acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I. relatório.
1. A "Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução" – adiante, CPIPRNBIFR ou Requerente – veio suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) incidente para quebra do segredo profissional ao abrigo do disposto nos art.os 135º e 182º do Código de Processo Penal (CPP), 13º-A do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP) aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1.3[1], e 178º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), requerendo que, «com base na fundamentação expendida no sentido de demonstrar a prevalência do interesse preponderante da descoberta da verdade relativamente aos factos que são objeto de inquérito parlamentar, seja decretado o levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal em relação ao "Relatório ......".».
2. O incidente insere-se no procedimento de inquérito parlamentar que aquela comissão desenvolve credenciada pela Resolução da Assembleia da República n.º 90/2020, de 25.9. in DR, I, de 16.12, relativo às «perdas e outras variações patrimoniais negativas registadas pelo Novo Banco (NB) que condicionaram a determinação do montante pago e a pagar pelo Fundo de Resolução (FdR) ao NB».
Visa a dispensa judicial do segredo de supervisão por que o citado relatório está protegido nos termos do art.º 80º n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.12[2], de molde a viabilizar a «sua publicitação nos âmbito do Trabalhos da CPIPRNBIFR», uma vez que se «apresenta como indispensável à boa realização do inquérito parlamentar e, como tal, à prossecução do interesse público prevalecente da descoberta da verdade material», assim se permitindo «a utilização plena da informação nele vertida; quer no contexto das inquirições que estão em curso no inquérito parlamentar, quer para efeito de elaboração e publicitação do relatório final a que alude o artigo 20.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares.».
Vem fundamentado nos termos constantes do requerimento-exposição do Exmo. Presidente da CPIPRNBIFR capeado pelo ofício n.º ……/CPIPRNBIFR/2021, que convoca, no mais decisivo, razões como as que seguem:
─ «[…] Os arquivos e registos do Banco de Portugal estão abrangidos na previsão do n.º 2 do artigo 268º da Constituição e do artigo 4.º da LADA» – Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), aprovada pelo Lei n.º 26/2016, de 22.8 –, «por força do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 3º, n.º 1, alínea a), e 4º, n.º 1, alínea g), da LADA e artigo 1º dos Estatutos do Banco de Portugal aprovados pela Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro […]».
─ O, denominado, "Relatório ......", integrante daqueles arquivos, «deve pertencer ao domínio público, desde logo por respeito a um princípio de geral de publicidade e transparência da Administração Pública, ínsito ao princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2º da CRP», e concretizado no «direito de acesso aos arquivos e registos administrativos previsto no art.º 268º n.º 2 da Constituição, positivado como princípio da administração aberta no art.º 17º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e densificado na […] LADA».
─ «Impende, pois, sobre o Banco de Portugal uma obrigação ativa de informação aos cidadãos em geral cujo conhecimento seja relevante para garantir a transparência da atividade desenvolvida como autoridade de supervisão, atualmente corporizada no artigo 1º da LADA […], desde que devidamente acauteladas as restrições de acesso contempladas na mesma lei e sem prejuízo de divulgação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa a matéria reservada (cf. artigo n.º 5 do citado preceito)».
─ A avaliação que culminou o "Relatório ...... «inscreveu-se no contexto de um processo interno de análise e revisão globais das funções de supervisão, desencadeado pelo Banco de Portugal, com vista à identificação de limitações, insuficiências e oportunidades de melhoria, a partir sobretudo da experiência dos três anos que precederam a medida de resolução do Banco Espírito Santo, com vista à adoção de soluções tendentes a melhorar a qualidade das práticas e dos procedimentos de supervisão e respetivo enquadramento institucional e regulamentar – processo que conheceu o seu términus com a publicação, no ano de 2016, do "LIVRO BRANCO sobre a regulação e supervisão do sector financeiro" […]», de que o mencionado relatório constituiu um dos documentos de trabalho.
─ «[…] O segredo de supervisão abrange toda a informação respeitante à vida interna e atividade das instituições supervisionadas, mormente contas de depósito e seus movimentos e operações bancárias, cambiais, financeiras dos respetivos clientes – realidades que a jurisprudência constitucional vem considerando constituírem uma dimensão essencial do direito fundamental à reserva da vida privada consagrado no artigo 26º, n.º 1, da Constituição […]».
─ O dever de segredo de supervisão previsto no art.º 80º do RGICSF pressupõe, tal como o bancário previsto no art.º 79º do mesmo diploma, «a especial relação de confiança que a lei pretende proteger com o regime de segredo, residindo a diferença na proveniência das informações: enquanto o segredo bancário se reporta, fundamentalmente, à informação respeitante aos clientes, o segredo de supervisão refere-se à informação proveniente das entidades supervisionadas, podendo ou não integrar informação de clientes».
─ «Em todo o caso, a eventual presença de informação deste tipo no documento em apreço não deve ser sinónimo de recusa de acesso público ao mesmo, desde que seja possível expurgá-lo de toda a informação relativa a dados pessoais de pessoas singulares ou à vida interna das instituições supervisionadas e aos seus clientes, conforme previsto no artigo 6º, n.os 5, 6 e 8, e no artigo 10º, n.º 5, ambos da LADA».
─ «[…] O segredo de supervisão tem um âmbito mais vasto do que o segredo bancário, na medida em que "em primeira linha protege o interesse público na efetividade ou eficácia da supervisão, essencial à estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto no artigo 101º da Constituição».
─ Não obstante, o art.º 6º n.º 7 al.ª a) da LADA, prevê a «possibilidade de sujeição de documentos administrativos a interdição de acesso ou a acesso sob autorização durante o tempo estritamente necessário à salvaguarda de outros interesses juridicamente relevantes, mediante decisão do órgão ou entidade competente, sempre que contenham informações cujo conhecimento seja suscetível de "afetar a eficácia da fiscalização ou supervisão, incluindo os planos, metodologias e estratégias de supervisão ou de fiscalização" […].».
─ Por isso que devendo o BdP ter indicado «as razões com fundamento nas quais considera que a divulgação pública do "Relatório …." é ainda hoje suscetível de afetar a eficácia da função de supervisão cometida ao Banco de Portugal».
─ Afectação em que, em todo o caso, se não concede, «considerando o tempo decorrido desde a data em que foi elaborado (30 de abril de 2015), o conhecimento dado pelo Banco de Portugal das recomendações que nele se contêm (4 de julho de 2015), a especulação que […] lavra no espaço mediático a respeito do seu restante conteúdo, e, ainda, o facto de ter já conhecido aplicação a medida de resolução ao Bando Espírito Santo […].».
─ De mais a mais em prejuízo do princípio da administração aberta.
─ Não podendo o artigo 80º do RGICSF «continuar a ser interpretado pelo Banco de Portugal como uma proibição absoluta de acesso público a documentos sujeitos a segredo de supervisão, por só assim ser possível conformá-lo com o direito fundamental de acesso aos arquivos e registos administrativos e com o princípio da transparência da atividade administrativa pública, tal como hoje resulta, de modo expresso, da alínea a) do n.º 7 do artigo 6º da LADA […].».
Em qualquer caso:
─ «[…] O "Relatório ......" incide sobre realidades […] também abrangidas no objeto da CPIPRNBIFR, o que transforma não apenas as recomendações insertas nesse documento, […], como também todo o seu restante conteúdo, num instrumento da maior importância quer no contexto das inquirições que estão em curso no inquérito parlamentar quer para efeito de elaboração e publicitação do relatório final a que alude o artigo 20º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares».
─ «Até à data foram realizadas dezoito audições, […] e o que se constata é que a referência ao teor do "Relatório ......" tem sido uma constante […], isto na ótica das questões suscitadas pelos Deputados(as) no exercício do contraditório pelos depoentes a respeito das considerações naquele veiculadas».
─ À luz do novo enquadramento do RJIP decorrente da Lei n.º 29/2019, de 23.4, «a CPIPRNBIFR obteve acesso pacífico ao documento em apreço, discutindo-o com abertura em reuniões públicas e não merecendo, da parte dos inquiridos, qualquer objeção ou escusa que não as naturalmente concernentes à matéria da proteção de dados pessoais ou do segredo comercial».
─ Um deles, precisamente, o Dr. AA que se mostrou favorável a publicidade do relatório.
─ Entendimento de que a CPIPRNBIFR comunga, atento «o interesse público no apuramento da verdade material e a perspetiva de paz social que a clarificação definitiva da aplicação da medida de resolução ao Banco Espírito Santo deve merecer».
─ «[…] O […] expurgo de uma versão pública do relatório final da CPIPRNBIFR de toda a matéria diretamente concernente ao "Relatório ......" – em função do seu caráter sigiloso – não só contribuiria para uma descaraterização assinalável do documento, como não corresponderia ao registo eminentemente público da condução dos trabalhos e, em última análise, colocaria em xeque uma das finalidades prosseguidas pela Comissão […].».
─ O "Relatório ......" reporta-se «essencialmente a factos ocorridos nos três anos que antecederam a aplicação da medida de resolução do Banco Espírito Santo», mitigando o tempo no entretanto transcorrido «claramente […] os riscos para a estabilidade do sistema financeiro […].» decorrentes de um, potencial, dano reputacional do BdP.
─ De resto, a ocorrer um tal dano, ele já terá sido produzido pelos trabalhos de CPIPRNBIFR, amplamente noticiados, onde se tem discutido várias incidências do "Relatório".
─ Sendo que a sua publicidade alargada beneficiará, até, a percepção do efectivo alcance do documento, o de «um exercício consciente de autoavaliação do Banco de Portugal, numa ótica de aprimoramento do modelo de supervisão […].».
─ «[…] A publicitação do "Relatório ......" no âmbito dos trabalhos da CPIPRNBIFR» apresenta-se «como indispensável à boa realização do inquérito parlamentar e, como tal, à prossecução do interesse público prevalecente da descoberta da verdade material», por uma quádrupla ordem de razões:
─ «[…] Pelo facto de uma Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar ter como documento estruturante um relatório produzido no Banco de Portugal cuja necessidade de permanecer em sigilo é disputada pelos próprios responsáveis pela sua elaboração»;
─ «[…] Pela incerteza gerada nos depoentes que tiveram acesso ao documento quanto às consequências jurídicas da prestação de informações aí vertidas, ocasionalmente conduzindo a respostas que carecem de mediação – pela consulta do "Relatório ......"– para se tornarem completas»;
─ «[…] Pela deflexão de questões suscitadas pelo desconhecimento do teor desse Relatório que torna especialmente perniciosa/ineficiente uma discussão eminentemente técnica»;
─ «[…] Pelas consequências deste paradoxo de discussão pública de um documento mantido sigiloso para a condensação dos trabalhos da CPIPRNBIFR no seu relatório final quando a publicidade do conteúdo das inquirições já antecipa, em certa medida, eventuais prejuízos para a estabilidade do sistema financeiro que a divulgação do "Relatório ......" possa eventualmente consubstanciar […]».
─ «Assim, atendendo aos interesses em presença (por um lado a manutenção do invocado segredo de supervisão e, por outro lado, a prossecução dos objetivos visados com a constituição da CPIPRNBIFR) não podem restar dúvidas de que o primeiro deve ceder ao segundo – isto é, de que o interesse público no cumprimento da função da Assembleia da República enquanto órgão de fiscalização política deve prevalecer sobre a manutenção do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal com relação ao "Relatório ......", de modo a permitir-se a utilização plena da informação nele vertida, quer no contexto das inquirições que estão em curso no inquérito parlamentar, quer para efeito de elaboração e publicitação do relatório final a que alude o artigo 20.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares.»
Está instruído com cinco documentos, por cópia, a saber:
─ Da publicação no Diário da Assembleia da República da Resolução n.º 90/2020 referida – doc. 1;
─ Do ofício n.º …./CPIPRNBIFR/2021, de 8.1.2021 da CPIPRNBIFR, a solicitar ao BdP documentação vária para instrução do inquérito parlamentar, ao abrigo do art.º 13º n.º 3 do RJIP – doc. 2;
─ Do ofício n.º CRI/2021/…. de 18.1.2021 do BdP, a dar conta à CPIPRNBIFR, entre o mais, das diligências efectuadas e/ou em curso em vista da recolha e disponibilização da documentação pretendida, bem como a informar que «[e]m relação a todos os documentos solicitados que cont[ivessem] dados pessoais, o Banco de Portugal encontra[va]-se a analisar as eventuais questões jurídicas que p[udessem] suscitar-se nesse domínio» – doc. 3;
─ Do ofício n.º CRI/2021/…. do BdP, a remeter à CPIPRNBIFR a documentação nele arrolada e respectiva nota explicativa, nela incluída o denominado "Relatório ......", ali identificado pelo «Relatório Final, datado de 30 de abril de 2015, elaborado pela Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo, nomeada por despacho do Governador do Banco de Portugal de 14 de novembro de 2014».
─ Da Acta da Reunião n.º ….. da CPIPRNBIFR, realizada em 10.3.2021, a certificar, inter alia, a audição do Dr. AA, ex-Presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal, e o teor do depoimento prestado.
3. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação.
A. Enquadramento facto-procedimental.
4. Com interesse para a decisão do incidente, surpreendem-se no acervo documental constante dos autos os seguintes momentos facto-procedimentais:
(1). Constituída pela Resolução da Assembleia da República n.º 90/2020, de 25.9. in DR, I, de 16.12, ao abrigo do disposto no art.os 166º n.º 5 e 178º n.º 1 da CRP e 2º n.º 1 al.ª a) do RJIP, a CPIPRNBIFR iniciou os seus trabalhos em 15.12.2020 para, num prazo máximo de 120 dias, proceder a inquérito parlamentar «às perdas e outras variações patrimoniais negativas registadas pelo Novo Banco (NB) que condicionaram a determinação do montante pago e a pagar pelo Fundo de Resolução (FdR) ao NB», no âmbito do seguinte objecto:
─ «1 – Período antecedente à resolução e relativo à constituição do NB:
Apurar e avaliar as práticas de gestão do Banco Espírito Santo (BES) e seus responsáveis, na medida em que possam ter conduzido a perdas e variações patrimoniais negativas justificativas nos montantes pagos e a pagar pelo FdR ao NB;
Avaliar se a atuação do Banco de Portugal (BdP) na supervisão do BES no período que antecedeu a resolução, bem como no processo que conduziu à definição do perímetro de resolução, nomeadamente na definição dos ativos e passivos que integrariam o balanço de abertura do NB, incluindo a sua valorização contabilística pela empresa P…...., foram adequadas.
2- Período antecedente e relativo à alienação do NB:
Avaliar a retransmissão de obrigações seniores do NB para o BES em liquidação e as suas implicações para o custo de financiamento de Portugal e para a defesa do interesse público;
Processos e condições de venda, nomeadamente ao fundo L....;
Averiguar se o contrato de venda do NB e outros contratos celebrados relativos a esta venda nos quais o Estado seja, direta ou indiretamente, onerado, foram diligentemente negociados, e apurar as respetivas responsabilidades técnicas e políticas.
3-Período após alienação:
Avaliar a atuação do Governo, BdP, do FdR e da Comissão de Acompanhamento enquanto decisores públicos e mecanismos responsáveis pela fiscalização da gestão do NB;
Avaliar a atuação dos órgãos societários no NB, incluindo os de administração, de fiscalização e de auditoria, no que respeita à proteção dos interesses do acionista Estado, em particular no processo de avaliação e venda de ativos que conduziram a injeções do FdR;
Analisar o relatório da Auditoria Especial ao NB, datado de 31 de agosto de 2020, apurando a independência do auditor face ao NB, bem como examinando os resultados da referida auditoria.
4- Avaliar a atuação dos Governos, BdP, FdR e Comissão de Acompanhamento no quadro da defesa do interesse público.».
(2). Correspondendo a solicitação da CPIPRNBIFR fundada no art.º 13º n.os 3 e 5 do RJIP, o BdP remeteu-lhe através do ofício n.º ofício CRI/2021….., de 22.1.2020 – docs. n.os4 e 3 referidos –, documentação vária relativa a actividade de supervisão bancária do BdP, entre ela o Relatório Final elaborado em 30.4.2015 pela "Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo", nomeada por despacho do Governador do BdP de 14.11.2014, comummente conhecido por "Relatório ......".
(3). Na oportunidade, assinalou, entre o mais, o BdP que, em seu entender, o conjunto da documentação disponibilizada, nela incluído o mencionado "Relatório ......":
─ Continha «informação abrangida pelo dever legal de segredo estabelecido no artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, assim como dados de natureza pessoal e, ainda, dados sobre instituições e clientes bancários cobertos pelo regime da Lei n.º 15/2019, de 12 de fevereiro»;
─ «Nos termos do artigo 81.º do referido Regime Geral, os dados e informações confidenciais pod[iam]em ser partilhados com comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, na medida do estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto»;
─ No que respeitava «aos dados de natureza pessoal, […] a equiparação dos poderes das comissões parlamentares de inquérito aos poderes de investigação das autoridades judiciárias assegura[va] a licitude da partilha».
─ «Em todos os casos, porém, a informação permanecia coberta pelo regime do dever de segredo, por efeito da extensão desse dever às entidades com quem» tivesse sido «partilhada (número 5 do artigo 81.º do Regime Geral e artigo 8.º da Lei n.º 15/2019), com inerentes deveres e consequências para o seu eventual incumprimento».
─ «Nos termos do quadro legal descrito, o Banco de Portugal confiava que, […], a Assembleia da República melhor ponderaria a adoção das medidas de acesso restrito à documentação disponibilizada por parte das Senhoras e dos Senhores Deputados que integravam a Comissão Parlamentar de Inquérito e que se encontravam a partir de» então, «nos termos da lei, adstritos àquele dever de segredo».
(4). E, ainda, informou, entre o mais, que:
─ A avaliação documentada no "Relatório ......", tinha «concretizado um exercício de análise, realizada exclusivamente pela Comissão, sem qualquer tipo de contraditório ou influência pelo Banco de Portugal», que tinha «servi[do] para apoiar a subsequente reflexão deste Banco sobre o processo de supervisão do BES, não abrangendo a aplicação das medidas de resolução a esta instituição de crédito».
─ Na documentação remetida apenas tinham sido «protegidos dados pessoais relativos aos nomes de pessoas singulares que» tinham tido «participação em trabalhos técnicos ou em procedimentos operacionais no decurso do procedimento, bem como os dados pessoais relativos a contactos pessoais dos intervenientes, tais como endereços de correio eletrónico ou números de telefone».
(5). A dado passo do seu depoimento prestado em 10.3.2021 perante a CPIPRNBIFR, o Senhor Dr. AA, ex-Presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal e Presidente "Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo" acima referida, declarou pela forma que segue transcrita a propósito do "Relatório ......":
─ «Eu, como cidadão, acho que este relatório já devia ter sido tornado público há muito tempo. Porquê? Porque acabou por mitificar o relatório. O relatório acabou por ser mitificado. Acabou por se querer ver lá aquilo que lá não está. E isso não é bom. Não é, seguramente, bom para o Banco de Portugal.
Na minha opinião, se o relatório tivesse sido objeto de uma reflexão interna no Banco de Portugal, havia o chamado contraditório interno do próprio banco. Isto porque o relatório é a opinião de uma comissão. Não é uma bíblia nem é o testamento, é a opinião de uma comissão! Pessoalmente, subscrevi o relatório e acho que ele tem valor, mas é a minha opinião. Portanto, ele devia ter sido submetido ao contraditório interno no banco, para o banco tirar as ilações que achava que deveria tirar, para que problemas destes no futuro não se repetissem. Lamento que isto não tenha acontecido.
Por outro lado, quando ao acesso ao relatório pelos Srs. Deputados, por exemplo, recordo-me que na audição que precedeu esta, e em que eu também fui chamado, essa pergunta foi-me feita e eu disse que não via nenhuma razão para o relatório não ser enviado.
Mais: como cidadão, acho que em democracia os Deputados têm acesso a tudo o que releva para o interesse público. Se há, porventura, questões de interesse de Estado em que têm de ter cuidados, é para isso que os Parlamentos têm comissões especializadas e ajuramentadas para onde esses relatórios vão.».
B. Apreciação.
5. Como tudo já referido supra, a CPIPRNBIFR veio suscitar perante o STJ o incidente para quebra do segredo profissional ao abrigo dos art.os 135º e 182º do CPP, 13º n.os 1 e 7 e 13-Aº do RJIP e 178º n.º 5 da CRP, requerendo que «seja decretado o levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal em relação do "Relatório ......"», sopesando o interesse preponderante da descoberta da verdade relativamente aos factos que são objecto do inquérito parlamentar.
Resultando, em suma, do requerimento do incidente e da documentação disponibilizada que, conforme melhor descrito em 4. que precede, (i) foi solicitado pela CPIPRNBIFR um conjunto de documentação ao BdP, considerado relevante para o desenvolvimento dos trabalhos, nomeadamente o denominado "Relatório ......"; que (ii) tal relatório foi disponibilizado pelo BdP à CPI; e que (iii) o BdP sustenta que não só o sempre referido relatório está coberto pelo segredo profissional de supervisão previsto nos n.os 1 e 2 do art.º. 80.º do RGICSF, como que, partilhado com CPIPRNBIFR, estão todas as autoridades. organismos e pessoas com ele tomem contacto por esse via, vinculados legalmente à guarda de tal segredo por força do art.º 81º n.º 5 do RGICSF.
É, assim, perante esta afirmação do alcance do segredo profissional de supervisão que a CPIPRNBIFR deduz o incidente em vista de que se autorize a publicitação do conteúdo do "Relatório ......" no decurso das diligências de inquérito parlamentar e no relatório respectivo, para o que sustenta a sua pertinência e utilidade para o bom andamento dos trabalhos e apela, de um lado, ao princípio geral da publicidade ou transparência dos actos da Administração Pública, ao direito de acesso aos arquivos e registos administrativos e ao princípio da administração aberta, e, do outro, à ideia da prevalência do interesse público preponderante da descoberta da verdade material, sublinhando a indispensabilidade de tal publicitação para a boa realização do objecto do procedimento.
Veja-se, então, do fundamento da pretensão, começando por recordar alguns dos normativos que a Requerente convoca e outros que igualmente interessam à decisão.
6. Preceitua o art.º 178º n.º 5 da CRP que «As comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.».
Concordantemente, o art.º 13º n.º 1do RJIP refere que «As comissões parlamentares de inquérito gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados”. Acrescentando o seu n.º 3 que «As comissões podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos e serviços da Administração, demais entidades públicas, incluindo as entidades reguladoras independentes, ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito.».
Já o n.º 7 do mesmo art.º 13.º dispõe que, «No decurso do inquérito, a recusa de prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de documentos só se terá por justificada nos termos da lei processual penal e da presente lei.».
Ainda no mesmo RJIP, diz o n.º 1 do art.º 13.º-A – aditado pela Lei n.º 29/19, de 23.4. –, sob a epígrafe «Incidente para a quebra de segredo», que «Compete às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça julgar, por decisão definitiva e irrecorrível, o incidente para a quebra de segredo.».
Por fim, (ainda) no RJIP, o art.º 13º-B – aditado pela mesma lei e com e epígrafe «Acesso a documentos confidenciais» – prescreve que «Os documentos que venham classificados como confidenciais ou sigilosos, nos termos legais, são disponibilizados à consulta dos Deputados para cumprimento das suas funções, devendo ser adotadas pela comissão as medidas adequadas a garantir que não possam ser objeto de reprodução ou publicação» – n.º 1 – e que «O disposto no número anterior não prejudica a utilização da informação recolhida no decurso do inquérito, nem a sua utilização na fundamentação do relatório final, por referência expressa à documentação na posse da comissão, com salvaguarda da proteção das informações não suscetíveis de divulgação, se for o caso, nos termos do regime jurídico aplicável.» – n.º 2.
Outros dos normativos convocados pela Requerente são os dos art.os 80º n.os 1 e 2 e 81º n.os 2 al.ª g) e 5 do RGICSF e 182º e 135º do CPP.
Normativos que dispõem como segue:
─ RGICSF:
─ «Art.º 80º
Dever de segredo do Banco de Portugal
1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
[…].».
─ «Art.º 81º
Cooperação com outras entidades
1 - O disposto nos artigos anteriores não obsta, igualmente, a que o Banco de Portugal troque informações com a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com autoridades, organismos e pessoas que exerçam funções equivalentes às destas entidades em outro Estado-Membro da União Europeia e ainda com as seguintes entidades igualmente pertencentes a um Estado-Membro da União Europeia:
[…].
2 - O Banco de Portugal pode igualmente trocar informações com as seguintes entidades caso tais informações sejam relevantes para o exercício das respetivas atribuições:
[…];
g) As comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto;
[…].
5 - Ficam sujeitas a dever de segredo todas as autoridades, organismos e pessoas que participem nas trocas de informações referidas nos números anteriores.
[…].».
─ CPP:
─ «Art.º 135º
Segredo profissional
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
[…].».
─ «Art.º 182º
Segredo profissional ou de funcionário e segredo de Estado
1 - As pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
2 - Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 135º e no n.º 2 do artigo 136º.
3 - Se a recusa se fundar em segredo de Estado, é correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 137º.».
7. Resenhadas as principais normas com potencial intervenção no caso, importa, agora, delimitar, a traço breve, a estrutura e o âmbito objectivo do incidente da quebra do segredo profissional no contexto do procedimento de inquérito parlamentar.
Assim:
8. Como tudo acaba de se transcrever, diz, então, o n.º 3 do art.º 13º do RJIP, que a Comissão de Inquérito Parlamentar pode solicitar às, entre outras, entidades reguladoras independentes – como é o caso do BdP, nos termos dos art.os 1º, 12º al.ª c), 16º-A e 17º da respectiva Lei Orgânica[3] – as informações e documentos que julgue úteis à realização do procedimento.
Acrescenta-lhe o n.º 7 que a recusa de prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de documentos só se terá por justificada nos termos da lei processual penal e do próprio RJIP. Com o que está a remeter para, entre outras que aqui não relevam, as normas do art.º 135º n.º 1 do CPP – que, além dos ministros de cultos e dos profissionais que especifica, garante, em geral, a faculdade de escusa a depor a qualquer pessoa a quem a lei permita ou imponha a guarda de segredo – e 182º – que, reencaminhando para o regime do primeiro, garante às mesmas entidades idêntica faculdade de escusa relativamente à apresentação de documentos ou de objectos.
Já tinham dito os art.os 178º n.º 5 da CRP e 13º n.os 1 e 2 do RJIP que as comissões parlamentares de inquérito gozam, salvo reserva constitucional, dos mesmo poderes de investigação das autoridades judiciais e que «têm direito à coadjuvação das autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades administrativas, nos mesmos termos que os tribunais».
E a norma do art.º 13º-A do RJIP completa, por assim dizer, o quadro das atribuições, competências e instrumentos investigatórios do inquérito parlamentar, prevendo (implicitamente) a existência de um incidente de quebra de segredo e deferindo (explicitamente) a competência para o seu julgamento às secções criminais do STJ.
9. Recortado, assim, por referência ao incidente processual criminal regulado nos art.º 135º e 182º do CPP, é muito evidente que aí se encontrará o parâmetro do incidente de quebra de segredo em inquérito parlamentar, com as adaptações, naturalmente, que a diversa índole dos procedimentos reclama.
Por isso as breves palavras que seguem acerca da caracterização do incidente processual criminal.
Aproveitando-se, ainda, a oportunidade para tecer duas ou três considerações acerca do segredo de supervisão, que, ninguém o contesta, é o que está em jogo no caso presente.
Assim:
10. Como assinala a generalidade da doutrina e da jurisprudência, no incidente da quebra de segredo profissional regulado nos n.os 2 e 3 do art.º 135º do CPP – e, estando em causa a apresentação de documentos ou de objectos, no art.º 182º do CPP que para aqueles remete –distinguem-se duas fases, que querem dar resposta a outras tantas questões, a primeira – que corre a cargo da «autoridade judicial onde o incidente foi suscitado» –, «para determinar a legitimidade da escusa, ou seja, saber que o acto processual pretendido colide com o segredo profissional», a segunda – a cargo do «tribunal hierarquicamente superior» àquele ou, tratando-se do STJ, do Pleno das respectivas secções criminais – para, tendo-se ali «entendido que a escusa é legítima, […] ver se se justifica a quebra do segredo»: é o que, entre muitos outros, se pode ver no AcSTJ de 24.4.2019 - Proc. n.º 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1, a que pertencem os passos que se acabam de citar[4]; é, por todas, a lição de Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal"[5]; é o que o AFJ n.º 2/2008[6] viu naquelas normas, construindo, precisamente, sobre essa estrutura a proposição uniformizadora que recomendou, com o seguinte teor:
─ «1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;
2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;
3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.».
Determinantes, assim, daquela estrutura bipartida e do próprio âmbito objectivo do incidente, são, desse modo, os conceitos da legitimidade da escusa e da justificação e quebra do segredo.
Valendo, por isso, a pena transcrever o que o próprio AFJ disse a tal propósito, mesmo se por referência a caso de sigilo bancário, mas transponível, mutatis mutandis, para a generalidade dos segredos profissionais, entre eles o de supervisão:
─ «[…].
Temos, pois, que têm tratamento claramente diferenciado as situações de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento ou informações pelas instituições bancárias, sendo evidentemente mais simples o caso de ilegitimidade, que é da competência do próprio tribunal em que a escusa tenha sido invocada, precisamente porque aí se trata apenas de constatar a inexistência de sigilo bancário e consequentemente a ilegitimidade da escusa, e consequentemente ordenar a prestação da informação (ou do depoimento).
Estando, porém, o facto coberto pelo segredo, e sendo portanto legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a entidade bancária à prestação da informação. Mas a quebra do segredo impõe um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, que o legislador entendeu dever deferir a um tribunal superior.
Sendo assim, temos que, quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima. Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do nº 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado.
Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior.
A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.
[…].».
Palavras estas a que apenas se acrescenta – porventura desnecessariamente, que tudo já vai naquelas implícito – que o primeiro, e indeclinável, momento/pressuposto do incidente da quebra de segredo profissional é a existência de uma escusa legítima de colaboração da entidade guardiã do segredo, sem a qual nada reclama o respectivo desencadeamento, por nada haver, obviamente, a justificar e a dispensar.
Cuidando, por fim e como anunciado, do recorte conceitual do segredo de supervisão do BdP, previsto, conforme transcrição supra, no art.º 80º n.º 1 do RGICSF, duas breves palavras apenas, aliás, colhidas na alocução proferida por Joana Amaral Rodrigues[7] no colóquio organizado pelo CEJ subordinado ao tema "Direito Bancário", e disponível no e-Book "Segredo Bancário e Segredo de Supervisão", Fevereiro de 2015[8]:
─ «Trata-se, o segredo de supervisão, de um outro tipo de segredo profissional, que não se confunde com o segredo bancário, designadamente ao nível dos sujeitos passivos, do objeto, do bem jurídico tutelado e, sobretudo, das exceções legalmente previstas (cujo regime é assinalavelmente diverso). São sujeitos passivos, ou destinatários, do dever de segredo de supervisão, nos termos do artigo 80.º, as pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional. São-no ainda as autoridades, organismos e pessoas que participem na troca de informações prevista no artigo 81.º do RGICSF ("Cooperação com outras entidades") – cfr. o n.º 5. Relativamente aos sujeitos ativos do dever, podem desde logo identificar-se as instituições de crédito supervisionadas, com deveres de informação e reporte ao Supervisor; mas também indiretamente, os clientes bancários dessas instituições, na medida em que a informação coligida pelo Supervisor possa respeitar-lhes.
[…].
O direito à reserva da intimidade da vida privada pode ser identificado como bem jurídico protegido pelo dever de segredo de supervisão, em especial nas zonas de sobreposição, quanto à informação abrangida, com o segredo bancário. Não obstante, a tutela deste segredo relaciona-se em especial com o interesse público na efetividade ou eficácia da supervisão, essencial à salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto (art. 101.º da CRP).».
11. Presente, então, o parâmetro processual criminal que se acaba de delinear e em jeito de esboço do incidente em inquérito parlamentar, tem-se que, nos termos do art.º 13º n.º 3 do RJIP, a comissão parlamentar pode solicitar às entidades reguladoras independentes – como é o caso do BdP, nos termos dos art.os 1º, 12º al.ª c), 16º-A e 17º da respectiva Lei Orgânica[9] – as informações e documentos que julgue úteis à realização do procedimento.
Confrontada com o pedido, a entidade reguladora formula o seu juízo sobre a respectiva atendibilidade, mormente no tocante a obstáculo decorrente de dever de segredo de supervisão. Tendo em mente que, nos termos do art.º 13º n.º 7 do RJIP, eventual recusa tem que encontrar justificação na lei de processo penal e no próprio RJIP.
Denegada a informação ou a disponibilização do documento pela entidade reguladora, intervém, por remissão do mesmo art.º 13º n.º 7, o art.º 135º n.º 2 do CPP, devidamente adaptado, cabendo, em primeiro passo, à Comissão de Inquérito aferir se a recusa é legítima, isto é, se existe dever de segredo oponível.
Entendendo que não existe segredo ou que, existindo, ele não lhe é legalmente oponível, a comissão considera a recusa ilegítima – art.º 135º n.º 2 do CPP, de novo – e ordena a prestação da informação ou a disponibilização do documento, sob cominação de crime de desobediência qualificada, como previsto no art.º 19º n.º 1 do RJIP[10].
Entendendo, de contrário, que existe segredo oponível, concluirá pela legitimidade da recusa, sendo neste caso – e só neste caso! – que poderá, e que necessitará de, lançar mão do incidente da quebra de segredo, conforme previsto no art.º 13º-A do RJIP e, com as devidas adaptações, no art.º 135º n.º 2, parte final, e n.º 3, do CPP.
E só assim emergindo a competência, excepcional, do STJ para intervir ao abrigo do art.º 13º-A citado.
12. Ora, assim enunciados os pressupostos do incidente de quebra do segredo em inquérito parlamentar, facilmente se concluirá pela sua inverificação in casu.
Na verdade e recordando de 4. supra, a CPIPRNBIFR, apoiada nos art.os 13º n.os1, 3 e 5 do RJIP, solicitou ao BdP um conjunto de documentação, entre ela o "Relatório ......".
Mas aconteceu que, considerando, embora, que o documento estava protegido pelo segredo de supervisão previsto no art.º 80º do RGICSF, mas que este não era oponível à CPIPRNBIFR em função do dever de colaboração imposto pelo art.º 81º n.º 2 al.ª g) do RGICSF, o BdP facultou-lhe o relatório em causa.
O que desde logo afasta a verificação da primeira, e indispensável, premissa do incidente da quebra de sigilo, que é a da recusa legítima da entrega do pretendido à comissão, assim e ab initio carecido de objecto.
E – salvo o muito devido respeito – tem-se por muito claro que em nada altera os dados do problema a circunstância de o BdP ter advertido a CPIPRNBIFR de que, por via do art.º 81º n.º 5 do RGICSF, ela própria, os deputados e todos os que por via daquela partilha viessem a inteirar-se do conteúdo do documento ficavam, igualmente, sujeitos à guarda do dever de supervisão.
E assim ainda que se entenda a advertência como mero alerta, que não se vê que compita ao BdP decidir se a CPIPRNBIFR está sujeita a um dever de segredo. Sujeição que, a existir, resultará exclusivamente da lei e sobre a qual caberá à CPIPRNBIFR formular o seu próprio juízo.
Insiste-se:
Solicitado a disponibilizar a documentação, o BdP, podia ter tomado uma de duas atitudes:
─ Ou, entendendo que o dever de segredo o impedia de a remeter, comunicava essa posição à CPIPRNBIFR e estar-se-ia perante uma escusa nos termos do previsto no art.º 135º n.º 2 e 182º do CPP,
E se a CPIPRNBIFR a viesse a considerar legítima e continuando a ter a documentação por necessária ao bem desenvolvimento dos seus trabalhos, aí sim poderia suscitar a intervenção do STJ ao abrigo do art.º 13º-A do RJIP, devolvendo-lhe a decisão sobre a justificação da escusa e a dispensa do segredo.
─ Ou, ao invés e como aconteceu, entregava a documentação, e neste caso nem tinha – tem – competência para heterodefinir os termos em ela pode ser utilizada, nem a CPIPRNBIFR tem fundamento para deduzir o incidente da quebra de segredo.
13. De resto, são coisas diferentes a disponibilização e entrega à CPIPRNBIFR de documento sujeito a segredo profissional – a exigir, no limite, o recurso ao incidente previsto nos art.º 13º-A do RJIP e 135º n.os 2 e 3 e 182º n.os 1 e 2 do CPP –, e a utilização de tal documento no âmbito dos trabalhos da requisitante, esta regulada nos art.os 13º-B do RJIP – que, como já dito mas que aqui se recorda, dispõe que «Os documentos que venham classificados como confidenciais ou sigilosos, nos termos legais, são disponibilizados à consulta dos Deputados para cumprimento das suas funções, devendo ser adotadas pela comissão as medidas adequadas a garantir que não possam ser objeto de reprodução ou publicação» (n.º 1) e que «O disposto no número anterior não prejudica a utilização da informação recolhida no decurso do inquérito, nem a sua utilização na fundamentação do relatório final, por referência expressa à documentação na posse da comissão, com salvaguarda da proteção das informações não suscetíveis de divulgação, se for o caso, nos termos do regime jurídico aplicável.» (n.º 2) – e no art.º 81º n.º 6 al.ª g) do RGICSF – que estabelece que «As informações recebidas pelo Banco de Portugal nos termos das disposições relativas a troca de informações só podem ser utilizadas: […] No âmbito de inquéritos parlamentares cujo objeto inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão» –, se não também no art.º 8º da Lei n.º 15/2019, de 12.2,ao prescrever que «O acesso pela Assembleia da República, incluindo por Deputados e pelos trabalhadores e colaboradores da Assembleia da República e dos grupos parlamentares, à informação bancária e de supervisão prevista na presente lei está, na estrita parte que se encontre abrangida por segredo bancário ou de supervisão, sujeito ao disposto nos n.os 5 e 7 do artigo 81.º do RGICSF» – n.º 2 –; que «Na medida em que o acesso à informação referida no número anterior implique o tratamento de dados pessoais, devem ser respeitadas as disposições legais relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados» – n.º 3 –; que «Cabe à Mesa da Assembleia da República ou da respetiva comissão parlamentar, conforme aplicável, velar pelo cumprimento do disposto nos n.os2 e 3» – n.º 4; e que «Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o Banco de Portugal pode, a título meramente indicativo e em documento autónomo à comunicação da informação relevante remetida à Assembleia da República, apresentar sugestão, segundo um critério de estrita e absoluta indispensabilidade e com fundamentação especificada, de quais os dados da informação relevante comunicada que estariam eventualmente sujeitos a segredo bancário ou de supervisão» – n.º 5.
Trata-se, como referido, de questões diferentes sendo que a da utilização do documento é estranha ao incidente da quebra de segredo previsto no art.º 13-A do RJIP e à competência do STJ.
Se se quiser, e olhando de novo, para o parâmetro do processo penal, também aí, a partir do momento em que os documentos relevantes são entregues no inquérito, podem ser usados para os fins da investigação, sem prejuízo da preservação do segredo de justiça, quando o haja, e dos mecanismo de protecção dos dados pessoais.
Mas, também aí, não existe qualquer incidente perante tribunal superior para decidir sobre o âmbito da sua utilização.
Sendo que, apesar de o Ministério Público, o Juiz de Instrução e os Órgãos de Polícia Criminal ficarem sujeitos ao dever de segredo de informações que o processo contém, nem por isso, também aí, estão inibidos de os utilizar nos actos que praticam nem nos despachos e decisões que proferem.
Com os limites, naturalmente, do segredo de justiça e da salvaguarda dos dados pessoais que o caso impuser, nos termos do próprio Código de Processo Penal ou, v. g., do Regulamento Geral de Protecção de Dados, aprovado pela Lei n.º 58/2019, de 8.8.
14. Numa palavra, se bem se vêem as coisas, o que verdadeiramente está em jogo neste procedimento é a dispensa de sigilo da CPIPRNBIFR, dos deputados e das pessoas que intervenham nos trabalhos respectivos e o modo e termos em que pode ser utilizado o "Relatório ......".
Trata-se, porém, de temáticas alheias ao incidente da quebra de segredo.
Que, relembre-se, encontra fundamento numa recusa de prestação de depoimento ou de disponibilização de documentação ou informação sob invocação de reserva de segredo profissional e que tem por único objectivo ultrapassar essa recusa. O que, no caso, não se mostra necessário, por o relatório não só já ter sido disponibilizado pelo BdP, como por o ter sido voluntariamente.
Pelo que o requerimento do incidente de quebra de segredo de supervisão deduzido pela CPIPRNBIFR terá que ser indeferido, quer por inverificados os respectivos pressupostos legais, quer por, de qualquer modo, versar sobre objecto subtraído a competência do STJ.
Mas sem que por isso, e como a final de 13. supra se sublinhou quanto ao lugar paralelo do processo criminal e às autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal, a CPIPRNBIFR esteja inibida de utilizar o documento para os fins da sua investigação e no relatório final em moldes similares aos permitidos àquelas entidades, como, aliás, lho consentem expressamente as normas, citadas, dos art.os 13º-B do RJIP e 81º n.º 6 al.ª g) do RGICSF, se não também a do art.º 8º n.os 2 a 4 da Lei n.º 15/2019, de 12.2.
III. decisão.
15. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o requerimento de incidente de dispensa de segredo profissional de supervisão, deduzido pela Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.
Sem custas.
*
Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).
*
Supremo Tribunal de Justiça, em 27.5.2021.
Eduardo Almeida Loureiro (Relator)
António Gama
João Guerra
_______________________________________________________
[1] Na sua mais recente redacção, dada pela Lei n.º 29/2019, de 23.4.
[2] Na sua mais recente redacção, dada pela Lei n.º 50/2020, de 31.8.
[3] Aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31.1, com alteração mais recente introduzida pela Lei n.º 73/2020, de 17.11.
[4]In www.dgsi.pt.
[5] 4ª ed., pp 377 a 378.
[6]In DR, I, de 31.3.
[7] Acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
[8]
[9] Aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31.1, com alteração mais recente introduzida pela Lei n.º 73/2020, de 17.11.
[10] «Desobediência qualificada
[…] Fora dos casos previstos no artigo 17.º, a falta de comparência, a recusa de depoimento ou o não cumprimento de ordens legítimas de uma comissão parlamentar de inquérito no exercício das suas funções constituem crime de desobediência qualificada, para os efeitos previstos no Código Penal.».