I - Existe dupla conformidade decisória, que obsta à admissibilidade do recurso de revista normal e ao conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, do acórdão da Relação que confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, se a Relação confirma a fundamentação jurídica sem desvio do caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida, ainda que respondendo, com adição de fundamentos, ao acervo argumentativo do apelante, desde que tal pronúncia não se estribe em inovações que traduzam um enquadramento normativo diverso daquele em que assentara a sentença proferida em 1.a instância.
II - O art. 671.º, n.º 2, do CPC proporciona a revista de «acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual», uma vez tendo sido proferidas essas decisões pela 1.ª instância, nas previsões admitidas pelas als. a) e b) desse n.º 2. Tal exige decisão da Relação sobre tais decisões interlocutórias, não se oferecendo à impugnação recursiva a omissão de decisões que alegadamente, em sede processual, deveriam ter sido proferidas.
III - A apreciação das nulidades decisórias do acórdão recorrido da Relação, nos termos dos arts. 615.º, n.º 4, («As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades»), e 666.º, n.º 1, aplicáveis por força do art. 679.º, sempre do CPC, assim como a apreciação do pedido de reenvio prejudicial ao abrigo do art. 267.º do TFUE, com a inerente suspensão de instância para o efeito, e da invocação da «violação ou errada aplicação da lei de processo», nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, 2.a parte, («ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova»), do CPC, implicam a admissibilidade da revista, uma vez que são fundamentos acessórios e pedidos dependentes do objecto recursivo alegado.
Revista – Tribunal recorrido: Relação ….., 2.ª Secção
Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. «Axa Portugal – Companhia de Seguros, S.A.» intentou acção declarativa de condenação, em processo ordinário, contra AA, ........, peticionando a condenação do Réu na resolução de contrato de arrendamento e entrega de imediato à Autora, livre de pessoas e bens, do lado esquerdo do ....... andar do prédio identificado, com entrada pelo n.º …. da Praça …, no …..., e no pagamento da quantia de €25.929,45 referente às rendas em dívida e não pagas, acrescidas dos juros legais, desde a data dos respectivos vencimentos até ao seu integral pagamento, bem como a pagar-lhe todas as rendas mensais que se vencerem até à entrega efectiva do arrendado, acrescidas dos juros de mora desde os respectivos vencimentos até ao pagamento efectivo. Para lograr êxito alegou que é proprietária/”dona” do prédio identificado no art. 1º da petição inicial, foi celebrado entre ela e o Réu um contrato denominado de “contrato promessa de arrendamento” mediante o qual deu de arrendamento ao Réu e ao Dr. BB o ....... andar do referido prédio para o exercício das actividades do Réu e do Dr. BB, particularmente para o exercício ….., com início em 1/3/2004, contrato esse que foi alterado por iniciativa dos arrendatários, aceite pela Autora, dividindo os arrendatários o arrendado em dois espaços, ficando o Réu a ocupar o lado esquerdo e o Dr. BB o lado direito, ficando a cargo dos inquilinos os encargos necessários à separação contratual, bem como as respectivas obras. Ficara o Réu a pagar a renda mensal de €1.150,00 pelo lado esquerdo, que por força das actualizações era de €1215,29 em 1/3/2009, e de €1249,32 em 1/12/2009, tendo o Réu deixado de pagar a renda desde 1/3/2009, perfazendo o valor total em dívida, em Novembro de 2010, de €25.929,45, sendo essa falta de pagamento das rendas fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
O Réu apresentou Contestação, sustentando que apenas foi celebrado um contrato promessa de arrendamento por falta do licenciamento adequado uma vez que o espaço se encontrava licenciado para habitação e não para comércio e serviços, o que impedia a celebração do contrato definitivo de arrendamento, nulo face à lei, tendo assinado o referido contrato promessa com vista à futura assinatura do contrato definitivo de arrendamento após as obras no prédio por parte da Autora de adaptação do local e aptidão para comércio e exercício de profissão liberal. Não tendo parte do clausulado do contrato sido previamente negociado mas de conteúdo previamente elaborado pela Autora, sem qualquer negociação prévia entre as partes, nem alterações ao seu conteúdo relativamente às cláusulas 1ª, 7ª, 8ª, 9ª, 10ª, 11ª, 13ª, 14ª, estas são nulas por serem cláusulas contratuais gerais proibidas pelo DL n.º 446/85. Foram realizadas obras no locado com vista à utilização do andar para o fim acordado, prevendo que a utilização do espaço perdurasse por mais de 10 anos, ao contrário do que veio a suceder, tendo posteriormente sido renegociados dois novos contratos, extinguindo-se o anterior contrato por acordo dos três intervenientes em 31/12/2006, mantendo-se como promessas de arrendamento (na medida em que, no final de 2006, a Autora ainda não tinha concluído as obras nas partes comuns de acesso, faltando designadamente a renovação dos elevadores de molde a ser possível licenciar o espaço para o fim pretendido, sendo também nulo o contrato não escrito de 2007, por falta de forma legal escrita e falta de licenciamento e demais requisitos legais). Mais alegou o Réu que, no decurso dos novos contratos, separaram o .......º andar em dois espaços (direito e esquerdo), tendo o Réu realizado inúmeras obras para essa separação, que constituem benfeitorias, considerando o Réu que desde 1 de Abril de 2009, após ter invocado a nulidade da relação contratual que o unia à Autora, passou a exercer o direito de retenção sobre o ....... andar esquerdo pelas mencionadas benfeitorias que efectuou no local e não pode levantar sem detrimento das mesmas ou do local. Alegou ainda que, desde Fevereiro de 2008, é constante a utilização da entrada, hall e elevadores por doentes em cadeiras de rodas e macas; foram realizadas obras de adaptação do prédio num hospital de campanha, por inquilinos, com perfeito conhecimento da Autora, das quais esta tira vantagens, as quais se prolongaram entre Dezembro de 2008 e o 1º trimestre de 2009, obrigando o Réu a ausentar-se do prédio durante o período normal de trabalho e ir trabalhar para casa, o que levou o Réu a comunicar à Autora que deduziria €592,82 à renda mensal por impossibilidade de utilização do locado para o fim a que se destinava, até porque desde Fevereiro de 2008 foi instalado um aparelho de ar condicionado que produzia ruído ensurdecedor, virado para uma das janelas do gabinete pessoal do Réu, que o impedia de aí trabalhar, tendo o Réu deixado de aí trabalhar em definitivo desde o início de 2009, o que foi comunicado à Autora, tendo o Réu transferido para casa o seu escritório em 31/3/2009, conforme comunicado à Autora, que não compareceu nessa data para receber o locado mediante o pagamento da compensação pecuniária exigida pelo Réu. Concluiu que a relação contratual iniciada em 2007 sobre o .......º andar esquerdo, para além de nula, está extinta por acordo das partes formalizada pela carta da Autora de 28/5/2009, não havendo direito ao pagamento de quaisquer rendas, mais invocando que improcede o pedido de entrega do locado porque opera o seu direito de retenção que tem vindo a exercer licitamente.
Formulou ainda o Réu pedidos em sede de Reconvenção no sentido de se declarar lícito e legítimo o direito de retenção, que exerce desde 1 de Abril de 2009 sobre o ....... andar esquerdo do prédio da Autora, pelo crédito de €19.710,98 referente a benfeitorias no imóvel, nos termos do enriquecimento sem causa, e condenação da Autora a pagar-lhe essa quantia de €19.710,98 acrescida de juros à taxa legal até integral pagamento; assim como de condenação ao pagamento da quantia de €7.751,18 a título de danos patrimoniais por motivo de falta da correspondente contraprestação relativa a metade da ocupação do .......º andar esquerdo entre 1 de Fevereiro de 2008 a 31 de Março de 2009, tendo o Réu pago indevidamente em cada um desses meses à Autora o dobro sem ter podido usar e fruir totalmente o espaço por culpa da Autora, acrescida de juros à taxa legal até integral pagamento; bem como a condenação ao pagamento da quantia de €25.028,91 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal até integral pagamento.
A Autora apresentou Réplica, deduzindo oposição quer à matéria de excepção, quer à matéria da reconvenção, concluindo como na petição inicial.
O Réu apresentou Tréplica, na qual apresentou ampliação do pedido e da causa de pedir e, por fim, requereu a condenação da Autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização condignas, em montante nunca inferior a €63.000,00. Foi proferido despacho a admitir a tréplica apenas no que se refere à resposta à excepção de abuso de direito e ao pedido de condenação em litigância de má-fé, tendo-se indeferido a ampliação do pedido.
2. A Autora veio informar que o Réu, em 14/12/2012, procedeu à entrega das chaves do locado, requerendo a extinção por inutilidade superveniente do pedido formulado em A) da petição inicial. Proferiu-se despacho favorável a declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide no segmento respectivo do petitório, prosseguindo a acção para apreciação dos demais pedidos formulados quer em sede de acção quer em sede de reconvenção.
3. Prosseguida a instância (não foi realizada audiência prévia; proferido despacho saneador; realizada audiência de julgamento), o Juiz …. do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca …….. proferiu sentença em 16/6/2017, na qual se decidiu:
“Julgo totalmente procedente a presente acção e, consequentemente, condeno o Réu a pagar à Autora a importância de €25.929,45, referente às rendas vencidas até Novembro de 2010, bem como as vincendas desde essa data até à entrega do arrendado que ocorreu em Dezembro de 2012 no valor de €31,233,00, perfazendo a importância global de €57.162,45, rendas essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data dos respectivos vencimentos até efectivo pagamento.
Julgo totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora/Reconvinda de todos os pedidos reconvencionais contra ela formulados.
Julgo totalmente improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé.”
4. Inconformado, interpôs o Réu recurso de apelação para o Tribunal da Relação …... identificadas as questões a decidir, em acórdão prolatado em 10/9/2019, o TR…. (i) manteve inalterada a decisão sobre a matéria de facto impugnada pelo Apelante, (ii) julgou improcedente a alegação de falta de capacidade “judiciária” da Autora (art. 15º, 2, do CPC), (iii) julgou improcedente a alegação de “mora de credor” (art. 813º do CCiv.) da Autora pela não reposição das condições de utilização do locado, e, por fim, (iv) no que respeita à nulidade de renúncia antecipada de direitos (art. 809º do CCiv.), não descortinou “qualquer incumprimento das prestações de que a autora/senhoria estivesse obrigada, e do qual o apelante se tenha tornado credor e que tivesse renunciado”. Concluiu no dispositivo pela improcedência das alegações de recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
6. Notificado, veio o Réu requerer a arguição de nulidade do acórdão do TR….. (art. 615º, 1, c) e d), CPC), o que faz fls. 930 e ss.
7. Depois, o mesmo Réu interpôs recurso de revista para o STJ visando a revogação do acórdão recorrido (de acordo como o requerimento de interposição e Conclusões):
— a título principal, baseado no art. 671º, 1, CPC – Conclusões 26. a 32., 92. a 101. (arts. 674º, 1, a) e b), CPC);
— subsidiariamente, baseado no art. 671º, 2, a), e 629º, 2, d), do CPC – Conclusões 33. a 39.;
— ainda subsidiariamente, baseado no art. 672º, 1/2, a), b) e c) do CPC (revista excepcional) – Conclusões 40. a 71.
Mais interpôs recurso para o Tribunal de Justiça da União Europeia, por solicitação de reenvio prejudicial nos termos do art. 267º do TFUE – Conclusões 72. a 79., 83., 99
Verifica-se ainda que invoca nulidades do acórdão recorrido, nos termos do art. 615º, 1, c) e d), do CPC – Conclusões 4. a 25. (art. 674º, 1, c), CPC); e ainda “ofensa de disposição expressa da lei que fixa a força de determinado meio de prova e exige certa espécie de prova para a existência de facto” (art. 674º, 1, b), 3, 2.ª parte, CPC) – Conclusão 3., com referência às alegações, Conclusões 102. a 107.
8. A Autora apresentou as suas contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista normal pela existência de dupla conformidade decisória entre as instâncias, da revista excepcional e do reenvio prejudicial para o TJUE, devendo manter-se inalterado o acórdão recorrido. Não se pronunciou sobre o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
9. Em acórdão proferido em 10/12/2019, em conferência (fls. 1064 e ss), veio o TR…. proferir decisão em que apreciou as alegadas nulidades por omissão de pronúncia do acórdão recorrido, julgando-as improcedentes (arts. 615º, 4, ex vi art. 666º, CPC), e remetendo os autos ao STJ.
10. Notificado desse último acórdão, o Réu Recorrente veio requerer (dirigido ao STJ, tal como se confirma no despacho proferido a fls. 1088 pelo Ex.mo Senhor Relator Desembargador) a ampliação do recurso de revista interposto do acórdão do TR…. proferido em 10/9/2019, alegando o art. 617º, 3, ex vi art. 666º, do CPC, e pedindo a nulidade do acórdão de 10/12/2019 (art. 615º, 1, b) e c), CPC) e a inconstitucionalidade da interpretação conferida ao art. 334º do CCiv. por violação do princípio da proporcionalidade (fls. 1069 e ss).
11. Em face da solicitação por parte do Ré e aqui Recorrente da atribuição de efeito suspensivo ao recurso de revista interposto – consignando tal pretensão “em obediência ao disposto no n.º 1 do art. 676º do CPC: o recurso de Revista tem efeito suspensivo em questões sobre o estado de pessoas, como é o caso em matéria de capacidade judiciária da recorrida”; “na conformidade com o disposto no nº 5 do art. 704º do CPC, que remete para o disposto no nº 4 do artigo 647º do CPC (sem limitação ao recurso de Apelação e, por conseguinte, também aplicável ao recurso de Revista)”; “a execução da decisão antes do trânsito em julgado causaria ao recorrente prejuízo considerável, já que se trata de ilustre ........, com notório bom nome e reputação, a nível nacional e internacional, portador de Insígnia de Prata da Ordem dos ........ Portugueses (condecoração atribuída aos ........ com mais de 25 anos de exercício profissional sem sanção disciplinar superior a advertência), cumpridor pontual das suas obrigações (…), sem que dos registos públicos conste qualquer execução judicial contra si – tanto mais que se oferece para prestar caução, nos termos da lei, se necessário for”; “[a] execução da presente decisão antes do trânsito em julgado causaria ao recorrente, por conseguinte, notório dano considerável ao seu bom nome e reputação pessoal e profissional, merecedor da tutela do direito por meio da atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso” (fls. 942v-943, requerimento de interposição; Conclusões 80. a 82., 86. a 88.) –, foi proferido despacho pelo aqui Relator, fixando “efeito devolutivo ao recurso, nos termos legais, subindo nos próprios autos (art. 675º, 1, CPC, em referência à impugnação absorvente para o efeito do art. 671º, 1, CPC)”.
Deste despacho o Recorrente interpôs Reclamação para a Conferência (arts. 652º, 3, 679º, CPC), apresentando as seguintes Conclusões:
“- Por Douta Decisão de que ora se reclama, fixou o Exmº Senhor Conselheiro Relator o efeito meramente devolutivo ao recurso de revista.
- Para tal, estribou-se no normativo consignado no art. 676º do CPC, e, por outro lado, na inaplicabilidade do disposto no nº 5 do art. 704º do mesmo diploma.
- Sucede que, não se pode o recorrente conformar com tal decisão.
- No caso sub judice, suscitou o recorrente, em sede de recurso de apelação, a questão da incapacidade jurídica da recorrida, estribando tal alegação em normativos comunitários, e, em concreto, no art. 18, nº 1, alínea a) da Directiva 2009/138/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009, e no art. 8, nº 1, alínea b) da Directiva 72/239/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1 de Julho de 1973, na redacção que lhe foi introduzida pela Directiva nº 92/49/CEE, de 18 de Junho de 1992, questão essa que, ao abrigo do disposto no art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, motivaria o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça a União Europeia.
- Atendendo ao princípio da universalidade consagrado a nível constitucional no nº 2 do art. 12º da Lei Fundamental, e atendendo ainda ao princípio constitucional da igualdade, ter-se-á de integrar e interpretar o quadro normativo vazado no art. 676º, nº 1 do CPC, equiparando as acções sobre o estado das pessoas (singulares) àqueles em que se discute a capacidade ou incapacidade das pessoas colectivas sob pena de, aplicando-se o normativo de forma literal e restritiva, se ofender a norma constitucional e o princípio da igualdade e universalidade.
- Como tal, e por tal motivo, sempre se deveria, ao caso em apreço aplicar o regime legal vazado no art. 676º do CPC, com interpretação extensiva, e deste modo fixar, ao recurso de revista, efeito suspensivo.
- Do mesmo modo, tal efeito suspensivo sempre deveria ser fixado como consequência do obrigatório reenvio dos autos para o Tribunal de Justiça da União Europeia, reenvio esse que se demonstra não só necessário como mesmo imperativo, dada não só a necessidade de salvaguardar o primado da legislação comunitária, como também a prolação de decisão por parte daquele Tribunal, em relação à interpretação e aplicação das normas comunitárias que versam sobre a capacidade ou incapacidade as pessoas colectivas que se dedicam à actividade seguradora para ajuste de contrato não compreendidos nessa actividade, e que constituem questão prejudicial, oportunamente suscitada pelo recorrente.
- Sendo que, a necessária apreciação de tal questão prejudicial, ao abrigo da obediência do dever de gestão processual, sempre deveria conduzir à fixação de efeito suspensivo aos presentes autos.
- Acresce que, inexiste fundamento para que se não aplique ao caso sub judice o regime legal vazado no nº 5 do art. 704º do CPC, pois que, contrariamente ao entendido pelo Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator, tal regime não se encontra circunscrito ao recurso de apelação, antes devendo ser aplicado também ao recurso de revista.
- Acrescendo ainda que, como é evidente, a atribuição do efeito meramente devolutivo acarretaria para o recorrente dano considerável, que lesaria o seu bom nome pessoal e profissional, que sem o resguardo do efeito suspensivo, seria objecto de diligências executivas, sem que, quanto ao objecto dos presentes autos, se tivesse produzido qualquer decisão definitiva e executória.
- Aliás, por força de tal circunstância, o recorrente aquando da interposição do recurso, requereu a atribuição de efeito suspensivo à revista, protestando constituir caução, nos termos estipulados no art. 647º do CPC.
- Sendo certo que o regime da prestação de caução, se encontra inserido nas disposições legais concernentes ao recurso de apelação, não é menos certo que tais disposições também se aplicam ao recurso de revista por força do comando legal vertido o art. 679º do mesmo diploma legal, pelo que, também por tal motivo, e com tal fundamento, se deveria conceder efeito suspensivo ao recurso de revista interposto.”
12. Foi ainda proferido despacho pelo aqui Relator no exercício da competência e para o efeito previsto no art. 655º, 1, do CPC, quanto à admissibilidade da revista normal.
Esta decisão mereceu pronúncia por parte do Recorrente, pugnando pela admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso nessa modalidade.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir autonomamente a matéria da (1) Reclamação para a Conferência, pedindo que sobre o despacho proferido recaísse acórdão, e do (2) conhecimento do objecto da revista normal, assim como da (3) interposição subsidiária da revista excepcional.
II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO
1. Do efeito do recurso
No despacho singular reclamado, decidiu-se não assistir razão ao Réu e ao Recorrente quando solicitara a atribuição de efeito suspensivo.
Fundamentou-se deste modo, que se transcreve:
“Em primeiro lugar, não se aplica o art. 704º, 5, do CPC, incluído no regime de execução de sentença, ao permitir a “suspensão da execução da sentença” no confronto de recurso pendente com efeito meramente devolutivo.
Em segundo lugar, aplica-se para resolução o art. 676º do CPC, privativo do recurso de revista, em cujo n.º 1 se prescreve, excepcionalmente, o efeito suspensivo em «questões sobre o estado de pessoas» e, a contrario sensu, a regra de o recurso de revista ter efeito meramente devolutivo (por todos, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de processo civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 676º, pág. 817). Ora, analisando os pedidos (também os reconvencionais) e as causas de pedir, verifica-se que o objecto essencial da acção se reconduz ao pagamento de rendas inerentes a uma relação de arrendamento extinta, discutindo-se a sua validade e eficácia entre as partes, e a indemnizações sustentadas em responsabilidade civil (e sua garantia de cumprimento). E não incide sobre qualquer matéria relativa ao «estado de pessoas», como aconteceria com o decretamento de divórcio, o estabelecimento da maternidade ou da paternidade ou com a apreciação do acompanhamento de maiores – e nas quais não se integra, sem prejuízo do óbvio e manifesto interesse da posição do Recorrente nessa protecção, a pretendida tutela da honra e da consideração do Réu como ........ durante a pendência do processo”.
Não se verificam razões para infirmar o anteriormente decidido singularmente quanto ao efeito do recurso delineado pelo art. 676º, 1, do CPC – após o exercício das competências previstas em primeira linha pelo Juiz Relator no tribunal a quo no art. 641º, 1 e 5, do CPC, e, depois, no exercício dos poderes do aqui Relator ao abrigo dos art. 652º, 1, a) («corrigir o efeito atribuído ao recurso»), e 654º, ex vi art. 679º, do CPC, uma vez solicitado pelo Recorrente a alteração do efeito-regra –, e é de confirmar a sua fundamentação.
Ademais, poderá acrescentar-se que não procede a invocada extensão do âmbito de aplicação do art. 676º, 1, do CPC a matérias relativas a pessoas colectivas, como pretende agora o Réu alegar, a propósito da questão decidida na Relação quanto à capacidade judiciária da Autora e do pedido de reenvio prejudicial que lhe está subjacente. Na verdade, tal extensão não se justifica, atendendo no essencial à conformação do efeito devolutivo como regra da interposição de recursos (arts. 647º, 1, ex vi art. 679º, e 676º, 1, do CPC), sendo o efeito suspensivo uma previsão excepcional e apenas admitido nos casos previstos legalmente[1].
Portanto, é de indeferir a Reclamação quanto ao efeito do recurso, confirmando-se a decisão singular proferida nos autos.
2. Da admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso em revista normal (interposta a título principal)
2.1. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal junto do STJ, aferida essa existência em relação aos segmentos decisórios em que se verifica identidade de julgados sem voto de vencido ou – equiparável – se revele mais favorável à parte recorrente. Assim sendo, o acesso ao STJ só não é vedado pelo disposto no art. 671º, 3, se o acórdão recorrido, apesar de ter decidido de forma coincidente, tiver utilizado fundamentação essencialmente diferente daquela que foi usada pela primeira instância (e desde que não se integre o caso numa das hipóteses elencadas no art. 629º, 2, do CPC (“é sempre admissível recurso”) e salvaguardadas no corpo do art. 671º, 3, do CPC (“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (…)”).
Quando a parte dispositiva do acórdão recorrido é integrada por mais do que um segmento decisório – expressamente ou em referência aos segmentos da parte dispositiva da sentença de 1.ª instância –, um ou uns em conformidade e outro ou outros em desconformidade com a primeira decisão judicial, o confronto de cada um desses segmentos é decisivo para delimitar a divergência relevante para aferir a “dupla conforme”. A “revista normal” deve “circunscrever-se ao segmento ou segmentos que revelem uma dissensão entre o resultado declarado pela 1.ª instância e pela Relação ou relativamente aos quais exista algum voto de vencido de um dos três juízes do colectivo”[2]. Tal entendimento está em linha com a (mais adequada) visão ponderada ou racional da “dupla conforme”, que recusa uma visão plena ou irrestrita, que demandaria uma confirmação (rigorosamente) total da decisão de 1.ª instância[3]. Deste modo, “se, quanto a determinado segmento, se verificar a confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, fica eliminada, nessa parte, a interposição de recurso ‘normal’ de revista. Em tal circunstância, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça ficará dependente do acionamento da revista excecional e da sua aceitação pela formação referida no art. 672.º, n.º 3”[4].
Uma análise atenta leva-nos a considerar que, no caso dos autos, o decidido pela 1.ª instância e pelo acórdão recorrido, impugnado em revista nos termos do art. 671º, 1, do CPC, no que toca ao segmento decisório coberto pela disposição do acórdão recorrido, é essencialmente coincidente.
Na verdade, a sentença de 1.ª instância concluiu que: (i) Autora e Réu celebraram contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal (ou comércio) em 1/3/2004, válido e eficaz, com alterações introduzidas no final do ano de 2006 “quanto à divisão do espaço entre os inquilinos e ao montante da renda a pagar por cada um dos dois inquilinos, nos termos propostos pelos inquilinos e aceites pela senhoria, mantendo-se incólumes todas as demais cláusulas inicialmente acordadas”; (ii) uma vez que ao contrato “não (…) foi posto termo por qualquer uma das partes no mesmo (…),ao arrendatário incumbe a obrigação de pagar pontualmente a renda acordada, como contrapartida pelo gozo do locado (arts. 397º, 406º, n.º 1, 1038º, al. a) e 1075º, n.º 1 do Cód. Civil)”; (iii) “Estando demonstrado que o Réu (arrendatário) não procedeu ao pagamento da renda mensal acordada desde Março de 2009 e até à data de entrega do locado (14/12/2012), em princípio, assiste à Autora o direito de ver decretada a resolução do contrato de arrendamento, com o fundamento previsto no art. 1083º, n.os 1, 2 e 3 do Cód. Civil, sem prejuízo, ainda, do direito às rendas vencidas e vincendas e legais acréscimos, sendo certo que, relativamente ao pedido de resolução foi o mesmo declarado extinto por força da entrega do locado na pendência destes autos, por despacho proferido a fls. 624. Só assim não será, se o Réu provar factos que se traduzam na impossibilidade de utilização do locado por facto imputável à Autora, por forma a verificar-se a excepção de não cumprimento do contrato que paralise aquele direito da Autora de recebimento das rendas em dívida”; (iv) não se verificaram factos que permitisse invocar excepção legítima de não cumprimento do contrato por parte da Autora senhoria, nomeadamente em relação à impossibilidade de utilização do locado, ou a sua incompatibilidade, para o fim a que se destinava. Assim, condenou o Réu a pagar à Autora “a importância de €25.929,45, referente às rendas vencidas até Novembro de 2010, bem como as vincendas desde essa data até à entrega do arrendado que ocorreu em Dezembro de 2012 no valor de €31.233,00, perfazendo a importância global de €57.162,45, rendas essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data dos respectivos vencimentos até efectivo pagamento”.
No que toca à impugnação em sede de apelação deste segmento do dispositivo, o acórdão recorrido, no que respeita à aptidão e utilização do locado para o fim contratual, veio responder à alegação de que existiria mora da Autora na modalidade de mora creditoris pela não reposição das condições de utilização, concluindo, no quadro jusnormativo dos arts. 813º e 1031º do CCiv., não ter havido “violação da obrigação de facultar a utilização da fracção arrendada”, assim como à alegação de que teria existido nulidade de cláusula de renúncia a direitos do arrendatário, nos termo do art. 809º do CCiv., asseverando que não se descortinara “qualquer incumprimento das prestações de que a autora/senhoria estivesse obrigada, e[,] do qual o apelante se tenha tornado credor e que tivesse renunciado”.
É neste contexto decisório e argumentativo que gravitam as Conclusões 26. a 32. da revista, não se verificando que haja fundamentação que afecte a coincidência essencial que a lei exige para vedar o recurso interposto com base no art. 671º, 1, do CPC.
É verdade que a alusão à mora do credor e à eventual renúncia de direitos surge ex novo (neste último caso, assistida pela referência ad latere ao instituto da propriedade horizontal) no acórdão recorrido. Mas isso deve-se à argumentação trazida pelo Recorrente à apreciação do 2.º grau de jurisdição, sem com isso implicar um desvio no caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida – relativo ao fundamento da condenação do Réu ao pagamento das rendas devidas e à sua eventual exclusão pela invocação de excepção de não cumprimento do contrato à luz do art. 424º do CCiv. E quando assim é, ou seja, quando subsiste adição de fundamentos em segunda instância justificada pela necessidade de pronúncia ao acervo argumentativo do apelante, não existe diversidade essencial da fundamentação que obste à aplicação do art. 671º, 3, do CPC. Por outras palavras, para se implicar a intervenção do STJ “é necessário, para o efeito, uma modificação qualificada, essencial, da fundamentação jurídica que aos olhos das partes exiba a ideia de que as águas em que cada instância navegou são tão diferentes, que só mesmo as decisões são coincidentes”[5]. Isso significa que o obstáculo recursório da “dupla conforme” não se preenche com “qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância”; “é necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal”, só se podendo considerar existente essa fundamentação essencialmente diferente se “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância”[6]. Em suma, para se activar o recurso de revista é imperativo que a essencialidade da diferença do fundamento que confirma a decisão determine uma sucumbência qualitativa da parte prejudicada[7].
Por outro lado, não tem razão o Recorrente para infirmar a “dupla conformidade” quando levanta o tratamento do objecto social da Autora como “empresa seguradora” (v. Conclusão 28.): ainda que não fosse questão abordada pela 1.ª instância, essa matéria surge como instrumental à decisão sobre a incapacidade judiciária da Autora, invocada na apelação e decidida como questão processual nova pela Relação, não bulindo, por isso, com a identidade obtida na apreciação do decidido pela 1.ª instância quanto à relação material controvertida. Conclui-se, assim, que, pelas razões apontadas, assim como pela confirmação (com fundamentação adicional tendo em conta o objecto recursivo da apelação do Réu, para o mesmo resultado decisório, em particular para os pontos I e IV da “fundamentação jurídica” da sentença em 1.º grau) da improcedência da apelação do Recorrente, falece o respectivo interesse processual para aceder ao terceiro grau da jurisdição quando recebe duas decisões que pelo seu teor definiram de modo consolidado a sua situação jurídica sem deixar lugar a dúvida razoável e objectiva na fundamentação, uma vez que as duas decisões acabam por ser fungíveis entre si nos seus efeitos[8].
Tal implica a inadmissibilidade da revista à luz do art 671º, 3, do CPC, fundamentada no art. 671º, 1, do CPC.
2.2. Ainda tendo por base o art. 671º, 1, do CPC, o Recorrente reage contra o indeferimento da pretensão (inscrita na apelação para o TR….) em promover a absolvição da instância da Autora por incapacidade judiciária (arts. 15º, 2, 27º, 28º, 1, c), 577º, c), CPC). Esta decisão foi tomada pela Relação, não em apreciação de anterior decisão da 1.ª instância, mas pela primeira vez no acórdão recorrido[9].
A dupla conformidade não pode deixar de afectar o conhecimento desta pretensão, uma vez que é tomada na decisão insusceptível de ser conhecida em revista. Por outras palavras, ficamos sem decisão recorrida para apreciar da bondade dessa decisão, que se relaciona com o impugnado que é inadmissível de ser conhecido pela aplicação do art. 671º, 3.
Por outro lado, vista a natureza interlocutória da decisão, ainda que proferida no acórdão que é decisão final do julgamento do recurso de apelação pendente na Relação, estamos perante decisão processual “nova”[10] cuja impugnação recursiva ainda está abrangida (mesmo que extensivamente, em referência à pendência de decisão na Relação) pelo regime do art. 671º, 4, do CPC: «Se não houver ou não for admissível recurso de revista das decisões previstas no n.º 1, os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação podem ser impugnados, caso tenham interesse para o recorrente independentemente daquela decisão, num recurso único, a interpor após o trânsito daquela decisão, no prazo de 15 dias após o referido trânsito». A contrario sensu, e ainda tendo em conta o art. 673º, 1 («Os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do nº 1 do artigo 671º (…).»), a acessoriedade da impugnação das decisões interlocutórias “novas” da Relação implica que não podem ser impugnadas em revista para o STJ se não houver ou não for admissível a revista das decisões proferidas no âmbito do art. 671º, 1, do CPC[11]. Também por esta via, e ainda por aplicação consequencial do art. 671º, 3, não é também admissível a revista, na presente impugnação, de tal decisão proferida no acórdão recorrido.
Improcede, por isso, o propósito de serem apreciadas as Conclusões 26. a 32. e 92. a 101. apresentadas pelo Recorrente.
2.3. Nas Conclusões 33. a 39., o Recorrente alega oposição de julgados com acórdão da Relação de Guimarães para, no âmbito do art. 671º, 2, com remissão para o art. 629º, 2, d), do CPC, reagir contra a omissão de reenvio prejudicial para o TJUE pelo tribunal de 2.ª instância, tendo em conta a alegada pertinência de questão de interpretação e validade de normas do Direito da União Europeia.
O art. 671º, 2, do CPC proporciona a revista de “acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual”, uma vez tendo sido proferidas essas decisões pela 1.ª instância, nas previsões admitidas pelas alíneas a) e b) desse n.º 2. A al. a), invocada pelo Réu, permite convocar o art. 629º, 2, d), do CPC – como um dos casos de “recurso sempre admissível” –, desde que, para esse efeito, se preencha a previsão da existência de «motivo estranho à alçada do tribunal»; mas, note-se, apenas e só para impugnar por essa via a decisão da Relação sobre tais decisões interlocutórias. Não se oferece à impugnação recursiva, pelo menos nesta sede, a omissão de decisões que, alegadamente, em sede processual, deveriam ter sido proferidas. Pelo que, estando a admissibilidade da revista condicionada pela apreciação de decisão interlocutória anterior, enquanto verdadeiro pressuposto material de recorribilidade, não se toma conhecimento do objecto do recurso no que respeita ao objecto delimitado pelas Conclusões 33. a 39.
2.4. A apreciação das nulidades imputadas ao acórdão recorrido no âmbito do recurso interposto para o tribunal de jurisdição superior está dependente de a revista ser admissível, como seu fundamento acessório (arts. 615º, 4, 2.ª parte, 666º, 1, 674º, 1, c), CPC), assim como acontece com a apreciação do pedido de reenvio prejudicial ao abrigo do art. 267º do TFUE, com a inerente suspensão de instância para o efeito[12], e com a invocação da «violação ou errada aplicação da lei de processo», nos termos dos arts. 674º, 1, b), e 3, 2.ª parte («ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova»), do CPC[13]. Razão pela qual, por ora, a inadmissibilidade da revista normal afecta a apreciação e tomada de posição nesta instância quanto às Conclusões 3., 4. a 25., 72. a 79., 83., 102. a 107.
Pela mesma razão, não procede a ampliação do recurso de revista, pedida depois de proferido o acórdão pelo TR….., em conferência, com data de 10/12/2019, no contexto de aplicação do art. 617º, 3, ex vi art. 666º e 679º, do CPC, pois da revista normal não se pode conhecer, nem nesse expediente podem ser apreciadas – pois não respeitam à ampliação do recurso de revista, fundado anteriormente no art. 671º, 1, do CPC – eventuais nulidades, invocadas a propósito dessa ampliação, desse acórdão prolatado em 10/12/2019.
Em suma.
Tendo presente o exposto, estamos perante circunstâncias processuais que, considerando a previsão legislativa de irrecorribilidade consagrada no art. 671º, 3, do CPC, obstam à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposto pelo Recorrente (arts. 671º, 1, 2 e 4, CPC), o que afecta, igualmente e por ora, o conhecimento das questões acessórias e dependentes dessa admissibilidade.
3. Da revista excepcional (interposta a título subsidiário)
Não obstante, o Recorrente interpôs recurso de revista excepcional, a título subsidiário e de acordo com a alegação dos fundamentos recursivos do art. 672º, 1, a), b) e c), do CPC (Conclusões 40. a 71.), se se considerasse (como consta dos itens pertinentes das Conclusões do recurso) “estarmos perante a inadmissibilidade do recurso ordinário de Revista do acórdão da Relação sub specie iuditio, por referência ao nº 3 do artigo 671º do CPC”[14].
Razão pela qual há que remeter os autos à Formação de Juízes do STJ a que se refere o art. 672º, 3, do CPC, para apreciação e decisão sobre esses fundamentos específicos de admissibilidade (interesse jurídico, relevo social e contradição jurisprudencial).
III. DECISÃO
Nesta conformidade, acorda-se em:
1) julgar improcedente a reclamação sobre o efeito do recurso de revista, confirmando-se a decisão singular reclamada;
2) não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposta a título principal;
3) ordenar a remessa dos autos à Formação Especial deste STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, para o efeito de julgamento dos pressupostos específicos de admissibilidade da revista excepcional interposta a título subsidiário, após o trânsito da decisão proferida quanto à revista normal.
Custas pelo Recorrente.
STJ/Lisboa, 2 de Março de 2021
Ricardo Costa (Relator)
Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade do Senhor Juiz Conselheiro que é 1.º Adjunto neste Colectivo.
António Barateiro Martins
Ana Paula Boularot
(Com declaração de voto em anexo)
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
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PROC 910/10.7TVPRT.P1.S1
6ª SECÇÃO
DECLARAÇÃO DE VOTO
Nos presentes autos em que é Recorrente AA, suscitam-se duas questões na tese que faz vencimento.
A primeira tem a ver com o conhecimento do efeito atribuído ao recurso, fixado em devolutivo pelo Relator no Tribunal da Relação e mantido neste STJ quer pelo Exº Relator em sede de decisão singular, aqui mantida, o que, na minha opinião não poderia ter sido feito, pelo menos por ora.
Se não.
O Recorrente interpôs recurso de Revista a titulo normal e, subsidiariamente, a titulo excepcional, por se verificarem, em seu entendimento, as circunstâncias aludidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 672º, nº1 do CPCivil.
Como é sabido, o despacho do Relator que admite o recurso fixa o seu efeito e determina o regime de subida, não vincula o Tribunal ao qual se destina, cfr artigo 641º, nº5 do CPCivil, aplicável ex vi do artigo 679º do mesmo diploma, de onde se retira que o Tribunal ad quem, se irá pronunciar sobre a precedente admissão.
In casu, o Exº Relator neste STJ pronunciou-se no seu despacho liminar, além do mais, sobre o efeito atribuído ao recurso, porquanto a parte se insurgiu quanto ao efeito devolutivo estabelecido em sede de recebimento no Tribunal da Relação.
Contudo, fê-lo intempestivamente, já que a Revista, neste STJ ainda não foi sequer objecto de decisão a admiti-la e o efeito de um recurso apenas tem interesse, se tal impugnação for de conhecer e o processo prosseguir os seus termos.
Neste preciso conspectu, o Acórdão produzido não poderia manter o despacho singular do Exº Relator, pelo que não subscrevo o Acórdão nesta parte, ficando assim vencida quanto a esta decisão.
De outra banda, não obstante concorde com a segunda parte da decisão no que tange ao envio dos autos à Formação para a verificação dos pressupostos no que tange à Revista excepcional interposta, não posso estar mais em desacordo quanto à fundamentação encetada, no que tange à inadmissibilidade da Revista normal, em tudo o que excede a verificação da dupla conformidade decisória patente no Acórdão posto em crise, máxime, quando se conclui que existe no mesmo uma decisão interlocutória, cuja recorribilidade exige uma autonomia legislativa.
Explicitando.
A tese que faz maioria, entende que a argumentação recursória do aqui Recorrente em sede de Apelação, respeitante à incapacidade judiciária da Recorrida, descartada pelo Acórdão impugnado, constitui a se uma decisão autónoma, recorrível nos precisos termos do artigo 673º, fazendo depender a sua sorte da admissibilidade da Revista quanto às demais questões – de fundo – abordadas na Revista, cindindo esta, acaba por afastar a possibilidade do seu conhecimento, porquanto afastou a admissão da Revista «principal», sendo esta, na tese esgrimida, a que se ocupa sobre o fundo da causa, isto é, sobre o restante acervo conclusivo, fazendo aplicar incorrectamente, diga-se sempre s.d.r.o.c, o preceituado no artigo 671º, nº4 do CPCivil.
O recurso de Revista aqui encetado é uno e indivisível, sendo que a argumentação recursiva respeitante à incapacidade judiciária da entidade seguradora, aqui Recorrida, não mais é do que um fundamento de direito enformador do recurso interposto, de harmonia com o preceituado no artigo 674º, nº1, alínea do CPCivil, além do mais, na sequência das conclusões de recurso que sob os números 21 a 23 o aqui Recorrente apresentou ao Tribunal da Relação do Porto, no seu recurso de Apelação então interposto.
Aliás, tratando-se a capacidade judiciária de uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, não tendo a mesma sido objecto de apreciação concreta por banda do Tribunal, poderia a mesma ser suscitada como o foi, tendo em atenção o preceituado nos artigos 577º, alínea c), 578º e 595º, nº1, alínea a) e nº3, todos do CPCivil.
Assim, as razões de remessa dos autos à Formação, na minha opinião, baseiam-se na dupla conformidade decisória «tout court» do Acórdão produzido, terem sido invocados os fundamentos aludidos nas alíneas a), b) e c) do artigo 672º, nº1 do CPCivil, verificando-se as demais condições gerais de recorribilidade.
(Ana Paula Boularot)
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[1] Assim, v. o Ac. do STJ de 16/10/2018, processo n.º 923/13.7TBGDM-B.P1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.
[2] ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código do Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, pág. 370; enfatizado nosso.
[3] V. JORGE PINTO FURTADO, Recursos em processo civil (de acordo com o CPC de 2013), 2.ª ed., Nova Causa – Edições Jurídicas, Braga, 2017, págs. 111-112.
[4] ABRANTES GERALDES, Recursos… cit. e loc. cit., sublinhado como no original.
[5] Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, Rel. PIRES DA ROSA, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis cit., pág. 95, também com ênfase da nossa responsabilidade.
[6] V. Ac. do STJ (também) de 19/2/2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt.
[7] Assim: ELIZABETH FERNANDEZ, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, pág. 190.
Recentemente, v. o Ac. do STJ de 26/11/2020, processo n.º 4279/17.0T8GMR.G1-A.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt: “(…) de acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, a pronúncia acerca de questão nova ou, como ocorre no caso dos autos, colocada em termos inovadores em sede de apelação, da qual a Relação não conhece ou que julga improcedente, não permite concluir pela existência de fundamentação essencialmente diferente. Se assim não fosse, estaria encontrada a via para instrumentalizar o recurso de apelação de forma a impedir, sempre e em todos os casos, a formação de dupla conforme”.
[8] Seguimos RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546º a 1085º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 181.
[9] Transcreva-se a conclusão argumentativa: “A capacidade judiciária da sociedade pressupõe os direitos convenientes e necessários à prossecução do seu fim. (…) Ora para avaliar e ajuizar da capacidade judiciária da Ré deveria o autor, que invoca tal vício, alegar factos demonstrativos de que o contrato não é necessário nem conveniente à prossecução dos fins respectivos ou que sejam vedados por lei, para efeito da violação ou não do princípio da especialidade consagrado naquele comando legal [art. 6º do CSC]. Assim o recurso não tem por objectivo conhecer matéria nova, não se descortinando, sem mais, que a Ré seguradora não disponha de capacidade judiciária.”
[10] Enquanto integrada no elenco de “decisões que não tendo recaído sobre a relação controvertida – pois de outro modo seriam decisões materialmente finais – tiveram por objeto questões processuais, mas sem que tenham absolvido da instância o réu pois de outro modo seriam decisões formalmente finais para efeitos do n.º 1 [do art. 671º]”: assim, RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 671º, pág. 175.
[11] Sobre a questão interpretativa, v. RUI PINTO, Notas…, Volume II cit., sub art. 673º, pág. 192, JORGE PINTO FURTADO, Recursos em processo civil… cit., págs. 129-130, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, pág. 359.
[12] Para esta dependência processual, tendo em conta a necessidade e pertinência do reenvio prejudicial para a (re)apreciação do mérito da causa no STJ, v. o Ac. do STJ de 1/4/2014, processo n.º 2024/11.3TVLSB.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, ponto V do Sumário (“Sendo o acórdão da Relação irrecorrível – por virtude da dupla conforme –, a questão prejudicial colocada ao STJ deixou de ser pertinente e útil à decisão da causa, pelo que não está este tribunal vinculado a proceder ao reenvio perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, à luz do disposto no art. 267.º do TFUE.”), in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2014.pdf.
[13] Quanto a esta última dependência, v. o Ac. do STJ de 5/2/2020, processo n.º 983.18.4T8VRL.G1.S1, Rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:983.18.4T8VRL.G1.S1/: “Mesmo nos casos em que seja alegada a ofensa do valor probatório da prova tarifada, a interferência do Supremo, ao abrigo do art. 674.º, n.º 3, do CPC, não prescinde da inexistência de dupla conformidade decisória, pressuposto geral de admissibilidade da revista normal, tal como emerge do art. 671º, n.os 1 e 3, do CP” (ponto II do Sumário).
[14] Sobre a legitimidade e validade desta interposição, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, págs. 369-370.