RECURSO PER SALTUM
INCÊNDIO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
SANAÇÃO
CORRECÇÃO OFICIOSA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Sumário


I -    A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”.
II -  Mantendo sempre o recurso o seu arquétipo de “remédio jurídico”, constatando-se que o acórdão recorrido cumpre, correctamente, as exigências de fundamentação de facto e de direito em matéria de pena, fazendo-o relativamente a cada pena parcelar aplicada, justificando-a(s) individualmente, e fazendo-o depois relativamente à pena única, procedendo à apreciação autónoma da pena aglutinadora, é de concluir que inexistem razões que devam conduzir à correcção da medida da pena única no sentido pretendido pelo arguido.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

No Processo Comum Colectivo n.º 36/20.5GCTND, do Tribunal Judicial da Comarca ………, Juízo Central Criminal  ... - Juiz … , foi proferido acórdão a condenar o arguido AA como autor de dois crimes de incêndio florestal do art. 274.°, n.°s l e 2, al. a), do CP, nas penas de quatro anos e seis meses de prisão e de cinco anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos de prisão.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1ª O arguido foi condenado no Douto Acórdão, ora recorrido, pela prática, sob a forma de autoria material e consumada, em concurso efetivo, de dois crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274°, n° l e 2, al. a), do C. Penal, no 1º incêndio (três focos): na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e no 2º incêndio (sete focos): na pena de 5 (cinco) anos de prisão. Em cúmulo jurídico emergente destas penas parcelares o arguido foi condenado na pena única de 6 (seis) anos de prisão efetiva.

2ª É da aplicação dessa mesma pena de 6 (seis) anos de prisão efetiva que o arguido discorda e que, consequentemente, recorre.

3ª Pois que não se verificam preenchidas quaisquer circunstâncias que justifiquem a determinação de uma pena privativa da liberdade, tão severa.

4ª Não concordando com os fundamentos constantes da decisão, ora, recorrida do excelso Tribunal Coletivo a quo, quanto aos fundamentos lá constantes quanto à medida concreta da pena.

5ª Existindo um evidente erro na determinação na medida da pena.

6ª No âmbito dos presentes autos constata-se a existência de dois episódios, ocorridos no mesmo dia, ... de janeiro de 2020, e pese embora possamos divergir dos fundamentos constantes na decisão, ora, recorrida do excelso Tribunal Coletivo a quo, que levaram a dar como Factos Provados, os pontos 10 a 17 do douto acórdão e consequentemente, condenar o arguido pela prática do crime de incêndio florestal, relativamente ao 2º incêndio, alegadamente praticado no mesmo dia, não é relativamente a esses mesmos [factos] que incide o presente recurso, mas tão somente, como já referido, refutar os fundamentos para a determinação da medida da pena que é, no nosso entendimento, excessiva.

7ª Analisada a facticidade dada por assente e não provada no Douto Acórdão quanto à dosimetria da pena de prisão o Tribunal a quo entendeu: (…) (fundamentação da pena transcrita em 2.)

8ª Ora, o grau de ilicitude dos factos, ainda que ligeiramente mais grave no segundo incêndio, em função das áreas ardidas em cada um deles (1.450 m2 + 6.650 m2), sem valor relevante de prejuízo efetivo e demais circunstâncias supra descritas e referidas no acórdão recorrido serão suficientes para aplicar uma pena de seis anos, de prisão efetiva? Estamos em crer que não!

9ª O Direito Penal é o direito do facto, não se coadunando, pois, com pressupostos assentes em conjeturas abstratas. Isto é, dos factos provados não resulta quais foram as motivações do arguido.

10ª E o que é factual é que, como de resto resulta dos factos provados, o arguido terá praticado dois meros crimes de incêndio florestal, em janeiro de 2020 (em plena altura de inverno), sem valor relevante de prejuízo efetivo.

11ª Quanto aos antecedentes criminais do arguido e a que o Douto Acórdão faz referência importa desde já referir, que os mesmos se referem a duas condenações, relativas um crime de natureza diversa do qual o arguido foi agora condenado – o crime de violência doméstica.

12ª Não sendo por isso os antecedentes criminais existentes determinantes nem reveladores de uma qualquer personalidade ou carácter desviante do arguido contrária ao Direito ou à sã convivência e vida em sociedade, muito menos reveladores de uma natureza incendiária!

13ª Antes sim da comorbidade que o alcoolismo revelou tendo em ambas as condenações sido ordenada a suspensão da execução das penas, mediante o tratamento da dependência etílica.

14ª Neste sentido, o relatório social, que foi considerado na matéria dada como provada, nos pontos 18) a 45) aponta um caminho, que estará, na nossa modesta opinião, na génese dos comportamentos, objeto dos presentes autos. “O arguido casou aos 28 anos com a alegada vítima, primeira e única namorada. (…) O relacionamento conjugal foi positivo ao longo dos anos, começando a deteriorar-se há cerca de 3 anos, mas não sabendo o arguido explicar porquê, identificando-se, contudo, como mais problemático o relacionamento com a filha, na medida em que não tem qualquer ascendente sobre a mesma, sentindo-se totalmente desautorizado pelos elementos da família, filhos e esposa.      Estes conflitos seriam exacerbados em situações de consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do arguido. (…) Os factos objeto dos autos ocorreram na altura da separação. (...). Depois da saída da esposa e filhos de casa, a situação do arguido degradou-se significativamente devido ao agravamento do consumo de bebidas alcoólicas e consequente falta de oportunidades de trabalho, tendo sido acionado o apoio da cantina social durante o período da pandemia para garantir alguma alimentação.

15ª Assim, como bem resulta do teor do relatório social, mas também dos factos dados como provados, não se verifica in casu especiais necessidades de prevenção geral ou especial que possa justificar e determinar a aplicação de uma pena de prisão efetiva.

16ª A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.

17ª A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de proteção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela proteção.

18ª Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal.

19ª E se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro, claro está, da moldura geral - a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção»), deverá definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

20ª Passando à determinação concreta da medida das penas, a moldura abstrata penal cabível ao crime em presença: Incêndio florestal – Artigo 274.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal é de 3 anos a 12 anos de prisão.

21ª Dentro desta moldura funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

22ª Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal – definindo a necessidade desta proteção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa.

23ª O grau de ilicitude do facto foi considerado ligeiramente mais grave no segundo incêndio, em função das áreas ardidas em cada um deles (1.450 m2 + 6.650 m2), mas sem valor relevante de prejuízo efetivo.

24ª Não ficou provado que em algum momento o arguido, em qualquer dos incêndios, ressalvado no primeiro uma casa de habitação, que não fora a pronta intervenção dos Bombeiros e populares, o incêndio ter-se-ia propagado a outras habitações e construções no valor de vários milhares de euros, ou que tivesse ardido uma área superior àquela dada como provada, ou seja, (que tenham ardido mais do que um 8100 m2, no total) ou tão pouco que, o arguido tenha colocado efetivamente em risco a integridade física e a vida de terceiros, designadamente dos habitantes das povoações de ... e ..., bem como de quem combatesse o fogo e de quem circulasse no local.

25ª Nada se apurou de relevante em termos de personalidade do arguido em ordem a poder pensar-se que estamos perante um indivíduo com inclinação para o crime, em particular o crime violento.

26ª Pelo contrário parece evidente que se tratou de uma fase muito particular e circunscrita da vida do arguido que ocorreu na altura da separação e dos problemas familiares e conjugais que viveu, alicerçada no consumo excessivo de bebidas alcoólicas, donde não resulta qualquer evidência incendiária ou programa criminal nesse sentido.

27ª Assim, como bem resulta do teor do relatório social, mas também dos factos dados como provados, não se verifica in casu especiais necessidades de prevenção geral ou especial que possam justificar e determinar a aplicação de uma pena de prisão efetiva de seis anos.

28ª A fixação do quantum das penas parcelares e, consequentemente, da pena única aplicada ao Recorrente pelo Tribunal a quo são manifestamente excessivas.

29ª Donde, salvo o devido respeito o Tribunal a quo violou o artigo 40º, nº 1 e nº 2 do Código Penal, «A aplicação de penas (…) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

30ª Bem como o artigo 71º, nº 1 do Código Penal, que impõe que a «determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção [especial e geral]».

31ª E por isso, estamos totalmente em desacordo com os fundamentos na «Medida da pena» do Acórdão que condenou o arguido que é por isso manifestamente excessiva.

32ª No caso dos presentes autos, como já referido, não existem objetivamente especiais exigências de prevenção geral e especial que possam fundamentar a aplicação de uma pena de prisão efetiva, com este alcance.

33ª Na moldura abstrata fornecida pelo legislador, caberá ao julgador determinar a medida concreta da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.

34ª A pena de prisão efetiva será sempre a último ratio não só pelos efeitos criminógenos decorrentes do encarceramento, mas também pelas consequências que daí advêm para o indivíduo em particular, mas também para a sociedade que o irá acolher.

35ª Numa futura situação de liberdade, o arguido terá possibilidade de colocação profissional imediata junto do ex-patrão, onde trabalhou mais de 20 anos, considerando-o um bom trabalhador (desde que não se apresente sob o efeito de bebidas alcoólicas).

36ª O arguido é descrito como uma pessoa muito simples e passiva, sendo o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e a falta de capacidades de resolução de problemas a sua maior vulnerabilidade, mostrando-se disponível para colaborar de forma mais empenhada na execução de eventual pena alternativa em que venha a ser condenado no presente processo, ao contrário do que ocorreu na execução das penas anteriores em curso.

37ª Ora, o crime p.e p pelo art. 274º, nº 1 e 2, al. a), do CP prevê uma moldura entre 3 e 12 anos de prisão.

38ª O Tribunal a quo faz assim, de forma a fundamentar a sua decisão e dos pressupostos para a aplicação da pena de prisão efetiva, um excesso na determinação da medida concreta da pena, impondo-se por isso dar provimento ao recurso revogando-se a decisão proferida.

39ª Noutra ordem de razões, apesar de expor os critérios legais a que o Tribunal está vinculado aquando da determinação da medida concreta da pena, o acórdão recorrido não contempla uma explanação concreta e rigorosa, relativamente a cada uma das penas parcelares aplicadas em concreto, não resultando, para além da referência à área ardida (1450 m2, no 1º incêndio e 6650 m2, no 2º incêndio), da própria decisão a razão pela qual a pena aplicada pelo crime do 1º incêndio é inferior do que a pena aplicada ao 2º crime de incêndio.

40ª Tudo considerado, afigura-se excessivo o quantum da pena aplicada, sendo adequado/proporcional às exigências de prevenção geral e especial do caso aplicar ao recorrente penas parcelares pelo limite mínimo previsto na lei, e uma pena única não superior a 5 anos.

41ª A pena referida na conclusão anterior deverá ser suspensa na execução, nos termos do disposto no art.º 50º do CP, ainda que sujeita a regras de conduta e com regime de prova, uma vez que existe uma situação de prognose favorável que não se opõe mas antes a aconselha.

42ª Pelo que, consideramos que, o cumprimento de uma pena de prisão efetiva provocará uma rutura total entre o recorrente e a sociedade, bom como com o seu seio familiar, que tornará completamente inviável a recuperação/reabilitação do recorrente.

43ª Ao fixar uma pena tão severa o Tribunal a quo violou os artigos 40º, nº 1 e 2, 71. °, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal.

O Ministério Público arguido respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1. As penas parcelares e a pena única aplicadas ao arguido pelo Tribunal a quo não merecem qualquer censura, mostrando-se equilibradas e não, como pretende o arguido, com carácter excessivo e desproporcionado.

2. O Tribunal colectivo fez correcta aplicação dos critérios de determinação da medida da pena e não violou o disposto no artigo 71º do Código Penal.

3. Foi ponderando quer o passado criminal do arguido (com antecedentes criminais, embora de diversa natureza), quer a sua situação actual (preso então preventivamente), quer a sua situação pessoal (situação de conflitualidade ao nível familiar, alheamento face ao desfecho do presente processo), mas também o facto de ser consumidor de álcool em excesso e de ter incumprido o tratamento que lhe foi imposto no âmbito de outra pena de prisão suspensa na sua execução.

4. Foi ainda ponderada a falta de colaboração do arguido, a ausência de qualquer sentido crítico e de arrependimento, bem assim como o grau de ilicitude média e dolo com que actuou.

5. A pena única foi fixada em 6 anos de prisão numa moldura do concurso de 5 anos de prisão a 9 anos 6 meses de prisão, medida concreta que é adequada precisamente por se ter ponderado os factores referidos pelo arguido e que se situa somente 1 ano acima do limiar mínimo da moldura penal abstracta.

6. Tal pena é, do nosso ponto de vista, ajustada à consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, não devendo merecer provimento a sua pretensão de fixação da pena única aquém dos 5 anos de prisão.

7. Sendo certo que, ainda que nessa parte o recurso do arguido fosse provido, o que não se concede, não se verificam, em concreto, os pressupostos de que dependeria a suspensão da execução da pena de prisão.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando a confirmação do acórdão e referindo designadamente:

“Entende-se que nenhum destes argumentos deverá relevar para a diminuição da medida da pena, considerando-se que a pena única aplicada de 6 (seis) anos de prisão (que se situa somente 1 (um) ano acima do limiar mínimo da moldura penal abstracta aplicável, de 5 (cinco) anos a 9 (nove) anos 6 (seis) meses de prisão), revela-se justa e correcta.

Com efeito, entende-se não ser viável uma redução da pena até 5 (cinco) anos de prisão, e suspender a respectiva execução, por não se mostrar preenchido o pressuposto material, enunciado no art. 50º, nº 1, do Cod. Penal, no sentido de considerar que a pena de substituição é adequada e suficiente para prevenir a reincidência.

E, para chegarmos à conclusão que este pressuposto material não se encontra preenchido, atendeu-se à natureza dos factos praticados, às circunstâncias em que os mesmos foram cometidos, à personalidade do recorrente AA neles revelada, às suas condições de vida, à postura assumida perante os crimes cometidos, não se podendo prever, fundamentadamente, que a ameaça de execução da pena de prisão a aplicar, seja suficiente para que esta adeque a sua conduta de modo a respeitar o direito.

E, atendeu-se também ao facto de o recorrente AA já ter sofrido duas condenações, em penas de prisão suspensas na sua execução, mediante o cumprimento de determinadas obrigações, e ter apresentado uma fraca adesão ao cumprimento de tais obrigações, no que respeita à realização de um tratamento dirigido ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas, o que poderá propiciar a repetição de tais comportamentos.”

Não houve resposta ao parecer e teve lugar a conferência.


2. Decisão recorrida, na parte que interessa ao recurso

“1º incêndio

1) No dia ... de Janeiro de 2020, a hora não concretamente determinada, mas situada entre as 12 horas e as 13.55 horas, o arguido saiu da sua residência, sita na Rua …, n.º …, ..., União de freguesias …..., concelho …...., área desta comarca …..., e dirigiu-se, apeado e sozinho, ao longo da denominada “...” para o Café “...”, sito em ..., ..., num percurso de cerca de 2.300m, ladeado por uma zona florestal, composta essencialmente por povoamentos contínuos de mato, pinheiro bravo e eucalipto.

2) Após ter saído da sua residência e depois de percorridos cerca de 800 metros na “...”, do lado esquerdo, o arguido, com a ajuda de fósforos que consigo levava e que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um incêndio, ateou fogo a umas ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou, tendo após prosseguido a marcha e retomado o caminho.

3) Depois de ter percorrido mais cerca de 100 metros, do lado direito, junto a uma vedação em madeira, o arguido, novamente com a ajuda de fósforos que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um incêndio, ateou fogo a umas ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou, tendo após prosseguido o seu caminho.

4) Depois de ter percorrido mais cerca de 400 metros, do mesmo lado direito da Ecopista, atendo o sentido de marcha que levava, a seguir a uma casa de habitação, onde reside um indivíduo de nome BB, namorado da filha do arguido, este, novamente com a ajuda de fósforos que para o efeito acendeu, com o propósito de dar origem a um incêndio, ateou fogo a umas ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou, tendo após prosseguido o seu caminho até ao Café “...”, onde chegou a hora não apurada mas situadas entre as 12.20 horas e as 13.55 horas.

5) Todos estes locais onde o arguido ateou os focos de incêndio estão inseridos numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por mato (ervas secas, giestas e silvas), pinheiros bravos e eucaliptos, que se estendem por vários hectares, no valor de vários milhares de euros, o que o arguido sabia, pois é residente na povoação de ....

6) Em consequência da atuação do arguido, arderam, resultante do incêndio iniciado pelos três focos que assim ateou, cerca de 1.450 m2 de mato, pinheiro bravo e eucaliptos, o que causou prejuízo de valor não concretamente apurado.

7) Porque os referidos locais estavam inseridos numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensa mancha florestal composta por povoamento misto de mato, pinheiro bravo e eucalipto, existiam condições para que as chamas progredissem e para que os fogos ateados se propagassem à área envolvente através dos combustíveis finos que existiam em abundância no local, bem assim à casa de habitação, onde reside um indivíduo de nome BB, namorado da filha do arguido, risco esse de propagação que o arguido conhecia e quis.

8) Na verdade, não fora a pronta intervenção dos bombeiros e dos populares que de pronto acorreram ao local e combateram as chamas, as áreas ardidas teriam sido muito mais extensas e os incêndios ter-se-iam propagado à mancha florestal envolvente, composta por povoamentos florestais contínuos, com uma área não inferior a 35 hectares, de valor superior a €70.000, bem assim à casa de habitação, onde reside um indivíduo de nome BB, namorado da filha do arguido, casa esta de valor nunca inferior a €10.000, o que não lhe pertencia, como disso estava ciente, e apenas não se propagou ainda mais por razões alheias à sua vontade, como disso estava ciente e quis.

9) O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta o fazia incorrer em responsabilidade criminal.

2º incêndio

10) O arguido permaneceu no referido café durante pelo menos uma hora, até cerca das 16 horas, após o que abandonou o local e, continuando apeado, iniciou o caminho de regresso a ..., onde reside.

11) Fê-lo inicialmente pela referida ..., mas a dado ponto desta cortou para um caminho em terra batida que segue pelo interior da floresta, composta essencialmente por povoamentos contínuos de mato, pinheiro bravo e eucalipto.

12) Como, entretanto, tivesse resolvido atear novos incêndios, ao longo do referido caminho o arguido, com a ajuda de fósforos que consigo levava e que para o efeito acendeu, ateou sete focos, com distâncias variáveis entre si, melhor referenciados nas fotografias nºs 8 a 14 de fls. 56 a 59, a ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou.

13) Todos estes locais onde o arguido ateou os focos de incêndio estão inseridos numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensas manchas florestais compostas essencialmente por mato (ervas secas, giestas e silvas), pinheiros bravos e eucaliptos, que se estendem por vários hectares, no valor de vários milhares de euros, o que o arguido sabia, pois é residente na povoação de ....

14) Em consequência da atuação do arguido, arderam, resultante do incêndio iniciado pelos sete focos que ateou no regresso a ..., nunca menos de 6.650 m2 de mato, pinheiro bravo e eucaliptos, o que causou prejuízo de valor não concretamente apurado, mas não inferior a €1.446,80.

15) Porque os referidos locais estavam inseridos numa zona de forte carga combustível, em continuidade vertical e horizontal, com extensa mancha florestal composta por povoamento misto de mato, pinheiro bravo e eucalipto, existiam condições para que as chamas progredissem e para que os fogos ateados se propagassem à área envolvente através dos combustíveis finos que existiam em abundância no local, o que aconteceu e cujo risco de propagação o arguido conhecia e quis.

16) Na verdade, não fora a pronta intervenção dos bombeiros e dos populares que de pronto acorreram ao local e combateram as chamas, as áreas ardidas teriam sido muito mais extensas e os incêndios ter-se-iam propagado à mancha florestal envolvente, composta por povoamentos florestais contínuos, com uma área não inferior a 35 hectares, de valor superior a €70.000, que não lhe pertencia, como disso estava ciente, o qual apenas não se propagou ainda mais por razões alheias à sua vontade.

17) O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta o fazia incorrer em responsabilidade criminal.

18) I – Condições sociais e pessoais

19) O arguido AA é oriundo de um agregado familiar numeroso e de modesta condição socioeconómica, sendo o 3.º elemento de uma fratria de 9 elementos (o primeiro filho do casal terá falecido ainda bebé).

20) O pai trabalhava numa ……… e a mãe dedicava-se às ………. e trabalhos ………, colaborando os filhos nestas atividades desde a infância. Para além das dificuldades económicas não são reportados outros problemas significativos ao nível do relacionamento familiar.

21) O arguido frequentou a escola até à conclusão do 4.º ano de escolaridade, registando diversas retenções associadas a dificuldades de aprendizagem por um lado, e também a uma fraca valorização da formação escolar.

22) Quando terminou a escola iniciou atividade profissional na ………, sendo nesta área que trabalhou a maior parte do tempo, durante cerca de 20 anos. Depois trabalhou cerca de 4 anos a …………. tendo regressado à … em 2012 até 2017. Nesta altura passou a trabalhar numa empresa de limpeza de exaustores até ficar desempregado há quase um ano atrás.

23) Casou aos 28 anos com a alegada vítima, primeira e única namorada, após um ano de namoro e na sequência da gravidez da filha mais velha do casal.

24) O arguido descreve o relacionamento conjugal como positivo ao longo dos anos, começando a deteriorar-se há cerca de 3 anos, mas não sabe explicar porquê, identificando contudo, como mais problemático o relacionamento com a filha, na medida em que não tem qualquer ascendente sobre a mesma, sentindo-se totalmente desautorizado pelos elementos da família, filhos e esposa. Estes conflitos seriam exacerbados em situações de consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do arguido.

25) Os conflitos conjugais e familiares estiveram na origem dos processos n.º 248/18……...e 256/19…..., nos quais o arguido foi condenado respetivamente nas penas de 3 anos e 3 anos e 6 meses, cuja execução foi suspensa pelos mesmos períodos, sujeitas ao cumprimento de obrigações, entre as quais, a de tratamento dirigido à problemática do alcoolismo.

26) Os factos em causa nas condenações anteriores reportam-se a julho a setembro de 2018 e a julho de 2019.

27) Na sequência da condenação no processo n.º 256/19……, a esposa do arguido e filhos foram residir para casa dos pais daquela, ficando o arguido na casa de morada de família até à sua detenção e prisão preventiva, a partir do dia 18/06/2020, à ordem do processo n.º 5/20…., pela suspeita da prática de vários outros crimes de incêndio florestal, no qual se encontra acusado conforme certidão de fls.156-160 que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

28) Os factos objeto dos autos ocorreram nesta altura da separação.

29) Anteriormente, o arguido residia com a esposa e os dois filhos do casal, então com 42, 16 e 10 anos de idade, em casa própria, com as condições básicas de habitabilidade.

30) Nessa ocasião, o arguido já se encontrava desempregado, tendo a última atividade sido exercida na limpeza de exaustores, estando a esposa a frequentar um curso de formação profissional.

31) Entre os dias 11 e 29 de novembro de 2019 o arguido esteve internado na Unidade de Alcoologia ……… – UA ……, tendo alta com consulta agendada para o dia 28 de janeiro de 2020.

32)  Entretanto, incumprindo as injunções impostas no plano homologado no processo nº 248/18……, o arguido recaiu no consumo de bebidas alcoólicas e deixou de tomar a medicação prescrita, vindo a perder o emprego. Em 28 de janeiro de 2020 faltou à consulta de seguimento na UA…, sem qualquer justificação para esse facto nem pedido de nova marcação, mantendo ao tempo hábitos de alcoolismo (fls.148-150).

33) Entretanto foi julgado no processo 256/19…, com início do julgamento em 16.01.2020, ao qual faltou injustificadamente,

34) No dia ... de janeiro de 2020 ateou os incêndios aqui julgados, vindo a leitura da sentença no referido processo 256/19… a ser efetuada no dia ... .01.2020.

35) Depois da saída da esposa e filhos de casa, a situação do arguido degradou-se significativamente devido ao agravamento do consumo de bebidas alcoólicas e consequente falta de oportunidades de trabalho, tendo sido acionado o apoio da cantina social durante o período da pandemia para garantir alguma alimentação.

36) Foi entretanto marcada consulta de alcoologia … de ..., para o dia .../06/2020, estando a sua deslocação planeada e assegurada pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia, mas ainda assim, o arguido não se encontrava em casa no dia e hora combinada com aquele, vindo, portanto, a faltar à consulta sem apresentar qualquer justificação para esse facto (fls.147 verso).

37) No estabelecimento prisional já teve uma visita dos filhos e da esposa, com quem vai mantendo alguns contactos telefónicos, que o arguido interpreta como indicador de possível reconciliação, mas que segundo a esposa são apenas para permitir os contactos do pai com os filhos, tendo esta já iniciado o processo de divórcio. Na sequência da prisão preventiva do arguido, a esposa e filhos voltaram para a morada de família, pelo que o arguido não poderá ali regressar numa futura situação de liberdade.

38) Perante esta possibilidade, o arguido refere não ter pensado em qualquer alternativa.

39) Ao nível da sua família de origem, o seu pai, de 71 anos, viúvo, reformado, e residente em ..., com dois dos filhos, solteiros, de 42 e 38 anos, terá manifestado resistência à integração do arguido no seu agregado, dados os consumos abusivos de bebidas alcoólicas, tanto mais que tem problemas de saúde significativos e necessita de um ambiente estável e tranquilo. Os restantes irmãos terão a sua vida organizada, sem possibilidades de dar um apoio mais consistente, mas alguns têm efetuado visitas.

40) Apesar da eventual dificuldade ao nível de alojamento, numa futura situação de liberdade, o arguido terá possibilidade de colocação profissional imediata junto do ex-patrão, onde trabalhou mais de 20 anos, considerando-o um bom trabalhador (desde que não se apresente sob o efeito de bebidas alcoólicas).

41) A irmã e os vizinhos contactados descrevem o arguido como uma pessoa muito simples e passiva, sendo o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e a falta de capacidades de resolução de problemas a sua maior vulnerabilidade.

42) O arguido mostra-se adaptado ao sistema prisional, onde tem adotado um comportamento adequado, de cumprimento das regras de funcionamento. Aqui tem beneficiado das consultas de alcoologia por parte da Equipa …..…….. que se desloca ao estabelecimento prisional. Encontra-se abstinente, sem necessidade de medicação específica.

43) Relativamente ao presente processo, refere não ter qualquer expectativa quanto à sua evolução, evidenciando uma postura de algum alheamento/inércia. Não entende porque é que se encontra acusado do crime de incêndio florestal, referindo não ter qualquer memória de prática de comportamentos dessa natureza.

44) Em abstrato, reconhece a ilicitude do comportamento.

45) Não obstante, e em caso de condenação, mostra-se disponível para colaborar de forma mais empenhada na execução de eventual pena alternativa em que venha a ser condenado no presente processo, ao contrário do que ocorreu na execução das penas anteriores em curso.

46) Antecedentes criminais

47) O arguido tem duas condenações, a saber:

48) No processo n.º 248/18………, do J Competente Genérica …...., foi condenado por sentença de 19.08.2019, transitada em julgado em 18/08/2019, pela prática de um crime de violência doméstica contra o cônjuge e outro crime de violência doméstica contra menores, ambos previstos pelo art. 152º, nº 1 e 2, do C. Penal, na pena única de 3 anos de prisão suspensa por igual período de tempo, sob condição de se submeter a tratamento dirigido à problemática do alcoolismo mediante acompanhamento da DGRSP.

49) No processo 256/19……, do J Competente Genérica de ..., foi condenado por sentença de 31.01.2020, transitada em julgado em 2.03.2020, pela prática de um crime de violência doméstica contra o cônjuge, previsto pelo art. 152º, nº 1, al. a), do C. Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão suspensa por igual período de tempo, sob condição de afastamento das vitimas, proibição de uso e porte de armas, e se submeter a tratamento dirigido à problemática do alcoolismo, mediante acompanhamento da DGRSP, e frequentar programas específicos para violência doméstica.”

E a fundamentação em matéria de direito foi a seguinte:

“ O arguido vem acusado da prática, sob a forma de autoria material, de dois crimes de incêndio florestal p. e p. no art. 274.º, n.º 1 e n.º 2 alínea a), por referência ao art. 202º al. a) ambos do Código Penal.

No que ao caso interessa, comete o crime de incêndio, na forma dolosa tipificada pelo atual art. 274°, n° 1 e 2, al. a), quem:

provocar, entendendo-se como tal quem causar;

incêndio, havendo aqui que distinguir entre mero (pequeno) fogo e incêndio, à luz de um critério quantitativo (3), sendo irrelevante para preenchimento do tipo saber se o bem (edifício, floresta, etc) sobre o qual se provocou o incêndio é próprio ou alheio;

e criar deste modo perigo, aferido por um juízo de prognose baseado nas regras da experiência, complementadas ou não por proposições científicas, que considera uma dada realidade como concretamente susceptível (forte e marcada probabilidade) de desencadear um resultado desvalioso; para … bens patrimoniais alheios, de uma ou várias pessoas; de valor elevado, podendo este aferir-se segundo o critério definido no art.202, al. a), do C. Penal;

- dolosamente, seja quanto à sua conduta, o agente tenha querido e representado uma das condutas descritas no tipo, seja quanto ao resultado perigo, o agente queira e represente um resultado de perigo-violação referente aos bens jurídicos determinados no tipo, admitindo-se qualquer uma das formas de dolo consagradas no art.14º, do C. Penal.

Incêndio é abrasamento total ou parcial de um edifício ou de uma floresta mas é, do mesmo jeito, fogo que lavra com intensidade ou extensamente. Incêndio pressupõe, em definitivo, uma tónica de excesso. O fogo é, em princípio, e por seu turno, o resultado da combustão de certos corpos dentro de níveis aceitáveis de controlo e de domínio – cfr. Faria Costa in "Comentário Conimbricense - Código Penal - Parte Especial" - Tomo II, pg.870.

Com a reforma aprovada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, foi eliminada a expressão “de relevo”, entendida como uma extensão ou intensidade que, à luz das regras da experiência, se devam considerar como manifestas, indiscutíveis ou relevantes.

  Posto isto, cumpre desde já recordar que comprovadamente o arguido, no dia 22 de janeiro de 2020, ateou os seguintes focos de incêndio:

- a hora não concretamente determinada, mas situada entre as 12 horas e as 13.55 horas, quando caminhava pela ..., no sentido ... – Café “...”, sito em ..., ..., num percurso de cerca de 2.300m, ladeado por uma zona florestal, composta essencialmente por povoamentos contínuos de mato, pinheiro bravo e eucalipto, com a ajuda de fósforos, em três lugares distintos, ateou por três vezes fogo às ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou, tendo após prosseguido a marcha e retomado o caminho. Na sequência arderam cerca de 1.450 m2 de mato, pinheiro bravo e eucaliptos, o que causou prejuízo de valor não concretamente apurado;

– após ter permanecido no referido café ..., durante pelo menos uma hora, por volta das 16 horas, o arguido regressou a ... pela ..., mas a dado ponto tomou um caminho florestal em terra batida, onde resolveu atear novos focos de incêndios, com a ajuda de fósforos, o que fez em sete lugares distintos nas ervas secas existentes no solo, que desse modo logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou, tendo após prosseguido a marcha e retomado o caminho. Na sequência arderam cerca de 6.650 m2 de mato, pinheiro bravo e eucaliptos, o que causou prejuízo de valor não concretamente apurado, mas não inferior a €1.446,80.

Atuação esta tipicamente descrita no tipo na sua forma de dolo direto em relação à provocação de cada um dos incêndios.

Verificado ficou também o resultado doloso de perigo-violação em bens de elevado valor e que, apesar de colocados em risco, só não foram consumidos em maior extensão por razões alheias à vontade do arguido.

De resto, em todas aquelas ocasiões, o arguido atuou com o propósito deliberado de incendiar a floresta e ainda de provocar com a sua conduta perigo para uma mancha florestal superior, o que aponta para a verificação do resultado doloso de perigo-violação relevante.

Ciente do valor mínimo dos bens colocados em risco, em montante superior a 5.100 euros, sabia também o arguido que não lhe pertenciam.

Sabendo da proibição da sua conduta, o arguido agiu em toda a sua relatada atuação de forma deliberada, livre e consciente.

Neste contexto, é incontroversa a prática pelo arguido, em concurso efetivo e sob a forma consumada, de dois crimes de incêndio previstos pelo art. 274°, n° 1 e 2, al. a) do Código Penal, punível com 3 a 12 anos de prisão.

2.4.2. Da Medida Concreta da Pena

Passando de imediato à dosimetria da pena de prisão ter-se-á em conta que, de harmonia com o disposto no art. 71º, nº 1 e 2 do C. Penal, são determinantes da medida da pena a culpa do agente (limite máximo da pena) e a prevenção geral de integração e de intimidação (limite mínimo da pena), fixando a prevenção especial o quantum exato da pena que melhor sirva à socialização do agente.

Por se repercutir na pena, através da culpa, antes de mais há a considerar como fator de graduação daquela, o grau de ilicitude do facto que se afigura mediano, ligeiramente mais grave no segundo incêndio, em função das áreas ardidas em cada um deles (1.450 m2 + 6.650 m2), sem valor relevante de prejuízo efetivo.

Contra o arguido sobressai em qualquer dos crimes a importância do perigo criado perante bens patrimoniais alheios, de natureza sobretudo ambiental com uma área não inferior a 35 hectares, de valor superior a €70.000, ainda que no primeiro dos crimes tenha colocado também em perigo uma casa de habitação, não obstante todos eles próximos da povoação …......

O dolo, sendo direto, revela substancial intensidade em qualquer dos crimes, a reforçar a acentuada insensibilidade perante bens ambientais alheios.

A reiteração deste tipo de comportamentos, sobretudo no segundo dos crimes, no qual o arguido ateou sete focos de incêndio e já depois dos bombeiros e populares terem combatido o primeiro, é bem revelador da sua persistência delituosa incendiária.

Contra o arguido depõe a existência de antecedentes criminais, contando com duas condenações, ambas por violência doméstica, a primeira anterior aos factos em apreço, a segundo por julgamento que ao tempo decorria, a mostrar bem a sua total indiferença perante a ação da justiça.

A mesma indiferença que mostrou em julgamento, dada a falta de arrependimento e de consciência critica em relação aos crimes cometidos, assumindo uma postura de total falta de colaboração, o que não o beneficia, negando inclusivamente o que antes assumiu aquando da reconstituição, posto que na altura confessou ter ateado pelo menos um dos focos de incêndio.

Por essa razão, a reiteração desse comportamento ilícito, sem qualquer arrependimento nem consciência critica do mesmo, é de modo a fazer recear (quando em liberdade) a repetição de condutas idênticas.

O arguido é oriundo de um contexto sociofamiliar com algumas dificuldades ao nível económico, mas sem outras problemáticas significativas.

O arguido manifestou, na frequência escolar, dificuldades de aprendizagem significativas que condicionaram a sua prossecução, vindo apenas a concluir o 4.º ano de escolaridade.

Começou a trabalhar ainda na infância, auxiliando os pais na agricultura, e na adolescência, na construção civil, área onde se tem mantido a maior parte da sua vida ativa, e onde tem revelado hábitos de trabalho, à exceção dos últimos anos em que o agravamento do consumo de bebidas alcoólicas tem vindo a condicionar as suas capacidades laborais.

A dinâmica familiar do agregado tem também vindo a deteriorar-se, com acusações recíprocas de violência, verbal, psicológica e física, culminando na rutura da relação conjugal alguns meses antes da sua reclusão e motivando já duas condenações em penas de prisão suspensas.

O arguido apresentou uma fraca adesão ao cumprimento das obrigações a que estas penas ficaram sujeitas, em particular no que respeita à realização do tratamento dirigido ao alcoolismo, face a uma postura de passividade/desleixo por parte do arguido, a que não será alheio as limitações pessoais que apresenta, agravadas pelo consumo abusivo de bebidas alcoólicas, entretanto goradas em contexto de liberdade pela reclusão preventiva do arguido, a partir do dia .../06/2020, à ordem do processo n.º 5/20……….

Os crimes dos autos enquadram-se num contexto de disfuncionalidade familiar, agravada pelo consumo abusivo de bebidas alcoólicas que, por sua vez, aumenta as dificuldades de autocontrolo e de resolução de problemas evidenciadas pelo arguido.

São também muito elevadas as exigências de prevenção geral, atenta a frequência de incêndios florestais que criam forte alarme social e intranquilidade públicas quando permanecem bem vivas na memória de todos as tragédias de 2017, com fortíssimo impacto a nível nacional, da qual resultou a morte, prejuízos materiais e morais elevadíssimos, com vastíssima destruição da paisagem e floresta nacionais.

Em suma, perante a gravidade das condutas delituosas, sem olvidar a amplitude das molduras penais consideradas e a ausência de outras atenuantes de relevo, entende-se adequada às finalidades da punição, sem exceder a culpa do arguido:

- no 1º incêndio (três focos): a pena de 4(quatro) anos e 6(seis) meses de prisão; - no 2º incêndio (sete focos): a pena de 5(cinco) anos de prisão.

estando os crimes cometidos pelo arguido numa relação de concurso, há que fixar uma pena conjunta, nos termos do disposto no art. 77º, nº 1 do C. Penal.

Considerando a conjugação dos factos sobreditos a propósito da medida concreta da pena e a personalidade deste arguido neles revelada, tratando-se de crimes da mesma natureza, num período temporal muito próximo, a existência de antecedentes criminais, a similitude dos crimes e a total falta de colaboração prestada, bem assim a falta de inserção social, familiar e ocupacional do arguido, nos termos do disposto no art. 77º do C.Penal, afigura-se equilibrada em cúmulo jurídico destas penas parcelares a pena única de 6 (seis) anos de prisão.”


3. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar circunscreve-se à medida das penas, parcelares e única.

Atendendo a que o crime da condenação (crime do art. 274.º, n.º 1 e 2, al. a), do CP) comina a moldura abstracta de três a doze anos de prisão, pugna o arguido pela fixação das parcelares no seu mínimo e a pena única em medida não superior a cinco anos. Pretende ainda a aplicação de pena de substituição prisão suspensa, “ainda que sujeita a regras de conduta e com regime de prova, uma vez que existe uma situação de prognose favorável que não se opõe mas antes a aconselha”.

Para tanto, destaca razões de facto que se prendem, por um lado, com a reduzida extensão dos incêndios e a circunstância dos factos ocorrerem no inverno (mês de Janeiro); por outro lado, motivos que respeitam à sua personalidade e situação pessoal, como o consumo excessivo de álcool e a sua relação com os crimes, afirmando a existência de condições pessoais e sociais que suportariam o juízo de prognose favorável à ambicionada ressocialização em liberdade (as quais, no entanto, não se concretizaram suficientemente e de modo relevante, no recurso).

O Ministério Público, nas duas instâncias, pronunciou-se no sentido da confirmação integral do acórdão, pelas razões já enunciadas no ponto 1. e que se encontram também no acórdão.

 O recurso encontra-se circunscrito à(s) medida(s) da(s) pena(s), como se disse, sendo o recorrente muito claro na delimitação do objecto do seu recurso.

No entanto, não deixa de se ter de consignar aqui que o enquadramento jurídico dos factos efectuado no acórdão se mostra correcto, quer quanto ao tipo de crimes, quer quanto ao número de crimes efectivamente cometidos pelo arguido.

Este enunciado justifica-se, não só por a decisão sobre o tipo de crime e sobre o número de crimes ser sempre pressuposto e condição de aplicação das penas, parcelares e únicas, que cumpre sindicar. Justifica-se sobretudo por se constatar que a decisão sobre a pluralidade de infracção, embora acertada, não se encontra suficientemente fundamentada no acórdão. Está-o de facto, mas não de direito.


3.1. Da pluralidade de infracção

Olhando o acórdão (cf. transcrição em 2.), constata-se que o concurso efectivo de crimes não se mostra juridicamente fundamentado.

Na verdade, enunciada a base factual bastante relativa à situação de concurso, ficou no entanto por explicar juridicamente a pluralidade de infracção. A este respeito, e em matéria de direito, referiu-se apenas: “é incontroversa a prática pelo arguido, em concurso efetivo e sob a forma consumada, de dois crimes de incêndio previstos pelo art. 274°, n°l e 2, al. a) do Código Penal, punível com 3 a 12 anos de prisão”. E a decisão sobre o número de crimes  efectivamente cometidos por um agente, quer se esteja perante um concurso homogéneo ou heterogéneo, é tão importante como a decisão sobre o tipo de crime cometido

Por essa razão, e sendo certo que se trata de uma deficiência de fundamentação que, a configurar nulidade, sempre este Supremo se encontraria em condições de suprir, consigna-se desde já a correcção total do enquadramento jurídico dos factos também a este propósito.

No caso sub judice, a proximidade geográfica e a quase continuidade temporal em que todos os factos ocorreram, ou seja, em que toda a conduta delituosa se desenvolveu, deveria ter justificado, em concreto, uma fundamentação de direito acrescida, no que respeita à afirmada pluralidade de infracção. E essa justificação de direito não se encontra no acórdão.

Por isso se consigna a correcção da decisão também nessa parte, suprindo-se agora as deficiências de fundamentação. E cumprindo aditar alguma fundamentação jurídica, mesmo que sumariamente, assinala-se que, quer à luz da doutrina de Eduardo Correia, quer da proposta por Figueiredo Dias, nos seus importantes contributos para a interpretação do art. 30.º do CP, se chega a uma convergência no sentido da pluralidade de infracção, no caso sub judice.

Muito sumariamente, Eduardo Correia refere que as normas penais não são apenas normas de valoração objectiva, mas também normas de determinação (na medida em que intervêm e querem intervir decisivamente no processo de motivação do indivíduo), que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa, e assim conclui que a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. E o critério para averiguar a existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. E por cada vez que tal sucedeu há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa (Eduardo Correia, “Unidade e Pluralidade de Infracções”, in Correia, Eduardo, A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpr.), Coimbra: Almedina, 1963, pp. 94-95).

Para Figueiredo Dias, sendo o crime o facto punível, ele traduz-se numa violação de bens jurídico-penais que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico: o que está em causa é, assim, determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz – e é essa determinação que decide da unidade ou pluralidade de crimes (Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007 (1ª ed., 2004), pp. 988 - 989).

Observando os concretos factos em apreciação, e apesar da constatada relativa proximidade espacial e temporal,  é possível ainda identificar, em toda a actividade desenvolvida pelo arguido e constante dos factos provados, tanto duas resoluções criminosas autónomas, como dois sentidos individualizados e também autónomos de ilicitude.

Retiram-se ambos da localização temporal - que inclui, designadamente,  a pausa na actuação do arguido, de modo a sugerir um termo no seu primeiro processo delituoso e a mediação entre os dois episódios com a intervenção dos bombeiros -,  da situação espacial - as ocorrências não são exactamente nos mesmos locais, tendo o arguido seguido percursos (locus delicti) distintos -, e das demais circunstâncias modais que consubstanciaram cada um dos dois comportamentos lesivos isoladamente considerados e distintamente descritos nos factos provados.

De tudo resulta que o arguido, por um lado, agiu por duas vezes com uma diferente e renovada intenção criminosa (inexistindo por isso unidade de resolução), e, pelo outro, os referidos índices de ponderação contribuem também para o afastamento do sentido único de ilicitude.

Ou seja, a afirmação da pluralidade de crime(s) é o que resulta, em concreto, da aplicação do art. 30.º, n.º 1, do CP.


3.2. Da medida da(s) pena(s)

Passando então à pena, começa por lembrar-se que a sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

Olhando o acórdão, constata-se que cumpre as exigências de fundamentação em matéria de pena, quer de facto, quer de direito, oferecendo resposta adequada a alguns dos problemas colocados em recurso (mas não a todos). Fá-lo relativamente a cada uma das penas parcelares aplicadas, justificando-as individualmente, distinguindo as situações de maior e de menor gravidade na lesão do bem jurídico. Fá-lo, por último, relativamente à pena única, procedendo a uma apreciação autónoma da pena aglutinadora a proferir.

Assim, numa moldura abstracta de três a doze anos de prisão, o arguido foi condenado nas penas de quatro anos e seis meses de prisão e de cinco anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos de prisão.

O recorrente aceita que o grau de ilicitude dos factos foi “ligeiramente mais grave no segundo incêndio, em função das áreas ardidas em cada um deles (1.450 m2 + 6.650 m2)”. Mas questiona se “serão suficientes para aplicar uma pena de seis anos, de prisão efetiva”.  E nota que os factos ocorreram “em janeiro de 2020 (em plena altura de inverno), sem valor relevante de prejuízo efetivo”, que os seus antecedentes criminais se referem a duas condenações por crime de natureza diversa dos presentes, que não são “reveladoras de uma natureza incendiária, antes sim da comorbidade que o alcoolismo revelou tendo em ambas as condenações sido ordenada a suspensão da execução das penas, mediante o tratamento da dependência etílica”. Conclui que “não se verifica in casu especiais necessidades de prevenção geral ou especial que possam justificar e determinar a aplicação de uma pena de prisão efetiva”.

O Ministério Público, nas duas instâncias, pronunciou-se pela confirmação da(s) pena(s). E a Sra. Procuradora-geral Adjunta referiu, designadamente:

“Entende-se que nenhum destes argumentos deverá relevar para a diminuição da medida da pena, considerando-se que a pena única aplicada de 6 (seis) anos de prisão (que se situa somente 1 (um) ano acima do limiar mínimo da moldura penal abstracta aplicável, de 5 (cinco) anos a 9 (nove) anos 6 (seis) meses de prisão), revela-se justa e correcta.

Com efeito, entende-se não ser viável uma redução da pena até 5 (cinco) anos de prisão, e suspender a respectiva execução, por não se mostrar preenchido o pressuposto material, enunciado no art. 50º, nº 1, do Cod. Penal, no sentido de considerar que a pena de substituição é adequada e suficiente para prevenir a reincidência.

E, para chegarmos à conclusão que este pressuposto material não se encontra preenchido, atendeu-se à natureza dos factos praticados, às circunstâncias em que os mesmos foram cometidos, à personalidade do recorrente AA neles revelada, às suas condições de vida, à postura assumida perante os crimes cometidos, não se podendo prever, fundamentadamente, que a ameaça de execução da pena de prisão a aplicar, seja suficiente para que esta adeque a sua conduta de modo a respeitar o direito.

E, atendeu-se também ao facto de o recorrente AA já ter sofrido duas condenações, em penas de prisão suspensas na sua execução, mediante o cumprimento de determinadas obrigações, e ter apresentado uma fraca adesão ao cumprimento de tais obrigações, no que respeita à realização de um tratamento dirigido ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas, o que poderá propiciar a repetição de tais comportamentos.”

Concorda-se com a contra-argumentação apresentada pela Sra. Procuradora-geral Adjunta, designadamente quando destaca negativamente a personalidade do arguido e o seu passado criminal.

Prosseguindo, na avaliação do grau da ilicitude do factos há que ter em conta que o crime em causa é um crime de perigo concreto e que esse perigo concreto se comprovou da forma constante dos factos provados, envolvendo floresta, e num dos casos uma casa de habitação, e materializando-se ainda na destruição das comprovadas áreas ardidas.

Na dimensão do grau de perigo concretizado, não pode deixar de influir a circunstância da ocorrência dos factos se dar no mês de Janeiro. Mês em que, segundo as regras da experiência comum (e nada de diferente se vislumbra na matéria de facto provada), o perigo de propagação dos fogos florestais é diminuto. O que se repercute num grau mais atenuado de lesão do bem jurídico, em concreto.

Também no respeitante ao modo de execução, e tendo em conta que, pelas razões expostas em 3.1. se considerou o concurso homogéneo efectivo de crimes, no caso presente têm de relevar também as supra referidas circunstâncias de facto “proximidade temporal” e “proximidade geográfica”. As quais, repete-se, não tendo levado ao afastamento da pluralidade de infracção, têm de evidenciar agora ilícitos menos desvaliosos. 

Já a argumentação do recorrente no que respeita à sua personalidade de pessoa pacata e com antecedentes criminais de pouca relevância, não é de sufragar, mesmo tendo em conta que uma das duas condenações anteriores foi proferida quase em simultâneo mas de todo o modo após a prática dos factos. Ou seja, à data dos crimes dos autos, o recorrente tinha sofrido apenas uma condenação em pena de prisão suspensa (reforçada com deveres e obrigações), tendo, no entanto, sido depois novamente condenado pela prática do mesmo tipo de crime de violência doméstica.

Tinha assim duas condenações anteriores em pena de prisão suspensa, reforçadas com o cumprimento de determinadas condições, no momento da prolação do acórdão. Ambas por crime de violência doméstica, que é um crime grave, contra as pessoas, sendo para o caso indiferente se é ou não da mesma natureza do presente (não se está aqui a conhecer de nenhuma situação de reincidência). E do passado criminal do arguido resulta assim que, não só a primeira condenação em pena de prisão suspensa se revelou ineficaz para evitar as recidivas criminosas, como as obrigações impostas, condição da(s) suspensão(ões), mormente as relacionadas com o tratamento da dependência do álcool, se revelaram totalmente inoperantes.

A problemática do álcool e a sua ligação com a prática dos crimes, contrariamente ao que o recorrente pretende, não diminui, aqui, as exigências de prevenção especial. Agrava-as até, em concreto, sendo lícito retirar dos factos provados que, em liberdade, e apesar das medidas anteriormente experimentadas que reforçaram a aplicação da prisão então suspensa, o arguido frustrou sempre o juízo de prognose efectuado, comprometendo irremediavelmente uma pretendida nova aposta nessa prognose de ressocialização em liberdade.

Voltando ao acórdão, censurou-se ao arguido “a mesma indiferença que mostrou em julgamento, dada a falta de arrependimento e de consciência critica em relação aos crimes cometidos, assumindo uma postura de total falta de colaboração, o que não o beneficia, negando inclusivamente o que antes assumiu aquando da reconstituição, posto que na altura confessou ter ateado pelo menos um dos focos de incêndio. Por essa razão, a reiteração desse comportamento ilícito, sem qualquer arrependimento nem consciência critica do mesmo, é de modo a fazer recear (quando em liberdade) a repetição de condutas idênticas.”

Concorda-se com a “relevância da ausência de consciência crítica” na aferição das exigências de prevenção especial. Mas já quanto ao comportamento processual do arguido, essa importância não pode ser idêntica.

Relativamente à relevância do comportamento processual do arguido na decisão sobre a pena, Figueiredo Dias lembra que “o CPP erige terminantes proibições de valoração contra o arguido, como é o caso da opção que este faça pelo silêncio ou pela recursa de prestação de declarações”, devendo ir-se mais longe, recusando em via de princípio uma valoração contra o arguido do seu comportamento processual , dada a situação de pressão física e(ou) espiritual a que ele em regra está submetido. Só assim não deverá ser quando o seu comportamento for iniludivelmente de prejudicar o decurso normal do processo. Já a favor do arguido o comportamento processual poderá ser amplamente valorado para a medida da pena.” (ob. cit. p. 255)

É também certo que as necessidades de prevenção geral são aqui elevadíssimas, como se notou no acórdão, havendo, no entanto, que acautelar sempre eventuais excessos de instrumentalização do arguido na satisfação dessas exigências.

Ensina Anabela Rodrigues que “Legitimada a intervenção penal na necessidade de protecção de bens jurídicos e, com ela, uma política criminal de socialização e de confirmação da validade das normas jurídico-penais, vê-se ela limitada pela própria protecção do indivíduo que também não pode esquecer”. “O indivíduo não poderá ser objecto de uma pena cuja finalidade de socialização lhe aniquile a sua liberdade, nem a uma pena cuja finalidade de confirmação da validade do direito da generalidade das pessoas o degrade a puro meio para a realização desse fim. Tudo a significar, por um lado, que a socialização é voluntária e, por outro, que a integração social da generalidade não se baseia no terror penal” (Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 383/4)

De tudo resulta que, em concreto, as exigências de prevenção geral são inquestionavelmente elevadas, com elas confluem as exigências de prevenção especial, que são igualmente elevadas. E apesar de relevarem circunstâncias de efeito relativamente compressor – como as de, por um lado, os factos terem ocorrido no inverno, e, pelo outro, terem sido praticados com grande proximidade temporal (no mesmo dia) e geográfica -, numa moldura abstracta de três a doze anos de prisão, ainda se aceitam como proporcionais e justas as penas de quatro anos e seis meses de prisão e de cinco anos de prisão aplicadas no acórdão recorrido.

Em relação ao cúmulo jurídico, não se vê igualmente razão que force agora o abaixamento da pena única.

Na fixação da pena única, como se sabe, deve proceder-se à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido, “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na avaliação do ilícito global perpetrado, sendo decisiva a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes e a sua relação com a personalidade do arguido, relevam de novo as supra referidas circunstâncias de facto “proximidade temporal” e “proximidade geográfica”, as quais evidenciam, é certo, um “ilícito global” medianamente desvalioso.  Já a personalidade do arguido revelada nos factos, agora no “facto global”, evidencia um grau de culpa elevado.

Respeitando à culpa, estas considerações foram já incluídas no processo de determinação das penas parcelares. Mas a sua reponderação na determinação da pena única não desrespeita o princípio da proibição da dupla valoração (art. 72.º, n.º 2 do CP). Como princípio extensível a todas as operações de determinação da pena, ele deve repercutir-se ao longo de todo o processo aplicativo da pena. E “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 292).

De todo o exposto resulta que, na sindicância do acórdão recorrido e sempre na visão de uma intervenção em recurso que é sempre a permitida pelo “recurso remédio”, não se vislumbram razões que devam conduzir a uma correcção da medida da pena única no sentido pretendido pelo arguido.


4. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).


Lisboa, 19.05.2021


Ana Barata Brito, relatora


Tem voto de conformidade da Conselheira Adjunta Maria da Conceição Simão Gomes.