SENTENÇA
COMANDO DECISÓRIO
INTERPRETAÇÃO
LIQUIDAÇÃO
OBRIGAÇÃO LIQUIDANDA
Sumário

I. A interpretação do dispositivo de uma sentença pauta-se nomeadamente pelos seguintes parâmetros: aplicação das normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (Artigos 236º a 238º ex vi Artigo 295º do Código Civil); fundamentos da causa de pedir e do pedido, os quais constituem antecedentes lógicos da decisão; apreensão do iter genético da decisão, espelhado no desenvolvimento e vicissitudes do processo; outras circunstâncias que possam ser auxiliares da interpretação.
II. Caso o dispositivo da sentença determine uma liquidação subsequente, há que aferir se os montantes alegados - no âmbito da liquidação - se subsumem à obrigação liquidanda, o que pressupõe a interpretação desta.
III. Num contexto em que foi assumido e declarado, expressamente, pelo tribunal a quo que o contrato de distribuição exclusiva foi usurário e que os benefícios para a autora foram manifestamente excessivos face às suas contraprestações, obrigar a ré – no âmbito da subsequente relação de liquidação – a entregar à autora os valores de € 510,172 e € 145.725,54 (correspondentes a margens na venda de mercadorias que fez à autora durante a execução do contrato) corresponderia, na prática e em termos finais, a amplificar e perpetuar tal relação contratual iníqua e desequilibrada em prol da autora.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 24.2.2011, BB. intentou ação declarativa de condenação contra DD, e contra JMCM, pugnando pela procedência e, consequentemente, por serem os RR., solidariamente, condenados ao pagamento à A. da quantia global de €3.187.493,74 a título de enriquecimento sem causa nos termos do valor apurado na conta corrente após a cessação do contrato de distribuição exclusiva, prejuízos emergentes e lucros cessantes pela rescisão injustificada do contrato de distribuição exclusiva, nos seguintes termos:
A) Valor a favor da A. na conta corrente existente com a 1ª R. - €1.237.242,02;
B)- Investimentos em Marketing e publicidade e aquisição de refrigeradores verticais; máquinas de cerveja; e outra maquinaria - €245.251,72;
C) Lucro cessante e danos futuros relativamente a vendas legitimamente expectáveis e não realizadas, apuradas entre o momento da rescisão injustificada do contrato de distribuição exclusiva e a data fixada para o respetivo termo (Novembro de 2013) - €1.705.000,00:
D) Responsabilidades que poderão ser assacadas à A. pelo incumprimento de obrigações contratualmente assumidas perante terceiros no pressuposto e expetativa de cumprimento do contrato de distribuição exclusiva com a 1ª R., a apurar em execução de sentença;
E)- A que acrescem juros de mora desde a data em que são devidas as referidas quantias até ao cumprimento das obrigações restituitória e/ou indemnizatória, à taxa legal.
Funda o seu pedido, em síntese, no facto do 2º R., na qualidade de gerente da 1ª R. ter rescindido, de forma ilegal, o contrato de distribuição exclusiva que os ligava e, com isso, ter enriquecido à sua custa, o que, concomitantemente, lhe causou prejuízos de que quer ressarcir-se.
Os Réu contestaram:
. pugnando pela ilegitimidade da A.;
. excepcionando o não cumprimento do contrato aqui em causa e impugnando os fac­tos alegados pela A.; e
. reconvindo formularam pedido que declare a nulidade do contrato, seja por violação do regime das cláusulas contratuais gerais ou porque o contrato é usurário e, consequentemente, a condenação da A. a pagar à 1ª R.:
a) quantia de €745.651,32, por ser esse o valor correspondente à diferença entre o valor efectivamente pago pela A. pela produção da 1º R. e pelos serviços comerciais e de logística prestados (e que foi inferior aos preços reais de produção, comercial e de logística) e o que deveria ter sido pago pela A. à 1ª R. por corresponder aos preços reais de produção, comercial e de logística, acrescido dos juros de mora à taxa legal imputados até ao integral pagamento desse valor;
b) a quantia de €793.809,48, por ser esse o valor correspondente aos serviços comerciais e de logística que esta prestou em benefício da A. entre os meses de Janeiro a Setembro de 2010, acrescido de juros de mora à taxa legal imputados até ao integral pagamento desse valor; e
c) serem compensados os créditos de que são titulares a A. e a 1ª R., na parte correspondente ao montante ora reclamado pela A., e, operada a devida compensação, verificar-se que a 1ª R. nada deve à A., antes pelo contrário ficará a A. a dever à 1ª R. a quantia de €302.356,22.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nos termos do exposto, julgo a ação parcialmente procedente e a reconvenção totalmente procedente e em conformidade:
A).Absolvo o R. JMCM dos pedidos contra eles formulados pela A.;
B).Condeno a R. DD, a pagar à A. BB. o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo aos aportes financeiros que fez àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
C).Condeno a R. BB., a pagar à A. DD o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo ao valor da faturação do produto e dos serviços prestados por esta àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro), acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
D).Determinar a compensação entre os saldos que se apurem segundo as alíneas B). e C)., condenando desde já a BB. ou a DD, consoante uma ou outra ali acabem como credoras deficitárias, a pagar à outra a parte excedente e não compensada, acrescida dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
E).No mais vai a R. DD absolvida.»
Tal sentença foi confirmada por acórdão desta Relação e Secção de 24.2.2017 ( fls. 1356-1376).
Em 5.12.2017, BB. veio promover contra a DD, a liquidação  da condenação genérica preconizada na sentença proferia em 7.3.2016 (fls. 1257-1275), integralmente confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação de 24.2.2017 (fls. 1356-1376), pedindo, em suma, que se fixe a seu favor o saldo no montante de €1.479.772,35, condenando-se a R. a pagar-lhe tal montante.
Para tanto, avançou com as parcelas que devem ser consideradas para o apuramento do saldo da conta corrente existentes entre as partes e expor o método que deve ser usado para o efeito.
A Ré veio deduzir oposição à liquidação, impugnando a fórmula preconizada pela A., avançando no sentido de, obedecendo ao que está determinado na sentença, do apuramento dos saldos da conta, condição imprescindível para se alcançar o saldo e a favor de quem ela penderá. Arrolou testemunhas e pediu a realização de uma perícia colegial.
Terminados os articulados, foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador que deu por verificados os pressupostos processuais, fixou o valor da causa, definiu o objeto dos autos, enunciou os temas de prova e  determinou a realização de uma perícia com o fim de dar resposta aos temas de prova desenhados.
Constituído o colégio pericial,  a perícia foi ordenada e com o seguinte objeto:
1.Apurar o valor dos aportes financeiros (aqui se incluindo a participação na aquisição de matéria prima e notas de créditos a favor dela) feitos pela BB. à DD no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010;
2.Apurar o valor da faturação feita pela DD à BB. quanto aos produtos e serviços prestados por aquela a esta no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro);
3.Determinação do saldo entre as parcelas 1. e 2. e a favor de quem deve ser atribuído.”.
Porque, com a apresentação do primeiro relatório se suscitaram dúvidas interpretativa quanto ao seu objeto, foi proferido o seguintes despacho:
“Determinou-se, nos autos, uma perícia com o fim de:
1.Apurar o valor dos aportes financeiros (aqui se incluindo a participação na aquisição de matéria prima e notas de créditos a favor dela) feitos pela BB. à DD no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produtos e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010;
2.Apurar o valor da faturação feita pela DD à BB. quanto aos produtos e serviços prestados por aquela a esta no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro);
3.Determinação do saldo entre as parcelas 1. e 2. e a favor de quem deve ser atribuído.
Não me parece que a interpretação do objeto da perícia seja difícil...
O que se pretende saber é, por um lado, o valor que a BB. aportou à R. DD..seja em numerário ou espécie (e aqui se reconduz a expressão produtos, o que inclui matéria prima e compostos, e serviços sejam eles quais forem)...e, por outro, apurar o valor da faturação feita pela DD à BB. quanto aos produtos e serviços prestados (ou seja tudo o que lhe forneceu, o que inclui matéria prima e produtos compostos, sejam eles quais forem e serviços que prestou) por aquela (R.) a esta (A.) no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços (tudo) a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro).
Finalmente...apurar-se o saldo entre uma e outra parcela e a favor de quem pende.
O relatório pericial apresentado - refª 3539467 - não é consensual quanto a uma questão que assume relevância e atinente aos fornecimentos da R. à A., nomeadamente porque as faturas que emitiu comportam lucro...facto que contraria o objeto da perícia, o que veio a ser questionado pela A. na peça em epígrafe.
Efetivamente...a A. questiona a metodologia da perícia, apontando-lhe afastamento do seu objeto e pede esclarecimento aos Srs. Peritos e a correção que entende dever fazer-se.
Está, assim, justificada a dúvida da A. e, nessa medida, notifiquem-se os Srs. Peritos da reclamação aqui em apreço para que, esclarecidos acerca do que se pretendeu obter com ela, se virem pronunciar justificando a sua posição ou, assentes no que agora se apontou, a direcionarem no sentido com que foi preconizada.
Notifique.”.
Com a perícia concluída, notificaram-se as partes para se pronunciarem sobre a necessidade de se levar por diante diligência de inquirição de testemunhas, que veio a ser dispensada e determinada a notificação das partes para alegarem por escrito.
Após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nos termos do exposto, julgo este incidente parcialmente procedente e em conformidade:
A). Fixo, quanto ao ponto B. da sentença proferida nestes autos, o saldo de €7.816.872,65 (sete milhões oitocentos e dezasseis mil oitocentos e setenta e dois euros e sessenta e cinco cêntimos) a favor da BB.;
B). Fixo, quanto ao ponto C. da sentença proferida nestes autos, o saldo de €7.042.731,73 (sete milhões quarenta e dois mil setecentos e trinta e um euros e setenta e três cêntimos) a favor da DD;
C). Na concretização da compensação determinada no ponto D. da sentença proferida nestes autos, declarar que sobrevem a favor da A. BB. o saldo de €774.140,92 (setecentos e setenta e quatro mil cento e quarenta euros e noventa e dois cêntimos)...montante que a R. DD àquela pagará, acrescido dos juros de mora comerciais legais a contar da data desta liquidação e até efetivo e integral pagamento...como já ali determinado;
D). No mais vai a R. DD absolvida. »
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a Ré, formulando, no final das suas alegações, as seguintes:
«CONCLUSÕES:
a) Pelo presente processo pretendia-se liquidar a sentença proferida e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a qual declarou inválido o contrato celebrado entre as Partes e, por essa razão, nulo com a decorrência a que se reporta o art°. 289°, n°. 1 do Código Civil.
b) A declaração de nulidade, nos termos do n.° 1 do art. 289.° do Código Civil tem como efeito a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, a entrega do valor correspondente.
c) Assim, pela referida sentença, e com relevância para o presente processo, ficou decidido o seguinte:
“a) Condenar a Ré DD, a pagar à Autora BB. o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (art°.609°, n°.2 do CPC) relativo aos aportes financeiros que fez àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
b) Condenar a Ré BB., a pagar à Autora DD o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (art°.609°, n°.2 do CPC) relativo ao valor da faturação do produto e dos serviços prestados por esta àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro), acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
c) Determinar a compensação entre os saldos que se apurem segundo as alíneas A) e B), condenando desde já a BB. ou a DD, consoante uma ou outra ali acabem como credoras deficitárias, a pagar à outra a parte excedente e não compensada, acrescida dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento.”.
d) De forma a liquidar os valores acima referidos, e porque o Tribunal a quo, atendendo à complexidade envolvida, reconheceu não ter os conhecimentos técnicos necessários para analisar a questão, foi ordenada a realização de uma perícia colegial.
e) Com o objeto determinado no respetivo despacho saneador:
"Na perícia que agora se avança pretende-se obter com rigor toda a imputação financeira feita pela A. à R. (nela se incluindo as verbas que lhe entregou, a participação na aquisição de matéria prima e nas notas de créditos que da R. recebeu) e levar essas verbas à conta corrente e...doutra banda...pretende-se saber a exata quantificação da faturação da R. à A. por conta dos produtos e serviços que lhe prestou... devendo esses produtos e esses serviços serem faturados a preço de custo (aqui se contabilizando despesas com pessoal; as administrativas; financeiras e todas as que estão associadas à produção)...onde não exista lucro para a R. mas onde se computem todas as parcelas que devem ser tidas em conta para se determinar o custo.".
f) Assim, de acordo com a referida perícia, todos os peritos deram por bom o saldo de € 1.252.959,10, a favor da Apelada, que o apuramento da Apelante e a sua contabilidade expressam relativamente à data de 31 de dezembro de 2011.
g) Ao longo do processo o Tribunal frisou, sempre, que no apuramento do saldo a favor da Apelante relativo ao valor da faturação do produto e dos serviços prestados por esta à Apelada o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas seria o de custo (com isto se significando sem lucro).
h) Ora, empresarial e contabilisticamente, o que é que significa "sem lucro"?
i) Para se perceber o que significa “sem lucro” há que entender, primeiramente, o que significa, empresarial e contabilisticamente, o conceito de "margem". “Margem” é a diferença entre preço de venda menos preço de custo (podendo ainda falar-se em margem bruta e margem líquida).
j) Para se obter “lucro”, é necessário obter-se para além do pagamento do preço de custo, uma margem suficientemente grande que cubra todos os restantes gastos da sociedade.
k) Assim, na composição do preço de venda de um produto, as empresas devem considerar o preço das matérias-primas ou das mercadorias adquiridas, acrescidas dos respetivos encargos adicionais de compra (transporte, seguro, taxas, etc.), bem como dos encargos com a mão-de-obras e dos encargos gerais de fabrico (eletricidade, combustíveis, depreciação de equipamentos, etc.) e de uma margem que cubra todos os restantes encargos da empresa (administrativos, financeiros, etc.).
l) E, finalmente, uma margem que será o “lucro” da empresa.
m)   Ora, a maioria dos Peritos considerou, e bem, que, quando o Tribunal a quo ordenou que no apuramento do saldo a favor da Apelante o preço dos produtos e de serviços a incluir nas faturas seria o de custo (com isto se significando sem lucro), apenas esta última parcela da “margem” não deveria ser considerada, para que o resultado obtido não fosse nem lucro nem prejuízo.
n) Isto porque, tal como foi referido no relatório de peritagem, e citando o processo, a Apelada seria uma sociedade "veículo", sendo entendimento da maioria dos Peritos que o objetivo do Tribunal seria obter neutralidade de resultados nas contas da Apelante, para que os eventuais resultados obtidos por esta fossem transpostos para as contas da Apelada - única forma de permitir a reconstituição da situação material decorrente da declaração de nulidade do negócio.
o) Ora, isso só é possível de se obter considerando todos os custos da Apelante na formação do preço de venda dos seus produtos à Apelada. Isto é, a obrigação de restituição, derivada da nulidade do contrato, não pode ser cumprida mediante a simples restituição pura e simples do obtido. No presente caso deve, naturalmente, atender-se a tudo o quanto concorre para a definição do preço.
p) Com esse fito, os Peritos no seu trabalho utilizaram documentos elaborados pela Apelante, onde se verificou existirem bens (i.e., Mercadorias) que foram vendidos, aparentemente, com margem positiva e outros com margem negativa (i.e., Produtos). Nestes, apenas se incluíam produtos fabricados, pois todas as mercadorias foram vendidas com margem positiva.
q) Ora, "Produto” e "Mercadoria” são, sob a perspetiva contabilística e empresarial, conceitos absolutamente distintos. "Produto” é tudo aquilo que é fabricado na empresa a partir de matérias primas adquiridas. "Mercadoria” são os bens vendidos no estado em que são adquiridos
r) Relativamente às "mercadorias” constata-se que em nenhum despacho, sentença ou acórdão proferido ao longo do processo é referido que, no apuramento dos saldos, ao preço de venda das "mercadorias” devem ser processados os ajustamentos dos preços de venda faturados pela Apelante à Apelada para os valores aos correspondentes preço de custo. O que seria, de todo o modo injustificado, pois caso se anulasse a “margem” nas mercadorias, não se reconstituía a situação material entre as Partes, antes se aumentaria, sem qualquer motivo, a margem de lucro que a Apelada obteve na revenda dessas “mercadorias”.
s) Apesar disso, ainda que conste das contas da Apelante relativamente à venda de mercadorias à Apelada, um aparente “lucro” de € 655.897,54 (€ 510 172,00 + € 145 725,54), como bem refere a maioria do Colégio Pericial esses valores não se reportam a qualquer lucro, mas sim, a “margem”.
t) Assim, a maioria dos Peritos entendeu - e bem - que deveria repor a margem nos preços vendidos com margem negativa, mas mantendo a margem positiva nas mercadorias, como forma de cobrir/compensar os restantes gastos da empresa com o objetivo de eliminar o resultado negativo da empresa.
u)Apurados os valores em falta na composição do preço dos produtos relativamente aos anos de 2009 e 2010, foram apurados os restantes encargos a debitar à Apelada, que fariam com que o resultado antes de encargos financeiros fosse nulo - excluindo-se os encargos financeiros, por serem referentes a dívidas contraídas antes do acordo, às quais a Apelada era alheia, bem como os gastos com dois colaboradores, cujas funções estavam relacionadas com outro projeto diferente a decorrer dentro da Apelante.
v)  Assim, foi determinado pela maioria dos Peritos que deveria: i) ser emitida uma nota de débito pela Apelante à Apelada referente aos serviços prestados durante o ano de 2009, no valor de € 109.227,44. ii) emitida uma segunda nota de débito pela Apelante à Apelada referente aos serviços prestados durante o ano de 2010, no valor de € 644.446,84; iii) determinado, um acerto de preços relativos a 2009, no valor de € 299.448,17; iv) E um acerto de preços relativos a 2010, no valor de € 81.593,27.
w) Como foi explicado pela maioria dos Peritos, para o que se pretendia com a liquidação - isto é, resultado nulo - é absolutamente indiferente que alguns dos artigos vendidos tenham tido margem positiva - pois, havendo artigos com margem positiva, o débito de serviços (na prática, débito de despesas) imputado pelos Peritos à Apelada seria menor. Caso se desconsiderasse essa margem, necessariamente o débito de serviços (débito de despesas) imputado pelos Peritos à Apelada seria maior. Mas o resultado seria sempre o mesmo, isto é resultado nulo.
x) Foi neste prossuposto de “sem lucro” e “resultado nulo” que a maioria dos Peritos do Colégio Pericial elaboraram o seu trabalho e chegaram às suas conclusões. Se assim não fosse - isto é, se não fossem considerados todos os custos associados à prestação de serviços e produção dos bens vendidos pela Apelante à Apelada - como poderia a Apelante suportar os encargos salariais, administrativos, etc., se as vendas efetuadas à Apelada não lhe deixassem margem?
y) Assim, da referida perícia resultou que a unanimidade dos Peritos do Colégio Pericial considerou que o valor dos aportes financeiros feitos pela Apelada à Apelante, no período que vai de 6 de novembro de 2008 e até 30 de setembro de 2010, foi de € 7.816.872,65;
z) A maioria dos Peritos - isto é, o Perito nomeado pela Apelante e a Perita nomeada pelo Tribunal - considerou que o valor da faturação feita pela Apelante à Apelada, quanto aos produtos e serviços prestados para o mesmo período - sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas seria o de custo (com isto se significando sem lucro) - foi de € 7.698.629,27.
aa) E na determinação desse saldo, e como bem referem a maioria dos Peritos, atenderam a todos os custos que a Apelante teve com as matérias-primas, mercadorias adquiridas, acrescidas dos respetivos encargos adicionais de compra (transporte, seguro, taxas, etc.), bem como dos encargos com a mão- de-obras e dos encargos gerais de fabrico (eletricidade, combustíveis, depreciação de equipamentos, etc.), administrativos, financeiros, etc.
bb) Só assim se podendo determinar o preço de venda dum produto, sem lucro, reconstituindo-se a situação que existiria, caso o negócio nulo não tivesse sido celebrado!
cc) Ora salvo melhor opinião, entendemos que, da perícia elaborada pelo Colégio Pericial e junta aos autos, resulta evidenciado que o Tribunal a quo não pode valorar e considerar como provada a posição minoritária do Perito GC, nomeadamente quando considera que, aos débitos e créditos a favor da Apelante no valor global de € 7.698.629,2 há que deduzir o valor do “lucro” das mercadorias no montante de € 655.897,54, chegando-se, assim, ao saldo relevante para efeitos da parcela C. da condenação no montante de € 774.140,92
dd) Com todo o respeito, que é naturalmente devido, há que aplicar corretamente aquilo que a sentença condenatória decidiu, que está, aliás, em total conformidade com o que decorre da lei: reconstituir a situação que existiria, caso o negócio nulo não houvesse sido celebrado!
ee) E, para tal, tem, naturalmente, que se ter em consideração tudo aquilo que a Apelada gastou com tal negócio e tudo aquilo que a Apelada recebeu do mesmo, apurando-se, então, o resultado nulo!
ff) E foi isso o que a maioria dos Peritos fizeram, de acordo com o objeto da perícia fixado pelo Tribunal a quo, resultando do apuramento dos valores referidos um saldo favorável à Apelada de € 118.243,38.
gg) Pelo que resulta evidente que não é admissível que o Tribunal a quo refira que a posição do Perito nomeado pela Apelada no relatório pericial, terá sido a única a confluir no sentido da sentença que está proferida nos autos - pela simples razão que tal posição não conduziu à reposição da situação que existiria se não fosse celebrado o negócio nulo, conforme se deixou bem elucidado e demonstrado!
hh) Nem se pode admitir que o Tribunal a quo venha agora justificar-se no sentido de que, ao utilizar uma expressão técnica como “lucro” e ao requerer ao Colégio Pericial, constituído por técnicos - por desconhecimento do juiz a quo relativamente a questões de natureza contabilística - que aferissem o valor de custo dos fornecimentos de produtos e prestações de serviços da Apelante à Apelada “sem lucro”, considerassem que o alcance da expressão deveria ser entendida no sentido atribuído pelo homem comum....
ii) Verificando-se que o Perito nomeado pela Apelante e a Perita nomeada pelo Tribunal em nada extrapolaram o que estava decidido na sentença, antes cumprindo aquilo que o Tribunal a quo determinou, nomeadamente no despacho saneador, repita-se, em total consonância com o que a lei determina
jj) É verdade que a apreciação da prova pericial está sujeita à liberdade de julgamento, uma vez que a força probatória das respostas dos peritos é livremente fixada pelo Tribunal nos termos expressos no artigo 389.° do Código Civil.
kk) No entanto, reconhecendo o Juiz a quo, a complexidade da questão para a qual não tinha conhecimentos técnicos bastantes - pois corresponde a matéria do domínio específico da contabilidade - ao decidir a constituição de um Colégio Pericial, deveria ter valorado os entendimentos que reuniram a maioria dos peritos (2/3), designadamente, os dos Senhores Peritos MM e JC e não a posição minoritária do Perito nomeado pela Apelada.
ll) Mas, mais importante: O que sucede na sentença recorrida (de liquidação), é que está em contradição com o decidido na sentença de condenação da qual a primeira depende, na medida em que desconsidera parte da situação que existiria caso o negócio nulo não fosse celebrado, porquanto tem em conta a margem aplicada no negócio pela Apelada no negócio, e não o lucro, ou seja, desconsidera os custos totais na formação dos preços dos produtos e mercadorias fornecidos pela Apelada à Apelante.
mm) Ora, tal decisão não reconstitui a decisão desconsiderada do negócio nulo, ou melhor, reconstitui a mesma de forma deficiente, ou apenas parcial.
nn) Com o devido respeito, é isto que se conclui de forma cristalina, quando comparamos o relatório pericial, aprovado pela maioria dos peritos, com o conteúdo da sentença recorrida.
oo) A douta decisão recorrida viola, assim, os artigos 289.°, n.°1, do Código Civil, 413° e 607°, n.° 4 e 5, do Código do Processo Civil.
pp) Termos em que se pugna pela revogação da douta sentença proferida e pela sua substituição por outra que tenha em conta a posição maioritária expressa pelos peritos e que consta do relatório pericial, alterando-se, por consequência, os pontos 4 e 5 dos factos dados como provados - matéria assente, nos seguintes termos:
qq) O ponto 4 dos factos provados deverá passar a ter a seguinte redação:
“4. Nos aportes referidos em 3. a DD teve uma margem de € 655.897,54;
E
O ponto 5 dos factos provados deverá passar a ter a seguinte redação:
“5. Na compensação dos saldos dos pontos 2. e 3., sobrevem o valor de € 118.243,38 a favor da BB.
ss) Alterando-se, em consequência, as alíneas B) e C) da parte decisória da sentença recorrida, nos seguintes termos:
“B) Fixo, quanto ao ponto C. da sentença proferida nestes autos, o saldo de € 7.698.629,27 (sete milhões seiscentos e noventa e oito mil, seiscentos e vinte e nove euros e vinte e sete cêntimos) a favor da DD
“C) Na concretização da compensação determinada no ponto D. da sentença proferida nestes autos, declarar que sobrevem a favor da A. BB. o saldo de € 118.243,38 (cento e dezoito mil, duzentos e quarenta e três euros e trinta e oito cêntimos) ... que a R. DD àquela pagará, acrescido dos juros de mora comerciais legais a contar da data desta liquidação e até efetivo e integral pagamento... como já ali determinado
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem revogar a douta sentença proferida, e sua substituição por outra que tenha em conta a posição maioritária expressa pelos Peritos e que consta do relatório pericial, determinando em sede de liquidação relativamente:
A) Ao ponto B. da sentença proferida nestes autos, o saldo de € 7.816.872,65 a favor da Apelada.
B) Quanto ao ponto C. da sentença proferida nestes autos. o saldo de € 7.698.629,27 a favor da Apelante.
C) Condenando, em consequência, a Apelante, com base na concretização da compensação determinada no ponto D. da sentença proferida nestes autos, a pagar à Apelada € 118.243,38, acrescido dos juros de mora comerciais legais a contar da data desta liquidação e até efetivo e integral pagamento.
D) No mais absolver a Apelante, tudo com as legais consequências, assim se fazendo a boa e costumada JUSTIÇA!»
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação (fls. 1677-1690).
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Impugnação da decisão de facto;
ii. Valor do saldo da Ré/apelante sobre a apelada nos termos da alínea C) do dispositivo da sentença de 1ª instância transitada em julgado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1.
Por sentença proferida nestes autos e com a refª 42099477...integralmente confirmada pelo TRL no seu acórdão com a refª 11369072 de 24.2.2017, foi decidido:
Nos termos do exposto, julgo a ação parcialmente procedente e a reconvenção totalmente procedente e em conformidade:
A).Absolvo o R. JMCM dos pedidos contra eles formulados pela A.;
B).Condeno a R. DD, a pagar à A. BB. o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo aos aportes financeiros que fez àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
C).Condeno a R. BB., a pagar à A. DD o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo ao valor da faturação do produto e dos serviços prestados por esta àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro), acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
D).Determinar a compensação entre os saldos que se apurem segundo as alíneas B). e C)., condenando desde já a BB. ou a DD, consoante uma ou outra ali acabem como credoras deficitárias, a pagar à outra a parte excedente e não compensada, acrescida dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
E).No mais vai a R. DD absolvida.
Custas pela A.
Registe e notifique.”
2.
No período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010...a BB. realizou aportes financeiros à DD no valor global de €7.816.872,65;
3.
No período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010...a DD, aportou à BB., por via de vendas de produtos, débitos e créditos o valor global de €7.698.629,27;
4.
Nos aportes referidos em 3. a DD, Lda. teve um lucro de €655.897,54;
5.
Na compensação dos saldos dos pontos 2. e 3., deduzido os lucros do ponto 4. sobrevem o valor de €774.140,92 a favor da BB.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
As duas questões a decidir comportam a particularidade de serem incindíveis, conforme se verá de imediato, razão pela qual serão apreciados conjuntamente. Recorde-se que as questões a decidir são: impugnação da decisão de facto; e valor do saldo da Ré/apelante sobre a apelada nos termos da alínea C) do dispositivo da sentença de 1ª instância transitada em julgado. A incindibilidade decorre de estarmos no âmbito da liquidação de sentença, tendo a matéria de facto sido sintetizada à enunciação dos valores a apurar.
O foco do litígio centra-se na interpretação do dispositivo da alínea C) da sentença da 1ª instância, transitada em julgado, cujo incidente de liquidação está pendente, tendo ocorrido divergência entre os peritos quanto ao âmbito de tal dispositivo e à subsequente subsunção dos valores parciais que apuraram. Ou seja, mais do que uma divergência quanto ao apuramento de valores parcelares, está em causa a subsunção dos mesmos a determinadas categorias em função da sentença transitada. O tribunal a quo acolheu a argumentação de um dos peritos, não aceitando a interpretação feitas pelos demais dois peritos, sendo que a apelante repristina a argumentação dos dois peritos cuja posição não foi acolhida.
Apreciando.
A sentença proferida pelo tribunal a quo, transitada em julgado e cuja argumentação foi acolhida no Acórdão deste Tribunal da Relação de 24.2.2017, integrou a seguinte fundamentação de direito:
«Nesta circunstância a A., conhecendo aquele estado de necessidade...de que tinha perfeita consciência...não teve pejo nenhum em subscrever um contrato que serve, nitidamente, de instrumento de exploração daquele estado de necessidade da 1ª R. Efetivamente desenhou um acordo que necessariamente (dada a sua carência de tesouraria) haveria de ser assinado pela 1ª R., pois via na A. a única fonte de financiamento de que desesperadamente precisava, através do qual recebia dela a produção que ela lograsse entregar-lhe pagando-lhe, em contrapartida, um preço inferior ao valor de custo. Seja por que lado se enquadre a questão...desde que no preço que ficou apalavrado entre as partes não incluam as despesas relacionadas com o passivo financeiro, as despesas com a gestão e custos administrativos...a 1ª R. nem para aquecer estava a laborar.
Os benefícios que deste negócio advinham à A. eram e foram manifestamente excessivos face à contraprestação que lhe cabia e que, em última análise, era por si fixada em valor abaixo ao contratado...já que o contratado seria compra dos produtos e serviços pelo preço de custo...e o que lhe era facturado, por sua indicação, era abaixo desse valor de custo...e, por essa razão, também injustificados.
É patente a presença de todos os pressupostos que dão corpo ao vício da usura avançado pelos RR. e comina o contrato aqui em causa de inválido e por essa razão haverá o mesmo que ser declarado nulo com a decorrência a que se reporta o artº.289º, nº.1 do CC.
(…)
Tendo em conta a natureza do contrato, de execução prolongada no tempo, em que as partes fizeram de forma periódica entregas que a contraparte tomou como suas e as consumiu, os efeitos da nulidade haverão de se fazer, não em espécie mas pelo valor correspondente.
Não sendo, porque os números trazidos aos autos não o permitem, possível fixar os valores correspondentes, terão eles que ser alcançados em execução de sentença como o permite o artº.609º, nº.2 do Código de Processo Civil.
Assim, haverá lugar à elaboração precisa de uma conta corrente onde por um lado entrem os aportes financeiros que a A. entregou à 1ª R. e do outro o valor da faturação do produto e dos serviços prestados pela 1ª R. à A. no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro), arrecadando o credor que resultar dessa conta o seu que estiver a seu favor, aqui se fazendo a respetiva compensação como o permite o artº.847º do CC.
Quanto aos pedidos da A. relativos às indemnizações pelos investimentos em Marketing e publicidade e aquisição de refrigeradores verticais; máquinas de cerveja; e outra maquinaria; lucro cessante e danos futuros relativamente a vendas legitimamente expectáveis e não realizadas, apuradas entre o momento da rescisão injustificada do contrato de distribuição exclusiva e a data fixada para o respetivo termo (Novembro de 2013); pelas responsabilidades que lhe poderão ser assacadas pelo incumprimento de obrigações contratualmente assumidas perante terceiros no pressuposto e expetativa de cumprimento do contrato de distribuição exclusiva com a 1ª R. e respetivos juros, logo vemos que haverão de improceder.
As consequências resultantes da declaração de nulidade são as que estão previstas no art°.289°, n°.1 do CC...e nelas não se incluem as peticionadas e aqui e apreço.
Acresce que o contrato foi anulado em razão de conduta exploradora da A...seria perversa qualquer condenação dos RR. estribada em decorrência do contrato que são da responsabilidade da A.» (sublinhados nossos).
Em síntese, o tribunal de 1ª instância entendeu que o “Contrato de distruibuição exclusiva” celebrado entre as partes, em 6.11.2008, assumiu natureza usurária, razão pela qual declarou a sua nulidade, com os efeito previstos no nº1, do Artigo 289º do Código Civil.
Na sequência dessa fundamentação,  o dispositivo da sentença (confirmada pelo Acórdão da Relação de  24.2.2017) foi o seguinte:
«B).Condeno a R. DD, a pagar à A. BB. o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo aos aportes financeiros que fez àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura do contrato) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
C).Condeno a R. BB., a pagar à A. DD o saldo que a favor desta vier a ser apurado em execução de sentença (artº.609º, nº.2 do CPC) relativo ao valor da faturação do produto e dos serviços prestados por esta àquela no período que vai de 6 de Novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de Setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro), acrescido dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento;
D).Determinar a compensação entre os saldos que se apurem segundo as alíneas B). e C)., condenando desde já a BB. ou a DD, consoante uma ou outra ali acabem como credoras deficitárias, a pagar à outra a parte excedente e não compensada, acrescida dos juros comerciais legais a contar da data do apuramento e até efetivo e integral pagamento».
A propósito da interpretação da sentença judicial, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2020, Ricardo Costa, 22741/12, o seguinte:
«(…) a decisão proferida em demanda judicial constitui um verdadeiro ato jurídico, a que se aplicam (por analogia) as regras reguladoras dos negócios jurídicos – art. 295.º do CCiv. –, razão pela qual os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial – arts. 236º-238º do CCiv. – são aplicáveis à interpretação de uma qualquer decisão judicial, importando, desde logo, a imputação do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto – art. 236º, 1, do CCiv.[5] Mas não só: “[s]endo as decisões judiciais atos formais – amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objetivação» da composição de interesses nelas contida –, tem de se aplicar à respetiva interpretação a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”[6], ou seja, o estatuído pelo art. 238º, 1, do CCiv. para os «negócios formais».
Neste contexto, essa tarefa interpretativa terá que lançar mão da adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, assim como aos seus próprios fundamentos, de acordo com uma regra de presunção de regularidade do ato decisório em relação à lei[7], para além da sua parte dispositiva, que, juntamente com essa fundamentação, são fatores integrantes básicos e insuperáveis da sua estrutura[8]. Nessa fundamentação encontram-se os “antecedentes lógicos” dessa mesma decisão judicial, que tornaram a parte dispositiva possível e inteligível[9].
Indo mais longe, urge ainda, se necessário, surpreender o “iter genético” da decisão, atendendo ao desenvolvimento e às vicissitudes do processo concreto, nomeadamente perscrutando a petição inicial, “onde o autor configura o objeto do processo, expondo a(s) causa(s) de pedir e formulando o(s) pedido(s)”, e ao “conteúdo dos demais atos processuais anteriores (…) à prolação da sentença ou acórdão”[10]; por fim, atenda-se ainda “outras circunstâncias, mesmo que posteriores, que funcionem como meios auxiliares de interpretação, na medida em que daí se possa retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar”[11]
No que tange ao âmbito do incidente de liquidação, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.1.2021, Cura Mariano, 1142/11, o seguinte:
«Num incidente de liquidação, complementando decisão genérica anteriormente proferida, apenas há lugar à quantificação de um valor, cujo montante, na altura em que foi proferida aquela decisão, não foi possível apurar, não sendo este tipo de incidente o local próprio para definir os termos da obrigação a que respeita esse valor. A definição do conteúdo dessa obrigação foi necessariamente efetuada na sentença a liquidar, na qual se apurou o dever de o Réu efetuar a respetiva prestação.
Contudo, isso não obsta a que, muitas vezes, ao proceder-se à liquidação daquele valor não seja necessário averiguar, se os montantes alegados se inserem na obrigação definida pela decisão liquidanda, não se resumindo o julgamento de liquidação a uma mera operação de quantificação.»
Articulando o que fica dito, infere-se que a interpretação do dispositivo de uma sentença pauta-se nomeadamente pelos seguintes parâmetros: aplicação das normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (Artigos 236º a 238º ex vi Artigo 295º do Código Civil); fundamentos da causa de pedir e do pedido, os quais constituem antecedentes lógicos da decisão; apreensão do iter genético da decisão, espelhado no desenvolvimento e vicissitudes do processo; outras circunstâncias que possam ser auxiliares da interpretação. Caso o dispositivo da sentença determine uma liquidação subsequente, há que aferir se os montantes alegados - no âmbito da liquidação - se subsumem à obrigação liquidanda, o que pressupõe a interpretação desta.
Munidos destas ferramentas e mesmo no âmbito de um incidente de liquidação, como é o caso, cabe ao julgador definir o que se subsume, ou não, à obrigação cuja liquidação é peticionada, sem que tal definição corresponda necessariamente à reabertura da fase declarativa (inicial) do processo, mas sim à interpretação imprescindível do dispositivo adotado.
Ora, o tribunal a quo entendeu que o contrato de distribuição exclusiva outorgado entre as partes, em 2008, era usurário, tendo a autor explorado a situação de fragilidade em que se encontrava a ré, razão suficiente e necessária para que tenha sido decretada a nulidade do mesmo, em observância ao disposto no Artigo 289º, nº1, do Código Civil.
Nos termos do Artigo 289º, nº1, do Código Civil, «Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.»
A propósito desta norma, assinala a doutrina que estamos numa relação de liquidação, querendo a ordem jurídica «um regresso ao status quo ante, ou seja, à situação que existiria se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado.
(…)
O cálculo do valor do dever de restituição, a chamada liquidação do contrato inválido, é uma operação complexa, muito para além da aparente simplicidade dos princípios, daí que não deva ser determinada através de conceitos lógicos, mas antes a partir da avaliação da situação de interesses, tendo em conta as realidades matérias e económicas ocorridas no período intermédio entre o momento da celebração ou da execução do contrato e o da declaração de nulidade ou anulação.
(…)
Em geral, os princípios da boa fé e do equilíbrio de prestações devem ter influência na liquidação do contrato inválido (…)» - Maria Clara Sottomayor, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 717-718.
A mesma autora afirma noutra obra que:
«A doutrina que estuda a invalidade tem-se debruçado, sobretudo, sobre as causas da invalidade, privilegiando a fase da formação do contrato, em detrimento da fase da execução e das suas consequências. Daí que a questão dos efeitos juridicos da invalidade esteja dominada por raciocínios de uma lógica abstrata, sendo esquecida a questão das consequências práticas, para além dos princípio da retroatividade ou do princípio quod nullum…, para regular as consequências das invalidades, que são aquelas que de facto assumem relevância para as partes de um contrato nulo e que influenciam o comportamento dos sujeitos de direito, relativamente à sua iniciaitva de repor ou não a legalidade» - Invalidade e Registo, A Proteção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, 2010, p. 295.
Heinrich Hörster e Eva Sónia Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª ed., p. 658, afirmam a este propósito:
«O princípio da justiça comutativa obriga também, nesta situação, a manter, relativamente às obrigações de restituição, a mesma correspectividade que as partes procuraram entre as prestações realizadas em execução do negócio inválido. Na verdade, parece óbvio que se deve manter o equilíbrio das prestações efetuadas. A aplicação do artigo 289º, nº1, não pode conduzir a um desequilíbrio que não exigiu na execução do negócio declarado nulo ou anulado. O sinalagma que subjaz ao negócio inválido e suas prestações, também há de estar subjacente às obrigações de restituição do artigo 289º, nº1, que só pode ser entendido no sentido de querer um efeito retroativo equilibrado, sinalagmático, quanto aos valores em causa.»
Por sua vez, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Almedina, 2017, afirma, com pertinência, o seguinte:
«É efetivamente admissível que, embora com cautela, o valor referido no contrato inválido seja tomado como referência substitutiva da restituição, se o fundamento da invalidade for a insuficiência de forma ou a incompletude do conteúdo. Mas é evidente que não pode ser considerado quando o fundamento da invalidade se relacione com o desequilíbrio do contrato ou se reporte precisamente a esse valor (como pode suceder nos casos de incapacidade de exercício, usura, coação, incapacidade acidental, erro, dissenso ou simulação). Por exemplo, o preço que um menor tenha aceite como contrapartida pode ser inferior ao valor do objeto vendido ou dos serviços prestados; a usura incide geralmente, e o erro ou coação podem incidir precisamente, sobre o valor de algum dos bens ou serviços transacionados. O critério do valor constante do contrato inválido só é admissível se o fundamento da invalidade for alheio a esse valor» (bold nosso).
Feito este excurso geral de enquadramento, atentemos nas particularidades do caso.
O objeto parcial da perícia, que suscitou dissenso entre os Srs. Peritos (dissenso subsequentemente espelhado na posição das partes e nesta apelação), corresponde ao segmento sublinhado do despacho que fixou o objeto da perícia nestes termos:
«Apurar o valor da faturação feita pela DD à BB. quanto aos produtos e serviços prestados por aquela a esta no período que vai de 6 de novembro de 2008 (data da assinatura) e até ao fim dos fornecimentos de produto e serviços que se deu em 30 de setembro de 2010, sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro).»
Este objeto da perícia replica o dispositivo da sentença transitada.
Os Srs. Peritos MM e JC assumiram a seguinte posição:
«(…) para menor entendimento e compreensão da questão colocada, importa esclarecer o alcance da expressão “sem lucro”.
Qualquer sociedade tem como finalidade o lucro, caso contrário não haveria investidores dispostos a correr o risco de investir nessas sociedades. Faz inclusive parte das regras de concorrência a venda com lucro, sendo proibido por lei a venda com prejuízo, vulgarmente conhecido por “dumping”.
Expressão diferente de “lucro” é “margem”.
Para se obter lucro, é necessário obter-se uma margem suficientemente grande que cubra todos os restantes gastos da sociedade.
Margem é a diferença entre preço de venda menos preços de custo (podendo ainda falar-se em margem bruta e margem líquida).
Durante a peritagem, os peritos debateram esta questão, tendo sido levantada dúvidas sobre o efetivo alcance do quesito. Entendemos que seria repor a margem nos preços vendidos com margem negativa, mas mantendo a margem positiva nas mercadorias, com forma de cobrir os restantes gastos da empresa. O objetivo seria sempre o mesmo, eliminar o resultado negativo da empresa.
Na composição do preço de venda de um produto, as empresas devem considerar o preço das matérias-primas ou das mercadorias adquiridas, acrescidas dos respetivos encargos adicionais de compra (transporte, seguro, taxas, etc.), bem como dos encargos com a mão-de-obra e dos encargos gerais de fabrico (eletricidade, combustíveis, depreciação de equipamentos, etc.). Ao somatório destes valores, devem ainda ser acrescida uma margem que cubra todos os restantes encargos da empresa (administrativos, financeiros, etc.), e finalmente uma margem que será o lucro da empresa.
Ora, perante o pedido de esclarecimentos dos advogados da Autora, reforçado pelo entendimento do Tribunal, é opinião dos peritos que apenas esta última parcela da margem é que não deve ser considerada, para que o resultado obtido não seja nem lucro nem prejuízo.
A título de exemplo, não devem as comissões pagas aos vendedores ser consideradas na formação do preço de venda? Entendemos que sim, mas este custo não é considerado na margem bruta das vendas nem nos custos de produção. O mesmo se verifica com os custos de transporte na venda.
(…)
Tal como foi referido no relatório de peritagem, e citando o Processo, a Autora seria uma sociedade “veículo”, sendo entendimento dos peritos que o objetivo do Tribunal seria obter neutralidade de resultados nas contas da Ré, para que os eventuais resultados obtidos por esta fossem transpostos para as contas da Autora. Ora, isso só é possível de se obter considerando todos os custos da Ré na formação do preço de venda dos seus produtos à Autora.
Por os cálculos do preço de venda não terem incluído todas essas componentes, resultou para a Ré avultados prejuízos nos anos em causa, conforme se constata dos balanços e demonstrações de resultados.
Os peritos utilizaram no seu trabalho documentos elaborados pela Ré, onde se verificou existirem bens que foram vendidos com margem positiva e outros com margem negativa. Nestes, apenas se incluíam produtos fabricados, pois todas as mercadorias foram vendidas com margem positiva.
(…)
Significa que acaba por ser indiferente que alguns artigos tenham margem positiva, porque o objetivo é que a empresa tenha resultado nulo. Havendo artigos com margem positiva, o débito de serviços (na prática, débito de despesas) será menor, procurando sempre o mesmo objetivo de resultado nulo.
Foi neste pressuposto que os peritos signatários elaboraram o seu trabalho e tiraram as suas conclusões. Se assim não fosse, como poderia a Ré suportar os encargos salariais, administrativos, etc., se as vendas efetuadas à autora não lhe deixassem margem?» (fls. 1609 e 1609 v.).
Por sua vez, o perito GC divergiu dos colegas, essencialmente assumindo a seguinte posição:
«Ao perito GC afigura-se que a dificuldade/impossibilidade de consenso entre os peritos – na parte em que não foi obtido que, como se viu, se circunscreveu ao tratamento a dar, ou não dar, ao lucro que a Ré obteve na venda de mercadorias – decorre da divergência de entendimento sobre o que o Mmo. Juiz pretende significar com a expressão “sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro)” – questão que entende dever ser analisada em duas vertentes:
a) Esclarecendo se o termo “produtos” utilizado pelo Mmo Juiz inclui as mercadorias; e
b) Indagando o alcance da expressão “sem lucro” também utilizada pelo Mmo. Juiz.
Quanto ao primeiro aspeto, o perito GC considera que houve a intenção de incluir no conceito de “produtos” não apenas os produtos em sentido estrito segunda a conceituação contabilística (bens produtos pela empresa a partir de matérias primas), mas também os bens que nessa conceituação contabilística são vistos como “mercadorias” (bens que a empresa compra e venda sem transformação).
E pensa assim pelas seguintes razões:
a) Numa perspetiva teleológica, não vê por que motivos os produtos em sentido estrito e os serviços deveriam ser valorizados a preços de custos, e as mercadorias não;
b) Julga que da letra da decisão decorre que, se a falta de referência a mercadorias quando manda considerar o preço de custo afastasse dessa regra do preço de custo as mercadorias, então as mercadorias também estariam, de todo (quanto ao preço de custo e/ou quanto ao valor efetivamente faturado) afastadas dos apuramentos a favor da Ré, uma vez que a decisão só condena o autor a pagar à Ré “… o valor da faturação  do produto e dos serviços…” , não fazendo, também nesta parte, referência às mercadorias; e esta hipótese, afigura-se ao perito GC, estão de todos fora dos propósitos da decisão.
(…)
No plano estrito de quantificação, o perito GC apreendeu os valores de € 510.172 e € 145.725,54 que entende serem de levar a crédito da autora de mapas que foram disponibilizados pela ré e onde efetivamente tais valores vêm explicitados como referentes a lucros por si obtidos na venda de mercadorias para a Autora – sendo que nem a Ré nem qualquer dos peritos questionou a obtenção desse lucro.
No quadro do exposto, para o perito GC a questão agora em análise circunscreve-se a avaliar se, sim ou não, no cômputo do saldo a favor da Ré devem ou não ser abatidos os valores de € 510.172 e € 145.724,54 de lucro por esta obtida na venda de mercadorias à Autora.
E opina que sim.
(…)
A diferença essencial entre a posição, por um lado, do perito GC, e, por outro lado, dos peritos MM e JC, resume-se a que, ao contrário do primeiro, estes entenderiam que no cômputo das correções a favor da Ré dos custos dos fornecimentos que efetuou à Autora deveriam – por causa do acordo celebrado entre as suas entidades, segundo alegaram – ser levados em conta também custos que oneraram a conta de resultados, ainda que não fossem, no plano contabilístico, de integrar no apuramento dos custos dos produtos, dos serviços e das mercadorias» ( fls. 1611-1612).
Afigura-se-nos que a discussão terminológica em torno das noções contabilísticas do que seja “mercadoria” e “produto” não é pertinente porquanto tais expressões foram utilizadas como equivalentes na sentença de 2016. Na verdade, no facto provado sob 105 consta: «A 1ª Ré, pelo menos após outubro de 2010, deixou de entregar à Autora a mercadoria por si produzida» e no facto 148 está provado que: «Sem prejuízo do referido em 105., a 1ª R. continuou forneceu à A. os seus produtos até outubro de 2010, tendo deixado de o fazer mercê do referido em 147
Ou seja, o âmbito da obrigação liquidanda não pode ser precisado com base em discussões de nomemclatura contabilística  num contexto em que a sentença transitada não fez tais aceções, utilizando os termos mercadoria e produtos de forma equivalente.
O âmbito da obrigação liquidanda tem de ser determinado pelos instrumentos de interpretação da sentença, já acima enunciados.
O que foi decisivo na fundamentação da sentença da 1ª instância foi a qualificação como usurário do contrato de distribuição celebrado entre as partes, em 2008, afirmando-se mesmo: «Os benefícios que deste negócio advinham à Autora eram e foram manifestamente excessivos face à contraprestação que lhe cabia e que, em última análise, era por si fixada em valor abaixo ao contratado … já que o contratado seria compra de produtos e serviços pelo preço de custo… e o que lhe era faturado, por sua indicação, era abaixo desse valor de custo … e, por essa razão, também injustificados.» Com efeito, ficou provado que: «137- A 1ª Ré, por imposição unilateral da Autora, tinha de lhe vender a sua produção abaixo do preço de custo” e «138- Os técnicos e funcionários da 1ª ré elaboravam os mapas com os preços referentes aos custos de produção, que eram entregues à Autora que, por sua vez, fixava os respetivos preços abaixo do seu valor real.»
Nesta senda, a menção no dispositivo da sentença a que «o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto se significando sem lucro)» comporta a leitura singela de que o que subjaz a tal redação foi o intuito de evitar que, no  cômputo a efetuar na relação de liquidação, fossem novamente atendidos valores inferiores aos do custo, precisamente. Ou seja, o intuito foi o de fixar um limite mínimo para tutela da posição da Ré (parte mais fraca no contrato) para que, na relação de liquidação, não se replicasse o desequilíbrio das prestações  a efetuar.
Na verdade, na subsequente relação de liquidação (nos termos do Artigo 289º, nº1) não pode ser adotado – sem mais – o critério do valor do contrato inválido precisamente porque a usura incidiu/repercutiu-se sobre o valor dos bens ou serviços transacionados (cf. supra a lição de Ferreira de Almeida). Num contexto em que foi assumido e declarado, expressamente, pelo tribunal a quo que o contrato foi usurário e que os benefícios para a autora foram manifestamente excessivos face às suas contraprestações, obrigar a ré – no âmbito da subsequente relação de liquidação – a entregar à autora os valores de € 510,172 e € 145.725,54 ( correspondentes a margens na venda de mercadorias que fez à autora durante a execução do contrato) corresponderia, na prática e em termos finais, a amplificar e perpetuar tal relação contratual iníqua e desequilibrada em prol da autora.
E, conforme se viu, na interpretação da sentença devem aplicar-se as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (Artigos 236º a 238º ex vi Artigo 295º do Código Civil). Por aplicação da teoria da impressão do destinatário (cf. Artigo 236º, nº1, do Código Civil), não colhe sentido que, assentando a sentença na consideração essencial de que o contrato é anulável por ser usurário, a parte dispositiva seja interpretada como implicando que a parte, vítima da usura, tenha de devolver à parte infratora as margens que, mesmo assim, obteve com a venda de mercadorias, sendo tais margens essenciais para suportar parte dos seus encargos, num contexto de exploração deficitária com resultados negativos.  Se assim fosse, o tribunal a quo estaria, ao mesmo tempo, a sancionar a conduta da autora e, do mesmo passo, a aumentar-lhe os efeitos, ao obrigar a Ré a restituir valores que integram margens, do que emergiria uma relação, em fase de liquidação, ainda mais desequilibrada em prol da autora.
Por outro lado, nos termos do Artigo 237º do Código Civil, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração (= dispositivo da sentença), no âmbito de contratos onerosos, deve prevalecer o sentido que conduz ao maior equilíbrio das prestações. Aplicando à situação em apreço tal critério, o sentido que mais é consentâneo com o equilíbrio das prestações é, precisamente, o de entender que a Ré/apelante não tem de devolver à autora as margens de € 655.897,54.
Flui de todo o exposto que o dispositivo da sentença em causa (“sendo que o preço desses produtos e de serviços a incluir nas faturas é o de custo (com isto significando sem lucro)”) deve ser interpretado como não abrangendo as margens que a ré (parte contratual mais fraca) obteve com a venda de mercadorias à autora, no período em que vigorou o contrato de distribuição exclusiva, declarado nulo por ser usurário. Essa interpretação conforma o objeto da perícia e, por via disso, a própria fixação da matéria de facto. Nesta senda, a posição dos Srs. Peritos que se acolhe, pelas razões expostas, é a posição maioritária.
Assim sendo, procede a impugnação da decisão de facto, alterando-se a redação dos factos 4 e 5 nos seguintes termos:
4. Nos aportes referidos em 3, a DD teve uma margem de € 655.897,54;
5. Na compensação dos saldos dos pontos 2 e 3, sobrevem o valor de € 118.243,38 a favor da BB.
O dispositivo deve ser alterado em conformidade.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, altera-se a sentença nos seus dispositivos B) e C) nos seguintes termos:
B) Fixa-se, quando ao ponto C. da sentença proferida nestes autos, o saldo de € 7.698.629,27 (sete milhões seiscentos e noventa e oito mil, seiscentos e vinte e nove euros e vinte e sete cêntimos) a favor da DD;
C) Na concretização da compensação determinada no ponto D da sentença, declara-se que sobrevem a favor da BB o saldo de € 118.243,38 (cento e dezoito mil, duzentos e quarenta e três euros e trinta e oito cêntimos), montante que a Ré DD àquela pagará, acrescidos de juros de mora comerciais legais a conta da data desta liquidação, como já ali determinado.
Custas pela apelada na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Lisboa, 8.6.2021
Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
José Capacete
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).