O DIREITO A HABITAÇÃO NA CRP
LEI DE BASES
IMÓVEL PARA HABITAÇÃO
SUSTAÇÃO DA VENDA NAS EXECUÇÕES FISCAIS
CREDORES PARTICULARES
Sumário

I - O direito de habitação previsto no art. 65º, da CRP diz respeito a prestações diretas ou indiretas do estado e não se impõe a outros particulares.
II - A lei de bases da habitação (Lei n.º 83/2019), nada alterou nesta matéria, pois não concedeu qualquer proteção acrescida à penhora e venda desses imóveis.
III - Conforme resulta de todos os elementos interpretativos, o regime aprovado pela Lei n.º 13/2016 (sustação da venda dos imóveis para habitação nas execuções fiscais) não é aplicável aos credores particulares.
IV - Esse regime assume natureza excepcional, que, por isso, não é passível sequer de qualquer interpretação analógica nos termos do art. 11 do CC.

Texto Integral

Proc. nº 25742/19.3T8PRT-A.P1

Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………

1. Relatório
Por apenso aos autos de execução instaurados pelo exequente B…, deduziram os executados C… e D…, a oposição à penhora nos termos constantes do articulado apresentado sob a Refª 34733156, alegando, em suma que: são um casal idoso de 70 e 67 anos, respetivamente, sendo o imóvel penhorado a única residência do casal e da sua família, que esta habita de forma estável, permanente e duradoura, constituindo a sua casa de morada de família, consagrando-se no artigo 10º, nº 4 da Lei de Bases da Habitação, um regime especial de proteção, sendo impenhorável para a satisfação de créditos fiscais, pelo que, por maioria de razão, um particular também não poderá obter a satisfação do seu crédito que seja proveniente de uma dívida civil sem garantia real pela execução de uma penhora que incida sobre a casa de morada de família do devedor que seja pessoa singular.
Notificado, apresentou o exequente a contestação, pedindo a improcedência da oposição apresentada e a consequente manutenção da penhora efetuada, sustentando, também em resumo e no essencial, que a invocação da Lei de Bases da Habitação ou normas constitucionais não tem qualquer cabimento nos presentes autos, tendo sido unânime a jurisprudência dos tribunais superiores ao entender que a proteção do direito à habitação do cidadão e da família se esgota no apoio do Estado, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da importância desse direito, não consagrou a sua impenhorabilidade.
Saneada a causa foi proferida decisão que julgou a oposição improcedente e absolveu o exequente do pedido contra si formulado.
Inconformados viram os executados interpor recurso de apelação, o qual foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, efeito que se mantém.

2.2. Foram formuladas as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O presente recurso, tem efeito suspensivo ao abrigo e nos termos ao do artigo 647º, nº3, b) do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão proferida e de que ora se recorre, põe termo ao processo em ação que respeita à posse da casa de habitação dos recorrentes.
2 - Com o presente recurso de apelação pretende impugnar-se matéria de direito a sentença em 7 de outubro de 2020.
3 - A sentença veio julgar improcedente a oposição à penhora deduzida pelos Executados ora Recorrentes, ordenando, assim, o prosseguimento da execução instaurada pelo Exequente ora Recorrido.
4 - Sucede que o tribunal a quo não andou bem na apreciação da matéria de direito, 5 - Os Recorrentes são um casal de idosos que residem conjuntamente com a sua filha e as suas duas netas menores, no imóvel penhorado no âmbito da execução com o processo n.º25742/19.3T8PRT.
6 - Aquele prédio urbano destinado a habitação que foi penhorado nos presente autos, é a única residência do casal e da sua família, que estes habitam de forma estável, permanente e duradoura, constituindo a sua casa de morada de família.
7 - O tribunal a quo defende que “a Lei de Bases da Habitação contém injunções dirigidas ao Estado, “não impedindo a regular cobrança dos créditos dos particulares através da penhora dos bens pertencentes aos devedores, designadamente imóveis, mesmo que, estes constituam a sua casa de morada de família”,
8 - Uma vez que entende que a norma especial prevista na alínea d) do n.º 6 do artigo 13.º determina a não execução de penhora sobre a casa de morada de família apenas quando se trata da satisfação de créditos fiscais e contributivos.
9 - Por outro lado refere que não pode ignorar que o regime das impenhorabilidades absolutas ou relativas previstas no CPC, não contem impedimento quanto à penhora de imóvel que constitua a casa de morada de família, registando-se, apenas, algumas limitações decorrentes do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 751º daquele código.
10 - Não se pode aceitar a sentença proferida pelo tribunal a quo uma vez que extraí uma interpretação desajustada do direito, aplicável ao caso concreto, designadamente do artigo 10º n.º4 e da alínea d) do n.º6 do artigo 13º da Lei de Bases da Habitação, bem ainda do regime das impenhorabilidades absolutas e relativas da lei processual civil e ainda, do artigo 65º da CRP.
11 - O artigo 10º desta Lei nº83/2019, de 3 de setembro, estabelece o direito fundamental à proteção da habitação permanente, considerando esta aquela habitação que é utilizada como residência habitual e permanente pelos indivíduos, famílias e unidades de convivência.
12 - O nº3 deste artigo 10º da Lei de Bases da Habitação define a casa de morada de família como aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto, o que acontece obviamente no caso dos Recorrentes.
13 - Ora, no âmbito deste direito fundamental à proteção da habitação, o nº4 do mesmo artigo 10º consagra um regime especial de proteção legal da casa de morada de família.
14 - Sendo que a alínea d) do nº6 do artigo 13º do mesmo diploma obriga à não execução de penhora para satisfação de créditos fiscais ou contributivos quando esteja em causa a casa de morada de família.
15 - Entendem os Recorrentes que por maioria de razão, um particular, também não poderá obter a satisfação do seu crédito que seja proveniente de uma dívida civil sem garantia real, pela execução de uma penhora que incida sobre a casa de morada de família do devedor que seja pessoa singular.
16 - Ademais, o tribunal a quo fundamenta a sua decisão num douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 9 de junho de 2005, onde se lê que o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa que consagra o direito fundamental à habitação “pressupõe a concretização, mediação, do legislador ordinário, decorrente de opções político-administrativas, em que, em principio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas várias alíneas do n.º2 do referido artigo 65º, nem aos tribunais compete substituir o legislador nessa matéria, havendo sim e apenas, um conteúdo mínimo determinado constitucionalmente.”
17 - Salvo o devido respeito, entendem os Recorrentes que o tribunal a quo utiliza o referido acórdão, porém, olvida o facto de à data da decisão em crise, existir já, no ordenamento jurídico português a concretização do legislador ordinário, no concernente ao artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
18 - Note-se que o acórdão citado pelo tribunal a quo é datado de 2005, pelo que, dúvidas não há, de que o tribunal a quo olvidou que o direito fundamental prevista no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, nesta data, já havia sido objeto de concretização pelo legislador ordinário, com a publicação da Lei de Bases da Habitação - Lei nº83/2019, de 3 de setembro.
19 - A necessidade de concretização frisada pelo citado acórdão já se encontrava positivada no ordenamento jurídico português à data da prolação da sentença.
20 - Pelo que o juízo de prognose deveria ter levado o tribunal a quo a utilizar o citado acórdão para fundamentar uma decisão à contrário da que foi tomada.
21 – E, por conseguinte, não pode, por força da aplicação das normas acima citadas da nova Lei de Bases da Habitação, o Exequente ora Recorrido obter a satisfação do seu crédito pela execução de penhora que incida sobre a casa de morada de família dos Executados ora Recorrentes.
22 - O tribunal a quo, refere, ainda, que não pode ignorar que o regime das impenhorabilidades absolutas ou relativas previstas no CPC, não contem impedimento quanto à penhora de imóvel que constitua a casa de morada de família.
23 - Os Recorrentes entendem que a questão não se coloca no plano do direito adjetivo, mas sim no plano do direito substantivo.
24 - O tribunal a quo utiliza uma norma de direito processual para suportar a decisão de prosseguimento da execução da penhora que levará à consequente venda do mesmo para satisfação de uma dívida.
25 - O direito substantivo aplicável in casu, designadamente o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 10.º n.º4 e a alínea d) do n.º6 do artigo 13º da Lei de Bases da Habitação, deveria levar o tribunal a quo a julgar procedente os embargos e oposição à penhora impedindo a execução da penhora do imóvel e a sua consequente venda pois, para os Recorrentes é seguro que só assim se respeita tais normativos e o direito de proteção à habitação é, concretamente, garantido.

*
*
2.1. Não foram apresentadas contra-alegações.
*
*
4. Motivação de facto
1 – O exequente B…, instaurou contra os executados C… e D…, a ação executiva de que estes autos são apenso, dando à execução a sentença proferida em 25/03/2019, no processo nº676/17.0T8MTS, que correu os seus termos pelo Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 3, no âmbito da qual os executados foram condenados a pagar ao exequente a quantia de € 10.341,15, acrescida de juros à taxa de juro civil, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;
2 – A referida sentença foi objeto de recurso julgado improcedente por acórdão proferido em 07/11/2019, tendo a sentença exequenda transitado em julgado em 29/11/2019 (cfr. certidão e informação integradas no processo executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido);
3 – Em 20/12/2019, no âmbito da ação executiva de que estes autos são apenso, o respetivo agente de execução procedeu ao registo da penhora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº 1294/19930728 (freguesia …), inscrito na matriz sob o artigo 8243;
4 – O referido prédio constitui a casa de morada de família dos executados, tendo aí a sua residência de forma permanente, estável e duradoura.
*
*
5. Motivação de direito
1. Do direito constitucional à habitação
Insistem, de novo, os apelantes que o art 65º, da CRP lhes dá direito a fruir a sua habitação de tal modo que impede por isso, a penhora e venda do bem a favor do exequente.
A decisão recorrida já cita jurisprudência que parece esclarecer que esse direito:
a) diz respeito a prestações estaduais e não de particulares;
b) não incluiu a defesa do direito de habitação de casa própria.
Com efeito, o direito à habitação é um dos direitos fundamentais do Homem e encontra-se regulado na CRP, no artigo 65º, o qual prevê o direito de todos a uma habitação adequada, bem como uma série de incumbências ao Estado, de modo a garantir o direito social fundamental.
Mas esse direito, até pela sua inserção sistemática, diz respeito a um ónus do Estado que deve “promover em colaboração com as regiões autónomas e autarquias locais a construção de habitações económicas e sociais; estimular a construção e o acesso à habitação própria ou arrendada e incentivar e apoiar iniciativas que possam resolver os problemas habitacionais”.
Ou seja, não podem pretender os apelantes que seja o exequente a suportar o ónus que cabe à comunidade. Pelo contrário, a única injunção direta desta norma é a proibição da privação arbitrária da sua habitação.[1]
Note-se que o nosso Tribunal Constitucional tem vindo a analisar esta problemática de forma consistente.
Assim: no acórdão nº 649/99 de 24 de Novembro de 1999[2], numa situação em que ocorreu a penhora de um imóvel habitado pelo executado e respetiva família, O TC decidiu que o mínimo de garantia do direito são obrigações impostas ao Estado, o qual deve disponibilizar meios que auxiliem no acesso à habitação própria e de controlo e limitação das rendas. Os meios que auxiliam no acesso à habitação podem ser fornecimento de terrenos urbanizados, créditos bonificados e direito de preferência na aquisição de casa arrendada.
E, recentemente no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, considerou que “Uma das dimensões do direito de propriedade consiste (apenas) no direito a não ser arbitrariamente privado da propriedade”.
Depois, o direito à habitação e os direitos económicos sociais e culturais assumem uma natureza negativa, ou seja o direito de não ser arbitrariamente privado de habitação ou de não conseguir uma habitação[3] de forma discriminatória.
Segundo Jorge Miranda e Rui Medeiros[4]: “Sobressai no direito à habitação, enquanto direito a ter uma morada decente ou condigna, a dimensão social de “um direito a prestações, de conteúdo não determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor, antes, uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efectividade está dependente da reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais” (Acórdão n.º 374/02).
O artigo 65º configura, em larga medida, o direito à habitação como um direito a prestações do Estado, e que “pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo” (Acórdão n.º 829/96 – cfr. ainda Acórdãos n.ºs 131/92, 508/99 e 29/00). Dele não se retira nesta sua dimensão, “um direito imediato a uma prestação efectiva, porquanto não é directamente aplicável ou exequível, exigindo uma actuação do legislador que permita concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei” (Acórdão n.º 280/93 – cfr. ainda Acórdãos n.ºs 130/92 e 374/02)”.
Ora, como é evidente não é isso que acontece no presente caso, pois, caso a habitação seja vendida os executados estarão apenas privados de viver naquela sua habitação, da impedindo que com a parte restante do produto da venda adquirem ou arrendem outra e/ou peticionem a concessão de uma habitação social.
Portanto, os mesmos confundem o seu direito à habitação com o direito de possuir e fruirem aquela concreta habitação própria.
Por isso, podemos concluir com o Acórdão do STJ de 05-03-2015[5], que “Entendeu o legislador, no Código de Processo Civil, que o direito à habitação do cidadão e da família não se confunde com o direito à casa própria, concedendo apenas, atendendo a sua importância para a família, algumas defesas, nomeadamente, quanto à ordem dos bens a penhora.
Diga-se, por último que a tese dos apelantes de que “agora com a lei de bases da habitação esse direito foi concretizado”, radica num manifesto lapso.
A lei de bases da habitação não é, nesta matéria inovadora nem consagra nada diferente do referido na decisão de 2005[6].
Basta ler o teor da lei para se verificar que afinal, os termos da Lei n.º 83/2019 de 3 de setembro são idênticos aos anteriores, pois:
Art. 3) Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado programar e executar uma política de habitação integrada nos instrumentos de gestão territorial que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social.
Art. 10) Direito à proteção da habitação permanente: 1 - A habitação permanente é a utilizada como residência habitual e permanente pelos indivíduos, famílias e unidades de convivência. 2 - Todos têm direito, nos termos da lei, à proteção da sua habitação permanente. 3 - A casa de morada de família é aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto. 4 - A casa de morada de família goza de especial proteção legal.
Artigo 13.º Proteção e acompanhamento no despejo 1 - Considera-se despejo o procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas. 2 - A lei estabelece os termos e condições em que a habitação é considerada indevida ou ilegalmente ocupada. 3 - O despejo de habitação permanente não se pode realizar no período noturno, salvo em caso de emergência, nomeadamente incêndio, risco de calamidade ou situação de ruína iminente, casos em que deve ser proporcionado apoio habitacional de emergência.
Ou seja, afinal nos termos dessa lei, o direito de habitação é uma prestação estadual, que protege apenas a habitação permanente e não especificamente o direito de propriedade, sendo que a penhora da habitação é regulada pela lei adjetiva e que, afinal, continua a ser licito realizar despejos.
Improcedem, pois, estas conclusões da apelante.
*
2. Da aplicação do regime previsto na Lei n.º 13/2016, de 23/5.
Pretendem, por fim, os apelantes que o regime previsto pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, que alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário e a Lei Geral Tributária deveria ser aplicável aos autos.
Vejamos
Nos termos do art. 9º, do CC: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
Ou seja, o elemento literal é o ponto de partida e o controlo de chegada que não permite aplicar uma interpretação sem uma, ainda que diminuta, correspondência literal.
Ora, o teor da lei nº 13/20016 é claro no sentido de que não visa aplicar-se a qualquer outra situação, não prevista.
Desde logo o seu objecto está limitado, nos termos do art. 1º, “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado” (nosso sublinhado).
Depois, a alteração do Artigo 244.º foi simples: “2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.
Logo, parece manifesto que essa norma não se aplica à execução destes autos e, mesmo que assim fosse, nunca poderia impedir a penhora do bem[7], mas apenas a sua venda.
Depois, os elementos históricos demonstram de forma segura que nunca foi intenção do legislador, com essa lei, impedir a penhora e venda judicial de imóveis habitados nas execuções comuns.
A Lei n.º 13/2016 foi antecedida da apresentação de três projetos de lei o Projeto de Lei n.º 86/87/XIII- 1.ª (apresentado por deputados do Bloco de Esquerda – BE), o Projeto de Lei n.º 87/XIII – 1.ª (da autoria de deputados do Partido Socialista – PS) e o Projeto de Lei n.º 88/XIII – 1.ª (da autoria de deputados do Partido Comunista Português – PCP)[8].
O Projeto do BE previa a impenhorabilidade da habitação própria e permanente, bem como a execução de hipoteca sobre esses bens, evitando que fossem penhorados em processos de execução de dívida fiscal (nosso sublinhado).
Da Exposição de motivos do PCP consta: “Com o presente Projeto de Lei, o PCP propõe a suspensão das penhoras e vendas dos imóveis que sejam habitação própria e permanente no âmbito de processos de execução fiscal. A par disso determina-se um regime de impenhorabilidade relativa da habitação própria e permanente, a aprovar em lei especial” (nosso sublinhado).
E, por fim, na Exposição de motivos do Projeto apresentado pelo PS salientava-se: “A presente iniciativa legislativa assegura plenamente o objetivo presente no programa de governo, indo mesmo um pouco mais além, na medida em que são proibidas todas as vendas de casas de morada de família em processo de execução fiscal, independentemente do valor da dívida fiscal ou da dívida à segurança social. (…) A solução legislativa equilibra também a salvaguarda do direito à habitação com alguma proteção dos direitos de crédito do Estado, na medida em que o mecanismo criado não impede a penhora mas suspende qualquer venda das casas por iniciativa do Estado (sublinhado nosso).
Ou seja, nunca houve intenção de alargar essas normas ao credor comum.
Em termos sistemáticos convém salientar que este mecanismo não se aplica a todas as dívidas estaduais, pois, não abrange, como estava previsto, as dívidas à segurança social, nem se estende em às situações em que haja concurso de credores, nomeadamente quando exista um credor hipotecário. Ou seja, na interpretação pretendida pelos apelantes o exequente, simples particular que pretende excutir uma divida de uma dezena de milhar de euros, ficaria impedido de obter o pagamento desta pelo produto da venda, ao contrário de qualquer entidade bancária ou até a Segurança Social. Não seria, este por certo o resultado visado pelos legisladores.
Por isso, como salienta DELGADO DE CARVALHO[10] “as restrições à realização da venda não são oponíveis aos credores comuns do devedor, como é o credor hipotecário. O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente apenas vale nas execuções instauradas para cobrança de créditos fiscais, ou seja, aquele impedimento funciona sempre que a venda da casa de morada de família se destine a satisfazer créditos de natureza fiscal”.
Por último, convém salientar que existe uma vasta e uniforme (na parte que agora nos interessa) jurisprudência, no sentido de que esse regime não é aplicável à execução comum nem gera a sua sustação quando exista aí penhora do mesmo imóvel.
Assim tem sido a interpretação da nossa Jurisprudência[11] que “[a] aparente desarmonia do regime em causa criado pelo n.º 2 do art. 244º do CPPT só resulta da interpretação deste preceito, que forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das ações executivas cíveis”
Esta impossibilidade de venda do imóvel penhorado não pode ser estendida aos demais credores, pelo que à partida não se afigura razoável que se impeça um credor comum com uma penhora sobre aquele bem que foi reclamar o seu crédito numa execução fiscal de promover a sua venda para ver satisfeito o seu crédito.[12]
Caso contrário (suspender a execução) colocaria o credor comum num “beco sem saída”, afrontando-se o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido no art.º 62.º n.º 1 da CRP.(nossos sublinhados).
Logo, podemos concluir com base em argumentos literais, históricos, sistemáticos, teleológicos e constitucionais, que a norma da lei nº 13/2016 nunca poderia ser aplicável como pretendem os apelantes.

3. Da aplicação da norma por analogia
Será que a norma pode ser aplicada por analogia de situações?
Parece que também que não.
Essa norma é claramente excepcional.
Uma norma excecional é aquela que regula uma situação de forma oposta ao regime-regra, criando um tratamento diferente daquele previsto para as situações abstratas gerais.
As normas especiais, pelo contrário, não violam a regra geral, mas manifestam-se sobre determinados casos ou grupos de um modo adaptado às circunstâncias ou às exigências específicas. [14]
Ora, nos termos do art. 11º, do CC “As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.”
Esta proibição da aplicação analógica, segundo DIAS MARQUES[15], “facilmente se compreende se tivermos em conta que a natureza da relação existente entre a norma excepção e a norma-regra, não é compatível com a existência de lacunas ou casos omissos. Uma vez que a norma excepção se traduz, como foi dito, em uma subtracção ao campo virtual de aplicação da norma-regra, daí resulta que esta possui vocação para alcançar todos os casos não abrangidos por aquela. Entre o espaço ocupado pela norma-excepção e o ocupado pela norma-regra não há lugar a qualquer brecha ou lacuna que necessite de colmatagem, pois a elasticidade própria da regra faz que o seu campo de aplicação vá exactamente até onde não chega a excepção. Ora, sendo assim, isto é, se o que não cabe na excepção há-de por força caber na regra, um caso omisso é, em tais circunstâncias, inconcebível.”
Daí decorre que, nunca se poderia aplicar esse regime tributário que, além de especial, é nitidamente excecional, com derrogação da norma geral aplicável às execuções comuns.[16]
Pelo que, bem andou a decisão recorrida ao indeferir a pretensão do apelante, que, por isso, deve ser integralmente mantida.
*
*
6. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal, julga totalmente improcedente, o presente recurso de apelação e, por via disso, confirma integralmente a decisão recorrida.
*
Custas integralmente a cargo dos apelantes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

Porto em 29.4.21
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
____________
[1] Paola Villar, O Direito Fundamental à Habitação e o Direito do Urbanismo: uma análise do direito português e do direito brasileiro, Dissertação em Ciências Jurídico-Políticas 2015, acedida em Março, 2021 in
https://estudogera.sib.uc.pt/bitstream/10316/29919/1/O%20direito%20 .
[2] In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990649.html.
[3] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada. Volume I, 4ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora
[4] Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, págs. 667 e 668, em anotação ao art. 65º.
[5] Proc. 3762/12.9TBCSC-B.L1.S..
[6] Basta citar o art. 10º, nº4, da mesma que remete para “a lei geral”.
[7] Note-se que esse é o pedido formulado que, por isso, sempre seria improcedente.
[8] Acedidos em Março 2021, disponíveis em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas /DetalheIniciativa.aspx?BID=39930
[9] Da exposição de motivos consta: “Recordemos, a título de exemplo, que em outubro de 2014 uma devedora, viúva e tendo como rendimento o salário mínimo, viu a sua casa penhorada por uma dívida de 1.900€ de Imposto Único de Circulação. Este imóvel foi depois colocado à venda pela AT por 19.500€, dez vezes mais do que o valor da dívida fiscal”.
[10] In, As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no concurso de credores
[11] Cfr. AC do STJ de 23.01.2020 (processo 1303/17.0T8AGD.B.P1S1), e ainda:
• Ac da RP de 08.3.2019, processo 11128/11.1TBSNG-C.P1; e acórdão de 07.5.2019, processo 1546/17.7T8OVR-A.P1, publicado em Col. de Jur., ano XLIV, tomo III, p. 197
• Ac da RC de 25.5.2020, nº 367/16.9T8CVL-C.C1 (António Robalo); decisão sumária de 08.4.2019, processo 1325/16.9T8ACB t; e o inicial de 24.10.2017, 249/13.6TBSPS-A.C1 (Sílvia Pires).
• Ac da RL de 22.10.2020, nº 5729/19.7T8LRS-A.L1-2 (Jorge Leal) nesse caso, se o mesmo imóvel tiver sido objeto de penhora mais recente em execução comum, esta não deve ser suspensa ao abrigo do n.º 1 do art.º 794.º do CPC, mas deve prosseguir, sendo a Fazenda Pública citada para aí reclamar os seus créditos.
• Ac da RE de 23.4.20, PROCESSO N.º: 91/14.7TBBNV-B.E1 (VITOR SEQUINHO);
• Ac da RG de 30.5.19, (Alcides Rodrigues), nº 2677/10.0TBGMR.G1: “a execução comum na qual está penhorado um imóvel que constitui a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar poderá prosseguir a sua marcha não obstante incidir penhora, com registo anterior, sobre o mesmo bem em execução fiscal, no âmbito da qual está proibido proceder à realização da venda do imóvel por força do disposto no n.º 2 do art. 244º do CPPT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23/05”.
[12] Ac da RC nº 24.10.2017, 249/13.6TBSPS-A.C1 (Sílvia Pires)
[13] Neste sentido, Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª edição, Almedina, 2020, pp. 534 a 537, e António Santos Abrantes Geraldes et all, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, Almedina, pp. 208 a 210.
[14] Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 327.
[15] Cfr. Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979, página 216.
[16] Antunes Varela, CC anotado, art. 11. No que respeita ao contrato de empreitada, por exemplo, Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. III — Contratos em especial, pág. 515.