I - O puxar dos cabelos (provocando dores) e o empurrar da cabeça da ofendida contra a almofada configuram actos de violência física. Perpetrados por um adulto de 30 anos sobre uma menina – que com ele coabitava numa relação idêntica à de pai e filha – de apenas 11 anos de idade, acompanhados da ameaça de desferir um soco, são aptos a constranger a ofendida à prática do acto sexual pretendido pelo arguido.
II - Condenado o arguido, pela prática de três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP, nas penas parcelares, por cada um dos ilícitos, de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de 9 crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171.º, n.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP, nas penas parcelares, por cada um dos ilícitos, de 5 anos de prisão, pela prática de um crime de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 7, ambos do CP, na pena parcelar de 7 anos de prisão e pela prática de 1 crime de coacção, p. e p. pelo art. 154.º, n.º 1, do CP, na pena parcelar de 1 ano de prisão, uma pena única de 12 anos de prisão, aplicada em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, situada no primeiro terço da pena abstractamente aplicável, mostra-se justa e adequada, não merecendo qualquer censura.
Acordam os juízes deste Supremo Tribunal de Justiça:
I. No proc. comum colectivo que, com o nº 5635/19.5JAPRT, corre termos no Juízo central criminal ........., J..., o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi julgado e condenado pela prática de
- três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 2 anos e 6 meses de prisão;
- nove crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 5 anos de prisão;
- um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, atenta a convolação operada, na pena parcelar de 7 anos de prisão;
- um crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, na pena parcelar de 1 ano de prisão; e
- em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na única de 12 anos de prisão.
Na procedência do pedido cível formulado, foi ainda o arguido condenado a pagar à demandante, em representação de sua filha menor BB, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
Inconformado, o arguido recorreu directamente para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a sua absolvição da prática do crime de violação agravado, devendo em consequência “ser reformulado o cúmulo da pena e o pedido de indemnização civil formulado, ou, caso assim se não entenda, deverão ser reformuladas as penas parcelares e a pena única de prisão aplicada em cúmulo jurídico por uma que não exceda nunca os 9 anos de prisão”, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):
«1ª O Arguido foi condenado por Acórdão proferido em 24 de Novembro de 2020, na pena única de 12 anos de prisão efectiva.
2ª Por três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 2 anos e 6 meses de prisão, nove crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 5 anos de prisão, um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, atenta a convolação operada, na pena parcelar de 7 anos de prisão, e um crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, na pena parcelar de 1 ano de prisão.
3ª No âmbito deste processo o Arguido vinha acusado como autor e em concurso real, da prática dos seguintes crimes, cinco crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do CP, um crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP., vinte e dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP;
4ª Ao longo do decurso do julgamento o tribunal “a quo” entendeu pela alteração da qualificação jurídica convolando o crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do C. Penal num crime de violação agravada nos termos do disposto nos art.ºs. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do C. Penal e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do C. Penal.
5ª Salvo o devido respeito, o tribunal a quo violou o disposto nos art.º 164º, n.º 2 al. a), uma vez que dos factos dados como provados não se extrai a prática pelo arguido de qualquer crime de violação, mas sim um crime de ofensas à integridade físicas pelo qual vinha acusado.
6ª Da prova produzida não se retira que, o uso da violência empregue pelo arguido seja suficiente para forçar a ofendida à prática do ato sexual, nem que tenha o arguido tido a intenção de forçar a ofendida. A violência são puxões de cabelo contra uma almofada, e um levantamento do braço como se fosse dar um soco, o que não aconteceu.
7ª Tais factos foram provados apenas nas declarações da ofendida/Assistente, que não são suportadas, nem indiciariamente, por qualquer outro meio de prova, em nenhuma outra situação quer anterior como posterior a estes factos foi usada violência física ou ameaças.
8ª Assim a prova é claramente insuficiente para que haja condenação do arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável.
9ª Na ausência do juízo de certeza deverá valer o princípio da presunção de inocência do arguido conforme dispõe o art.º 32º da CRP de que é corolário o princípio “in dubio pro reo”.
10ª Mais, ficou dado como provado que o arguido era um individuo agressivo, tanto com a ofendida como com os outros filhos e a companheira, logo tal comportamento era habitual na casa.
11ª Assim no que respeita ao crime de imputado de violação agravada, p. e. p. pelo art.º 164º, n.º 2 al. a) do C. Penal, os factos provados não permitem concluir pela verificação do tipo de ilícito, podendo sim subsumir-se às previsões incriminatórias do art .º 143º do C. Penal, conforme vinha qualificado na acusação.
12ª Pelo que deve em relação a este ilícito ser o arguido absolvido, revogando-se parcialmente o douto acórdão recorrido, assim como o pedido de indemnização cível formulado pela assistente ser reduzido.
13ª O Tribunal “a quo” condenou o arguido nas seguintes penas parcelares, três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 2 anos e 6 meses de prisão, nove crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 5 anos de prisão, um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, atenta a convolação operada, na pena parcelar de 7 anos de prisão, e um crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, na pena parcelar de 1 ano de prisão.
14ª E em cúmulo jurídico, condenou o arguido, ora recorrente, AA na pena única de 12 anos de prisão.
15ªAs penas parcelares e a pena única aplicadas são demasiado severas violando o disposto nos art.ºs 40º e 71º do código penal.
16ª Na operação de fixação da medida concreta da pena, atende-se ao disposto nos art.ºs 40º e 71º do Código Penal.
17ª O limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente, o limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. Assim, reduz-se a amplitude da moldura abstractamente associada ao tipo penal em causa.
18ª A pena concreta é achada considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o Arguido.
19ª Pese embora as exigências de prevenção geral são muito intensas e prementes, fazendo-se sentir especialmente nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do alarme social e insegurança que estes crimes causam na comunidade, a pena única aplicada aqui ao Arguido excede a medida da culpa, sendo uma pena demasiado severa e pesada.
20ª Conforme a matéria que foi dada como provada o Arguido tinha à data dos factos 30 e 31 anos de idade.
21ª Ao longo de todo o julgamento admitiu factos relevantes, tendo colaborado para a descoberta da verdade.
22ª O arguido não possui antecedentes criminais da mesma natureza nem de natureza grave, conta com dois crimes de condução sem habilitação legal, tendo sido condenado em penas de multa as quais foram cumpridas.
23ª Conforme o relatório social junto aos autos, o arguido descende de um agregado familiar de modesta condição económica, mas beneficiou de um sistema educativo baseado na imposição de regras e transmissão de valores adequados à vivência em sociedade.
24ª A morte do seu progenitor quando o Arguido tinha 11 anos de idade causou acentuado transtorno pessoal e familiar, tendo abandonado a escola com 14 anos sendo que conta apenas com o ... ciclo do ensino que tirou posteriormente num curso ..........
25ª Foi sempre trabalhando, apesar da precariedade dos vínculos laborais que foi tendo.
26ª Estava à data da prática dos factos desempregado há cerca de um mês.
27ª Saindo da prisão teria já emprego garantido conforme declaração de promessa de emprego junta.
28ª Em meio exterior, conta com o apoio da sua progenitora que o visita em meio prisional.
29ª O arguido ao longo do julgamento declarou-se envergonhado e arrependido dos factos pelos quais foi condenado.
30ª Pediu acompanhamento psicológico no estabelecimento prisional para tentar perceber todo o sucedido.
31ª Tem tido um comportamento exemplar em meio de reclusão, estando a trabalhar como faxina.
32ª O tribunal “a quo” entendeu que os factos pelos quais o arguido foi condenado, se tratam de uma pluriocasionalidade, e não uma tendência criminosa.
33ª As penas parcelares deviam ter sido mais próximas do mínimo das molduras penais para cada ilícito, sendo mais justa pelos três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, a pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 1 ano e 6 meses de prisão, dos nove crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, a pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 4 anos e 6 meses de prisão, um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, atenta a convolação operada, a pena parcelar de 5 anos de prisão e um crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, a pena parcelar de 6 meses de prisão.
34ª Assim em cúmulo jurídico deveria ter sido aplicada uma pena que não exceda a medida da culpa, no caso nunca acima dos 9 anos de prisão, sob pena de se atingir a dignidade da pessoa humana, pelo que tal limite encontra consagração no art.º 40º do C. Penal.
35ª Nos termos do artigo 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma.
36ª Na determinação da pena conjunta impõe-se atender aos princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.
37ª A pena aplicada em cúmulo jurídico de 12 anos de prisão violou assim os critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º e 71º do Código Penal».
Respondeu o Ministério Público, pugnando pelo não provimento do recurso e assim concluindo:
«1. Entendeu o Tribunal Colectivo que da concretização indiciária dos factos já constantes da acusação resultou diversa qualificação jurídica dos factos, pois que aqueles, conjugados com os demais descritos na acusação e atinentes ao elemento subjectivo (dolo) agravado, foram considerados aptos a integrarem um crime de violação, p. e p. pelos artigos a 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP. – o que foi comunicado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º, n.º 3, do CPP.
2. Em face da atenta e arguta apreciação que mereceu a prova produzida, aliás exaustivamente fundamentada, e do rigoroso enquadramento normativo que subsequentemente incidiu sobre a matéria de facto dada como provada, considerou o Tribunal a quo que o arguido praticou:
- três crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171º, nº 1, do CP;
- nove crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo 171 n.ºs 1e 2 do CP, todos eles agravados pela al. b), do n.º 1, do art. 177º, do mesmo diploma;
- um crime de coacção p. e p. pelo art. 154º, n.º 1, também do CP; 3. E, ainda:
- um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP;
4. Com efeito, resultou provado (cfr. números 10º e 22º da matéria dada como provada) que o arguido empregou força física na medida requerida para conseguir constranger, como constrangeu, a menor a suportar o acto de natureza sexual a que a quis sujeitar: «perante a recusa da ofendida, o arguido puxou-lhe os cabelos com força, provocando-lhe dores, empurrou a cabeça da ofendida contra a almofada, ao mesmo tempo que puxou a sua mão atrás, como quem vai desferir um soco, o que não chegou a ocorrer, obrigando assim a mesma a ceder às suas pretensões», o que era o seu plano e intenção;
5. Tal implicou que resultasse consumido o imputado crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do CP, traduzindo-se tal violência na força física exercida pelo arguido sobre a ofendida na medida requerida para conseguir constrangê-la a suportar o acto sexual;
6. Pretende agora o recorrente que a força por si empregue nessa oportunidade não se apresentaria «suficientemente grave, violenta e idónea para impossibilitar a ofendida de resistir», mais afirmando que a prova produzida não permitiria afirmar que esses actos (de força) houvessem sido praticados com a intenção de obrigar a ofendida «ao que quer que fosse».
7. Mantendo presente que este recurso se cinge a matéria de direito, face todavia a tais afirmações do recorrente, somos a apontar, e sem quaisquer hesitações, que se nos afigura cristalino que outro objectivo não norteou essa concreta conduta violenta do arguido que não o de assim forçar a vítima, menor, a suportar os actos sexuais a que a queria sujeitar, como sujeitou;
8. Censura alguma merece o enquadramento normativo operado pelo Tribunal a quo, operação essa, subsequente a uma exaustiva e consistente fundamentação da matéria de facto provada, sempre de acordo com a racionalidade e as regras da experiência comum, foi igualmente justificada com clareza, lógica e saber, não podendo senão merecer a concordância desse Tribunal Superior;
9. E igual concordância nos merece o douto acórdão recorrido no que tange à fixação das concretas medidas das penas parcelares, bem como da pena única fixada;
10. Com efeito, na ponderação de cada uma das penas parcelares, avaliou o Tribunal o elevado grau de ilicitude dos factos e o elevado grau de culpa, plasmados nos factos cometidos, na intensidade do dolo (a revelar forte resolução criminosa em todas as situações), na circunstância de ter o arguido reiterado e intensificado em grau e modo a sua conduta, e ainda nas relevantíssimas consequências psíquicas causadas na ofendida;
11. Foram ainda correctamente sopesadas as elevadas e fortes exigências de prevenção geral, espelhadas na ressonância social e nos fortes sentimentos de repulsa gerados na comunidade pela repetição de actos desse jaez, que com persistente regularidade a chocam, não tendo igualmente o Tribunal deixado de valorar - de modo positivo para o arguido - o comportamento deste em audiência, onde admitiu factos relevantes e demonstrou vergonha;
12.Secundando as considerações nesta sede expendidas no douto acórdão recorrido, somos a reputar de justas e equilibradas as penas parcelares aplicadas ao arguido, não só pelo crime de coacção (pena 1 ano de prisão), mas também por cada um dos três crimes de abuso sexual de criança agravado (penas de 2 anos e 6 meses de prisão), por cada um dos nove crimes de abuso sexual de criança agravado (penas de 5 anos de prisão) e pelo crime de violação agravado (pena de 7 anos de prisão).
13. Tendo em conta a similitude de situações – e pese embora o período temporal das mesmas - considerou o Tribunal a quo que o conjunto dos factos em apreço seria ainda reconduzível a uma pluriocasionalidade, o que também nos suscita concordância;
14. Ora, face à moldura do concurso de crimes - entre o mínimo de 7 anos de prisão e o máximo de 25 anos de prisão –, sopesando-se a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e todas as circunstâncias relativas ao arguido, bem como a influência da pena conjunta sobre este, somos a concluir ser adequada e equilibrada afixação da pena única em doze anos de prisão - já que a mesma se afigura ter sido correctamente fixada entre um ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e um ponto inferior a esse onde ainda é minimamente efectiva e consistente essa tutela;
15.Em suma, censura alguma merece o douto Acórdão recorrido, não padecendo o mesmo de qualquer erro, anomalia ou deficiência, nomeadamente os apontados pelo recorrente».
Respondeu igualmente a assistente, pugnando pelo não provimento do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas):
«1. De acordo com a factualidade provada a conduta do arguido integra os elementos objectivos e subjetivos, do crime de violação agravado;
2. A recusa da ofendida, menor de 11 anos de idade; os puxões de cabelos com força; a provocação de dores; o empurrão da cabeça contra a almofada; o puxar a mão atrás como quem vai desferir um soco; a obrigação de aceder às suas pretensões; o meter o pénis na boca, friccionando-o em movimentos de vai e vem, constituem condutas graves de violência física e psíquica;
3. O conceito de “violência” nos termos do art. 164.º do CP afere-se com a referência a múltiplos fatores, tais como: a concreta pessoa da vítima e do arguido; a diferença de idades entre ambos; às circunstâncias espaciais, temporais e de ação na qual os factos foram praticados e contexto social e familiar.
4. Em relação a uma criança (menor de 11 anos de idade), recorrendo ao critério de um homem médio, a força empregue por um adulto (com 30 anos de idade) será sempre superior, e para praticar um ato de natureza sexual basta um pequeno uso da força ou de uma simples ameaça, sendo considerado violência;
5. A redação do art. 164.º do CP, utiliza a expressão “quem por violência”, referindo-se tanto à violência física, como à violência psíquica.
6. A violência do arguido sobre a menor verifica-se tanto no ato de puxar com força os cabelos da menor, como de empurrar a cabeça contra a almofada, como na exibição da mão levantada de punho cerrado “como quem vai desferir um soco”, como ainda, no momento de confronto para a prática do ato sexual, no constrangimento, no cercar a capacidade de resistência, no confronto de um histórico de situações semelhantes, no cenário de pressão e de insistências com o fim de concretizar e praticar o acto sexual de relevo qualificado, como na violência inerente ao próprio momento da prática do próprio ato sexual, extremamente doloroso e danoso para a menor, quer a nível físico, quer psíquico.
7. É por demais manifesto que o recorrente não tem a mais pequena razão na sua alegação, não fazendo qualquer sentido a crítica que faz ao Acórdão proferido.
8. Dúvidas não existem quanto à conduta do arguido e à verificação dos elementos que integram o crime de violação (art. 164.º n.º 2 al. a) do Cód. Penal).
9. As declarações da ofendida permitem, ao contrário do que o recorrente sustenta, obter um retrato da violência que o arguido exerceu e da traumática experiência de que a menor foi vítima;
10. As declarações da irmã da ofendida e da sua mãe e o Relatório Social dos autos, mostra como característica do arguido a sua pendência para a sistemática violência e agressão, reforçando a prova da existência de força grave, violenta e idónea em praticar os factos de que vinha acusado.
11. O Tribunal a quo foi extremamente cauteloso ao longo do processo de produção e concretização de prova, de forma a formular a sua convicção, sem dúvida, dando como provado, pelos factos praticados, que o arguido cometeu um crime de violação agravado.
12. A verificação do crime de violação, não depende exclusivamente dos atos enunciados nas alíneas do n.º 2 do art. 164.º do CP (“…por meio de violência, ameaça grave…”), pois basta a vítima ser constrangida para a prática do acto sexual de revelo qualificado, para se verificarem preenchidos os pressupostos do crime de violação, pelo que em circunstância alguma poderia o arguido ser absolvido de tal crime.
13. O recorrente ao motivar o não preenchimento dos requisitos do crime de violação, indicando que na verdade apenas se extrai a prática de um crime de ofensas à integridade física, de que já vinha acusado, admite, implicitamente, que os atos praticados consubstanciam um crime de violação.
14. A questão sobre a verificação do preenchimento dos requisitos do crime de violação reside na existência de conexão entre o crime de ofensas à integridade física e a prática do ato sexual de relevo que acontece posteriormente.
15. Pelo que a decisão proferida quanto à condenação do arguido pelo referido crime de violação não merece qualquer censura.
16. Consequentemente improcede o pedido do recorrente de querer reduzir o pedido de indemnização civil formulado, que se deve manter na sua totalidade.
17. No confronto entre a moldura penal abstrata de cada um dos ilícitos cometidos pelo arguido e a medida concreta da pena aplicada, verifica-se que as penas parcelares em que o arguido foi condenado, já se encontram muito próximas dos limites mínimos da moldura penal abstrata.
18. Reduzir as penas parcelares, como o recorrente pretende, para os valores mínimos seria incumprir com as finalidades e necessidades de prevenção criminal, descredibilizar a ilicitude das infrações por ele cometidas, desvalorizar a gravidade do conjunto dos factos praticados e não cumprir com as necessidades dessa mesma prevenção.
19. O Tribunal “a quo” atendeu às circunstâncias que depuseram a favor do arguido, e contra ele, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).
20. As circunstâncias e a gravidade do conjunto dos factos praticados, por ser muito elevada, impõe colocar um travão no comportamento do arguido e transmitir, de forma absolutamente clara, que este tipo de comportamentos não pode ser permitido ao próprio e a outrem.
21. Contrariamente ao defendido pelo recorrente, a medida da pena aplicada pelo tribunal a quo cumpre com medidas necessárias de tutela dos bens jurídicos violados, face ao caso concreto, num sentido de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência e validade das normas infringidas.
22. A condenação, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 anos de prisão, é a punição eficaz e adequada a sancionar o arguido, ora recorrente, pelo concurso de infrações praticadas e pelos crimes que praticou».
II. Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, suscitando como questão prévia a inadmissibilidade do recurso e, em caso de conhecimento do mesmo, o seu não provimento, com a seguinte fundamentação:
«(…)
A - Questão Prévia – Da Admissibilidade do Recurso
O recorrente AA alega e conclui em síntese:
- Ter sido violado o disposto no art. 164º, nº 2, al. a), do Cod. Penal, uma vez que os factos dados como provados, ou seja, os puxões de cabelos com força à ofendida BB, a provocação de dores, o empurrão da sua cabeça contra a almofada, o puxar a mão atrás como quem lhe vai desferir um soco, para a obrigar a ceder às suas pretensões, não consubstanciam a prática de um crime de violação, mas sim a prática de um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do Cod. Penal pelo qual vinha acusado;
- Estes factos foram dados como provados apenas com base nas declarações da ofendida BB, e não foram são suportados, nem indiciariamente, por qualquer outro meio de prova, não existindo um juízo de certeza sobre a sua prática, pelo que deverá valer o princípio da presunção de inocência do arguido, conforme dispõe o art. 32º da CRP, de que é corolário o princípio “in dubio pro reo”.
O recorrente AA põe em causa toda a factualidade dada como provada no ponto 10 da fundamentação do acórdão recorrido, por se alicerçar tão-somente nas declarações prestadas pela ofendida BB.
E, o recorrente AA também põe em causa que tal factualidade, mesmo que fundadamente dada como provada, permita concluir pela verificação do tipo de ilícito do crime de violação agravada p. p. pelo art. 164º, nº 2, al. a), e art. 177º, nº 7, ambos do Cod. Penal.
Ora, analisada em síntese a motivação do recurso interposto pelo recorrente AA, considera-se que o mesmo não se enquadrará nos poderes de cognição deste Supremo Tribunal, uma vez que o recorrente pretende, para além do mais, ver reapreciada a matéria de facto dada como provada no ponto 10 da respectiva fundamentação, e que conduziu a uma alteração da qualificação jurídica dos factos por si praticados, convolando o crime de ofensas à integridade física p. p. pelo art.º 143º, nº 1, do Cod. Penal, num crime de violação agravada, p. p. pelos arts. 164º, nº 2, al. a), e 177º, nº 7, ambos do Cod. Penal e, à data dos factos, p. p. pelos arts. 164º, nº 1, al. a), e 177º, nº 7, ambos do Cod. Penal.
Assim, o recorrente AA invoca a falta de objectividade e de análise crítica do Tribunal recorrido, na apreciação da prova produzida, e a insuficiência dessa prova para a decisão de facto, relativamente à sua condenação pela prática do crime de violação agravada, invocando a violação do princípio in dubio pro reo.
Decorre do art. 432º, nº 1, al. c), do Cod. Proc. Penal, que o recurso de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, e que visam exclusivamente o reexame de matéria de direito, são da competência do Supremo Tribunal de Justiça, sendo que se visarem também a apreciação de matéria de facto serão da competência do Tribunal da Relação.
Com efeito, o art. 434º, do Cod. Proc. Penal, estabelece que “(…) o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”, sem prejuízo de se conhecer oficiosamente de qualquer um dos vícios da sentença, previstos no nº 2, do art. 410, do Cod. Proc. Penal, caso se verifiquem.
Contudo, se o recurso visa também a decisão de matéria de facto, terá de ser interposto para o Tribunal da Relação, que conhece de facto e de direito – cfr. os arts. 427º e 428º, ambos do Cod. Proc. Penal.
No caso, o recorrente AA invoca erro de julgamento e errada apreciação da prova, impugnando a matéria de facto e a fundamentação do acórdão recorrido que determinou, para além do mais, a sua condenação pela prática do crime de violação agravada, por considerar que não está preenchido o tipo de ilícito deste crime, e afirma que a decisão recorrida violou o princípio in dubio pro reo, princípio este que se reconduz igualmente à discordância sobre a decisão de facto.
Ora, o princípio in dubio pro reo, é um princípio relativo à prova, ou seja, é um princípio que implica uma análise da prova recolhida, no sentido de apurar se a mesma foi ou não relevante para a fixação da matéria de facto, e para a prolação da decisão.
Desta forma, o princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório, significando que, no caso de falta de prova sobre determinado e/ou determinados factos, a dúvida resolve-se a favor do arguido, vigorando o princípio da presunção de inocência, enunciado no art. 32º nº 2, da CRP, o qual constitui uma das garantias do arguido em processo criminal.
Assim, saber se o Tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, quanto à factualidade que deu como provada, e que o recorrente AA ora questiona, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista.
Daí, que, versando o presente recurso também a apreciação da decisão de facto, entende-se que este Supremo Tribunal não poderá conhecer do mesmo.
Face ao exposto, entende-se que se deverá declarar a incompetência deste Supremo Tribunal para conhecimento deste recurso devendo os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação ....., por ser o competente para a sua apreciação.
Caso assim não se entenda, considera-se que não assiste razão ao recorrente AA, subscrevendo na íntegra a resposta apresentada pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público em 1ª Instância, que conclui pela improcedência do recurso.
Cabendo sublinhar que a conduta do recorrente AA se prolongou por mais de um ano, tendo-se aproveitado não só da idade da menor BB, como também da ascendência que exercia sobre a mesma, entendendo-se que os factos por si praticados revelam características de personalidade altamente censuráveis, que demandam uma particular necessidade de socialização, uma vez que se lhe impunha, enquanto pessoa que vivia em situação análoga à dos cônjuges com a mãe da menor, que assumisse uma conduta respeitadora dos valores em família, mormente protegendo o desenvolvimento saudável da menor, sendo também de atender às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente a este tipo der criminalidade, e à frequência com que é cometido por todo o país.
No caso, releva a elevada intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo, os fins e os motivos que determinaram a conduta recorrente AA – a satisfação da lascívia e desejo sexual – aproveitando-se da proximidade e da ascendência sobre a menor BB, a circunstância de esta ter sido coagida a guardar silêncio no seio familiar, durante cerca de um ano e meio, dos abusos sexuais que estava a ser vitima, o muito elevado grau de ilicitude, atenta a sua reiteração; a forma como os actos foram praticados, a não interiorização da gravidade e do desvalor das sua condutas, circunstâncias que foram devidamente consideradas e valoradas na determinação da medida da pena única, face às molduras penais correspondentes a cada um dos crimes praticados, entendendo-se não existir fundamento legal para a aplicação de uma pena única inferior».
Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não se registou qualquer resposta.
III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.
São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.
No essencial, são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
A) a factualidade apurada não permite a imputação ao arguido da prática de um crime de imputado de violação agravada, p. e. p. pelo art.º 164º, n.º 2 al. a) do C. Penal?
B) São excessivas e devem ser reduzidas as penas parcelares e única aplicadas ao arguido?
IV. O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. O arguido AA, nascido a ... de Maio de 1988, vivia em união de facto com CC, com quem tem três filhos: a DD, a EE e o FF, então, com 14, 6 e 3 anos de idade, respectivamente.
2. A CC tem ainda outra filha, a BB, nascida a ... de Abril de 2007, sendo que esta sempre viveu com a sua mãe e irmãos e ainda, a partir dos seus quatro anos, com o arguido, com quem mantinha uma relação de pai e filha.
3. À data dos factos que a seguir se descreverão, viviam todos na Alameda ........, em ..... .
4. Num dia não concretamente apurado, mas situado no ano de 2018, contava a ofendida BB, pelo menos, 11 anos de idade, logo em data posterior a ... .04.2018, estando o arguido e a menor sozinhos em casa, mais precisamente na sala, aquele meteu a sua mão por dentro da roupa desta e começou a mexer-lhe e a apalpar-lhe o peito (mamas).
5. Os mesmos factos aconteceram no dia seguinte e, pelo menos, mais uma vez, sempre dentro da referida casa de habitação, tendo o arguido voltado a meter as mãos por dentro da roupa da ofendida e apalpado as mamas desta.
6. Na sequência dos factos descritos em 4) e 5), o arguido disse à ofendida, por repetidas vezes, para não relatar nada à sua mãe, ameaçando que lhe batia caso o fizesse.
7. Por ter receio de ser agredida pelo arguido, a ofendida nada relatou do sucedido então, nem posteriormente, a quem quer que fosse.
8. Posteriormente, em data não concretamente apurada e de modo que não foi possível apurar, o arguido abordou a ofendida, sugerindo-lhe fazer sexo oral, o que esta recusou.
9. No dia ... .02.2019, data de aniversário da filha do arguido de nome DD, depois da mãe da ofendida ter saído de casa na companhia da aniversariante para preparar a festa de anos em casa da mãe do arguido, este voltou a abordar a ofendida, apalpou as mamas da mesma, e, a certa altura, disse-lhe para fazer sexo oral, o que a ofendida recusou.
10. Perante a recusa da ofendida, o arguido puxou-lhe os cabelos com força, provocando-lhe dores, empurrou a cabeça da ofendida contra a almofada, ao mesmo tempo que puxou a sua mão atrás, como quem vai desferir um soco (o que não chegou a ocorrer), obrigando assim a mesma a ceder às suas pretensões, tendo metido o seu pénis dentro da boca da ofendida, aí o friccionando em movimentos de vai e vem.
11.A partir daquele mês de Fevereiro e, pelo menos, nas duas semanas seguintes, em datas não concretamente apuradas, mas com uma frequência, pelo menos, de duas vezes por semana, aproveitando a circunstância da mãe da ofendida sair de casa, o arguido introduzia o pénis da boca da ofendida, fazendo movimentos de vai e vem.
12. Em data não apurada, mas situada em meados no mês de Maio de 2019, no interior da referida residência, na sala, o arguido voltou a abordar a ofendida, e com o pénis de fora das calças, pediu àquela para lhe mexer, o que a menor fez, e para o chupar, o que a menor recusou inicialmente, mas a insistências suas acedeu, acabando assim por introduziu o seu pénis na boca da ofendida, fazendo movimentos de vai e vem.
13. Em data anterior, mas próxima a ... de Junho de 2019, no interior da referida residência, na sala, o arguido voltou a abordar a ofendida nos termos descritos em 12), pedindo à mesma para lhe mexer no pénis e para o chupar, acabando assim por introduziu o seu pénis na boca daquela, fazendo movimentos de vai e vem.
14. No período de tempo anterior a ... .11.2019, em data não concretamente apurada, mas próxima daquele dia, pelo menos uma vez, o arguido abordou a ofendida, introduziu o seu pénis na boca daquela, fazendo movimentos de vai e vem e, de seguida, introduziu o seu pénis no ânus da ofendida, fazendo, também, movimentos de vai e vem.
15. No dia ... de Novembro de 2019, sábado, quando os irmãos da ofendida, a EE e o FF, se encontravam também em casa, numa altura em que a ofendida estava na sala, o arguido introduziu o pénis na boca daquela, fazendo movimentos de vai e vem e de seguida, introduziu o seu pénis erecto no interior do ânus daquela, até ejacular.
16. Os mesmos actos voltaram a acontecer na noite de ... de Dezembro de 2019, na sala, tendo o arguido colocado o seu pénis no interior da boca da ofendida, aí fazendo movimentos de vai e vem e, após, introduziu-o no interior do seu ânus, aí fazendo movimentos de vai e vem, até ejacular.
17. Os factos supra descritos ocorriam, sempre quando a mãe da ofendida e companheira do arguido, não estava em casa, ora na cama da ofendida, ora no sofá na sala da habitação.
18. Quando ejaculava o arguido fazia-o sempre para fora da ofendida.
19. Sempre que ocorriam estes actos sexuais, o arguido apalpava as mamas da ofendida e passava o dedo, sem introduzir, na sua vagina.
20. Em consequência da introdução do pénis do arguido no ânus da ofendida, esta sentia muitas dores.
21. Em cada momento em que agiu nos termos descritos, apalpando as mamas da ofendida, introduzindo o seu pénis na boca e ânus e passando o dedo na vagina daquela, o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de satisfazer os seus próprios impulsos e desígnios sexuais, bem sabendo que a menor BB, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e discernimento necessários a uma livre decisão.
22. O arguido praticou os seus actos, aproveitando-se das circunstâncias de morarem na mesma casa e de ser o companheiro da mãe da ofendida e pai dos meios irmãos desta, o que lhe conferia grande proximidade e ascendência sob a mesma, ascendência essa intensificada por ser uma pessoa violenta, tanto que quis ofender corporalmente a ofendida, o que conseguiu e como descrito em 10), sabendo que lhe provocaria dores com a sua conduta e, por via disso, ciente da incapacidade da ofendida de lhe resistir.
23. O arguido praticou ainda, cada um dos seus actos, bem sabendo que a menor BB tinha 11 anos de idade, aquando da prática do primeiro acto sexual com a mesma e que não tinha qualquer experiência sexual anterior, circunstâncias que lhe foram completamente indiferentes e que não o impediram de satisfazer os seus instintos libidinosos.
24. Sabia pois, o arguido que os factos que praticou com a menor prejudicavam um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela e bem assim afectavam a sua autodeterminação sexual, o que também não o demoveu da sua conduta.
25. Agiu também, com o propósito, conseguido, que a ofendida, mediante a ameaça de ofensa à sua integridade física, não relatasse a ninguém que a obrigava a práticas sexuais, querendo e conseguindo limitar, assim, a sua liberdade de determinação e comportamento.
26. O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
27. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sentiu medo, sofreu dores intensas, sofreu de ansiedade, passou a ter dificuldade em dormir, andava triste e chorava.
28. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida viu ferida a sua dignidade e tinha medo que descobrissem os abusos de que era vítima.
29. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida apresenta uma clara tendência a estruturar-se numa personalidade limite (borderline), apresentando elevações significativas nas escalas introvertida, pessimista, submissa e autopunitiva, tendendo a funcionar num registo mais passivo, indiferente e pouco sociável, ainda que revele simultaneamente dificuldades na gestão dos seus impulsos, dos seus conflitos e das suas emoções, estando presente um transversal sentimento de abandono e de desesperança no futuro.
30. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida revela particular dependência interpessoal, com grande necessidade de apoio externo e de atenção, demonstrando elevado grau de ansiedade e de tristeza subjectiva, o que a torna mais susceptível em termos interpessoais.
31. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida revela uma acentuada difusão da sua identidade, desagrado pelo seu corpo, com elevada auto desvalorização e apresenta sentimentos de inferioridade.
32. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sente-se envergonhada.
33. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida encontra-se muito traumatizada, revive e culpa-se do sucedido, apresenta uma combinação de elevações perigosa para a sua integridade física e psíquica, evidenciando uma elevação muito significativa nos sentimentos depressivos, ansiosos, impulsividade e tendência ao suicídio.
34. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida apresenta um grau de afectação e de sofrimento psicológico acentuado, com consequências relevantes a nível psicossocial, com afectação ao nível da forma como se tende a relacionar com os pares e com os adultos, com conteúdos depressivos e de natureza pós-traumática relevantes, ao que acresce particular ideação suicida, sendo extremamente importante ter acompanhamento psicológico regular.
35. A ofendida, para sua protecção, teve que deixar a casa onde vivia, a escola que frequentava, as colegas e amigas com quem convivia, passando a viver num ambiente habitacional e escolar diferente, longe do seu e estranho.
36. Ainda, por força dos acontecimentos que viveu teve que se sujeitar a exames, a perícias, a toma de medicação, a perguntas e a dar respostas sobre os acontecimentos que viveu numa fase da sua adolescência inicial, que não foi, nem é, normal.
37. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida viu prejudicado o seu desenvolvimento harmonioso.
38. Na data dos factos, o arguido tinha 30 e 31 anos de idade.
39. O arguido admitiu factos relevantes e demonstrou vergonha.
40. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sofrido as seguintes condenações:
• Por decisão transitada em julgado a 09.08.2010, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática em ... .07.2010 de um crime de condução sem habilitação legal; esta pena veio a ser substituído por 119 horas de trabalho a favor da comunidade e encontra-se declarada extinta pelo cumprimento a 07.02.2011.
• Por decisão transitada em julgado a 13.04.2012, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática em ... .03.2009 de um crime de condução sem habilitação legal; esta pena encontra-se declarada extinta pelo cumprimento a 10.05.2012.
Mais se provou:
41. D........., Lda, juntou uma declaração aos autos, datada de 26.08.2020, subscrita pelo seu sócio gerente, na qual se lê que “precisa de funcionários para a sua empresa, pelo que irá dar emprego a AA (…). Mais declara que, assume assim a responsabilidade de conceder emprego ao Senhor AA, para dessa forma o mesmo poder ter uma vida normal, assegurando a sua sobrevivência, pautando-se por regras de boa conduta.”
42. Como se fez constar do relatório social do arguido:
“I - Dados Relevantes do Processo de Socialização.
AA descende de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica, composto pelos progenitores e uma irmã mais velha, ambiente onde beneficiou de um sistema educativo baseado na imposição de regras e transmissão de valores adequados à vivência em sociedade. O progenitor faleceu, contava o arguido cerca de 11 anos, de modo repentino, acontecimento que causou acentuado transtorno pessoal e familiar.
A escolaridade foi iniciada em idade própria, manifestando desde cedo pouca motivação para as actividades lectivas e que se acentuou após o falecimento do progenitor. Neste contexto, acabou por abandonar o sistema de ensino aos 14 anos de idade, habilitado com o ...º ciclo do ensino básico.
Refere ainda ter frequentado o ...º ciclo através de curso de formação na área ........., mas sem concluir.
Aos 15 anos de idade encetou vida laboral activa para apoiar a progenitora na economia doméstica.
Desenvolveu várias actividades de curta duração, nomeadamente como aprendiz de ........., ........., em empresa ........., e como indiferenciado nos “.........”. É nesta empresa que aprende a profissão de ......... e ali passa a trabalhar nessas funções. Entretanto, passou por várias entidades patronais nessa área de actividade, mudanças que, segundo o arguido, prenderam-se com a vontade em encontrar melhores condições de trabalho. Refere ter sido no ........./......... “.........” onde permaneceu mais tempo (de 2010 a 2016) e onde obteve melhores condições de trabalho. Durante os anos de 2017 e 2018 frequentou curso de ......................... por intermédio do Instituto de Emprego e Formação Profissional.
AA refere hábitos regulares de consumo de substâncias cannabinoides desde os 18 anos e que manteve até aos 30 anos de idade.
No domínio afectivo, AA refere ter vivido o primeiro relacionamento significativo aos 16 anos de idade, com a mãe da ofendida, tendo experimentado a paternidade cerca de um ano depois. Contudo, este relacionamento acabou em ruptura, segundo o arguido devido a desentendimentos com os pais da ex-companheira.
Aos 18 anos iniciou novo relacionamento amoroso, do qual também resultou uma filha, agora com 13 anos de idade e com quem refere contactos em meio livre. Este relacionamento teve a duração de dois anos e terminou, segundo o arguido, devido a incompatibilidades entre o casal.
Em 2009, contava o arguido cerca de 21 anos de idade, reatou o relacionamento com a sua primeira companheira e mãe da ofendida. Caracteriza o relacionamento conjugal como gratificante e sem registo de conflitualidade significativa, mencionando apenas discussões que avalia como normais na conjugalidade.
Numa fase inicial o casal residiu autonomamente em casa arrendada, vindo depois a morar, durante cerca de um ano e enquanto aguardavam pela atribuição de casa camarária, entre a residência da mãe do arguido e a residência dos sogros, ambos domiciliados na zona ........, .......... O agregado foi, entretanto, ampliado com o nascimento de mais dois descendentes.
II – Condições Sociais e Pessoais
No período a que reportam os factos, AA residia com o seu agregado familiar composto pelo casal, 30 e 32 anos de idade, pelos três descendentes de ambos, com idades compreendidas entre os 14 e os 3 anos, e pela ofendida/enteada do arguido, de 11 anos de idade.
Este núcleo familiar habitava um apartamento de tipologia 3, inserido em empreendimento social da cidade ........., meio de características urbanas e conotado com problemáticas socias e criminais.
Segundo a ex-companheira, o relacionamento intrafamiliar era pautado por disfuncionalidades, nomeadamente comportamentos quer físicos quer verbais agressivos e violentos perpetrados pelo arguido sobre os descendentes e sobre ela. No campo da intimidade e segundo a mesma fonte, AA assumia um papel de controlo sobre a sua parceira, por vezes forçando à prática sexual e não demonstrando afecto/carinho para com aquela. Por outro lado, adoptava atitudes de vitimização, auto mutilando-se e proferindo ameaças de suicídio, após confrontos.
Ao nível laboral e no período em apreço, AA estava activo como ........., exercendo funções nos “............”. Por seu lado, a ex-companheira trabalhava em regime informal na área ............ e beneficiava do rendimento social de inserção.
A condição económica do agregado era avaliada como modesta, mas capaz de se adequar às necessidades do agregado fazendo uso de uma gestão criteriosa dos recursos.
AA refere um quotidiano centrado na sua actividade laboral e no convívio familiar, não estabelecendo interacção significativa com grupo de pares.
Cerca de um mês antes da reclusão ficou em situação de desemprego.
À data mantinha ainda consumos regulares de cannabis, comportamento que refere ter cessado cerca de 6 meses antes da reclusão.
No meio social de residência, o arguido possui uma imagem negativa. É descrito como rude no trato, sendo ainda relatada a percepção de situações de conflito e agressividade em contexto familiar.
Por seu lado, AA autoavalia-se como uma pessoa trabalhadora e empenhada em proporcionar uma vida confortável ao seu agregado familiar, rejeitando ainda qualquer característica de agressividade.
Actualmente quer a ofendida quer a ex-companheira e descendentes do casal estão a residir na zona .............., tendo sido acolhidos em casa abrigo.
AA não consegue ainda delinear planos quanto ao seu futuro em meio livre, aguardando pela definição da sua situação jurídico-penal. Contudo, mostra-se focado em retomar os contactos e recuperar a ligação com os descendentes.
III – Impacto da Situação Jurídico-Penal
AA deu entrada no Estabelecimento Prisional........ em 05/12/2029 no âmbito da medida de coacção de prisão preventiva aplicada nos presentes autos.
O arguido verbalizou o reconhecimento da ilicitude de comportamentos da mesma natureza dos subjacentes aos presentes autos, bem como do dano causado nas potenciais vítimas, apresentando um discurso em conformidade com o que é socialmente expectável.
AA autocentra o impacto negativo da presente situação jurídico-penal, salientando as consequências que acarretou para a sua vida pessoal/familiar e dizendo-se entristecido perante os factos que pendem sobre si.
O presente processo terá tido significativo impacto em termos sociais, atendendo à natureza dos factos e ao alarme social implícito.
Segundo o que apuramos a ofendida está a ser acompanhada em consultas de psicologia, dadas as repercussões ao nível da sua estabilidade psicoemocional.
A progenitora do arguido apresenta uma atitude de grande receptividade no que respeita ao apoio que pretende dar ao filho, acreditando na sua inocência.
Em meio prisional, o arguido tem mantido um comportamento adequado ao normativo disciplinar vigente e regista ocupação laboral como faxina, desde .../05/2020.
Por sua iniciativa solicitou acompanhamento psicológico, ao qual tem vindo a demonstrar adesão.
AA recebe visitas regulares da progenitora.
IV – Conclusão
O processo de desenvolvimento psicossocial de AA ficou marcado pela perda da figura paterna em idade precoce, factor que terá contribuído para acentuar as suas fragilidades pessoais e que impediram a sua progressão académica e profissional, associado ao consumo de substâncias cannabinoides.
Desenvolveu trajectória laboral indiferenciada e exercida em regime informal até estabilizar como ........., embora com registo de mobilidade patronal.
À data da reclusão estava em situação de desemprego há cerca de um mês.
No domínio afectivo, AA refere o relacionamento com a ex-companheira e mãe da ofendida como o mais significativo, caracterizando-o como gratificante e harmonioso, em antítese à opinião da ex-companheira que o avalia como controlador, conflituoso e agressivo, quer com ela própria quer com os descendentes.
Em meio livre dispõe do apoio da progenitora, elemento que se mostra desculpabilizante e protector.
Em caso de condenação, consideramos que o processo de reinserção social de AA estará dependente da devida interiorização da ilicitude dos actos praticados, particularmente ao nível do respeito pelo direito à liberdade e autodeterminação sexual, para o que poderá ser necessária uma avaliação especializada com vista a determinar a eventual necessidade de acompanhamento no âmbito da desviância sexual.”
O tribunal a quo entendeu que não resultaram provados “quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, não escritos, contrários ou incompatíveis com os provados”, designadamente:
«a) Nas circunstâncias descritas em 4), o arguido dirigiu-se à menor BB e disse-lhe: “vamos ter uma relação sexual”.
b) Os factos descritos em 4) e 5) ocorreram com a mãe da ofendida em casa.
c) No mês de Fevereiro de 2019, o arguido voltou a abordar a ofendida e, por um número de vezes não concretamente apurado, voltou a apalpar as mamas da ofendida, sempre por baixo da sua roupa.
d) Os factos descritos em 9) e 10), ocorreram poucos dias antes de 16.02.2019, depois da mãe da ofendida ter saído de casa para entregar uns ..., tendo o arguido, a certa altura, dito à ofendida e repetido por várias vezes: “chupa-me a piça”.
e) Nas circunstâncias descritas em 9) e 10), o arguido disse à ofendida: “não brinques comigo. Eu vou-te foder os cornos”.
f) Em data não apurada, mas situada em meados no mês de Maio de 2019, no interior da referida residência, na sala, o arguido disse para a ofendida “agora vou-te comer o rabinho”.
g) O arguido retirou-lhe a roupa, colocou-a de gatas e introduziu o seu pénis erecto no interior do ânus da ofendida, aí fazendo movimentos de vai e vem.
h) Depois daquela data e, pelo menos, até ao São João (final do mês de Junho), por um número de vezes não concretamente apurado, mas cerca de duas vezes por semana, sempre no interior da residência, o arguido abordou a ofendida e obrigou-a a fazer sexo oral, o que acontecia, dizendo-lhe que tinha que ficar grande para entrar no buraco.
i) De seguida, o arguido introduzia o seu pénis no ânus da ofendida, fazendo movimentos de vai e vem. No final, o arguido ejaculava sobre si próprio. Sempre que ocorriam estes actos sexuais, a ofendida tirava a roupa toda, a mando do arguido».
E desta forma fundamentou o tribunal a sua convicção:
«O Tribunal alcançou a sua convicção na análise critica e comparativa da prova produzida, sempre em conjugação das regras da experiência comum, a saber:
Desde logo valoraram-se os seguintes documento e perícias.
- Autos de apreensão de fls. 19 (pijama de flanela da ofendida) e de fls. 54 (dois edredões);
- Relatórios dos exames periciais de fls. 20 a 23 (ao pijama da ofendida) e 55 a 58 (aos edredões apreendidos);
- Print do CC do arguido de fls. 89;
- Relatórios de perícia de natureza sexual de fls. 148 a 150 (cuja data do exame é de 03.12.2019, tendo sido realizada colheita nas cuecas que a ofendida usaria antes e após o evento e recolhida amostra em zaragatoa da região perianal, enviadas ao Serviço de Genética e Biologia Forense para pesquisa de DNA heterólogo) e de fls. 434 a 438 (cumprindo aqui salientar que não foram detectadas lesões ou sequelas sugestivas de traumatismos na região anal e perianal. Contudo, tal não significa que o acto sexual não tenha ocorrido, uma vez que num grande número de situações similares não resultam vestígios);
- Elementos clínicos da ofendida – resumo de episódio de urgência do Hospital ............, de 03.12.2019 - de fls. 228 a 238;
- Participação de fls. 368, na medida em que identifica como participante GG, testemunha nestes autos.
- Relatório pericial criminalística biológica de fls. 372 a 373, de onde se retira que, na zaragota anal foi identificado um perfil genético de mistura (feminino e masculino, XY), compatível com os perfis genéticos da vítima BB e de indivíduos do sexo masculino. Na parte inferior do pijama da ofendida e apreendido nestes autos foi observada e analisada mancha de substância de cor amarela situada na face póstero-superior direita, tendo sido identificado um perfil genético de mistura (feminino e masculino, XY), compatível com os perfis genéticos da vítima BB e de indivíduos do sexo masculino, concluindo-se quanto à natureza do material biológico que as provas de orientação e de certeza confirmaram a presença de sémen na mancha analisada no pijama e que o ADN do cromossoma Y identificado na zaragatoa anal e na mancha do pijama tem presente o mesmo haplótipo.
- Relatório pericial criminalística biológica de fls. 459 a 461, onde se concluiu que, o estudo da amostra analisada, na mancha da parte inferior do pijama da ofendida e apreendido nestes autos, revelou a presença de um perfil genético de mistura (feminino e masculino, XY), compatível com os perfis da vítima e do arguido AA; na zaragatoa anal, revelou a presença de um perfil genético de mistura (feminino e masculino, XY), compatível com os perfis da vítima e do arguido AA;
quanto ao ADN do cromossoma Y, o estudo para a identificação de material biológico de origem masculina, revelou na referida mancha do pijama e na zaragatoa anal a presença do mesmo haplótipo do cromossoma Y, coincidente com o haplótipo do arguido AA;
- Relatório da perícia médico-legal de psicologia de fls. 482 a 486;
- Declaração de fls. 619, cujo conteúdo se refere a uma oferta/promessa de emprego respeitante ao arguido;
- Certificado de registo criminal do arguido e respectivo relatório social.
O relatório de diligências iniciais de fls. 2 a 8, contendo declarações da ofendida e de testemunhas nestes autos não pode ser valorado, conforme art. 356º, do CPP, à contrário.
O aditamento de fls. 370, mostra-se irrelevante e não foi confirmado por quem o elaborou.
O arguido prestou declarações confirmando, desde logo, a factualidade vertida em 1) a 3) dos factos provados e explicou que tratava a menor BB tal como tratava os seus filhos.
Quanto aos factos integradores de responsabilidade criminal, negou-os, com excepção dos factos atinentes a Maio, Junho, 30 de Novembro e 2 de Dezembro de 2019.
Disse, assim, que os factos só tiveram início em Maio de 2019, em data que não recorda, quando se encontrava em casa apenas na companhia da ofendida BB. Disse que desapertou as calças, colocou o pénis de fora, pedindo à menor para lhe tocar com as mãos, o que a menor não recusou, tendo mexido no seu pénis. Depois pediu à menor para ela “chupar”, o que aquela recusou inicialmente, mas a insistências suas, acabou por aceder, assim tendo mantido sexo oral com aquela.
Em Maio só aconteceu uma vez.
Depois em Junho, uns dias antes da festa de S. João, voltou a ter sexo oral com a ofendida, tudo tendo acontecido exactamente da mesma forma que em Maio.
No dia 30 de Novembro, à noite, em casa, mais precisamente na sala, encontrando-se sozinho com a ofendida, manteve sexo oral com a mesma, confirmando que fazia movimentos de vai e vem na boca da menor com o seu pénis.
De seguida sugeriu à menor “vamos fazer sexo anal”, sendo que a ofendida nem sabia o que isso era.
Confessou que introduziu o pénis no ânus da menor e que fez movimentos de vai e vem, assim mantendo sexo anal com a mesma.
No dia ... de Dezembro de 2019, voltou a manter sexo oral e anal com a ofendida, nas mesmas circunstâncias de espaço e modo que referiu atinentes a dia ... de Novembro.
Disse que a menor nunca se queixou de dores e que usou preservativo, alegações não corroboradas por qualquer outro meio de prova, antes infirmadas, não logrando convencer o Tribunal.
Mais referiu que ejaculava sempre para fora do corpo da ofendida.
Referiu que agia assim quando a mãe da ofendida saia de casa, nomeadamente, quando ia às compras, tendo sempre escondido daquela os factos.
No dia de anos da sua filha DD - ... .02.2019 -, toda a família foi junta para casa da sua mãe, ao princípio da tarde, com vista a aí fazerem a festa de anos.
Alegação infirmada pela demais prova produzida.
Solicitou tratamento psicológico no EP para perceber o que tinha feito.
Declarou-se arrependido e envergonhado por o que fez, sendo que o arrependimento demonstrado, traduzindo-se numa admissão parcial dos factos visando, naturalmente, uma menor punição, não convenceu o Tribunal de um genuíno e verdadeiro arrependimento.
Ao invés, tornou-se patente a vergonha sentida pelo arguido.
Para além do admitido pelo arguido foram determinantes as declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB (fls. 379 a 396 e CD de fls. 399), nos termos conjugados dos artigos 271.º, nºs 1 a 6 e 8, 355.º, nºs 1 e 2, e 356.º, nº2, al. a), do CPP, à luz do Ac. STJ de fixação de jurisprudência n.º 8/2017, de 21/11, in DR n.º 224/2017, Série I de 2017-11-21.
Constata-se que no relato que faz dos factos, a ofendida revela alguma resistência e desgaste, mas acaba por, de forma sofrida, espontânea e credível, prestar o seu depoimento, evidenciando que este não foi estudado ou ensaiado.
Neste passo, atendemos ainda ao relatório da perícia médico-legal de psicologia a fls. 482 a 486, o qual corrobora, de modo seguro e objectivo, a verosimilhança e veracidade da versão dos factos apresentada pela ofendida.
Com efeito, conclui-se naquela perícia que a ofendida apresenta “um discurso espontâneo, organizado, relativamente detalhado, contextualizado e compreensível sobre os factos em apreço, revelando um desenvolvimento cognitivo e linguagem adequada para a sua idade e um grau de maturidade cognitiva expectável e normativo.”
Também evidenciou uma narrativa “consistente e credível” e “boas capacidades para conservar memórias, para reproduzir acontecimentos por si vivenciados e para os compreender, avaliar e relatar de forma integra, não se observando qualquer tendência para a existência de episódios de efabulação, relativamente aos eventos em apreço nos autos.” (cfr. fls. 486).
Neste conspecto, o Tribunal conferiu inteira credibilidade às declarações para memória futura da ofendida, tanto mais que não se descortinou naquelas um qualquer interesse em deliberadamente prejudicar o arguido.
Sintetizando as declarações da ofendida.
A ofendida começa por identificar o arguido pelo seu nome completo, como sendo a pessoa que a criou desde os 4 anos de idade e como sendo seu pai, pois era o companheiro da sua mãe.
Referiu que na última casa em que a família viveu, sita no ........., em ........., o arguido violava-a, explicando que tudo começou, na sala, tendo aquele começado a mexer no seu peito. Disse-lhe que ia dizer à mãe, altura em que foi advertida pelo arguido para não o fazer, caso contrário batia-lhe.
Perante tal advertência, nada contou, e no dia seguinte o arguido mexeu-lhe da mesma forma e na vagina “e depois disso ele continuou, até que um dia ele me bateu”.
Ao princípio o arguido só lhe tocava, apalpando-a por baixo da roupa, posteriormente começou a dizer-lhe que queria fazer sexo oral.
Não podia contar nada, pois o arguido dizia-lhe que lhe batia, até que um dia bateu.
Bateu-lhe no dia de anos da irmã, quando a mãe saiu para arranjar as coisas para a festa em casa da avó. Agarrou-a pelos cabelos, arremessou-a contra uma almofada e puxou a mão para lhe dar um soco, não tendo chegado a desferi-lo. Assim foi obrigada a fazer sexo oral com o arguido.
Passou a manter relações de sexo oral com o arguido quando a mãe saía de casa.
Depois foi sexo anal.
Depois da primeira vez que fez sexo anal com o arguido, passou a ser sempre que a mãe saía de casa. “Começou a ser sexo oral e anal”.
Sempre que tal acontecia (relações de sexo oral e anal), o arguido mexia-lhe no peito e passava o dedo na sua vagina.
Quando ejaculava o arguido limpava para a mãe não se aperceber.
Essencialmente os factos ocorriam na sala ou no próprio quarto da ofendida.
Referiu como a conduta do arguido a incomodava e que tinha muitas dores nas relações de sexo anal.
Relativamente ao dia ... de Dezembro de 2019 disse que os factos ocorreram à noite.
Durante aquele período de tempo nunca contou nada a ninguém com medo que o arguido lhe batesse.
Disse ainda que na escola estava muito em baixo, mas que gostava de estar na escola, porque queria fugir.
Sofre de pesadelos, menos agora.
Situando os factos referiu que “foi para aí desde os meus 10 anos”.
Tudo começou estaria no 5º ou 6º ano de escolaridade.
Quanto ao número de vezes referiu que foram muitas e tal ocorria quando a mãe saía, para ir às compras (todas as semanas, cerca de três vezes por semana).
O arguido aproveitava as saídas da mãe, obrigando-a a ficar em casa, caso contrário, batia-lhe.
Referiu que os factos ocorreram ao longo de 2 anos e só cessaram quando contou o que se passava, numa terça-feira, a uma colega de escola, de nome HH (que por sua vez contou à psicóloga da escola), tendo sido vítima do arguido no dia anterior.
Quanto à prática apenas de sexo oral referiu que a mesma decorreu durante 2 ou 3 semanas e quanto à prática de sexo anal, antecedido de sexo oral, disse que a mesma decorreu durante cerca de um mês, sempre quando a sua mãe saia de casa.
Coloca-se, neste momento, um concreto problema traduzido em como ultrapassar a incerteza do número de crimes quando, pelo tempo já decorrido e pelo anseio da vítima em não mais falar dos factos, como claramente transparece das declarações para memória futura que prestou, a mesma não o precisa com a necessária segurança.
A solução está em identificar tanto quanto possível e rigorosamente os actos lesivos e punir aqueles que não oferecem dúvidas.
Ora do declarado pela ofendida podemos afirmar que os factos ocorreram, pelo menos, em dois anos distintos, pelo que tendo ocorrido o último acto a ... .12.2019 (facto admitido pelo arguido), o primeiro, os factos iniciais, ocorreram em 2018, quando a menor frequentava o 5º ano de escolaridade, contaria 11 anos de idade.
Ora, a ofendida afirmou sem dúvidas que os factos descritos em 4) ocorreram, de novo, no dia seguinte e em muitas outras vezes, pelo que não se vislumbrando qualquer outra prova a produzir para apurar o exacto número de vezes em que a primeira ofensa se reiterou, impõem as regras da experiência e da normalidade do acontecer que se conclua que tal aconteceu, no dia seguinte e pelo menos, por uma outra vez, número que, a pecar, pecará por defeito, mas que respeitará o princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P.
Os factos vertidos em 9) e 10) tiveram por base as já referidas declarações da ofendida por referência a uma data concreta, o dia de anos da irmã DD.
O facto vertido em 11) teve por base as declarações da ofendida, conjugadas com as declarações da sua mãe, que infra se referem, impondo as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer que se conclua pelo consignado número de vezes, número este que a pecar, pecará por defeito, mas que respeitará o princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P.
Os factos descritos em 12), 13), 15) a 17), obtiveram a confirmação do arguido.
O facto vertido em 14) teve por base as declarações da ofendida que referiu que a prática de sexo anal, antecedido de sexo oral, decorreu durante cerca de um mês, sempre quando a sua mãe saia de casa. Assim é de concluir que tal prática sexual ocorreu mais vezes que as admitidas pelo arguido, impondo as regras da experiência e da normalidade do acontecer que se conclua que tal aconteceu, pelo menos, por uma outra vez, número que, a pecar, pecará por defeito, mas que respeitará o princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P.
CC, mãe da ofendida e que viveu em união de facto com o arguido entre 2011 e 2019, referiu que só tomou conhecimento dos abusos sofridos pela sua filha, quando a BB já se encontrava no hospital.
Referiu que a ofendida no 5º ano de escolaridade estava a atravessar uma fase complicada, nomeadamente a nível de convivência com os colegas, pois alguns chamavam-lhe “.......”.
Em Julho de 2018 deixou de trabalhar, a pedido das filhas, para ficar mais tempo em casa.
Passou então a fazer e vender ........... (..........), cuja entrega era feita por si ao domicílio dos clientes. Assim em 2018 – 2019 saia de casa com regularidade, ou seja, todas as semanas, pelo menos 2 vezes por semana. Costumava levar consigo a sua filha DD, sendo que a sua filha EE, por vezes, também a acompanhava.
Por norma quem ficava em casa era a ofendida BB com o irmão mais novo ou com este e a EE.
As suas filhas tinham receio do arguido, o que era mais verbalizado pela DD, motivo pelo qual a levava sempre que saía de casa.
Desconhecia em absoluto o que se estava a passar com a ofendida BB.
Relativamente à ofendida BB disse que tudo tem sido muito difícil, a ofendida revela-se muito fechada, tem pensamentos negativos (fala em matar quem faz mal), tem pesadelos, não tem amigos, não gosta de ir à escola e tem medo de andar sozinha. A ofendida chora muitas vezes, apelida todos os homens de pedófilos e tenta sempre proteger os irmãos.
GG, psicóloga, no Agrupamento de Escolas............, referiu que a partir de Maio de 2018 passou a acompanhar a ofendida em contexto escolar.
A ofendida era uma aluna que se destacava, com bons resultados escolares, mas foi sinalizada do 2º para o 3º período, do 5º ano do ensino articulado de ......... por andar distraída, as notas estarem a baixar, demonstrar desmotivação, falta de atenção, atrasos e desfasamento relativamente ao grupo da turma.
A ofendida não se sentia bem na turma, apelidavam-na de “.......” e de “.......”.
No ano seguinte deu conta de uma maior diferença na conduta da ofendia, mais distraída, uma acentuada falta de pontualidade, sendo que ainda havia por trás a questão familiar – havia situações que lhe desagradavam – sentia-se diferenciada pelo arguido por não ser filha do mesmo.
Relatava-lhe que não podia levar para a escola o ......... porque o padrasto lhe disse que partia tal instrumento musical. Por outro lado, a menor verbalizava serem frequentes as discussões entre o padrasto e a mãe, e que não queria fomentar mais discórdia.
Por outro lado, a ofendida verbalizava e demonstrava que não nutria um sentimento positivo pelo padrasto que caracterizava como pessoa agressiva e violenta verbalmente (ameaças).
No dia ... .12.2019, após o almoço, a ofendida contou a uma colega, mais precisamente à HH, que “não era virgem do rabo”, e disse que tinha sido o padrasto.
A HH não ficou confortável e contou a situação à sua própria mãe, pois esta deslocou-se à escola, nesse mesmo dia, para tratar de assuntos pessoais com a assistente social.
Quando teve conhecimento do que se estava a passar falou em privado com a ofendida e confrontou-a com os factos, ao que a mesma negou, alegando que tudo não tinha passado de uma brincadeira.
Continuou a falar com a ofendida que se revela muito constrangida, até que esta disse que estava só desmotivada, “é mais do mesmo”.
A ofendida foi para as aulas, mas passado cinco minutos regressou, reconhecendo a verdade e desatou num pranto, revelando o pavor que tinha do arguido, o medo, o sofrimento e o desespero que sentia.
Então relatou-lhe o que se passava, nomeadamente, como o arguido aproveitava as saídas da sua mãe de casa para lhe tocar, tendo-lhe pedido para fazer sexo oral e sexo anal, o que aconteceu. Relatou-lhe como o arguido lhe dizia, “anda cá, chupa-me” e com lhe dizia “toca em ti, sente prazer”, explicando-lhe que ele achava que ela tinha prazer mas não tinha.
Mais lhe disse a ofendida que o arguido era mau, bruto e que a magoava.
Ao desabafar a ofendida revelou-se aliviada, mas sempre com muito medo, por si e pela sua família.
A última violação tinha sido na noite anterior.
Frisou que a ofendida lhe afirmou “agora vinham aí as férias do natal e eu ia ser o bombo da festa”.
HH, 14 anos, estudante, colega de escola da ofendida, referiu que, numa terça-feira, de Dezembro de 2019, na escola, no recreio começaram a falar sobre namorados, tendo a ofendida lhe perguntado se era virgem e ao devolver a pergunta àquela obteve como resposta que “já não era do rabo” e disse que tinha sido o padrasto. Contou-lhe que o padrasto dizia que ela a provocava, que lhe passava as mãos nas partes íntimas, que queria fazer sexo oral e que depois fizeram mesmo sexo oral e anal.
Depois a BB disse que estava a brincar, mas começou a chorar, tendo a testemunha ficado chocada e chorado também.
A ofendida tinha muito medo e já a tinha visto a chorar sem qualquer razão aparente.
Soube que, inicialmente, a ofendida negou tudo à psicóloga da escola, mas depois voltou para falar com aquela.
Relativamente aos depoimentos de GG e de HH, cumpre sublinhar que não olvidamos que as testemunhas são inquiridas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto da prova, conforme art. 128º, nº 1, do CPP.
Ora a testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos.
No depoimento indirecto, “a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos.” (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Ed., 158).
Por sua vez, dispõe o art. 129º, nº 1, do CPP:
“Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”.
Daqui resulta, em primeiro lugar, que a regra é a do testemunho directo, sendo certo que a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos.
In casu, a ofendida prestou declarações para memória futura, pelo que foi ouvida a pessoa que falou, que desabafou, com as referidas testemunhas, ou seja, a fonte destas, tendo sido cumprido o exercício do contraditório e assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Os depoimentos em causa estão sujeitos ao princípio geral da livre apreciação da prova estabelecido no art. 127º, do CPP, e devem ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo (cfr. neste sentido, Ac. do STJ de 20/11/2002, CJ, X, III, 232, Ac. do TRP de 07/11/2007, Ac. do TRE de 30/01/2007, proc. nº 2457/06-1 in http://www.dgsi.pt)
Nos depoimentos ora em apreço importa distinguir o segmento em que as depoentes relatam as circunstâncias em que a ofendida com elas falou/desabafou e o estado/emotividade da ofendida percepcionado pelas testemunhas naquele contacto, porquanto nesta parte os depoimentos surgem como directos; ao invés o segmento em que as testemunhas relatam o que a ofendida lhes confidenciou, já se revela como um depoimento indirecto, pois o conhecimento do facto transmitido ao tribunal não é um conhecimento originário.
Não obstante, no segmento em que estes depoimentos não são directos, somos a valorá-los no conjunto da prova produzida e na medida em que corroboram sem dúvida as declarações para memória futura prestadas pela ofendida.
DD, meia irmã da ofendida e filha do arguido, nascida a 16.02.2006, referiu que quando a sua mãe saia de casa a acompanhava sempre, o que acontecia, com certeza, duas vezes por semana.
Não queria ficar em casa porque tinha medo do pai.
Explicou que a sua festa de anos em 2019 decorreu em casa da sua avó paterna, tendo nesse dia saído de manhã com a sua mãe para arranjarem as coisas para a festa.
Só da parte da tarde, cerca das 16h00, é que o seu pai e a BB apareceram em casa da avó.
Afirmação esta que claramente infirma o declarado pelo arguido e, por seu turno, corrobora as declarações da ofendida.
No dia ... .11.2019 saiu com a sua mãe para procederem à entrega de ..., tendo ficado em casa o arguido, a ofendida e os seus irmãos.
Referiu que a Ofendida está diferente, está mais isolada e desconfia de toda a gente, mas releva felicidade por se sentir segura.
A ofendida sobre os factos não quer, actualmente, falar.
As declarações CC, mãe da ofendida e então companheira do arguido e o depoimento de DD, meia irmã da ofendida e filha do arguido, não obstante sofridos, revelaram-se sérios e credíveis, tendo as depoentes respondido ao que lhes era perguntado de forma espontânea e isenta.
O arguido admitiu os factos supra referidos ciente da sua proibição legal, sendo que quanto aos demais, os factos referentes ao plano subjectivo foram extraídos dos factos objectivos, dado que estes os impunham, de acordo com as regras da experiência comum e juízos de normalidade, uma vez que estamos perante comportamentos por todos reconhecidos como censuráveis e proibidos (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Março de 2015, processo n.º 4/13.3TBSAT.C1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de Dezembro de 2012, processo n.º 497/08.0GAMCN.P1, in www.dgsi.pt).
Ora, conjugando de forma crítica e analítica a prova por declarações do arguido, na medida em que admitiu factos, as declarações para memória futura da ofendida e a prova testemunhal produzida (séria, isenta e credível), com a prova documental supra elencada, sempre tendo em conta as regras da experiência comum e juízos de normalidade, dúvidas não se suscitam quanto à veracidade dos factos levados à matéria de facto provada.
A matéria de facto não provada teve por base a não produção de prova segura e bastante».
V. Decidindo:
A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal suscita, no seu douto parecer, a questão prévia da admissibilidade do recurso, entendendo que o recorrente impugna a matéria de facto apurada, sendo certo que – nos termos do disposto no artº 434º do CPP - o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de direito.
É certo que o recorrente sustenta que os factos apurados e descritos nos pontos 9 e 10 da matéria de facto foram dados como provados apenas com base nas «declarações da ofendida/Assistente, que não são suportadas, nem indiciariamente, por qualquer outro meio de prova»; que, assim, «a prova é claramente insuficiente para que haja condenação do arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável» sendo que, «na ausência do juízo de certeza deverá valer o princípio da presunção de inocência do arguido conforme dispõe o art.º 32º da CRP de que é corolário o principio ‘in dubio pro reo’».
Ora, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 410º, o recurso interposto para o STJ “visa exclusivamente o reexame de matéria de direito” – artº 434º do CPP.
Porém, como lapidarmente se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 21/10/2020, Proc. 1551/19.9T9PRT.P1.S1, «XI - O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer».
Daí que, limitando-se a discordância do recorrente, relativamente ao factualismo apurado, àquilo que considera ter sido provado em violação do princípio in dubio pro reo, é nosso entendimento que o recurso em apreço pode e deve ser conhecido neste Supremo Tribunal.
E conhecendo:
A) a factualidade apurada não permite a imputação ao arguido da prática de um crime de imputado de violação agravada, p. e. p. pelo art.º 164º, n.º 2 al. a) do C. Penal?
Como referimos, entende o recorrente que os factos contidos nos pontos 9 e 10 da factualismo apurado assentaram unicamente nas declarações da ofendida/Assistente, não suportadas por qualquer outro meio de prova, razão pela qual aquelas declarações são insuficientes “para que haja condenação do arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável”; e, assim sendo, deveria ter actuado «o princípio da presunção de inocência do arguido conforme dispõe o art.º 32º da CRP de que é corolário o princípio “in dubio pro reo”».
Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal supra referido, o princípio in dubio pro reo, sendo configurado como princípio de direito, «como princípio jurídico atinente à avaliação e valoração da prova, certo é também que, como tem sido reconhecido, ele tem uma íntima correlação com a matéria de facto, em cujo domínio ele é verdadeiramente operativo, aí assumindo toda a relevância prática. Nesta perspectiva, como o STJ já entendeu, “a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção”. Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República» (subl. nosso).
Ora, a dúvida que não pode ser resolvida contra o arguido, não é aquela que ele tem ou que ele entende que o tribunal, não tendo, deveria ter tido. É, isso sim, aquela que assalta o tribunal, no processo de formação da sua convicção. Como fundamento de recurso para este Supremo Tribunal, a violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando do texto da decisão recorrida resulta que o tribunal, perante uma situação de dúvida, decidiu contra o arguido; ou “quando a conclusão probatória levada pelo Tribunal recorrido se materializa numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada (de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido) pelos elementos probatórios em que (explicita e pontualmente) assentou a convicção” – Ac. STJ de 4/6/2020, Proc. 658/17.1PZLSB.L1.S1.
Nenhuma destas duas situações resulta do texto da decisão recorrida.
De um lado, é manifesto que relativamente aos factos descritos nos pontos 9 e 10 da matéria apurada, o tribunal recorrido não se quedou numa situação de dúvida, inultrapassável ou não: entendeu nessa parte – como no restante, aliás – digno de crédito o depoimento da ofendida, considerando que a ofendida, revelando embora alguma resistência e desgaste, prestou «de forma sofrida, espontânea e credível» o seu depoimento, «evidenciando que este não foi estudado ou ensaiado». E socorre-se, ainda, do relatório da perícia médico-legal de psicologia a fls. 482 a 486, «o qual corrobora, de modo seguro e objectivo, a verosimilhança e veracidade da versão dos factos apresentada pela ofendida», adiantando que se conclui na referida perícia que a ofendida apresenta «um discurso espontâneo, organizado, relativamente detalhado, contextualizado e compreensível sobre os factos em apreço, revelando um desenvolvimento cognitivo e linguagem adequada para a sua idade e um grau de maturidade cognitiva expectável e normativo», evidenciando uma narrativa «consistente e credível» e «boas capacidades para conservar memórias, para reproduzir acontecimentos por si vivenciados e para os compreender, avaliar e relatar de forma integra, não se observando qualquer tendência para a existência de episódios de efabulação, relativamente aos eventos em apreço nos autos (cfr. fls. 486)».
Depois, desconsiderou nessa parte as declarações do arguido, na medida em que o mesmo só assume a prática dos factos ocorridos após Maio de 2019 e, relativamente ao episódio ocorrido em 16/2/2019 (e a que se referem os pontos 9 e 10 da matéria de facto apurada), o arguido afirmou não ter estado só com a ofendida, sustentando que toda a família foi junta para casa de sua mãe, festejar o aniversário de sua filha (meia-irmã da ofendida) DD, quando é certo que esta, no seu depoimento, afirma que a sua festa de aniversário, em .../2/2019, “decorreu em casa da sua avó paterna, tendo nesse dia saído de manhã com a sua mãe para arranjarem as coisas para a festa. Só da parte da tarde, cerca das 16h00, é que o seu pai e a BB apareceram em casa da avó. Afirmação esta que claramente infirma o declarado pelo arguido e, por seu turno, corrobora as declarações da ofendida.”.
De outro lado, não se descortina – do texto da decisão recorrida – que a decisão do tribunal recorrido em matéria de facto (concretamente no que diz respeito aos pontos 9 e 10) não se mostre suportada de forma suficiente, deixando dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
Assim sendo, não se verifica, in casu, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Posto isto:
Entendeu o tribunal recorrido que os factos apurados, descritos em 9, 10, 21 a 24 e 26 da matéria de facto, consubstanciam a prática de um crime de violação agravado.
Desta forma se pronunciou:
«Do crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, decorrente da alteração da qualificação jurídica devidamente comunicada, como resulta da respectiva acta de julgamento.
Dispunha o citado art. 164º, do CP, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, na data dos factos, que:
“1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.”
A Lei n.º 101/2019, de 6 de Setembro, veio introduzir alterações ao citado artigo, passando agora a constar do mesmo que:
1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade sexual de outra pessoa. Isto é, no crime de violação, está em causa a liberdade sexual, a auto conformação da vida e prática sexuais da pessoa, afrontada pelo constrangimento daquela a suportar ou praticar os actos descritos nos seus n.ºs 1 e 2.
A liberdade sexual decorre do direito do indivíduo a dispor do seu corpo, parte integrante da sua autonomia e liberdade pessoal sendo a liberdade sexual um aspecto fundamental do direito à intimidade e vida privada, pelo que e no que à sexualidade diz respeito, se assista a uma, cada vez maior, tendência no sentido de limitar a intervenção penal.
Estando em causa adultos protege-se a liberdade do adulto em tudo quanto se reporte à área sexual.
Este crime quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, é um crime de dano, já quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção, é um crime de mera actividade.
O tipo objectivo consiste no constrangimento da vítima a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, um ou mais actos sexuais de especial relevo: cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Ora nos crimes contra a liberdade sexual, essa vontade ligada às coisas do sexo, que se quer livre, constitui exactamente o bem protegido.
Assim, no caso de adultos, só são criminalizadas as actividades sexuais obtidas por constrangimento, por meios que afectem a livre vontade de aceitação da vítima ou quando o agente aja “por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral”.
A vítima do crime pode ser pessoa do sexo masculino ou feminino, maior ou menor de idade. A menoridade da vítima é relevante para efeitos do agravamento da moldura penal e da definição da natureza do procedimento criminal.
O agente do crime pode ser uma pessoa do sexo masculino ou feminino, maior de 16 anos.
A cópula é o acto pelo qual o pénis de um homem é introduzido na vagina de uma mulher, haja ou não emissio seminis (acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 5/2003).
A cópula vulvar ou vestibular não constitui cópula para o efeito do artigo 164° (acórdão do STJ, de 20.10.2005, in CJ, acs. do STJ, 2005, 3, 190, e, na doutrina, MOURAZ LOPES, 2008: 45, e FIGUEIREDO DIAS, anotação 13.a ao artigo 164.°, in CCCP, 1999, mas contra REIS ALVES, 1995: 20; ver a anotação ao artigo anterior).
A cópula, tal como o coito anal ou oral, constitui crime de violação quer a vítima tenha uma posição activa (“praticar, consigo ou outrem”), quer tenha uma posição passiva (“sofrer”) na relação sexual.
O coito oral consiste na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem na boca de outra pessoa, com ou sem erecção (acórdão do STJ, de 23.9.2004, in CJ, acs. do STJ, 2004, 3, 164), com ou sem emissio seminis.
O coito anal consiste na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem no ânus de outra pessoa, com ou sem emissio seminis.
A introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos só constitui crime de violação quando a vítima tem posição passiva, isto é, quando "sofre" a introdução. Sendo a vítima constrangida a penetrar o agente ou outrem na vagina ou no ânus com partes do corpo ou objectos verifica-se o crime de coacção sexual (também assim, MOURAZ LOPES, 2008: 47).
As partes do corpo utilizadas para a penetração podem ser a mão, o dedo da mão, o pé, o dedo do pé, a língua e o nariz (por exemplo, a introdução do dedo indicador de uma mão na vagina de uma menor de 4 anos, situação descrita in acórdão do STJ, de 15.6.2000, in CJ, acs. do STJ, 2000, 1, 226).
A violação prevista no nº 1, actual n.º 2, é um crime de execução vinculada, uma vez que tem de ser cometida por meio de “violência”, “ameaça grave” ou “acto que coloque a vítima em estado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir”.
A violação prevista no nº 2, actual n.º 1, é um crime de execução livre, pois pode ser cometida por (qualquer) meio não compreendido no número anterior.
O tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo, sendo que o agente deve representar a oposição da vontade da vítima sobre a valoração do consentimento.
Nas descritas circunstâncias, o agente fez o emprego de força física na medida requerida para conseguir constranger a vítima a suportar o acto.
O conceito de violência ínsito a uma violação conhece gradações que vão até à brutalidade física e à crueldade, mas que podem partir de um ponto em que “o ofensor usa apenas a força necessária” para atingir o objectivo da conquista sexual e controlar a vítima ou “que considerar necessária para superar a resistência da vítima e para a tornar indefesa” − cfr. “Caracterização do Violador Português” de Maria Francisca Rebocho, ed. Almedina, págs. 61/62.
Dispunha o citado art. 177º, do CP, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 103/2015, de 05 de Agosto, na data dos factos, que:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º.
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.”
O citado artigo, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 40/2020, de 18 de Agosto, apenas alterou a redacção do seu n.º 7, onde passa a constar: “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos”.
A circunstância prevista no n.º 7, do artigo 177.º do Código Penal (ser a vítima menor de 14 anos), constitui uma circunstância modificativa agravante do crime de violação, cuja verificação é automática e objectiva e não está no critério do julgador fazer operar ou não a agravação da pena em função de tal circunstância, por esta não respeitar à culpa do agente.
Sob o ponto de vista subjectivo, é de exigir o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito, bem como relativamente à circunstância modificativa agravante (cfr. art.º 14.º do C.P.).
Destarte, perante a factualidade provada em 9) 10), 21) a 24) e 26), constitui-se o arguido, como autor material, de um crime de violação agravado, p. e p., na data dos factos, pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, e, actualmente, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, do citado diploma legal.
Assim, fica consumido o imputado crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do CP, por este se traduzir no emprego da violência (já contido no crime de violação), a traduzir-se na força física exercida pelo arguido sobre a ofendida na medida requerida para conseguir constrangê-la a suportar o acto sexual».
Entende o arguido/recorrente que dos factos apurados é possível concluir pela prática de um crime de ofensas à integridade física, mas não de um crime de violação, porquanto – em sua opinião – não é possível concluir que “o uso da violência empregue pelo arguido seja suficiente para forçar a ofendida à prática do ato sexual, nem que tenha o arguido tido a intenção de forçar a ofendida. A violência são puxões de cabelo contra uma almofada, e um levantamento do braço como se fosse dar um soco, o que não aconteceu”.
Não cremos que lhe assista alguma razão.
Provado ficou que em 16 de Fevereiro de 2019, depois de, numa ocasião anterior, ter já abordado a ofendida, sugerindo-lhe fazer sexo oral, o que esta recusou (ponto 8 da matéria de facto), o arguido voltou a abordar a ofendida, apalpou as mamas da mesma, e, a certa altura, disse-lhe para fazer sexo oral, o que a ofendida recusou. Perante a recusa desta, o arguido puxou-lhe os cabelos com força, provocando-lhe dores, empurrou a cabeça da ofendida contra a almofada, ao mesmo tempo que puxou a sua mão atrás, como quem vai desferir um soco (o que não chegou a ocorrer), obrigando assim a mesma a ceder às suas pretensões, tendo metido o seu pénis dentro da boca da ofendida, aí o friccionando em movimentos de vai e vem.
Temos, verdadeiramente, alguma dificuldade em perceber a resistência do recorrente em aceitar que “o uso da violência empregue pelo arguido seja suficiente para forçar a ofendida à prática do ato sexual”, que o arguido tenha “tido a intenção de forçar a ofendida”, porquanto a “violência são puxões de cabelo contra uma almofada, e um levantamento do braço como se fosse dar um soco, o que não aconteceu” – concl. 6ª da sua motivação de recurso.
Que há violência física é algo que não sofre contestação:
- A ofendida tinha, à data dos factos em questão, 11 anos de idade. O arguido tinha, então, 30 anos de idade.
- Viviam na mesma casa, numa relação idêntica à de pai e filha.
- Perante a recusa da ofendida em praticar consigo (em si) sexo oral, o arguido puxou-lhe os cabelos com força, provocando-lhe dores, empurrou-lhe a cabeça contra a almofada, ao mesmo tempo que puxou a sua mão atrás, como quem vai desferir um soco (o que não chegou a ocorrer).
O puxar dos cabelos (provocando dores) e o empurrar da cabeça da ofendida contra a almofada configuram, sem margem para dúvidas, actos de violência física. Perpetrados por um adulto com 30 anos sobre uma menina – que com ele coabitava numa relação idêntica à de pai e filha – de apenas 11 anos de idade, acompanhados da ameaça de desferir um soco, são aptos a constranger a ofendida à prática do acto sexual pretendido pelo arguido, como sucedeu. Aliás, que tal violência foi apta a determinar a ofendida à prática do acto sexual é algo que resulta provado da matéria de facto, inatacável neste recurso: “obrigando assim a mesma a ceder às suas pretensões, tendo metido o seu pénis dentro da boca da ofendida, aí o friccionando em movimentos de vai e vem” – ponto 10 da matéria de facto.
E porque assim é verificados se mostram os elementos típicos do crime de violação, enunciados no artº 164º, nº 2, al. a) do Cod. Penal (ou no artº 164º, nº 1, al. a) do Cod. Penal, na versão vigente à data dos factos): a prática de coito oral, obtida através do constrangimento da vítima, conseguido através de violência física. E porque a vítima era, então, menor de 14 anos de idade, mostra-se tal crime agravado, por força do disposto no artº 177º, nº 7 do mesmo diploma.
Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.
B) São excessivas e devem ser reduzidas as penas parcelares e única aplicadas ao arguido?
Em face do factualismo apurado, o tribunal a quo condenou o arguido:
- De três crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 2 anos e 6 meses de prisão;
- De nove crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, na pena parcelar, por cada um dos ilícitos, de 5 anos de prisão;
- De um crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, atenta a convolação operada, na pena parcelar de 7 anos de prisão;
- De um crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, na pena parcelar de 1 ano de prisão.
- Em cúmulo jurídico das supra referidas penas parcelares, na única de 12 (doze) anos de prisão.
Desta forma fundamentou o colectivo a medida das penas parcelares e única:
«Em consonância com o disposto no art. 71º do CP, interpretado à luz do art. 40º do mesmo diploma legal, a determinação da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. Fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso concreto convenham.
Tudo isto sem prejuízo do respeito devido aos limites mínimos e máximos da pena aplicável em abstracto.
A determinação da natureza e medida da pena far-se-á, assim, em função da culpa do arguido, por forma a satisfazer as particulares exigências de prevenção especial, tendo em vista a recuperação daquele e apelando ao seu sentido de responsabilidade na coesão de todo o restante tecido social, sem deixar de atender à ideia de intimação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa e ainda sem perder de vista a prevenção geral positiva.
Diz o art. 70º do CP que se "ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
O crime de coacção é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
O crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.
O crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, é punido com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.
O crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, é punido com pena de prisão de 4 anos e 6 meses a 15 anos.
Só o crime de coacção impõe a escolha entre pena de prisão ou pena de multa.
A escolha da pena a aplicar deve ter em conta as exigências de prevenção.
In casu, os antecedentes criminais do arguido são por ilícitos atinentes à pequena criminalidade e as penas de multa a que foi condenado mostram-se cumpridas.
No entanto, ponderando as circunstâncias em que os factos ocorreram e as suas gravosas consequências, somos a defender que as exigências de prevenção geral são muito elevadas, não se satisfazendo com a reprovação pública inerente à pena de multa, pois esta manifesta-se insuficiente para satisfazer o sentimento jurídico da comunidade.
Aplicar, no caso concreto, uma pena de multa seria uma solução, em nosso entender, não justificável, desde logo do ponto de vista da consciência jurídica da comunidade.
No caso, só a pena de prisão se considera adequada e suficiente para que sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com a reacção criminal, pelo deve ser esta a aplicada ao arguido.
Ponderando-se pois:
• O elevado grau de ilicitude dos factos e o elevado grau de culpa, plasmados nos factos cometidos, no grave modo da sua execução, nas relevantíssimas consequências psíquicas causadas na ofendida, sublinhando-se que todos os factos foram cometidos aproveitando a ausência da mãe da ofendida em casa, tendo o arguido reiterado e intensificado em grau e modo a sua conduta;
• A intensidade do dolo – o arguido quis os próprios actos ilícitos, forma mais intensa da vontade criminosa –, a revelar forte resolução criminosa em todas as situações, denotando os factos cometidos uma personalidade altamente desvaliosa.
• As elevadas e fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir para restabelecer a confiança na vigência e validade das normas violadas, apontando para um maior sancionamento dos agentes deste género de criminalidade sexual, face à sua perturbante frequência, ao eco e ressonância social de repulsa e nojo que provoca na comunidade, gerando forte alarme social, intranquilidade e insegurança.
• Os antecedentes criminais do arguido por ilícitos atinentes à pequena criminalidade e cujas penas de multa se mostram cumpridas, não têm relevo muito expressivo nas necessidades de prevenção especial, no entanto, a reinserção social do arguido depende da devida interiorização da ilicitude dos actos praticados, particularmente ao nível do respeito pelo direito à liberdade e autodeterminação sexual.
• A idade do arguido na data dos factos – um adulto.
• O provado percurso de vida do arguido.
• A sua situação de reclusão sem incidentes institucionais, tendo o mesmo solicitado apoio psicológico.
• O comportamento do arguido em audiência admitindo factos relevantes e demonstrando vergonha.
Assim, ponderadas todas as circunstâncias que influem na determinação da medida da pena - art. 71º -, afigura-se razoável e equilibrado aplicar ao arguido:
- Pelo praticado crime de coacção p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, do CP, a pena 1 ano de prisão.
- Por cada um, dos três praticados crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, as penas parcelares de 2 anos e 6 meses de prisão.
- Por cada um, dos nove praticados crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. 171°, n.º 1 e n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP, as penas parcelares de 5 anos de prisão.
- Pelo praticado crime de violação agravado, p. e p., actualmente, pelos arts. 164º, n.º 2, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP e, na data dos factos, p. e p. pelos arts. 164º, n.º 1, al. a) e 177º, n.º 7, ambos do CP, a pena de 7 anos de prisão.
Estabelece o art. 77º, do CP que:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”
A pena conjunta através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2, do art.º 77º, do CP, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura varia entre o mínimo de 7 anos de prisão e o máximo de 60 anos e 6 meses de prisão.
Segundo preceitua o supra citado n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que deverá ter-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.
Assim, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.
Impõe-se, pois, atender à gravidade global dos factos, que no caso se afere em função da medida das várias penas singulares, do seu número e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável, com desconsideração das circunstâncias particulares relativas a cada crime, cuja sede de valoração é/foi a determinação da respectiva pena parcelar.
Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao agente por esse conjunto, e a medida das exigências de prevenção geral se situem no mesmo plano, bem acima da média, permitindo aquela e impondo esta que a pena se fixe numa zona bem superior à moldura mínima aplicável.
No que concerne à personalidade do agente importa avaliar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade.
Ora, no presente caso, pese embora o período temporal em causa e as graves consequências da conduta do arguido, tendo em conta a similitude de situações, afigura-se que o conjunto dos factos em apreço é ainda reconduzível a uma pluriocasionalidade, que não radica ainda na personalidade manifestada, sendo, no entanto, de ponderar que no plano da prevenção especial, se mostra imperioso que o arguido interiorize devidamente a ilicitude dos actos praticados, particularmente ao nível do respeito pelo direito à liberdade e autodeterminação sexual.
Importa ainda não desconsiderar que foi o próprio arguido que no EP pediu acompanhamento psicológico, sinal que será sensível à pena que lhe for aplicada.
Tudo ponderado, julga-se por justo e adequada a pena única de 12 anos de prisão, situando-se esta muito aquém do ponto intermédio da moldura penal conjunta, não excedendo a medida permitida pela culpa nem a necessária à satisfação das finalidades da punição».
Posto isto:
O arguido cometeu 12 crimes de abuso sexual de criança agravado, um crime de violação agravado e um crime de coacção (aliás relacionado com a prática de crimes de abuso sexual, porquanto se traduziu na determinação da ofendida a omitir à sua mãe qualquer referência sobre a prática dos actos sexuais de relevo, anteriormente sobre si cometidos pelo arguido, mediante a ameaça de agressões físicas - pontos 6 e 7 da matéria de facto).
Não está em causa, no presente recurso, a opção por pena de prisão, em detrimento da pena de multa, efectuada pelo tribunal a quo, no que ao crime de coacção diz respeito: o recorrente questiona não a espécie, mas a medida da pena aplicada, considerando adequada a pena de 6 meses de prisão.
No demais, o recorrente entende por adequadas penas concretas situadas muito próximo dos limites mínimos legalmente admissíveis e uma pena única de 9 anos de prisão.
Ora, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artºs 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.
No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).
Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.
Os crimes contra a liberdade e autodeterminação social constituem objecto de manifesta reprovação geral, sendo certo que a frequência com que vêm ocorrendo elevam as necessidades de prevenção geral.
Na verdade, do relatório anual de segurança relativo ao ano de 2019 e divulgado no final do 1º semestre de 2020, retira-se um aumento dos crimes participados desta natureza relativamente ao ano anterior, sendo certo que a larga maioria dos inquéritos iniciados e dos arguidos detidos, no que respeita aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual respeitam, precisamente, ao crime de abuso sexual de criança, prevalecendo “o contexto da relação familiar enquanto espaço de relacionamento entre autor e vítima”.
Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:
“(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.
De outro lado, como muito bem salienta a Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, a conduta do arguido/recorrente prolongou-se “por mais de um ano, tendo-se aproveitado não só da idade da menor BB, como também da ascendência que exercia sobre a mesma, entendendo-se que os factos por si praticados revelam características de personalidade altamente censuráveis, que demandam uma particular necessidade de socialização, uma vez que se lhe impunha, enquanto pessoa que vivia em situação análoga à dos cônjuges com a mãe da menor, que assumisse uma conduta respeitadora dos valores em família, mormente protegendo o desenvolvimento saudável da menor”.
É certo que, em julgamento, o arguido verbalizou vergonha e admitiu factos relevantes, dessa forma contribuindo para a descoberta da verdade. Não o fez, contudo, relativamente ao conjunto dos factos apurados.
Como é certo que tem mantido um bom comportamento prisional, procurou apoio psicológico na prisão e conta com o apoio da sua progenitora.
No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”.
Ou, na lição de Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, Coimbra Editora, 571, «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida da pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica».
O arguido tem duas condenações anteriores pela prática de crimes sem qualquer conexão com os dos autos (crime de condução de veículo sem habilitação legal), em penas já extintas pelo cumprimento.
São, contudo e como se referiu, muito elevadas as exigências de prevenção, não só geral como especial.
O arguido agiu com dolo directo, daí que intenso. Intenso foi, igualmente, o grau de ilicitude dos factos.
De particular gravidade se revestem as consequências da sua conduta: a ofendida:
- sentiu medo, sofreu dores intensas, sofreu de ansiedade, passou a ter dificuldade em dormir, andava triste e chorava (pt. 27 da matéria de facto);
- viu ferida a sua dignidade e tinha medo que descobrissem os abusos de que era vítima (pt. 28, idem);
- apresenta uma clara tendência a estruturar-se numa personalidade limite (borderline), apresentando elevações significativas nas escalas introvertida, pessimista, submissa e autopunitiva, tendendo a funcionar num registo mais passivo, indiferente e pouco sociável, ainda que revele simultaneamente dificuldades na gestão dos seus impulsos, dos seus conflitos e das suas emoções, estando presente um transversal sentimento de abandono e de desesperança no futuro (pt. 29, idem);
- revela particular dependência interpessoal, com grande necessidade de apoio externo e de atenção, demonstrando elevado grau de ansiedade e de tristeza subjectiva, o que a torna mais susceptível em termos interpessoais (pt. 30, idem);
- revela uma acentuada difusão da sua identidade, desagrado pelo seu corpo, com elevada auto desvalorização e apresenta sentimentos de inferioridade (pt. 31, idem);
- sente-se envergonhada (pt. 32) e encontra-se muito traumatizada, revive e culpa-se do sucedido, apresenta uma combinação de elevações perigosa para a sua integridade física e psíquica, evidenciando uma elevação muito significativa nos sentimentos depressivos, ansiosos, impulsividade e tendência ao suicídio (pt. 33, idem);
- apresenta um grau de afectação e de sofrimento psicológico acentuado, com consequências relevantes a nível psicossocial, com afectação ao nível da forma como se tende a relacionar com os pares e com os adultos, com conteúdos depressivos e de natureza pós-traumática relevantes, ao que acresce particular ideação suicida, sendo extremamente importante ter acompanhamento psicológico regular (pt. 34, idem).
Em suma, em consequência da conduta do arguido, a ofendida viu prejudicado o seu desenvolvimento harmonioso (pt. 37 da matéria de facto).
Tudo a exigir, portanto, penas concretas (parcelares e única) necessariamente afastadas dos seus limites mínimos.
Ora, o tribunal a quo, numa moldura penal de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses (crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelos artºs 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. b), ambos do CP) condenou o arguido em penas de 2 anos e 6 meses de prisão (apenas 1 ano e 2 meses acima do limite mínimo); numa moldura penal de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão (crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelos artºs 171º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. b), ambos do CP) condenou o arguido em penas de 5 anos de prisão (apenas 1 ano acima do limite mínimo); numa moldura penal de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão (crime de violação agravado, p.p. pelos artºs 164º, nº 2, al. a) e 177º, nº 7, ambos do CP) condenou o arguido em 7 anos de prisão (2 anos e 6 meses acima do limite mínimo, ainda assim, fixando a pena aplicada pouco acima do primeiro quarto da pena abstractamente aplicável); e numa moldura de 1 mês a 3 anos de prisão (crime de coacção, p.p., pelo artº 154º, nº 1 do CP), condenou o arguido a 1 ano de prisão.
Face a tudo quanto exposto fica, tais penas não pecam seguramente por excesso; bem pelo contrário, afiguram-se-nos justas e equitativas sendo, por isso, de manter.
Quanto à pena única aplicada em cúmulo jurídico das várias penas parcelares:
“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – artº 77º, nº 1 do Cod. Penal – sendo certo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
No caso, portanto, a moldura penal aplicável parte de um mínimo de 7 anos de prisão, não podendo ultrapassar os 25 anos.
Como se refere no Ac. STJ de de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção, “I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização”.
De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo” – Ac. STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1 - 3.ª Secção.
Ora, efectuada uma avaliação global dos factos, ponderadas as exigências de prevenção especial e geral e a situação pessoal do arguido, aceitando que – apesar de a conduta do arguido se ter prolongado, pelo menos, por um ano – ainda estamos perante uma pluriocasionalidade (como se afirma no acórdão recorrido), é nosso entendimento que a pena única de 12 anos encontrada na 1ª instância, situada no primeiro terço da pena abstractamente aplicável, se mostra justa e adequada, não merecendo qualquer censura.
VI. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando integralmente o douto acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 6 UC’s a taxa de justiça – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 7 de Abril de 2021 (processado e revisto pelo relator)
Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)
Atesto o voto de conformidade da Exmª Srª Juíza Conselheira Maria da Conceição Simão Gomes