacífica e exercida em nome próprio); que o direito a constituir seja usucapível; que a posse se mantenha pelos prazos legais previstos e que seja invocada. III - Uma vez assente o exercício de um poder de facto sobre a coisa deve presumir-se que quem o exerce o faz em nome próprio (cfr. n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil), recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse idónea para adquirir por usucapião.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 15 de junho de 2021 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)