INCIDENTE DE RECONHECIMENTO DE IDONEIDADE
Sumário

O uso e porte de armas, na ordem jurídica portuguesa, não é um direito e muito menos um direito fundamental, com consagração constitucional, mas sim um privilégio, a que apenas têm acesso aqueles que reúnem determinados pressupostos legalmente previstos.
Desta ideia-base podemos retirar alguns corolários, nomeadamente, que a falta de idoneidade para o uso e porte de arma, a que se referem os nºs 2 e 3 do art. 14º da Lei nº 5/2006 de 23/2, não é uma pena, nem uma medida de segurança ou sequer uma sanção administrativa, não constituindo mais do que um efeito jurídico desfavorável para quem pretenda obter uma licença para tal.
De igual modo, não poderá falar-se de perda de direitos, no contexto do nº 4 do art. 30º da CRP e do nº 1 do art. 65º do CP, já que a faculdade de usar e possuir armas, em particular, armas de fogo, não se configura como direito.
Em todo o caso, o reconhecimento ou a denegação de idoneidade para o uso e o porte de determinada categoria de armas envolve sempre um juízo qualitativo da parte do Tribunal e não é consequência automática da condenação por este ou por aquele crime, nesta ou naquela pena.
As condenações do requerente pelos crimes de violência doméstica e de detenção de arma proibida são reveladoras da desconsideração do regime legal que assenta no pressuposto de que a detenção de armas e munições é um privilégio e não um direito.
Não obstante o requerente se encontrar social, profissional e familiarmente integrado, não pode deixar de entender-se que os crimes por si praticados e pelos quais foi condenado, tendo em particular atenção a gravidade e a violência utilizados, demonstram profundo menosprezo pelas regras da sociedade cm que se encontra inserido, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma.

Texto Integral

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No incidente de reconhecimento de idoneidade, correspondente ao apenso «A» do processo comum nº 53/15.7IDEVR, que corre termos no Juízo Competência Genérica de Montemor-o-Novo do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, em que é arguido LFPP, pela Ex.ª Juiz titular dos autos foi proferido, em 14/10/2019, um despacho do seguinte teor:

«LFPP veio requerer a declaração de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma da classe C.

O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de não ser deferida a pretensão do requerente. Foi ouvido o Requerente.

*

O Tribunal é competente.

O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem. O Requerente tem legitimidade para o peticionado.

*

Estabelece o artigo 15.° da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro:

"1- As licenças C e O podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições: (. . .) c) sejam idóneos; (. . .)

2. A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 14. ° ( ... )".

Por sua vez sua vez, dispõe o n.º 2 do artigo 14.° que "sem prejuízo do disposto no artigo 30. ° da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão".

O n.º 3 estabelece ainda que "No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação. ".

Do relatório elaborado pela DGRSP, bem como do seu certificado de registo criminal, resulta que o requerente tem assumido uma conduta normativa, sem outras condenações (além da que foi proferida nos autos principais de que estes são apenso), estando profissional e socialmente inserido.

Da certidão do acórdão condenatório proferido no processo n.º …, resulta que o requerente, entre outros factos, "desferiu diversas bofetadas, no mínimo quatro, na cara" da vítima, provocando-lhe "traumatismo na cara, hematomas em ambas as zonas periorbitárias e no lábio superior, escoriação no lábio superior, fratura dos ossos próprios do nariz e fratura do segmento posterior do pavimento da órbita esquerda, lesões físicas que lhe determinaram doença durante 265 duas, dos quais 45 com incapacidade para o exercício da sua atividade".

As consequências da conduta do requerente revelam bem o grau de violência empregue no cometimento do crime de violência doméstica por que foi condenado, em pena de quatro anos de prisão, suspensa na respetiva execução por igual período.

Em concurso real com o crime de violência doméstica, o requerente foi ainda condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 300 dias de multa.

O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão do requerente, considerando que as condenações acima referidas "são reveladoras da desconsideração do regime legal que assenta no pressuposto de que a detenção de armas e munições é um privilégio e não um direito. Não obstante o requerente se encontrar social, profissional e familiarmente integrado, não pode o Ministério Público deixar de entender que os crimes por si praticados e pelos quais foi condenado, tendo em particular atenção a gravidade e a violência utilizados, demonstram profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma.

Por um lado, a condenação do requerente pela prática de um crime de detenção de arma proibida revela que o mesmo, ainda que na data dos factos fosse portador de carta de caçador e, portanto, necessariamente conhecedor do regime jurídico das armas e suas munições, escolheu, de forma consciente, desconsiderar o regime legal em vigor - que assenta no pressuposto de que a detenção de armas e munições é um privilégio e não um direito - de que agora pretende beneficiar.

Por outro lado, a condenação do requerente pela prática de um crime de violência doméstica qualificado, um dos que maior gravidade assume no nosso sistema jurídico-penal, revela que aquele despreza as mais elementares regras de convivência em sociedade, tendo violado, com o seu comportamento, o valor da "dignidade da pessoa humana", que é, aliás, a base da República Portuguesa, de acordo com 1.º da lei fundamental."

Concordando integralmente com a ponderação crítica dos elementos probatórios reunidos nos autos e vertida no parecer do Ministério Publico que antecede, acima transcrito no essencial e que aqui se dá por reproduzido por razão de económica processual, bem como com a correspondente fundamentação fáctico-jurídica, e nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 15.º e no artigo 14.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, não reconheço ao requerente LFPP a idoneidade para renovação de licença de uso e porte de arma de classe C.

Registe e notifique.

Custas pelo requerente (n.º 1 do artigo 1.º e n.º 8 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais), fixando-se a taxa de justiça em 1/2 UC».

Seguidamente, transcreve-se o parecer do MP, que o despacho proferido deu por reproduzido:

«Em 14 de Setembro de 2018, veio o requerente LFPP suscitar o incidente para reconhecimento de idoneidade, com vista a renovar a licença' de uso c porte de arma.

Foi ouvido o requerente, nos termos do n.º 5, do artigo 14.°, conjugado com os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, tendo o mesmo referido que pretende renovar a licença de uso e porte de arma, sendo caçador há cerca de 15 anos.

O arguido informou, ainda, das suas atuais condições sócio-cconómicas e, instado para o efeito, procedeu à junção da carta de caçador aos autos, emitida em 20.11.2002 e válida até 30.09.2013.

Foi junto certificado de registo criminal e certidão das condenações proferidas nos processos n.ºs … e … e parecer da DGRSP.

Cumpre emitir parecer, nos termos do artigo 14.°, n.º 5 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Apreciando todos os elementos constantes dos autos, entendemos que o requerente não dispõe da idoneidade necessária para deter armas e munições pelos motivos melhor explanados infra.

Da certidão do acórdão proferido no processo n.º … resulta que o requerente LP foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.°, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, ambos praticados em 2010.

Da análise conjugada do certificado de registo criminal do requerente e das certidões juntas aos autos resulta que o requerente foi condenado:

a) no processo n.º …, que correu rermos no Tribunal Judicial de Évora _ JC Civel e Criminal _ Juiz 2, na pena de quatro anos de prisão, suspensa pelo mesmo período com sujeição a regime de prova pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal e ainda na pena de trezentos dias de multa à taxa diária de cinco euros pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.°, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, ambos praticados em 2010.

b) no processo n.º …, que correu termos no Juízo de competência Genérica de Montemor-o-Novo, Juiz 1, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6,00€ pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 107.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, praticado em 2008;

c) no processo n.º …, que correu termos no juízo de competência Genérica de Montemor-o-Novo, juiz 2, na pena de 200 dias de multa pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 107.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, praticado em 2014.

A licença de uso e porte de arma da "classe C" está prevista no artigo 15.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições que, por sua vez, no que à idoneidade concerne, remete para o disposto no artigo 14.º, números 2 e 3 do mesmo diploma. Por seu turno, estatui o nº 2 do artigo 14 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições "sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão."

Resulta do disposto no artigo 30.°, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa que "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis) profissionais ou políticos." Com deito, nenhuma pena ou condenação poderá, por si só, implicar a perda ou limitação de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

No que respeita à idoneidade, a mesma não decorre de forma automática em virtude de condenação pela prática de ilícito doloso.

A "idoneidade" traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.

Volvendo ao caso dos autos constata-se que, para além da condenação pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social e de um crime de abuso de confiança fiscal, o requerente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova.

Mais se verifica que o requerente foi também condenado na pena de 300 dias de multa pela prática de um crime de detenção de arma proibida.

Cumpre ainda referir que o crime de violência doméstica e o crime de detenção de arma proibida pelos quais foi condenado foram ambos praticados em 2010, data em que o requerente era já detentor de carta de caçador.

Entende o Ministério Público que tais condenações são reveladoras da desconsideração do regime legal que assenta no pressuposto de que a detenção de armas e munições é um privilégio e não um direito.

Não obstante o requerente se encontrar social, profissional e familiarmente integrado, não pode o Ministério Público deixar de entender que os crimes por si praticados e pelos quais foi condenado, tendo em particular atenção a gravidade e a violência utilizados, demonstram profundo menosprezo pelas regras da sociedade cm que se encontra inserido, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma.

Por um lado, a condenação do requerente pela prática de um crime de detenção de arma proibida revela que o mesmo, ainda que na data dos factos fosse portador de carta de caçador e, portanto, necessariamente conhecedor do regime jurídico das armas e suas munições, escolheu, de forma consciente, desconsiderar o regime legal em vigor - que assenta no pressuposto de que a detenção de armas e munições é um privilégio e não um direito - de que agora pretende beneficiar.

Por outro lado, a condenação do requerente pela prática de um crime de violência doméstica qualificado, um dos que maior gravidade assume no nosso sistema jurídico-penal, revela que aquele despreza as mais elementares regras de convivência em sociedade, tendo violado, com o seu comportamento, o valor da "dignidade da pessoa humana", que é, aliás, a base da República Portuguesa, de acordo com 1.º da lei fundamental.

Por tudo o exposto, entende o Ministério Público que o requerente não tem a necessária idoneidade para o uso e porte de arma, pelo que se promove que não seja reconhecida tal idoneidade para efeitos de obtenção de licença de uso e porte de arma de caça».

Do despacho proferido o arguido LFPP interpôs recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

37. Nos presentes autos o agora recorrente viu indeferido o requerimento para reconhecimento de idoneidade para a renovação da licença de caçador. (Classe C)

38. Com relevância para tal decisão, o tribunal a quo considerou o crime de violência doméstica no qual o então arguido foi condenado em quatro anos de prisão, com suspensão da pena aplicada por igual período.

39. Tais factos ocorreram há cerca de nove anos no âmbito do processo nº …, que correu trâmites no Tribunal Judicial de Montemor-o-Novo.

40. Apesar da violência descrita, nunca houve utilização, ou sequer ameaça de utilização das armas de caça que o arguido, na altura, tinha ao seu alcance, tal significando que respeita a sua utilização para os fins a que se destinam: a atividade cinegética.

41. Durante tal período de tempo, o condenado, agora recorrente, adotou um comportamento normal e encontra-se profissional, familiar e socialmente integrado, como ficou demonstrado nos autos e tal como resulta do teor da própria decisão recorrida.

42. É a própria norma do nº 2 do art. 14º da Lei na 5/2006 de 23 de Fevereiro que refere a suscetibilidade de não ser reconhecida a idoneidade para renovação da licença de caça.

43. Salvaguardando, portanto, que, apesar da existência de uma condenação anterior, é possível reconhecer a idoneidade do cidadão condenado, requerida para o efeito.

44. Mais referindo a mesma norma que a decisão a proferir não pode colidir com a norma Constitucional estabelecida no nº 1 do art. 30º da Constituição da República Portuguesa, segundo a qual a pena aplicada não pode ter" carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida".

45. A douta decisão fundamentou-se exclusivamente na anterior condenação do recorrente, não considerando as demais circunstâncias apuradas que concretamente devem relevar para a decisão a proferir sobre a idoneidade do cidadão, nomeadamente se reúne condições, qualidades, aptidões e competência para desempenhar a atividade lúdica que o uso e porte da arma impõe.

46. Apesar da condenação há cerca de nove anos, nunca lhe foi cassada a licença de uso e porte de arma de caça, mantendo, portanto, a idoneidade, que agora o recorrente não vê reconhecida pelo Tribunal a quo para renovar a licença, apesar de ter ficado demonstrado a sua plena integração.

47. Toda a jurisprudência invocada admite a possibilidade de ser reconhecida a idoneidade ao requerente para renovação de licença de caça, apesar de condenação anterior por crime violento, até porque não resultaram demonstradas outras razões para o efeito, conforme refere o nº 2 do art. 14° da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

48.Deveria, portanto, o tribunal a quo ter decidido pelo deferimento do requerido, porquanto o recorrente reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de caça.

49. Ao não decidir nesse sentido, a douta decisão violou os artigos 14° n.º 2 e 3, art. 15°, n.ºs 1 e 2 e art. 28°, n.º 1, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

50. Violou ainda o art. 30°, nºs 1 e 4 da CRP, pondo em causa o princípio constitucional aí consagrado.

51. Violou igualmente o art. 65°, n.º1 do Código Penal, desobedecendo ao princípio geral consagrado do direito penal português: "nullum crimen, nulla poena sine lege".

Pelos motivos expostos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que reconheça a idoneidade ao recorrente para efeitos de renovação da licença de uso e porte de arma de caça.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos (de apenso), e efeito suspensivo da decisão.

O MP respondeu à motivação do recorrente, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões:

1. O douto despacho recorrido, que não reconheceu a idoneidade do recorrente LFPP para a renovação de licença de uso e porte de armo de classe C, não padece de qualquer vício.

2. Nos termos do disposto no artigo 15.°, do Lei número 5/2006, de 23 de Fevereiro, que remete paro o artigo 14.°, número 2., do citado Lei, diz-nos que, no que respeito à idoneidade, o mesmo não decorre de formo automático em virtude de condenação pelo prático de ilícito doloso, a "idoneidade" a que aludem os preceitos normativos acima referidos, traduzirá, assim, o capacidade ou qualidade de alguém paro ser titular de licença de uso e porte de armo e de quem se espero que, em caso de concessão, dela faço um uso correspondente aos fins legais.

3. O interessado será, assim, "idóneo quando apresente um comportamento social denotador de ser merecedor da especial confiança que o Estado vai depositar em si.

4. Ora, no caso em apreço, conforme resulta do acórdão condenatório proferido no processo número …, o recorrente, entre outros factos, "desferiu diversas bofetadas, no mínimo quatro, no caro do vítima, provocando-lhe traumatismo no caro hematomas em ambas as zonas periobitárias e uma escoriação no lábio superior, fratura dos ossos próprios do nariz e fractura do segmento posterior do pavimento do órbita esquerdo, lesões físicas que lhe determinaram doença durante 265 dias, dos quais com 45 dias com incapacidade para o exercício do suo actividade."

5. Também há que reter que a condenação do recorrente, deveu-se à prática, além de um crime violência doméstica, no qual o arguido foi condenado numa pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, de um crime de detenção de armo proibido, pelo qual foi aplicado ao recorrente uma pena de 300 dias de multa.

6. A condenação pela prática de um crime no qual foi empregue violência, que, no caso em apreço, foi exercida contra a sua mulher, com quem foi casado e com quem teve dois filhos, o que implica que o mesmo tenha que ter vencido as contra-motivações éticas atinentes à normatividade, encerra, por si só, um sinal claro da existência de uma perigosidade acrescida atinente ao uso e porte de armas, que a Lei visa afastar.

7. Pelo que, e, não obstante, o recorrente se encontrar social, profissional e familiarmente integrado, não pode o Tribunal deixar de entender que através dos crimes por si praticados e pelos quais foi condenado, demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma.

8. O enquadramento jurídico-penal do douto despacho, mostra-se correctamente efetuado e tem acolhimento jurisprudencial, não violando qualquer preceito constitucional.

Nestes termos deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douto despacho recorrido na íntegra.

Sendo que assim se fará a acostumada JUSTIÇA!

Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação foi emitido parecer sobre o recurso em presença, no sentido da sua procedência.

O parecer emitido foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, tendo ele exercido o seu direito de resposta, em sentido concordante.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões do recorrente, resume-se à pretensão de reversão do juízo de denegação ao arguido de idoneidade para que lhe seja concedida licença de uso de porte de arma tipo C.

Alega o arguido que despacho sob recurso, ao denegar-lhe idoneidade para a concessão da referida licença, violou as disposições dos arts. 15º nºs 1 e 2, 14º nºs 2 e 3 e 28º nº 1 da Lei nº 5/2006 de 23/2, do art. 30º nºs 1 e 4 da CRP e art. 65º do nº 1 do CP, além do princípio geral do direito penal português, «Nullum crimen, nulla poena, sine lege».

Os pressupostos da concessão de licenças de uso e porte de arma da categoria pretendida pelo arguido estão previstos no art. 15º da Lei nº 5/2006 de 23/2:

1 - As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;

b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;

c) Sejam idóneos;

d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;

e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.

2 - A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 14.º.

Os nºs 2, 3 e 4 do art. 14º do mesmo diploma legal, para o qual remete o nº 2 do art. 15º, estatuem:

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.

3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.

4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.

Por seu turno, o nº 1 do art. 28º da Lei nº 5/2006 de 23/2 dispõe:

A renovação das licenças deve ser requerida até ao termo do seu prazo e depende da verificação, à data do pedido, dos requisitos exigidos para a sua concessão.

O art. 30º da CRP tem por epígrafe «Limites das penas e das medidas de segurança» e os seus nºs 1 e 4 são do seguinte teor:

1. Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

(…)

4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

Finalmente, o nº 1 do art. 65º reitera o conteúdo normativo do nº 4 do art. 30º da CRP.

O brocardo «Nullum crimen, nulla poena, sine lege» exprime o princípio da legalidade e da tipicidade penais, cuja sede legal é o art. 1º do CP.

A propósito da pretensão recursiva em apreço, podemos convocar uma orientação jurisprudencial, que tem vindo a afirmar-se em decisões desta Relação de Évora, entre as quais podemos recensear (disponíveis em www.dgsi.pt):

- Acórdão de 8/5/2018, relatado pelo Desembargador que subscreve o presente acórdão na qualidade de Adjunto, no processo nº 194/04.6GFBGDL-C.E1;

- Acórdão de 16/6/2015, relatado pelo Exº Desembargador Dr. Alberto Borges, no processo nº 769/09.7GCPTM.E1;

- Acórdão de 19/2/2013, relatado pela Exª Desembargadora (actualmente Conselheira), Dr.ª Ana Brito, no processo nº 69/01.0JELSB-I.E1;

- Decisão Sumária de 20/12/2016, proferida pelo Exº Desembargador Dr. António Condesso, no processo nº 3/10.7GBETZ-A.E1.

A referida orientação jurisprudencial assenta, antes de mais, na asserção segundo a qual o uso e porte de armas, na ordem jurídica portuguesa, não é um direito e muito menos um direito fundamental, com consagração constitucional, mas sim um privilégio, a que apenas têm acesso aqueles que reúnem determinados pressupostos legalmente previstos.

Desta ideia-base podemos retirar alguns corolários, nomeadamente, que a falta de idoneidade para o uso e porte de arma, a que se referem os nºs 2 e 3 do art. 14º da Lei nº 5/2006 de 23/2, não é uma pena, nem uma medida de segurança ou sequer uma sanção administrativa, não constituindo mais do que um efeito jurídico desfavorável para quem pretenda obter uma licença para tal.

De igual modo, não poderá falar-se de perda de direitos, no contexto do nº 4 do art. 30º da CRP e do nº 1 do art. 65º do CP, já que a faculdade de usar e possuir armas, em particular, armas de fogo, não se configura como direito.

Em todo o caso, o reconhecimento ou a denegação de idoneidade para o uso e o porte de determinada categoria de armas envolve sempre um juízo qualitativo da parte do Tribunal e não é consequência automática da condenação por este ou por aquele crime, nesta ou naquela pena.

Na origem da denegação de idoneidade ajuizada no despacho recorrido, esteve a condenação sofrida pelo ora recorrente no processo nº …, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 4 anos de prisão, cuja execução foi suspensa.

Na fundamentação do despacho sob recurso, só não poderemos concordar com a afirmação que o crime de violência doméstica é «um dos que maior gravidade assume no nosso sistema».

Na verdade, o nº 1 do art. 152º do CP pune o crime de violência doméstica com pena de prisão de 1 a 5 anos, pelo que não faltam no sistema penal crimes puníveis com penalidades muito mais graves do que essa.

De resto, convergimos com o Tribunal «a quo» quando este ajuizou que o quadro factual apurado é de molde a concluir pela falta de idoneidade do arguido LP para o uso e porte de armas, por não haver razões para crer que ele venha a fazer destas uma utilização conforme à lei.

Quanto ao princípio expresso no brocardo «Nullum crimen, nulla poena sine lege», não vislumbramos que possa ter sido transgredido pelo despacho recorrido, na medida em que este não condenou o recorrente em qualquer pena, pela prática de qualquer crime.

Consequentemente, teremos de concluir que o despacho em crise não violou as normas e princípios constitucionais e legais invocados pelo recorrente, pelo que não se justifica a sua reversão, improcedendo o recurso.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Notifique.

Évora, 27/4/21 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)