Não é legalmente admissível o decretamento da natureza urgente do processo, ao abrigo do disposto na al. c), do n.º 2 do artigo 103º do CPP, já depois de proferida a sentença e admitido o recurso que dela foi interposto, uma vez que tal natureza urgente apenas pode ser decretada relativamente aos actos taxativamente previstos no referido preceito legal.
2.3. Conhecimento do recurso
Conforme já referimos a questão suscitada é a da ilegalidade do despacho recorrido, que decretou a natureza urgente do processo, nos termos do disposto no artigo 103º, n.º 2, al. c), do CPP.
Sustenta o arguido/recorrente que existe lapso de escrita no despacho recorrido, na menção feita à al. c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP, pretendendo a Mm.ª Juiz a quo referir-se à alínea b) daquele preceito legal e não existir fundamento válido para, ao abrigo do disposto no artigo 103º, n.º 2, do CPP, ser atribuída natureza urgente ao processo.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, entendendo que o despacho recorrido deve manter-se.
Apreciando:
Dispõe o artigo 103º do Código Processo Penal – que tem por epígrafe “Quando se praticam os atos” –, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 33/2019, de 22 de maio, que:
«1 - Os catos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;
b) Os atos relativos a processos em que intervenham arguidos menores, ainda que não haja arguidos presos;
c) Os actos de inquérito e de instrução, bem como os debates instrutórios e audiências relativamente aos quais for reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações;
d) Os actos relativos a processos sumários e abreviados, até à sentença em primeira instância[1];
e) Os actos processuais relativos aos conflitos de competência, requerimentos de recusa e pedidos de escusa;
f) Os actos relativos à concessão da liberdade condicional, quando se encontrar cumprida a parte da pena necessária à sua aplicação;
g) Os actos de mero expediente, bem como as decisões das autoridades judiciárias, sempre que necessário.
h) Os atos considerados urgentes em legislação especial[2].
(…).»
No n.º 1 do artigo 103º do CPP, estabelece-se a regra geral sobre o tempo da prática dos atos processuais, qual seja a de que se praticam «nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.»
E no n.º 2 do artigo 103º do CPP, são elencadas as exceções àquela regra geral, prevendo-se casos em que a exceção funciona ope legis – nas alíneas a), b), d), e), f) e h) – e casos em que a exceção funciona ope judicis – nas alíneas c) e g) –.
Nesses casos de exceção, os atos processuais podem e devem – trata-se de um poder vinculativo – ser praticados a qualquer momento, sem as limitações previstas no n.º 1 do artigo 103º do CPP, ou seja, podem ser praticados aos fins de semana, feriados e férias e para além das horas de expediente.
E de harmonia com o disposto no artigo 104º, n.º 2, do CPP, correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os atos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 103º do CPP.
No que concerne à alínea c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP, que se refere aos atos de inquérito e de instrução, aos debates instrutórios e às audiências, estando-se perante uma exceção à regra do n.º 1, que opera ope judicis, tendo de ser decidida por despacho de quem presidir à fase processual, a que se refere(m) o(s) ato(s) processual(ais) a praticar, o critério determinativo para se aferir da «vantagem em que tenham lugar, continuem ou concluam» é, no entender de Paulo Pinto de Albuquerque[3], «o do interesse na aquisição, conservação ou veracidade da prova.»
Ainda que se sufrague o entendimento de que, para além da referenciada, poderão existir outras situações passíveis de poder fundamentar o juízo no sentido de existir vantagem em que os atos processuais sejam praticados sem as limitações previstas na regra geral estabelecida no n.º 1 do artigo 103º do CPP – sendo uma dessas situações a que foi considerada no despacho recorrido, qual seja a da aproximação do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal e tendo em vista prevenir a sua ocorrência –, afigura-se-nos que os atos processuais relativamente aos quais poderá ser declarada a sua natureza urgente, são aqueles que estão previstos na al. c), do n.º 2 do artigo 103º do CPP, quais sejam, os «actos de inquérito e de instrução», «os debates instrutórios» e as «audiências», sendo que apenas nos casos em que devam praticar-se esses atos declarados urgentes, os prazos relativos ao processo a que respeitam, correm em férias, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 104º do CPP.
Tendo presentes estas considerações e importa atentar no caso dos autos:
Em relação ao invocado lapso de escrita, no despacho recorrido, ao fazer-se menção à alínea c), do n.º 2 do artigo 103º do CPP, é isento de dúvida que o mesmo não se verifica, sendo que a redação dada pela Lei n.º 33/2019, de 22 de maio, ao enunciado artigo 103º, aplicável in casu, a alínea c) corresponde à anterior alínea b) do n.º 2.
No que diz respeito à alegada ausência de fundamento para poder ser decretada a natureza urgente do processo ao abrigo do disposto no artigo 103º, n.º 2, al. c), do CPP, entendemos assistir razão ao arguido/recorrente, ainda que, por razões não inteiramente coincidentes com as invocadas.
Explicitando:
Tal como supra referimos o n.º 2 do artigo 103º do CPP prevê exceções à regra geral do tempo para a prática do atos processuais estabelecida no n.º 1 do mesmo artigo. E o elenco das exceções é, a nosso ver, taxativo.
Ora, em relação à exceção prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 103º que é a que, no caso, nos importa considerar, nela são contemplados os «actos de inquérito e de instrução», «os debates instrutórios» e as «audiências», sendo o critério determinativo para que funcione a exceção que seja «reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações», ou seja, sem as limitações estabelecidas no n.º 1 do artigo 103º do CPP.
Como decorre com clareza do preceito legal em análise – al. c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP – os atos processuais relativamente aos quais, por decisão de quem a elas presidir, poderá ser declarada a sua natureza urgente, são os atos de inquérito e de instrução, designadamente, os debates instrutórios e as audiências.
E como refere Paulo Pinto de Albuquerque[4], com referência à al. c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP, «A declaração de certo acto ou actos como urgentes não se comunica ao processo, pelo que, concluídos os os actos declarados urgentes, o processo obedece ao regime normal para a prática dos demais actos.» Nas situações abrangidas pela al. c) do n.º 2 do artigo 103º, «só há actos processuais urgentes declarados de per si.»
Ora, no caso em apreço, a Senhora Juiz a quo proferiu o despacho recorrido, decretando a natureza urgente do processo, já depois de ter sido realizada a audiência de julgamento e de ter sido proferida a sentença e admitido o recurso que da mesma foi interposto pelo arguido, para este Tribunal da Relação.
Não é legalmente admissível, na fase processual em que a Senhora Juiz a quo proferiu o despacho recorrido, já depois de proferida a sentença e admitido o recurso que dela foi interposto, o decretamento da natureza urgente do processo, ao abrigo do disposto na al. c), do n.º 2 do artigo 103º do CPP.
E essa decisão, na fase de recurso em que os autos já se encontravam, nunca poderia vincular este tribunal ad quem, quanto à determinação da natureza urgente do processo e sua tramitação nessa conformidade.
Pelo exposto, impõe-se revogar o despacho recorrido, que determinou a natureza urgente do processo.
O recurso é, pois, julgado procedente.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido (…) e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que determinou a natureza urgente do processo.
Sem tributação.
Comunique-se, de imediato, o teor do presente acórdão aos autos principais, que se encontram, em recurso, neste Tribunal da Relação.
Notifique.
Évora, 22 de junho de 2021
Fátima Bernardes
Fernando Pina
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[1] Esta alínea tem a redação dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, que aditou o segmento «até à sentença em primeira instância».
[2] Cairá no âmbito desta alínea, por exemplo, os processos por crime de violência doméstica, ainda que não haja arguidos presos (cf. artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro).
[3] In Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República …, 3ª edição, 2009, Universidade Católica Editora, pág. 273.
[4] In ob. e loc. cit.