I
Por Acórdão proferido nestes Autos foi julgada procedente, por provada, a Acusação Pública que imputava ao Arguido AA, a autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, do artigo 152° n° 1, al. a) e n° 2, al. a) e nºs 4 e 5 do Código Penal e foi julgada parcialmente procedente e provada, a Acusação Pública que imputava à Arguida BB a autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos artigos 131°, 132°, n° 2 alíneas b), h) e i), 22°, 23° e 69º-A todos do Código Penal,
Consequentemente, ao Arguido AA foi aplicada uma pena de 3 anos de prisão suspensa na execução por igual período e em regime de prova, e na pena acessória de 3 anos de proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida BB, incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta.
E a Arguida BB foi condenada como autora material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos artigos 131°, 132°, n° 2 alínea i), 22°,23° e 69º-A todos do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena, especialmente atenuada, de 5 anos e 9 meses de prisão e uma pena acessória de indignidade sucessória prevista no artigo 69º-A do Código Penal, relativamente ao ofendido AA.
Mais foi decidido condenar a Arguida/demandada BB no pagamento ao Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, da quantia de €2.992,65 a acrescer de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a notificação para contestar, até ao efetivo e integral pagamento e também no pagamento ao Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, da quantia de €10.674,15 a acrescer de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a notificação para contestar até ao efetivo e integral pagamento.
II
Inconformada com esta decisão, a Arguida veio interpor recurso. Da respetiva Motivação retirou as seguintes Conclusões:
1º- Vem o presente recurso, interposto do douto Acórdão proferido nos autos de Processo Comum-Coletivo n.° …, do Juízo Central Criminal .... - Juiz …, no qual o douto Tribunal a quo, condenou a Arguida BB na pena de cinco (5) anos e nove (9) meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos arts. 22º nº 1 e 2-b), 23º nº 1 e 2, 73º nº 1 -a) e b), 131º, 132º nº 1 e nº 2-i) do Código Penal.
2º- Entende a Recorrente que, e sempre com a devida vénia por diverso entendimento, em face do Direito aplicável, o douto Acórdão ora em Recurso nunca poderá ser confirmado, merecendo o presente Recurso provimento, determinando-se a sua revogação.
3º- A Recorrente discorda da qualificação jurídica do Tribunal recorrido.
4º- Com todo o respeito por melhor opinião, entendemos que a conduta da Recorrente se enquadra no tipo p. e p. pelo artigo. 145° n° 1, al. a), e n° 2, do CP, crime (consumado) de ofensas à integridade física e não no tipo p. e p. pelos artigos 131° e 132° deste mesmo compêndio legal.
5º- Dos factos provados não resulta ser possível afirmar que, a Recorrente tenha mantido a aptidão de produzir ofensa à vida da vítima. Com efeito, no auto de exame direto de fls. 77 e 369 refere-se textualmente que «(... atingida por deficiente execução técnica, imperícia, como é patente na representação gráfica de fls. 77 e na fotografia de fls. 369...)». fazendo-se, portanto, acompanhar de um meio inidóneo para produzir a morte daquele.
6º- Estas afirmações retiram-se dos próprios factos provados e a inidoneidade do meio utilizado pela Recorrente para provocar a morte, da forma como utilizou o machado (na extremidade não amolada), fica também evidente. A tentativa era impossível, pois a inidoneidade do meio apresentava-se como manifestamente aparente (um machado utilizado na parte não amolada), ou seja, um cabo de um machado, não é idóneo a matar.
7º- Os factos objetivos provados do Acórdão recorrido não tipificavam, objectivamente, o crime de homicídio (qualificado) tentado da condenação, realizando tão só, um crime de ofensa à integridade física consumada.
8º- Os factos provados realizam pois, objetiva e subjetivamente, um crime (consumado) de ofensas à integridade física p.e p. art. 145º nº 1, al. a), e nº 2, do CP.
9º- Deverá ser revogado o Acórdão recorrido, e a substituição por outro que «altere o enquadramento jurídico-penal para o crime ofensas à integridade física, com as legais consequências daí advindas, ou, caso assim se não entenda, que aplique à Recorrente a pena coincidente com o mínimo legal.
10º- Esta integração jurídica dos factos substitui a anterior, relativa ao tipo homicídio qualificado tentado dos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. l), 22.º, 23.º, 72.º e 73.º, n.º 1, do CP, do qual deverá a Recorrente ser absolvida.
11º- Sem conceder, e caso assim não seja entendido, ainda se dirá, que com todo o respeito por melhor opinião, entendemos que caso doutamente a conduta da Recorrente não se venha a enquadrar num crime (consumado) de ofensas à integridade física, a conduta da Recorrente sempre se terá de enquadrar no tipo p. e p. pelo artigo 133° do Código Penal (homicídio privilegiado) e não no tipo p. e p. pelos artigos 131° e 132° deste mesmo compêndio legal.
12º- O Tribunal recorrido decidiu, mal a nosso ver, a condenação a Recorrente como autora de um crime doloso tentado de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131°, 132°, n° l e 2, alínea i) (Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso) do Código Penal.
13º- Da matéria dada como provada pelo Tribunal a quo não resultaram provados quaisquer factos indiciadores ou suscetíveis de revelar a "especial censurabilidade ou perversidade" exigida pelo n° l do artigo 132°, e que constitui condição sine qua non para a qualificação do tipo.
14º- A Recorrente entende que verifica-se a insuficiência da matéria de facto para a qualificação do crime de homicídio (qualificado), uma vez que da matéria de facto não constam quaisquer factos indiciadores ou suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade.
15º- O Acórdão recorrido sofre de vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada, pelo que, entendemos que a conduta da Recorrente não pode, nem deve ser qualificada por aplicação direta da alínea i) do n° 2 do artigo 132° do CP., sem se mostrar provado os requisitos exigidos pelo n° l do mesmo preceito.
16º- Os factos provados permitem integrar as circunstâncias que, diminuindo acentuadamente a culpa da Recorrente, privilegiem o crime.
17º- Bem diversamente ao entendimento do Tribunal a quo, os factos provados contêm de antecedentes, de motivações subjetivas ou sobre o estado de afeto (angústia, depressão, revolta interior por contingências não domináveis) que pudessem condicionar o comportamento da Recorrente em termos de não exigibilidade.
18º- Veja-se os pontos 1.3, 1.4, 1.6, 1.8, 1.9, 1.10, 1.11, 1.12, 1.13, 1.14, 1.15, 1.16, 1.17, 1.18, 1.20, 1.21, 1.23, 1.24,1.25, 1.41 da matéria de facto provada, e das próprias declarações da Recorrente, dos filhos CC e DD, e EE (sobrinho do arguido) e ainda FF (vizinho da Recorrente e do arguido).
19º- Com efeito, a Recorrente foi vítima de forma reiterada e persistente de violência doméstica, quer física, quer emocional, e social, tendo sido sujeita a trabalhos forçados, e subjugação durante mais 40 anos.
20º- Era pacifico que o arguido era pessoa quizilenta, agressiva, rude, conflituosa, maltratante com toda a gente, pessoa que não admitia oposição às suas ideias, inclusive já havia atingindo tiros a um vizinho.
21º- É notório a tensão psicológica acumulada ao longo de anos, sob ameaça para a Recorrente e para os filhos comum, na forma de ultimato do arguido, conhecido como pessoa violenta, capaz de concretizar os seus intentos, tal como já havia concretizado ao longo de anos na pessoa da Recorrente e na pessoa do seu vizinho FF), o que levou necessariamente a Recorrente a agir «dominada por compreensível emoção violenta»,
22º- É patente influência efetiva dos elementos privilegiadores sobre a Recorrente.
23º- Adianta-se que os factos objetivos provados do Acórdão recorrido não tipificavam, objectivamente, o crime de homicídio (qualificado) tentado da condenação, realizando tão só, um crime de homicídio privilegiado.
24º- Esta integração jurídica dos factos substitui a anterior, relativa ao tipo homicídio qualificado tentado dos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. l), 22.º, 23.º, 72.º e 73.º, n.º 1, do CP, do qual deverá a Recorrente ser absolvida.
25º- Deverá ser revogado o Acórdão recorrido, e a substituição por outro que «altere o enquadramento jurídico-penal para o crime de homicídio privilegiado, com as legais consequências daí advindas, ou, caso assim se não entenda, que aplique à Recorrente a pena coincidente com o mínimo legal.
26º- Entende a Recorrente que, em caso este Venerando Tribunal remotamente venha a entender que o Recorrente tenha praticado o crime que doutamente foi condenado pelo Tribunal recorrido, e como consequência a Recorrente tenha que vir a cumprir uma pena de prisão e que no seu entendimento sempre se tratará com um erro de Justiça, sempre a pena que lhe foi aplicada é muito severa, imerecida, excessiva injusta, desproporcional e desadequada, violando as exigências de preservação da dignidade humana, constitucionalmente consagradas.
27º- A pena aplicada ao recorrente é manifestamente excessiva e por isso desproporcional e desajustada à sua conduta por se encontrar demasiado próxima da moldura penal máxima prevista.
28º- Entende a Recorrente, que o douto Tribunal a quo não tomou tais circunstâncias atenuantes melhor explanadas em sede de Motivações, como resulta dos autos e do Acórdão ora em recurso; pelo que, devem as mesmas serem consideradas nos termos do artigo 40º n.º 1 e n.º 2 e 70º e 71º do Código Penal, e que por isso, sempre a pena aplicar à Recorrente deveria ter sido menos gravosa, a rodar os limites mínimos, que aquela que foi aplicada, a qual é desadequada por excesso.
29º- Assim, a pena de cinco (5) anos e nove (9) meses de prisão, a que o Tribunal a quo condenou a Recorrente, ultrapassa exacerbadamente os limites da sua culpa, revela-se desproporcional às necessidades de prevenção geral e especial que o caso reclama, desadequada à concreta finalidade da ressocialização do Recorrente, frontalmente violadora do comando contido no artigo 71.°, do Código Penal Português, portanto injusta e inadmissível, impondo-se a aplicação de pena inferior à do Acórdão recorrido, devendo ser especialmente atenuada e situar-se a pena de prisão, no limite mínimo da moldura penal aplicável.
30º- Atentos os factos de a Recorrente ser primária, pessoa bem vista e considerada no meio em que vive, onde sempre manteve bom comportamento e onde de bom grado será acolhido, não suscitando qualquer alarme social, não ter em si qualquer perigosidade, estar perfeitamente integrada socialmente, a sua culpa ser diminuta (havendo), e a cessação - embora trágica - do facto que produziu o efeito criminoso, não sendo, atentas estas circunstâncias, de prever que volte a delinquir, a pena a aplicar-Ihe, caso não seja absolvida, e venha a ser-lhe aplicada pena de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução.
31º- Assim, se a admissibilidade da suspensão da execução da pena de prisão está suficientemente justificada numa perspetiva de prevenção especial e não colide com as exigências de prevenção geral (o caso presente, factualidade isolada, e sem repercussões a nível social), é de se suspender a execução da pena.
32º- Ao decidir diferentemente, nos termos do douto Acórdão de fls., violou o douto Tribunal a quo os arts. 131.°, 132.°, n.° 1 e n.° 2, ai. I), 133° 22.°, 23.°, 72.° e 73.°, n.° 1, Art° 40°, n.°s 1 a 3, 70°, 71° todos do Código Penal do CP, o Princípio do Direito à Integridade Pessoal, o Art.° 25° da Constituição da República Portuguesa, os artigos 5o e 25° n.°1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 7o do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos e o artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Nestes termos, e nos melhores de direito que Vossas Exas doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente, com todas as consequências legais, fazendo-se, deste modo, a habitual justiça!
Pede e espera de V. Exas. Deferimento.
III
Na sua resposta, o Digno Magistrado do Ministério Público articulou as seguintes Conclusões:
1 - O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt, Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.
2 - “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
3 - São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.
4- É fácil verificar que o Tribunal “a quo” baseou a sua decisão na prova produzida e analisada em audiência de julgamento, e, também nas regras da experiência, aliás como o impõe o art.127º, do Código de Processo Penal.
5 - A arguida não possui antecedentes criminais.
6- Sabemos que o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, “se refere à insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a solução de direito e não à insuficiência da prova produzida e examinada em audiência para alicerçar a decisão sobre a matéria de facto proferida, tendo de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
7 - Porém, lido e analisado o Douto Acórdão recorrido de uma forma lógico-sistemática, verifica-se que não padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem deveria ter uma decisão distinta.
8 - No que respeita à qualificação jurídica dos factos que se provaram em audiência de julgamento, diga-se que o Tribunal é soberano ao qualificar tais factos do modo mais adequado e conforme à Lei em vigor.
9 - Constam do Douto Acórdão todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio qualificado, tendo a arguida sido condenada pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos artigos p. e p. nos artigos 22°, n° 1 e 2, alínea b), 23°, n° 1 e 2, 73°, n° 1, alíneas a) e b), 131°, 132°, n° 1 e n° 2, alínea i), do Código Penal, na pena, especialmente atenuada, de 5 anos e 9 meses de prisão.
10 - Não está o Douto Acórdão inquinado por nenhum vício ou nulidade, dos previstos nos artigos 374°, 379 e 410°, n° 2, e não foram violados o que dispõem os “artigos: 131.°, 132.°, n.° 1 e n.° 2, ai. I), 133° 22.°, 23.°, 72.° e 73.°, n.° 1, art° 40°, n.°s 1 a 3, 70°, 71°, do Código Penal, nem foi desrespeitado o Princípio do Direito à Integridade Pessoal, o Art.° 25° da Constituição da República Portuguesa, os artigos 5º e 25° n.°1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 7º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos e o artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, estando o Douto Acórdão de acordo com os preceitos legais aplicáveis de direito europeu, direito constitucional e direito criminal.
11 - A arguida questiona a medida da pena, mas, analisado o Douto Acórdão recorrido verifica-se que o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida da pena a que foi condenado a arguida em 1ª instância todos os critérios referidos nos arts.40º, 41º, 71º e 131º e 132º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento.
12 - A recorrente quer que lhe seja suspensa na execução a pena de prisão a que venha a ser condenada.
13 - Sucedeu que o Tribunal “a quo” não suspendeu na execução a pena de prisão a que foi condenada a arguida em 1ª instância, desde logo tendo em atenção o limite temporal previsto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal:”1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”…
14 - Tendo em linha de conta que as recorrentes não têm antecedentes criminais, está integrada socialmente e se divorciou do coarguido, indo viver para casa distinta, tem o apoio dos filhos e está em prisão preventiva desde 26-8-2019, talvez se possa fazer um juízo de prognose favorável.
15 - As circunstâncias da arguida colocam-na numa linha ténue de fronteira em que tanto se poderá suspender como não suspender a pena de prisão a que venha a ser condenada…
16 - Não enferma o Douto Acórdão de nenhum vício ou nulidade, dos previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis de direito europeu, constitucional e Criminal.
17 - Deve o Douto Acórdão recorrido manter-se, podendo eventualmente reduzir-se a pena de prisão para 5 anos e suspendê-la na execução, mediante regime de prova e injunções.
Concedendo provimento parcial ao recurso. Assim se fazendo Justiça.
IV
Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela diminuição da medida da pena para os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, porquanto considerou que as necessidades de prevenção geral e especial poderão, ainda dessa forma ser alcançadas.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
V
Realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:
O Acórdão recorrido é do seguinte teor:
II - Fundamentação
1. Factos Provados
Discutida a causa, dos relevantes para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1.1 O arguido AA e BB contraíram casamento a ... de Setembro de 1973, tendo fixado residência no ………, na habitação dos pais desta.
1.2 Dessa relação nasceram dois filhos, CC e DD.
1.3 Desde o início do casamento que o arguido se revelou conflituoso para com a ofendida, chegando mesmo a agredi-la, quer física, quer verbalmente.
1.4 Assim, em data não concretamente apurada, entre 1974 e 1975, no interior da residência comum, o arguido atingiu a ofendida com chapadas na face.
1.5 Em 1983, o casal passou a residir na Rua do …, n.° …, ... -…, com os seus dois filhos.
1.6 Ao longo dos anos de vivência em comum, sempre no interior da residência de ambos, AA agrediu BB com chapadas e murros na cabeça, bem como com pontapés e empurrões em várias partes do corpo, o que sucedeu um número de vezes não concretamente apurado.
1.7 Em consequência dessas agressões, BB sofreu hematomas nos braços, nas pernas e na cara.
1.8 Em data não concretamente apurada do ano de 1986, no interior da residência comum, o arguido atingiu BB com chapadas na cara e arranhou-lhe o pescoço.
1.9 Em data não concretamente apurada do ano de 1995 ou 1996, no interior da residência comum, AA desferiu um murro no rosto de BB, fazendo com que a mesma caísse de costas no chão.
1.10 Para além de a agredir, o arguido dirigia-se à mesma chamando-lhe "puta" e dizendo "tu roubas-me", "tu fazes tudo pelos teus filhos mas eles não merecem, um dia vão-me pagar".
1.11 Em data não concretamente apurada do ano de 2000, AA desferiu um soco na face de BB.
1.12 Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu um derrame no olho direito.
1.13 Em datas não concretamente apuradas, mas depois de os filhos de ambos terem saído da residência do casal, o arguido dirigiu-se diversas vezes à ofendida dizendo, "és uma ordinária", "és uma burra", "és uma burra de um cabrão", "tu não vales nada", "vocês vão ver o que lhes vai acontecer", "tu não prestas para nada".
1.14 E, nos últimos anos, obrigava a ofendida a fazer trabalhos agrícolas pesados, nomeadamente, a carregar tubos de rega e carregar uma máquina de sulfatar sempre que era necessário utilizá-la.
1.15 Enquanto BB efectuava tais trabalhos e com uma frequência quase diária, o arguido dava-lhe ordens em tom autoritário, dizendo "puxa", "carrega", "despacha-te", "dou-te com isto nos cornos", "sua puta" e "parto-te os cornos e mato-te".
1.16 Quando a via triste, o arguido dizia à ofendida "se estás tão triste mulher, porque é que não te matas", "burra de um cabrão, vais ter um fim muito triste, o teu destino já está escrito"
1.17 Em data não apurada do ano de 2017, na Rua ……, ..., BB entrou para uma carrinha de caixa aberta no interior da qual se encontrava o arguido, sentado no lugar do condutor, o qual lhe deu um soco na face, fazendo com que BB batesse com o rosto no vidro da viatura.
1.18 Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a BB para abrir a porta do armazém existente no rés-do-chão da residência, enquanto permanecia ao volante da sua carrinha, dizendo em voz alta "faz força puta de merda, faz força puta".
1.19 No dia ... .08.2019, pelas 12h00, quando se encontrava no Mercado ……..., onde explora uma banca de venda de produtos hortícolas, AA disse ao seu sobrinho EE, que punha os primos dele, seus filhos, de lá para fora, que se não se resolvesse a bem ia a mal, referindo-se ao facto de pretender que os mesmos abandonassem a residência que ocupavam, no Sítio do ....
1.20 Disse-lhe ainda "estou farto que gozem comigo e não me tenham respeito", "eu vou comprar uma arma", "eu vou acabar com esta raça toda", o que disse em voz alta,
1.21 Nesse mesmo dia, quando ainda se encontravam no mercado, AA, que se encontrava exaltado, disse a BB "temos de resolver a situação", referindo-se a esse mesmo assunto.
1.22 No final do mercado AA e BB foram para a sua residência sita na ....
1.23 Enquanto almoçavam, AA disse à sua mulher "tu tens 24 horas para resolver a situação", "vocês não me encostam à parede, vou arranjar uma arma e vocês vão todos de rajada", referindo-se a ela e aos filhos de ambos.
1.24 No final da refeição, AA disse que ia dormir e que quando acordasse iam os dois, ele e BB, ao …....., resolver a situação referente à residência.
1.25 Nesse momento, o arguido apodou BB de "miséria de um cabrão, não vales nada", após o que se dirigiu para o quarto onde se deitou e onde acabou por adormecer.
1.26 Nessa sequência, apercebendo-se que AA tinha adormecido após ter ingerido 3 copos de vinho, BB dirigiu-se ao armazém sito no rés-do-chão da residência, de onde retirou um machado.
1.27 Em acto contínuo, já na posse do referido machado e aproveitando o facto de o ofendido se encontrar a dormir, BB deslocou-se para o quarto onde aquele dormia e, sem que nada o fizesse prever, empunhou o referido machado na direcção daquele e desferiu, pelo menos, sete pancadas na cabeça e na face de AA, com a parte traseira da folha de corte do referido machado, tendo ainda desferido uma outra pancada na mão esquerda daquele.
1.28 Como consequência directa e necessária de tal conduta o ofendido sofreu:
- Hematoma subdural agudo de espessura laminar em topografia para-falcial e, na vertente direita da tenda do cerebelo, assim como na fossa temporal esquerda;
- Discretos focos de hemorragia subaracnoideia pós-traumática com expressão sulcai no hemisfério cerebral esquerdo;
- Extensas fracturas do maciço facial, cominutivas, envolvendo a pirâmide nasal, órbitas, seios frontais (sendo que a fractura existente no seio frontal esquerdo atingiu a parede interna) e seio maxilar esquerdo;
- Extenso hemossinus;
- Fractura descoaptada da arcada zigomática esquerda;
- Vários traços de fractura envolvendo o rochedo do osso temporal esquerdo, com preenchimento hemático da mastóide, ouvido médio e canal auditivo externo;
1.29 E, sofreu ainda as seguintes lesões:
- No crânio: estendendo-se da região parieto-temporal direita à região parieto-temporal esquerda, passando pela região parieto-occipital, cicatriz nacarada, deprimida, com afundamento craniano subjacente, medindo 20 cm de comprimento; no bordo (hélice) do pavilhão auricular esquerdo, cicatriz nacarada, medindo 8 cm de comprimento; amputação parcial da orelha esquerda (a nível do tragus e de várias zonas da hélice);
- Na face: na metade direita da região frontal, cicatriz nacarada, deprimida, oblíqua para baixo e para fora, medindo 4 cm de comprimento; a nível da cabeça do supracílio direito, cicatriz nacarada, deprimida, longitudinal, medindo 1 cm de comprimento; sobrancelhas (supracílios) desniveladas (sobrancelha esquerda descaída); na metade esquerda da região frontal, duas cicatrizes nacaradas, deprimidas, medindo a maior (oblíqua para baixo e para fora) 4 cm de comprimento e medindo a menor (longitudinal) 1 cm de comprimento; estendendo-se da vertente esquerda da pirâmide nasal até à hemiface esquerda, cicatriz nacarada, deprimida, medindo 8 cm de comprimento; extendendo-se da comissura palpebral externa do olho esquerdo até à orelha esquerda, cicatriz nacarada, deprimida, medindo 8 cm de comprimento; nas faces cutânea e mucosa do hemilábio superior esquerdo, cicatriz nacarada, irregular, medindo 3 cm de comprimento.
1.30 Das referidas lesões resultaram para o ofendido, ainda, as seguintes sequelas permanentes: paralisia do musculo frontalis e corrugador do supracílio à esquerda, assimetria ligeira do sorriso, parestesias do nervo infra-orbitário à esquerda, hipoacúsia esquerda, afundamento craniano, sequelas que afectam de maneira grave e permanente a possibilidade de utilizar os sentidos,
1.31 Tais lesões determinaram para o ofendido um período de doença de 170 dias com afectação da capacidade de trabalho geral em 170 dias, e, por estar reformado, sem afectação da capacidade profissional.
1.32 A arguida conhecia perfeitamente as características do machado que utilizou, e que a sua utilização da forma supra descrita era susceptível de produzir a morte do ofendido.
1.33 Ao agir da forma supra descrita, nomeadamente ao desferir várias pancadas com o machado na cabeça do ofendido, a arguida actuou com intenção de o matar.
1.34 A região atingida e a natureza do machado utilizado eram circunstâncias adequadas a causar a morte de AA, o que só não ocorreu por razões estranhas à vontade da arguida.
1.35 A arguida agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
1.36 O arguido, por sua vez, agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de molestar a integridade física de BB, produzindo-lhe ferimentos e dores, bem como de a afectar no seu bem-estar psíquico, designadamente, quando lhe dirigiu as expressões acima referidas, não obstante saber que o seu comportamento afectava a sua dignidade pessoal.
1.37 Ao proceder da forma acima descrita, bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
1.38 O arguido não tem antecedentes criminais vigentes.
1.39 A arguida não tem antecedentes criminais.
1. 40 AA tem 74 anos vivia com a esposa na casa morada de família situada na .... Reformado há vários anos, dedicava-se em conjunto com a cônjuge, à produção e comercialização ……. que vendiam no……... No presente vive sozinho na mesma residência, conta com o apoio do filho mais velho, CC, elemento que lhe organizou o apoio domiciliário pela …....... Deixou de prover aos seus próprios cuidados, desinteressando-se pela higiene e cuidados pessoais. Em contexto de entrevista AA expressou-se de modo limitado, sem desenvolver as questões abordadas, manifestou ausência de sentido de autocrítica, com uma autoimagem favorecida e distorcida, enviesando a sua forma de ser no quotidiano familiar e social. Foi o mais velho de três irmãos, criado em meio rural na zona da ..., numa família cujo modo de subsistência se centrou na agricultura, em condições modestas. Colaborou desde novo com os pais nas tarefas agrícolas, pouco investiu nos estudos mas concluiu a 4a classe. Relativamente às vivências no seio familiar, havia discussões frequentes, e AA não se envolvia, habituou-se a esse formato de experiência afetivo-relacional. A sua autonomização do grupo de origem ocorreu com a ida para o Ultramar: cumpriu cerca de 36 meses de SMO, parte dos quais em Angola onde fez a especialização de atirador. A passagem por estas experiências é tida como marcante e penosa e estará de alguma forma associada a sequelas psicológicas e traumatizantes, com manifestações de dores de cabeça e comportamentos desajustados e impulsivos... O casamento entre AA e BB ocorreu em 23-09-1973.... BB trabalhou em costura e assegurava a orientação e gestão doméstica. Neste matrimónio nasceram dois filhos... O mais velho viveu ... com os avós maternos, até se autonomizar e o mais novo, passou a residir no piso superior da casa de família, também até se autonomizar, num registo de incompatibilidade. A esposa procurou resguardar os descendentes e manter uma imagem de família coesa, tendendo a justificar os comportamentos desadequados do arguido decorrente dos traumas de guerra... Profissionalmente o arguido efetuou trabalhos na construção civil, iniciando-se como servente, até trabalhar por conta próprio ou em sociedades. São-lhe atribuídas características de trato difícil no ambiente de trabalho e socialmente... Em 2006 teve um acidente de trabalho que lhe causou limitações num ombro, vindo a culminar na sua reforma antecipada. Depois de ter deixado a construção civil e porque a situação financeira da família sofreu grandes alterações, procurou ter rendimentos com produção agrícola, aproveitando o património pessoal e do cônjuge. BB deixou de trabalhar na costura para ajudar AA nas tarefas agrícolas... AA não identifica como problemas as discussões ou atritos na família ou sequer nas suas relações sociais. Desvaloriza os factos ocorridos no Proc. N° … do Tribunal de Família e Menores de Comarca de .... - Io Juízo Criminal, no qual foi condenado pelo crime de ofensa à integridade física, na pena de 3 anos de prisão suspensa de sua execução por igual período, com sujeição a acompanhamento médico. Atualmente o arguido está socialmente isolado, sem referência a amigos ou conhecidos, é com o filho CC que tem mantido ligação de suporte funcional. Decaiu nos cuidados de higiene pessoal; não estava habituado a preparar as suas refeições ou a fazer quaisquer outras tarefas domésticas no espaço residencial. Com a orientação deste filho tem no presente apoio de serviços domiciliários prestados pela ...................... .... (alimentação, higiene pessoal e da casa). Com rendimentos provenientes da sua reforma, de cerca de 300€, tem recursos mínimos para assegurar a sua manutenção pessoal.
1.41 A arguida tem 67 anos de idade, residia com o marido na casa de morada de família. O marido é reformado e a arguida estava coletada nas Finanças como produtora agrícola, sendo que, desde que o marido de BB se reformou, dedicavam-se ambos à produção e venda de produtos hortícolas no mercado de ..... ... desde que casou, aos 20 anos de idade, a sua vida foi marcada por episódios de violência verbal e, por vezes, física, da parte do seu marido, quase que o desculpabilizando por este ser muito ciumento e sofrer de trauma de "guerra". BB ficou sempre em casa a cuidar dos filhos e fazia trabalhos de costura, referindo que ganhava o suficiente para se alimentar a si e aos filhos, pois o marido não tinha capacidade de gestão económica do seu ordenado... o filho mais velho, CC, completou 18 anos de\ idade, saiu de casa dos pais e foi residir com os avós maternos e começou a trabalhar para subsistir... o filho mais novo, DD... aos 16 anos de idade deixou de estudar... passando ... a residir no sótão da habitação, sendo a mãe que lhe levava as refeições, sempre às escondidas do pai... Frequenta o ensino EFA B2+3 para ficar com equivalência ao 9o. Ano de escolaridade, sendo assídua e com bom aproveitamento.
2. Factos Não Provados
Dos relevantes para a decisão resultaram não provados os seguintes factos:
2.1. que na situação a que se alude em 1.20 supra o arguido falou de forma a que BB, que ali se encontrava, ouvisse as suas palavras,
2.2. bem sabendo (a arguida) que se tratava de um instrumento especialmente perigoso,
2.3. e que a arguida actuou, pelo menos, representando a morte como efeito necessário ou possível da sua conduta, efeito esse com o qual se conformou.
3. Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados fundou-se nos seguintes elementos de prova, interpretados à luz das regras da experiência comum, da livre convicção e do valor cientifico da prova pericial quanto à questão da culpabilidade, nas declarações do arguido, que, apesar de negar pontualmente os factos concretos da acusação com que foi confrontado, no conjunto das declarações admitiu que ao longo da vida em comum chamou alguns nomes à arguida, e lhe bateu, embora, no seu critério, nunca o tendo feito com violência nem lhe tenha feito sangue, admitindo que a mulher tinha de o ajudar na agricultura, já que os filhos não o faziam, e ele não podia fazer todo o trabalho sozinho, designadamente, dizendo que nunca a obrigou a sulfatar com a máquina cheia, e, quanto a dizer à arguida que o roubava, admitindo que às vezes achava o dinheiro pouco, bem como, quanto aos desentendimentos com os filhos, declarando que ambos se apoderaram da casa no ..., que, embora situada no terreno da herança da mãe, foi ele que ajudou a construir, por isso, queixando-se que os filhos não ajudavam nos trabalhos agrícolas nem pagavam renda, e que, uns dias antes do dia 24/8, o filho mais novo o ameaçou que lhe partia a cabeça toda, bem como, admitiu ter dito ao sobrinho EE que os filhos tinham ocupado a casa (do ...) e que não pagavam nada, e, no mais, negando ter falado com a mulher sobre esse assunto nesse sábado, ou tê-la ameaçado, confirmando ter o machado com que foi agredido em casa, no armazém, e ter ingerido bebidas alcoólicas ao almoço e ter-se deitado e dormido a seguir, e, quanto aos demais factos, de que foi vítima, referindo não se recordar de nada, nas declarações da arguida que em audiência declarou serem verdadeiros todos os factos da acusação, quer os praticados pelo marido contra si, ao longo da vida em comum, quer as ameaças que ele fez de querer retirar nesse dia os filhos da casa e do armazém do ..., quer os que ela praticou naquele dia 24/8 contra o marido, justificando a prática dos últimos com o facto de estar apavorada com o que poderia acontecer nesse dia, que a sua actuação foi um acto de desespero, admitindo que foi buscar o machado ao armazém, no rés-do-chão de sua casa, quando o marido já estava a dormir, de propósito, para fazer o que fez, e que, a seguir, ligou ao filho mais velho a contar-lhe o que tinha feito e que lhe disse "vou chamar o INEM para me acudirem, porque não sei o que hei-de fazer", mais tarde tendo realizado que o que fez ao marido era desnecessário, lamentando-o, como manteve em audiência de julgamento - "não havia necessidade de ter feito aquilo que fiz, no fim dos nossos dias" - declarações coincidentes com aquelas que prestou ao JIC, em Io interrogatório judicial, nos depoimentos das testemunhas, GG Inspector da PJ que fez a inspecção ao local dos factos do dia 24/8,
E que, quando ali chegou só encontrou a arguida, tendo o arguido já sido levado pelo INEM, recolheu vestígios e fez apreensões, designadamente da roupa da arguida e do machado e sob cuja orientação foi feita a reportagem fotográfica a fls. 36 e ss.,
CC de 45 anos, filho dos arguidos, a quem a arguida ligou a contar os factos que praticou contra o pai, e, que, no mais, descreveu o ambiente familiar marcado desde a infância por discussões, agressões, ameaças, insultos e palavrões, actos praticados pelo pai sobre a mãe, e sobre si próprio e o seu irmão mais novo, DD, injustificadamente, actos do pai a que a mãe se opunha para os defender,
E, bem assim, descreveu o pai como pessoa de mau feitio, rude, em geral, com toda a gente, designadamente, vizinhos, dizendo que o pai "fazia" a mãe trabalhar demasiado, na produção dos produtos agrícolas, na apicultura e na venda no mercado, e, referindo também que uns dias antes dos factos do dia 24, teve uma discussão enorme com o pai e o repreendeu, por causa dos incómodos que causava à vizinhança com uma máquina de tiros para espantar pássaros, repreensão que o pai não aceitou, e que em tempos o pai chegou a tomar antidepressivos, tratamentos que mais tarde abandonou,
DD, de 39 anos, filho dos arguidos, que relatou ter visto algumas agressões do pai sobre a mãe, desde a infância, designadamente, uma vez, pelos seus 11 anos, viu a mãe a cair de costas, desamparada, com um soco, ou empurrão, que o pai lhe deu, e que nos últimos anos o pai sujeitava a mãe a trabalhar no campo, actividade a que o pai se dedicou após a crise na construção civil, fazendo da mãe sua escrava, sem que ela se opusesse, designadamente, obrigando-a a puxar tubos de rega, e a deitar calda nas árvores com uma máquina, em que ele próprio nunca pegou, mas cujo peso estima em cerca de 20/25 kg, e que, em suma, descreveu o pai como pessoa conflituosa, maltratante com toda a gente, pessoa que não admitia oposição às suas ideias, sujeitando-se a mãe a tudo, e, que tomou conhecimento dos factos do dia 24/8 pelo irmão, CC, que lhe ligou a contar o sucedido, tendo chegado junto da mãe antes do irmão, EE sobrinho do arguido, que relatou o encontro que no dia 24/8 de manhã teve com o tio, no mercado de ...., encontrando-o muito alterado, no decurso do qual soube que o DD, o filho, uns dias antes tinha andado à pancada com ele, tendo o arguido dito que estava farto de não ser respeitado, que um dia destes arranjava uma arma e acabava com aquela raça toda, e que ficou amedrontado com o que ouviu do tio, e na despedida, não contou nada à tia, mas disse-lhe que se precisasse de alguma coisa lhe ligasse,
FF , que foi vizinho dos arguidos na ... cerca de 40 anos, E, por essa proximidade algumas vezes ouviu discussões entre o casal, e ouviu o arguido chamar nomes à mulher, e algumas vezes o viu a bater-lhe, a última vez a dar-lhe um soco, não podendo precisar há quanto tempo, mas entre 2 a 4 anos, Esclarecendo no decurso do depoimento que o arguido também lhe deu uns tiros a si, reiterando que tal circunstância não o impediu de dizer a verdade, na prova pericial
- relatório pericial de ADN - aos vestígios hemáticos no machado e ao vestuário da arguida, material do qual resultou um perfil único idêntico ao do arguido AA a fls. 466-467;
- relatórios da perícia de avaliação do dano corporal - do GML respeitante a AA, de 20/12/2019, do exame de 4/12/2019, a fls. 576, e de 25/6/2020, do exame de 18/6/2020, a fls. 878, e de 18/8/2020, do exame de 13/8/2020, a fls. 916,
- relatório do Gabinete de Perícia Criminalística da PJ - de fls. 36 a 79, designadamente.
Fotografias das manchas hemáticas a fls. 48 a 49, 51 a 55, projecções de sangue nas paredes a fls. 56 a 59 no tecto e candeeiro a fls. 62 e 63, do machado a fls. 65 a 68, dos ferimentos que a vítima apresentava, fotos obtidas pela VMER e na sala de reanimação no Hospital, a fls. 72 a 76, e representação gráfica dos ferimentos que AA apresentava, com base nas fotos de fls. 77, na prova documental
- comunicação de notícia de crime, a fls. 3 a 4;
- relatório de Inspecção judiciária, a fls. 5 a 10;
- auto de apreensão do machado, a fls. 11;
- auto de notícia, da GNR, a fls. 81 a 84;
- documentos do registo da ocorrência CODU/TNEM - de fls. 194 a 196, donde resulta a chamada do número …., para o 112 pelas 16hl5m,
- transcrição da gravação da chamada para o 112 - entre o número …, usado pela arguida, e o operador do INEM, a fls. 380, na qual é solicitada a comparência do INEM, em virtude de ter atirado o machado à cabeça do marido, da qual mais resulta não saber a arguida indicar qual o estado em que se encontrava a vítima,.--"
- fotografias de fls. 168 e 169, da listagem de chamadas do telemóvel de CC, filho mais velho dos arguidos, no dia 24/8, donde consta recebida uma chamada identificada como sendo da "Mãe", proveniente do número …, às 16hllm, ou seja, chamada efectuada pela arguida imediatamente antes da chamada para o CODU, às 16hl5m, '- relatório de episódio de urgência - respeitante a AA a fls. 100 a 108, do Centro Hospitalar da Universidade do ..., Unidade Hospitalar de ...., com admissão no dia 24/8/2019 pelas 17hl2m,
- relatório de urgência - respeitante a AA, de fls. 213 a 218, do Centro Hospitalar ..., Hospital de..., de 25/8/2019, às 12h23m
- informação clínica de fls. 354 a 365 -
- fotografias de AA, a fls. 368 e 369, obtidas a 24/9/2019, em unidade de cuidados continuados, onde são patentes as cicatrizes resultantes,
- informação de regresso de AA da unidade de Cuidados Continuados ao domicílio a 23/10/2019, a fls. 370,
- fotogramas de chegada e saída dos arguidos ao mercado municipal de .... no dia .../8/2019, entre as 05h42m e as 14hl0m, de fls. 383 a 394,
- declaração da Unidade de Cuidados Continuados … de internamento entre .../09/2019 e 23/10/2019, de fls. 402 a 405;
- nota de alta de AA - do Hospital de .... para a Unidade de Cuidados Continuados ..., a fls. 406,
- informação clínica referente a assistência médica prestada a AA - do Hospital de ...., a fls. 411 a415, do Hospital de... a de fls.469-488,
- assento de casamento, dos arguidos, a fls. 98,
- assentos de nascimento dos filhos dos arguidos - CC e DD - de fls. 454 e 458,
- lista de episódios médicos respeitantes a AA - do Centro Hospitalar ..., a fls. 821, conjunto de prova que, respeita aos factos praticados pelo arguido AA conferiu suporte às declarações que BB, como ofendida, prestou em audiência de julgamento, ao reportar o teor da acusação à verdade dos factos, descrição que se coadunou com os depoimentos das testemunhas CC e DD, seus filhos, e do sobrinho EE e o vizinho FF, e, acabaram por se coadunar também com as declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento, posto que, apesar de negar pontualmente a extensão das imputações, das reservas que opôs, resulta, no essencial, a admissão dos factos descritos na acusação tal como foram relatados pelos filhos, CC e DD, pelo sobrinho EE e pelo vizinho FF, conforme também com o quadro factual relatado pela arguida, em sede de Io interrogatório judicial, ao descrever as circunstâncias em que agiu, prova em face da qual não se suscitaram nenhumas dúvidas acerca das situações ocorridas durante a convivência marital do arguido com a arguida enquanto ofendida, com os contornos plasmados nos factos provados, correspondentes à versão da mesma. E que, no que respeita aos factos praticados pela arguida BB resultou inequívoca das declarações da arguida prestadas em audiência de julgamento, conformes com as que prestou ao JIC em sede de Io interrogatório judicial, e, bem assim, também resultam do depoimento do sr. Inspector da PJ, do auto de notícia, da inspecção judiciária/reportagem fotográfica e apreensões efectuadas pela PJ a fls. 36 e ss., da transcrição da chamada para o 112, e da intervenção do INEM, bem como, do depoimento das testemunhas CC e DD,
Resultando a prova dos factos respeitantes à intenção e vontade de matar dos factos da arguida ter escolhido a cabeça do ofendido para sobre ela desferir o machado, do número de golpes/pancadas que desferiu, e da extensão da projecção do sangue resultante deles, designadamente, nas paredes e no tecto, reveladora da energia e da intensidade dos mesmos, de ter escolhido o momento em que o arguido estava a dormir para o fazer, sabendo que dessa forma anularia qualquer hipótese do ofendido reagir e a enfrentar,1 conforme expressamente declarou em 1o interrogatório judicial, factualidade donde resulta, com clareza, a motivação da arguida, que, na disputa que opunha os filhos e o marido, relacionada com a ocupação que os filhos faziam da casa de habitação e do armazém (CC e DD, respectivamente) construções erigidas no ..., em terreno agrícola que a arguida herdou dos pais, ocupação sem qualquer contrapartida, uma vez que nenhum deles colaborava ou ajudava os pais nos trabalhos agrícolas do terreno circundante, nem pagava qualquer renda, entendendo os filhos que por essa ocupação, não deviam contrapartidas nem satisfações ao pai, por ser o terreno daquelas edificações herança da mãe, e entendendo o pai, ao contrário, que, por ter sido ele quem construiu com o seu 'esforço e dinheiro as referidas edificações no terreno da mulher, alguma contrapartida por essa ocupação lhe era devida - nessa disputa, perante a eminência/exigência de resolução dessa disputa nessa tarde, que o marido anunciara ter de ser resolvida nessa tarde, após o almoço, no ..., perante os filhos, tendo a arguida tomado o partido dos filhos contra o marido, filhos que desde a infância sempre protegera dos excessos do pai, naquela disputa, naquela situação tendo optado por "eliminar" o marido, matar o marido, dessa forma, solucionando definitivamente a discórdia, a seu favor e dos filhos, ponderação que também encontra arrimo nas declarações da arguida ao JIC em sede de primeiro interrogatório judicial, declarações atendíveis, pelo menos, para melhor ponderação da restante prova produzida (vd. neste sentido o Ac. do TRE de 7/2/2017, relator Sr. Des. João Amaro, processo 341/15.2JAFAR.E1 acessível em www.dgsi.pt) finalidade de eliminar/matar o marido que só não foi atingida por deficiente execução técnica, imperícia, como é patente na representação gráfica de fls. 77 e na fotografia de fls. 369, prova em conformidade com a qual foram os factos da acusação julgados provados na sua totalidade, apenas se tendo expurgado a acusação dos segmentos de formulação/teor conclusivo "de forma a que BB, que ali se encontrava, ouvisse as suas palavras ", "bem sabendo que se tratava de um instrumento especialmente perigoso", e que a arguida actuou, "pelo menos, representando a morte como efeito necessário ou possível da sua conduta, efeito esse com o qual se conformou", sendo certo que, nesta última parte, resultou provado que a arguida agiu de forma livre deliberada e consciente, conhecendo e querendo o resultado proibido.
- Quanto aos factos dos pedidos de indemnização civil -Quanto aos factos do PIC do Centro Hospitalar Universitário do ... EPE, CHU... A convicção resultou da prova documental referida supra e da factura de fls. 718, comprovativa dos custos da intervenção.
Quanto aos factos do PIC do Centro Hospitalar Universitário ... EPE. A convicção resultou da prova documental referida supra e da factura de fls. 803, comprovativa dos custos da intervenção.
Quanto à situação pessoal, social e económica dos arguidos a convicção resultou dos relatórios sociais e dos CRCs,
e, quanto ao arguido AA, também da certidão do NUIPC …. respeitante a condenação por crime doloso, de ofensa à integridade física qualificada (praticado contra FF, testemunha nos presentes autos) em pena de três anos de prisão suspensa em regime de prova, declarada extinta em 2014, pelo decurso do período de suspensão, e pelo cumprimento das condições impostas, condenação já omissa no CRC, mas cuja junção aos autos se ordenou, por força e para esclarecimento da referência feita a essa condenação no relatório social do arguido.
Os recursos ordinários perante o Supremo Tribunal de Justiça visam exclusivamente o reexame da matéria de Direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios elencados no artigo 410º nº2 do CPP, os quais, porém, não podem constituir fundamento do recurso.
Da análise de todo o teor da decisão recorrida constata-se que, considerada por si só ou com as regras da experiência comum, aquela não contém qualquer dos vícios do artigo 410º nº2, ou nulidade que não deva considerar-se sanada - nº3 do mesmo dispositivo.
Como é sabido, o âmbito de um recurso é delimitado pelo teor das Conclusões apresentadas pelo/a recorrente.
Nas Conclusões apresentadas nestes Autos, a recorrente suscita as seguintes questões que importa apreciar:
a) Enquadramento jurídico-penal dos factos provados;
b) A medida da pena aplicada.
a)
A recorrente sustenta que os factos dados como assentes não integrariam o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, pelo qual foi condenada, por entender que estes configurariam antes um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, do artigo 145º nº1 al. a) e nº2 do C.Penal, uma vez que, no seu entender, “dos factos provados não resulta ser possível afirmar que, a Recorrente tenha mantido a aptidão de produzir ofensa à vida da vítima” em virtude de, segundo argumenta, a recorrente ter utilizado “um meio inidóneo para produzir a morte”.
A recorrente sustenta que a matéria fáctica provada não inclui quaisquer factos que sejam suscetíveis de revelar a «especial censurabilidade ou perversidade» exigida para a qualificação do tipo, mas antes aquela integra “circunstâncias que, diminuindo acentuadamente a culpa da recorrente” determinam a sua subsunção à figura do crime de homicídio privilegiado, do artigo 133º do C.Penal.
Fundamenta esta sua alegação no facto de a recorrente ter agido “dominada por uma compreensível emoção violenta” em função da circunstância de os factos provados darem conta de “antecedentes”, “motivações subjetivas” ou “o estado de afeto (angústia, depressão, revolta interior por contingências não domináveis)” que, em seu entender, terão condicionado “o comportamento da Recorrente em termos de não exigibilidade”, pois “foi vítima de forma reiterada e persistente de violência doméstica, quer física, quer emocional, e social, tendo sido sujeita a trabalhos forçados, e subjugação durante mais 40 anos.”
Retomando o Acórdão recorrido, no que à matéria fáctica provada respeita e em função do alegado no tocante ao enquadramento dos factos dos Autos como um crime de ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145º nº1 al. a) e nº2 do C.Penal, constata-se que este dá por assente que:
“1.32 A arguida conhecia perfeitamente as características do machado que utilizou, e que a sua utilização da forma supra descrita era susceptível de produzir a morte do ofendido.
1.33 Ao agir da forma supra descrita, nomeadamente ao desferir várias pancadas com o machado na cabeça do ofendido, a arguida actuou com intenção de o matar.
1.34 A região atingida e a natureza do machado utilizado eram circunstâncias adequadas a causar a morte de AA, o que só não ocorreu por razões estranhas à vontade da arguida.”
Esta matéria fáctica, de forma óbvia e patente, não sustenta de nenhuma forma a tese defendida pela Recorrente, na medida em que se mostra provado que agiu com intenção de matar a vítima, utilizando um instrumento adequado a produzir tal efeito, o que não veio a suceder por razões estranhas à sua vontade.
Estes factos não integram o elemento subjetivo do tipo criminal das ofensas corporais, uma vez que este se consubstancia na vontade de atingir e ofender o corpo ou a saúde física e/ou psíquica da pessoa ofendida, e daqueles factos não resulta ter sido essa a vontade da recorrente.
Nesta conformidade, conclui-se pela improcedência do alegado quanto ao supracitado enquadramento jurídico-penal.
Do mesmo passo se entende que a matéria fáctica dada como provada não inclui factos que possam sustentar a alegação de que a Recorrente agiu dominada por uma compreensível emoção violenta e, como tal, ser a sua conduta subsumida à previsão do artigo 133º do C.Penal.
Pois que, a figura do homicídio privilegiado prevista naquele normativo assenta numa diminuição da culpa justificada pela existência de uma denominada “compreensível emoção violenta”.
Ora, a esfera de compreensão deste conceito implica uma perturbação psíquica do/a agente, ainda que transitória ou passageira, determinada por uma ação, ou omissão, da vítima do homicídio.
Contudo, e sem embargo da relevância dos factos provados relativos á continuada sujeição a maus tratos conjugais de que a recorrente foi alvo, o certo é que inexiste na matéria fáctica dada como assente o necessário nexo causal entre o crime de que a Recorrente foi vítima e o crime de que foi autora.
Na verdade, a existência de uma qualquer perturbação psíquica é um facto material que deve ser objeto de prova, designadamente de prova pericial, a fim de que se possa aferir não apenas a sua verificação, mas também o grau e modo de afetação da integridade psíquica de uma pessoa.
Pois, muito embora resulte da experiência comum que a sujeição a maus tratos conjugais desencadeia variadas e múltiplas sequelas físicas e psíquicas, na apreciação concreta em juízo da medida da culpa da(s) conduta(s) de quem age na sequência ou no contexto daqueles maus tratos é necessário dispor de factos constantes da matéria provada, nos quais se possa fundar um juízo valorativo sobre o modo e a intensidade dessas consequências.
Ora, “in casu” da matéria fáctica dada como assente, isto é, do conjunto dos factos provados e não provados, não resulta que tal matéria tivesse sido sequer objeto de alegação. O que, naturalmente, implica que tal se não possa constituir como um vício de omissão de pronúncia ou mesmo de insuficiência da matéria de facto para a decisão de Direito, nos termos doi disposto no artigo 410º nº2 do CPP.
Na verdade, em casos como o dos Autos, em que a vítima de maus tratos conjugais mata, ou tenta matar, o seu agressor, a Doutrina([1]) enquadra essa conduta no âmbito do Stress Pós-Traumático, sob a denominação de “síndrome da mulher batida”.
Todavia, a comprovação judicial de uma tal síndrome só pode ser feita por perícia médica psiquiátrica através de um competente diagnóstico que ateste também o modo e a medida de tal afetação no estado de espírito de quem a sofre.
Nesta conformidade se considera inexistirem “in casu” factos nos quais se possa alicerçar a comprovação de uma “compreensível emoção violenta” como motivadora da conduta da recorrente que, diminuindo-lhe a culpa configure a sua conduta no âmbito da previsão do artigo 133º do C.Penal.
Pelo que, em função do exposto se conclui pela improcedência do alegado pela recorrente.
Esta alega, ainda, inexistirem factos “suscetíveis de revelar a «especial censurabilidade ou perversidade» exigida pelo n° 1 do artigo132° C. Penal e, como tal, não dever ser qualificado o crime de homicídio, na forma tentada, que lhe é imputado.
A qualificação da condenação da recorrente pelo citado crime assenta na circunstância de ter praticados os factos mediante a utilização de um meio insidioso, justificando o Acórdão recorrido a existência de especial perversidade e censurabilidade da sua conduta da seguinte forma: “tendo resultado provado que a arguida esperou que o marido adormecesse após ter ingerido 3 copos de vinho ao almoço, para ir ao armazém, no rés-do-chão da residência, buscar o machado, e que aproveitou o facto do marido se encontrar a dormir para lhe desferir sobre a cabeça os sete golpes/pancadas que desferiu, esta atitude da arguida configura um ataque súbito e traiçoeiro, atingindo a vítima descuidada e confiante enquanto dormia, sem sequer se aperceber da sua presença.”
Como é sabido, a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente assenta na existência de um maior grau de culpa, ilustrada esta na verificação de, pelo menos uma, das circunstâncias elencadas no artigo 132º do C.Penal.
Teresa Serra, no seu paradigmático estudo sobre esta matéria ([2]) refere que : “Dominantemente, que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto. “
(…) Culpa é a censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132º trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal forma graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.”
Este entendimento tem sido, aliás, o seguido pela Jurisprudência deste Alto Tribunal. Por todos, veja-se o Acórdão de 17.04.2013 ([3]) : “É entendimento sedimentado deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa – vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 08-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 258 (os factos apontados no n.º 2 não são elementos constitutivos de um homicídio especial, circunstância modificativa do tipo fundamental; são apenas o indício, confirmável ou não, de uma intensa culpa); de 07-12-1999, BMJ n.º 492, pág. 168 e CJSTJ 1999, tomo 3, pág. 234 (os exemplos regra, como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar (ou não) à conclusão da especial censurabilidade ou perversidade); de 21-06-2006, processo n.º 1913/06 (o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado por vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º); de 02-04-2008, processo n.º 4730/07; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGDR.C1.S1, CJSTJ 2010, tomo 2, p. 227; de 16-12-2010, processo n.º 231/09.8JAFAR.S1; de 24-03-2011, processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1; de 13-07-2011, processo n.º 758/09.1JABRG.S1, CJSTJ 2011, tomo 2, p. 204, todos da 3.ª Secção; de 23-11-2011, processo n.º 508/10.0JSFUN.S1 e de 23-02-2012, processo n.º 123/11.0JAAVR.S1, da 5.ª Secção.”
“In casu” a já referida “ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto” apontam para existência de um maior grau de censurabilidade da conduta da recorrente, justamente pelo contexto dos factos dados como provados em que se materializa a sua conduta.
Assim, julga-se igualmente improcedente o alegado pela recorrente quanto à não qualificação do crime que lhe é imputado.
b)
A recorrente insurge-se também contra a pena que lhe foi aplicada – 5 anos e 9 meses de prisão – por, no seu entender ser “muito severa, imerecida, excessiva injusta, desproporcional e desadequada, violando as exigências de preservação da dignidade humana, constitucionalmente consagradas” bem como ser “manifestamente excessiva (…) por se encontrar demasiado próxima da moldura penal máxima prevista.”
É sabido que, de acordo com o estipulado no artigo 71º do Código Penal, a medida concreta da pena a aplicar a um/a Arguid/a deve ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra si.
Na definição do conteúdo de cada um destes três parâmetros legais – culpa do agente, exigências de prevenção e ponderação das circunstâncias gerias atenuantes ou agravantes - é curial ter em atenção, que, no tocante à culpa é imperioso observar o disposto no artigo 40º nº2 do Código Penal, que impõe ser necessário que a sua medida não exceda a da pena.
A culpa constitui, como ensina Figueiredo Dias ([4]), “um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível.”
Já no tocante às exigências de prevenção o mesmo Mestre indica que ([5]): “Através do requisito que sejam levadas em conta as exigências de prevenção dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”
Discorrendo sobre este conceito, ensina que ([6]) “«Prevenção» tem no contexto quer aqui releva – só pode ter – o preciso sentido quando se discute o sentido e as finalidades de aplicação de uma pena, quando se discute, numa palavra, a questão das finalidades das penas. Dito por outras palavras «prevenção» significa, por um lado prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição.”
Finalidades da punição essas que, de acordo com o disposto no artigo 40º nº1 do Código Penal, são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Finalmente, e em função do disposto no nº2 do já referido artigo 71º do Código Penal, há que ter em atenção todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime depõem a favor ou contra o agente.
De entre estas relevam o grau da ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, o grau de intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais e situação económica do agente, as suas condutas anteriores e posteriores aos factos em apreço, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita.
Aplicando estas posições doutrinais a Jurisprudência tem vindo a entender que: “o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.
Para avaliar da medida da pena há que indagar, no caso concreto, factores que se prendam com o facto praticado e com a personalidade do agente que o cometeu.
Como factores atinentes ao facto e por forma a efectuar-se uma graduação da ilicitude do facto, podem referir-se o modo de execução deste, o grau de ilicitude e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o grau de perigo criado e o seu modo de execução.
Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins ou motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos.
No que tange ao agente, o legislador manda atender às condições pessoais do mesmo, à sua condição económica, à gravidade da falta de preparação para manter uma conduta ilícita e a consideração do comportamento anterior ao crime.”([7]).
Na determinação da medida concreta da pena fixada o Acórdão recorrido teve em especial consideração as seguintes circunstâncias: “(…) a ilicitude da conduta - elevada, manifestada na forma de execução, designadamente no número de pancadas desferidas, a intensidade do dolo - na forma intensa do dolo directo; a gravidade das consequências - muito elevada, revelada na importância das lesões e sequelas causadas ao ofendido, designadamente, na privação parcial resultante do uso dos sentidos; a conduta anterior e posterior da arguida”
E, tendo em atenção a moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado na forma tentada - 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão a 16 anos e 8 meses de prisão - o Acórdão recorrido entendeu dever fixar ao recorrente uma pena especialmente atenuada de 5 anos e 9 meses de prisão.
Da análise e ponderação de todos os factos relevantes para a determinação da medida da pena acima elencados, tendo em atenção os parâmetros legais mencionados, mormente os respeitantes à conduta posterior da recorrente, designadamente a que é referida na Motivação de facto da decisão recorrida que indica não só ter a recorrente confessado a prática dos factos como no momento imediato à ocorrência da tentativa de homicídio «ligou ao filho mais velho a contar-lhe o que tinha feito e que lhe disse "vou chamar o INEM para me acudirem, porque não sei o que hei de fazer", mais tarde tendo realizado que o que fez ao marido era desnecessário, lamentando-o, como manteve em audiência de julgamento - "não havia necessidade de ter feito aquilo que fiz, no fim dos nossos dias"», considera-se ser de diminuir sensivelmente a pena aplicada e fixar à recorrente uma pena de 5 anos de prisão.
Face à pena ora determinada, impõe-se ponderar a eventual aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.
Para tal cabe recordar que, como ensina o Prof. Figueiredo Dias (3) “ A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma como se exprime ZIpf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».
Como se sabe, a aplicação desta pena de substituição está dependente da verificação simultânea de dois pressupostos: sendo um de natureza formal – que a pena de prisão já fixada não seja superior a 5 anos – e outro de natureza material, que se traduz na comprovação de factos relativos à personalidade do/a agente e às circunstâncias dos ilícitos em causa que possam fundar um juízo de prognose favorável relativamente à conduta futura do/a agente.
Ora, verificando-se nos Autos o já referido pressuposto formal, a questão em apreço é a de saber se da matéria fáctica dada por assente se pode ou não extrair um juízo de prognose favorável relativamente à conduta futura da recorrente.
O entendimento, que se perfilha e subscreve, adotado pela Jurisprudência para avaliar tal questão assenta essencialmente numa avaliação casuística: “(…) Para aplicação da suspensão da execução da pena é necessário, em primeiro lugar, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos. Certo é que o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do condenado deve ter em consideração, como a letra da lei impõe, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.”([8])
Dos factos dados como assentes atinentes às condições pessoais e sociais da recorrente, bem como à sua conduta anterior e posterior aos factos, considera-se que a simples censura do facto e a meaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Nesta conformidade decide-se ser de aplicar à recorrente a pena de suspensão da execução da pena que se entende dever fixar em 5 anos, nos termos do disposto no artigo 50ºnº1 do C.Penal.
VI
Termos em que se acorda em, concedendo provimento ao recurso, reduzir a medida concreta da pena aplicada ao recorrente e fixá-la em 5 anos de prisão, cuja execução se suspende por um período de 5 anos.
Sem Custas – artigo 513º CPP
Emitam-se os competentes mandados de libertação da recorrente, cessando de imediato a medida de coação de prisão preventiva a que se encontra sujeita.
Feito em Lisboa, aos 19 de maio de 2021
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Dec-Lei nº 20/2020 de 1 de maio, consigno que o presente Acórdão tem voto de conformidade do Ex.mo Adjunto, Juiz Conselheiro Sénio dos Reis Alves.
Maria Teresa Féria de Almeida (relatora)
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[1] Por todos, ver Leonore Walker “The Battered Women Syndrome and Self Defense” - Notre Dame Journal of Law, Ethics & Public Policy – Vol 6 – Issue 2
[2] "Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena", Almedina, 1998, pág.63 e 64.
[3] Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1, Rel. Cons.R.Borges
[4] “As Consequências Jurídicas do Crime” – Coimbra, 2005 - pag.229
[5] Ibidem, pag.215
[6] Ibidem pag.216
[7] Ac. STJ 30.11.2016 – Proc. nº444/15.3JAPRT.G1S1 – Rel. Pires da Graça
[8] Ac. do STJ de 04.01.2017 – Proc. nº318/15.88JELSB.S1 – Rel. Oliveira Mendes www.dgsi.pt