I - A reeleição de um administrador judicialmente destituído não é, em regra, proibida pelo CSC. Para além da hipótese prevista no art. 450.º, n.º 4, do CSC, a anterior destituição, por via judicial, não deve significar, por si só, uma impossibilidade de o administrador voltar a ser eleito. O desvalor dessa destituição, do ponto de vista do interesse da sociedade, deve ser apreciado ao nível das circunstâncias do caso concreto.
II - O facto de um administrador ter sido judicialmente destituído, com justa causa, não significa que essa pessoa não tenha a aptidão para mudar o seu comportamento e para aproveitar uma segunda oportunidade, passando a ser um administrador criterioso e ordenado.
III - Os acionistas minoritários terão sempre o poder de requerer a destituição do administrador reeleito, nos termos do art. 403.º, n.º 3, do CSC.
IV - A deliberação que elege administradores que haviam sido destituídos judicialmente por factos praticados 15 anos antes, não deve (apenas com base nesse facto) ser considerada anulável por violação do disposto nas als. a) ou b) do n.º 1 do art. 58.º do CSC.
Recorrente: AA
Recorrida: Atomedical – Laboratório de Medicina Nuclear, S.A
I. RELATÓRIO
1. AA propôs ação de anulação de deliberação social contra a “Atomedical – Laboratório de Medicina Nuclear, S.A.”, nos termos do art.59º do Código das Sociedades Comerciais. Peticionou que fosse declarada a anulação da deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré, realizada no dia 20 de junho de 2017, pela qual se elegeram os ex-administradores, Prof. Dr. BB e Dr. CC, para integrarem o Conselho de Administração.
Alegou, em síntese, que, no dia 20 de junho de 2017, foi realizada uma Assembleia Geral da ré, onde, nos termos do ponto d) da mesma, se procedeu à eleição dos órgãos sociais para o ano em curso. Todavia, em processo de Inquérito Judicial n.1101/03….., que correu termos na Secção de Comércio … e já transitou em julgado, foi declarada a destituição dos mesmos administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC, pela prática de atos de gestão gravemente danosos dos direitos e interesses da ré.
2. A ré contestou, afirmando: que os referidos administradores, cumprindo a sentença, cessaram funções imediatamente a seguir ao trânsito em julgado da mesma; os atos que estão na base e foram considerados para a destituição foram praticados nos anos de 2001 e 2002, sendo que a Ré, em 2006, transformou-se em sociedade anónima; os atuais acionistas pouco têm a ver com os então sócios da sociedade por quotas; a sócia da sociedade por quotas que requereu o inquérito já não é acionista da Ré e o Autor da presente ação não era nem nunca foi sócio da sociedade por quotas; aos administradores eleitos nunca foi, na vigência da sociedade anónima, imputada a prática de qualquer ato irregular ou ilegal em prejuízo da sociedade.
3. Foi proferida sentença, que julgou a ação procedente.
4. A ré interpôs recurso de apelação, tendo o TR….. anulado a sentença para que a 1ª instância respondesse a um tema de prova omitido e ampliasse a matéria de facto.
5. Veio a ser proferida nova sentença, com o seguinte teor:
«julgo o pedido procedente, por provado, e, consequentemente, anulo a deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da R realizada no dia 20 de junho de 2017, pela qual se elegeram os ex-administradores: Prof. Dr. BB e Dr. CC, para integrarem o Conselho de Administração.»
6. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, tendo o TR… proferido a seguinte decisão:
«acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença proferida, com a consequente improcedência da ação.»
7. O autor interpôs recurso de revista, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:
«1ª - Uma correcta decisão sobre o objecto do presente processo importa a sua abordagem numa dupla perspectiva: a aptidão e a idoneidade dos administradores judicialmente destituídos para voltarem a ser reeleitos, por um lado, e, por outro lado, a legitimidade do voto dos accionistas no sentido da (re)eleição, para integrar o Conselho de Administração, de administradores que já anteriormente foram destituídos por decisão judicial transitada em julgado, com base na prática de actos de gestão danosa para a sociedade.
2ª - De acordo com aquela que é a correcta interpretação e aplicação do art. 64.º do CSC, só pode ser administrador de uma sociedade quem reunir as qualidades e as competências de um gestor criterioso e ordenado, sendo que, conforme salienta Menezes Cordeiro (in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª Edição, Almedina, 2012, pág. 253, nota 8 ao art. 64.º), «O gestor criterioso e ordenado surge como uma bitola mais exigente do que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a especialistas fiduciários, que gerem bens alheios». Por conseguinte:
3ª - Estando o Administrador vinculado ao cumprimento de todos os deveres enunciados nas alíneas a) e b) do n. 1 do art. 64.º do CSC, deverá aquele reunir todas as condições pessoais, éticas e profissionais que o tornem apto ao cumprimento daqueles mesmos deveres, constituindo a falta de probidade ou do saber necessário ao exercício de uma gestão criteriosa e ordenada uma justa causa objectiva de destituição do Administrador (vd., neste sentido, Coutinho de Abreu, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXXIII, Coimbra, 2007, pág. 97).
4ª- Por outro lado, e no tocante aos sócios/accionistas, é reconhecida, no Direito das Sociedades Comerciais, a existência de um dever de lealdade do sócio para com a sociedade, do qual deriva o dever de não votar, em Assembleia Geral, no sentido da eleição de um Administrador que não reúna as qualidades e as competências de um gestor criterioso ou ordenado, maxime tratando-se de Administrador que já tenha sido destituído judicialmente com fundamento na prática de actos de gestão danosa para a sociedade, sob pena de anulabilidade da deliberação aprovada com aqueles mesmos votos (art. 58.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CSC).
5ª- Estando a interpretação e a integração das normas legais sujeita à sua conformação com o princípio da unidade e da coerência do sistema jurídico, não pode ter acolhimento, à luz deste mesmo princípio, uma interpretação, como a sufragada no Acórdão recorrido, segundo a qual o legislador pretenda estabelecer para o infractor consequências legais de gravosidade inversamente proporcional à gravidade do ilícito praticado, sendo total e absolutamente incompatível com aquele referido princípio um entendimento segundo o qual, apesar de a todos os títulos ser mais grave que o abuso de informação previsto no art. 449.º do CPC, a prática de actos de gestão efectiva e objectivamente danosa não ter como consequência qualquer impedimento de os administradores judicialmente destituídos virem a desempenhar cargos de Administração na sociedade lesada, ao passo que o ilícito de abuso de informação implica, para os seus autores, um impedimento, pelo período de cinco anos, de desempenharem cargos de Administração na sociedade ou noutra que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo. Por conseguinte:
6ª- À luz do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico, se é certo que o impedimento previsto no n. 4 do art. 450.º do CSC é a consequência da prática do ilícito do abuso de informação, daí não decorre que apenas a prática deste ilícito tenha como consequência um impedimento de os administradores destituídos virem a desempenhar cargos de administração na sociedade lesada (ou noutra que com aquela se encontre em relação de domínio ou de grupo), já que, se a actuação ilícita subjacente à destituição dos administradores causar à sociedade prejuízo mais grave que o resultante do ilícito de abuso de informação, devem os administradores destituídos ficar sujeitos a impedimento, por período superior a cinco anos, de voltarem a exercer cargos de administração na mesma sociedade, impedimento esse que, no limite, poderá mesmo vir a ser definitivo.
7ª - Segundo o ensinamento de Coutinho de Abreu (in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXXIII, Coimbra, 2007, pág. 97), sempre que os administradores tenham sido destituídos com base em justa causa objectiva, podem ser reeleitos após a cessação do estado de facto que consubstancia aquela mesma justa causa; já quando a destituição dos administradores tenha sido judicialmente requerida com base em justa causa subjectiva (v.g. a violação culposa dos deveres de zelo e diligência), existem apenas duas situações em que a reeleição dos administradores demandados é possível: (1) a improcedência, por Sentença transitada em julgado, da acção judicial na qual foi peticionada a destituição do(s) administrador(es) demandado(s) e (2) o decurso de um período mínimo de cinco anos desde a prática dos factos que, integrando o ilícito do abuso de informação previsto no art. 449.º do CSC, tenham, com aquele fundamento, determinado a destituição dos administradores demandados em sede de Inquérito Judicial (art. 450.º, n.º 4 do CSC).
8ª- Por conseguinte, fora das situações referidas na conclusão 7.ª supra, os administradores judicialmente destituídos apenas podem ser reeleitos após o decurso de um longo período de tempo volvido desde o trânsito em julgado da decisão judicial que determinou a destituição judicial (sendo que, in casu, a Sentença que determinou a destituição judicial dos reeleitos administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC transitou em julgado em 15 de Maio de 2017).
9ª - Apesar da inexistência de norma expressa que preveja, em caso de destituição judicial de administrador por violação dos deveres de zelo e diligência diversos dos previstos no art. 449.º do CSC, a concreta duração do período temporal pelo qual os administradores destituídos estão impedidos de ser reeleitos, manifesto é que a duração de tal impedimento deverá, necessariamente, ser proporcional à gravidade da causa da destituição, devendo mesmo ser superior aos cinco anos previstos no n.º 4 do art. 450.º do CSC sempre que a gravidade e a danosidade da causa da destituição sejam superiores à dos factos que integram o ilícito do abuso de informação.
10ª- Como tal, e sob pena de violação dos princípios da proporcionalidade e da unidade e coerência do sistema jurídico, não pode a norma do n.º 4 do art. 450.º do CSC ser interpretada no sentido de impor um limite ao impedimento da reeleição dos administradores destituídos, independentemente da gravidade da justa causa subjacente à destituição; até porque, conforme resulta das normas dos artigos 450.º do CSC e 1055.º do CPC, o processo de Inquérito Judicial no qual é efectuada a destituição dos administradores - destituição esta que, por sua vez, constitui a causa directa do impedimento de os administradores destituídos voltarem a ser reeleitos - tem a natureza de um processo de jurisdição voluntária, no qual, como é sabido, o julgador não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo decidir segundo juízos de equidade.
11ª - Assim, considerando a gravidade e a reiteração dos factos que foram considerados provados na Decisão judicial que determinou a destituição dos administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC, revelam aqueles uma manifesta falta de idoneidade para o exercício das funções de administrador, inidoneidade essa que não resulta de uma mera falta de conhecimentos técnicos ou da formação académica necessários ao exercício de uma gestão criteriosa e ordenada - já que, inclusivamente, ambos aqueles administradores são titulares de formação académica superior - mas antes da própria concepção que os administradores destituídos têm da administração de uma sociedade comercial, a qual encaram como um meio instrumentalizável com vista à obtenção de benefícios próprios.
12ª - Instrumentalização aquela que, além do mais, e conforme claramente se afirma na fundamentação da Sentença destitutória dos administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC (cf. páginas 55 e 56 do Doc. 6 da p.i.), levaram estes a cabo com a total solidariedade e conivência da entidade que assegurava a fiscalização da sociedade; de modo que, em face da sua inidoneidade e da falta de aptidão para o exercício de uma administração criteriosa e ordenada, devem os administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC ser considerados legalmente impedidos de desempenhar cargos na sociedade Recorrida por período largamente superior a cinco anos, o qual esse Supremo Tribunal fixará segundo o seu Prudente e Douto critério.
13ª - Ou, caso se entenda que a norma do n.º 4 do art. 450.º do CSC estipula um limite máximo quanto ao impedimento de os administradores destituídos desempenharem cargos na mesmo sociedade ou em outra que com ela se encontre em relação de domínio ou de grupo, sempre deverá ser aplicado, aos administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC, um impedimento de exercerem cargos na sociedade ora Recorrida pelo período de cinco anos, contado, não da data da prática dos factos, mas antes do dia 15 de Maio de 2017 (data do trânsito em julgado do Acórdão confirmatório da Sentença proferida no Inquérito Judicial referido nos artigos 7.º e 8.º da p.i.).
14ª - Assim, o Acórdão recorrido enferma de violação da norma do art. 64.º do CSC, já que, segundo aquela que é a correcta interpretação e aplicação desta norma, só pode ser administrador de uma sociedade quem reunir as qualidades e as competências de um gestor criterioso e ordenado, o que, conforme foi judicialmente comprovado, não sucede com os Administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC.
15ª Ao considerar que não se encontra ferido de abuso de direito o voto dos accionistas que, na deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da R. e ora Recorrida realizada em 20 de Junho de 2017, reconduziu os Administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC, o Acórdão recorrido enferma de violação das normas do art. 334.º do CC e das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 58.º do CSC, já que, segundo aquela que é a correcta interpretação e aplicação daquelas mesmas normas, encontram-se os sócios vinculados a um dever de não reeleger, para o exercício de cargos de Administração da sociedade R., os Administradores destituídos Prof. Dr. BB e Dr. CC.
16ª- Assim como enferma o Acórdão recorrido de violação do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico, já que, segundo a correcta interpretação e aplicação deste mesmo princípio, não pode ter acolhimento um entendimento segundo o qual, na falta de uma norma expressa, paralela à do n.º 4 do art. 450.º do CSC, que preveja um prazo de impedimento de os Administradores destituídos judicialmente pela prática de actos de gestão danosa contra a sociedade exercerem cargos de Administração na sociedade lesada (ou noutra que com ela se encontre em relação de domínio ou de grupo), não possam aqueles mesmos Administradores, que tenham sido judicialmente destituídos pela prática de actos danosos contra a sociedade, ficar impedidos exercerem cargos de Administração na sociedade lesada ou noutra que com ela se encontre em relação de domínio ou de grupo.
Termos em que, por ser legítimo, tempestivo e admissível, deve o presente recurso de Revista ser admitido e julgado integralmente procedente, mediante a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por Acórdão que:
a). Declare a anulação da deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da R. e ora Recorrida realizada em 20 de Junho de 2017, pela qual foram reeleitos os Administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC;
b). Declare os Administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC impedidos, por período nunca inferior a 5 anos contados do dia 15 de Maio de 2017 (data do trânsito em julgado do Acórdão confirmatório da Sentença por meio da qual foram aqueles mesmos administradores judicialmente destituídos no âmbito do processo de Inquérito Judicial n.º 1101/03….., que correu termos na ….. Secção de Comércio – J… da Instância Central … do Tribunal da Comarca ….), de exercerem cargos de Administração na R. ou noutra sociedade que com esta esteja em relação de domínio ou de grupo.»
8. A recorrida apresentou contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«a) A ampliação do pedido feita pelo recorrente é inadmissível por ilegal (artigos 264º e 265º do CPC);
b) O acórdão recorrido, que merece total acordo da recorrida, entendeu que na eleição dos administradores não foi posto em causa o interesse social e o interesse comum dos sócios, pois o que foi considerado foram os factos ocorridos em 2001 e 2002 que levaram à destituição dos gerentes da sociedade por quotas, sendo certo que a partir daí não se provou que os mesmos, como administradores da sociedade anónima, tenham praticado qualquer acto irregular ou ilegal em prejuízo da sociedade;
c) Mais entendeu não se encontrarem presentes os factos concretizadores da previsão da alínea b) do n.1 do art.58º do CSC e a deliberação também não é anulável no âmbito da alínea a) do mesmo art.58º por não se verificar existir abuso de direito nos termos do art.334º do C. Civil;
d) Entendeu igualmente o acórdão que não se aplica ao caso o art.450º n.4 do C.S.C., uma vez que o mesmo tem o seu campo de aplicação circunscrito ao abuso de informação plasmado no art.449º do mesmo código;
e) Para o acórdão não se encontra apurado que exista alguma impossibilidade legal no sentido da eleição dos órgãos sociais;
f) Pondo em causa os fundamentos do acórdão, que a recorrida subscreve inteiramente, insistem os recorrentes na aplicação por analogia do n.4 do art.450º do CSC, sustentando a existência de uma lacuna na lei;
g) Porém, só existe lacuna no sistema legal quando este regula numa dada situação, mas não regula uma outra que lhe é idêntica (arte 10º n.2 do C. Civil);
h) Não existe, porém, qualquer lacuna legal pois a situação em causa nos autos nada tem a ver com a que prevê o art.450º n.4 do CSC, a qual se circunscreve ao domínio específico do mercado de valores mobiliários, visando essencialmente a proteção de interesses públicos;
i) Não é, pois, possível estender a incapacidade para ser eleito a outros casos de destituição, aliás sob pena de violação dos artigos 26º n.4 e 47º n.1 da Constituição da República;
j) Mas mesmo a ser possível a aplicação por analogia não abrangia o caso “sub judice” uma vez que tinham decorrido mais de 5 anos sobre a prática dos factos;
k) Também não colhe o argumento do recorrente da violação do “dever de lealdade” e da “falta de idoneidade” dos administradores eleitos pois não ficou provado na ação que os acionistas tenham exercido o seu direito de voto de forma incompatível com o princípio da boa fé o interesse social ou com o interesse dos demais sócios;
l) Pelo contrário, consideraram certamente os mesmos que o seu voto nos acionistas que vinham administrando a sociedade anónima há quinze anos, com probidade, zelo e excelentes resultados, cumpria o superior interesse da sociedade e de todos os acionistas, desconsiderando as irregularidades praticadas, há 15 anos, na sociedade por quotas em contexto completamente diferente
Termos em que devem V. Exas. manter o douto acórdão recorrido do Tribunal da Relação …, com o que seguramente farão justiça.»
9. Os administradores da sociedade recorrida – BB e CC – não sendo parte nos presentes autos, vieram apresentar alegações, com base no art. 3º, n.2 do CPC, por entenderem ser diretamente visados pelo peticionado na alínea b) das alegações do recorrente e terem interesse direto em contradizê-lo.
Entendem que esse pedido [Declare os Administradores Prof. Dr. BB e Dr. CC impedidos, por período nunca inferior a 5 anos contados do dia 15 de Maio de 2017 (data do trânsito em julgado do Acórdão confirmatório da Sentença por meio da qual foram aqueles mesmos administradores judicialmente destituídos no âmbito do processo de Inquérito Judicial n.º 1101/03….., que correu termos na ….. Secção de Comércio – J….. da Instância Central … do Tribunal da Comarca …), de exercerem cargos de Administração na R. ou noutra sociedade que com esta esteja em relação de domínio ou de grupo.] não é dirigido à sociedade ré, mas sim diretamente contra eles. Concluem pela manutenção do acórdão recorrido.
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:
1. Admissibilidade e objeto do recurso
Verificados os pressupostos gerais de recorribilidade, e tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância em sentido desfavorável ao réu, a revista é admissível, nos termos do art.671º, n.1 do CPC.
O objeto do recurso é, em termos gerais, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, para além das questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, n.2, 635º, n.4, e 639º do CPC. Nestes termos, tratando-se de um recurso de revista, o objeto de análise cinge-se às questões de direito que o acórdão recorrido conheceu (ou devia ter conhecido), não sendo atendível o conhecimento de questões novas suscitadas nesta fase de recurso.
Das alegações do recorrente emergem duas questões:
1ª- Saber se deve ser declarada a anulação da deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da Ré, realizada em 20.06.2017, pela qual foram reeleitos os Administradores BB e CC. A resposta a esta questão pressupõe saber se os administradores judicialmente destituídos, com base na prática de atos de gestão danosa para a sociedade, podem voltar a ser eleitos.
2ª- Saber se os Administradores BB e CC devem ser declarados impedidos, por período nunca inferior a 5 anos contados do dia 15.05.2017 (data do trânsito em julgado do acórdão confirmatório da sentença que destituiu estes administradores, proferida no processo de Inquérito Judicial n. 1101/03….., que correu termos na …..ª Secção de Comércio – J…. da Instância Central …. do Tribunal da Comarca ….), de exercerem cargos de Administração na Ré ou noutra sociedade que com esta esteja em relação de domínio ou de grupo.
2. A factualidade provada.
As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:
«1. O Autor é, conjuntamente com seus irmãos DD e EE, acionista da Ré, nos seguintes termos:
a) O Autor é titular de 16.000 ações, correspondentes a 8 % do capital social da R;
b) O acionista DD é titular de 16.000 ações, correspondentes a 8 % do capital social da R;
c) O acionista EE é titular de 16.000 ações, correspondentes a 8 % do capital social da R;
Sendo os três, conjuntamente, titulares de 48.000 ações, representativas de 24% do capital social da Ré (cf. Doc. n. 2, junto com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido)[1].
2. Por comunicação, publicada online no Portal da Justiça em 18 de maio de 2017, foi convocada, para as 15:00 horas do dia 20 de Junho de 2017, a realizar no …., sito na Av. …, em …., uma Assembleia Geral da R, com a seguinte ordem de trabalhos:
a) Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas do exercício de 2016;
b) Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados;
c) Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade;
d) Proceder à eleição dos órgãos sociais para o ano em curso;
e) Deliberar sobre as remunerações do Conselho de Administração (cf. Doc. n.3 junto com a p.i., que se dá por reproduzido).
3. No âmbito do ponto d) da ordem de trabalhos, foi aprovada, com os votos contra do acionista Autor, de DD, e de EE, a proposta apresentada pela acionista GG referente ao Conselho de Administração, com a seguinte composição:
Presidente: BB
Vogais:
FF;
CC
HH - cfr. doc. de fls. 65 a 70 que se dá por reproduzido.
4. Por sentença, prolatada de 6JUL2015, no âmbito do Processo de Inquérito Judicial n. 1101/03….., que correu termos na …. Secção de Comércio – J… da Instância Central …. do Tribunal da Comarca …., e confirmada por acórdão tirado na Relação …. a 30MAR2017, foi, além do mais, decidido:
- destituir os requeridos BB e CC, do exercício das funções de gerentes, atualmente administradores, na sociedade “Atomedical Laboratório de Medicina Nuclear, Lda.” (entretanto transformada em sociedade anónima) - cfr. docs. de fls. 85- 96 e fls. 132-151 que se dão por reproduzidos, concretamente:
1) A sociedade, Atomedical – Laboratório de Medicina Nuclear, Lda., por determinação dos seus gerentes, suportou o custo de aquisição pelo filho do gerente BB (HH), do veículo automóvel com a matrícula …-…-IE, nesse custo se incluindo o preço da viatura (valor residual) e o custo da própria transferência, numa quantia global superior a € 3.000,00. A sociedade não recebeu do filho do mencionado gerente a quantia acima mencionada.
2) A sociedade, por determinação dos seus gerentes, adquiriu uma mala de acessórios, cintas especiais, um guincho e faróis de longo alcance para a mencionada viatura, quando a mesma ainda se encontrava ao serviço da empresa, aquisições essas sem qualquer interesse ou relevo para o seu objecto comercial, que consiste, como vimos, na “investigação clínica com radiofármacos”.
3) Existe um conjunto de custos, sem especificação da sua razão de ser, bem como a assunção pela sociedade, por determinação dos respetivos gerentes, de despesas com terceiros, estranhos à Atomedical, sem qualquer justificação ou concretização.
4) Os telemóveis estavam atribuídos aos gerentes e a HH, filho do gerente BB, sendo o custo da sua utilização suportado pela sociedade, por determinação dos gerentes.»
3. O direito aplicável.
3.1. Comecemos pela segunda questão suscitada pelo recorrente:
Saber se os Administradores BB e CC devem ser declarados impedidos, por período nunca inferior a 5 anos contados do dia 15.05.2017 (data do trânsito em julgado do acórdão confirmatório da sentença que destituiu estes administradores, proferida no processo de Inquérito Judicial n. 1101/03…, que correu termos na ….. Secção de Comércio – J… da Instância Central … do Tribunal da Comarca ….), de exercerem cargos de Administração na Ré ou noutra sociedade que com esta esteja em relação de domínio ou de grupo.
Em rigor, esta é uma questão jurídica nova, que, como tal, não foi conhecida pelo acórdão recorrido, não tendo integrado o respetivo objeto. Aliás, também a primeira instância dela não havia conhecido, não tendo, sequer, o autor invocado tal matéria na sua petição. Trata-se, assim, não apenas de uma questão jurídica nova (por isso, não comportável no âmbito de aplicação do art.674º, n.1do CPC), mas também de uma alteração do pedido, que nunca seria admissível em sede de recurso de revista, tal como resultaria do art.265º do CPC.
Cabe ainda uma breve referência ao facto de tal pretensão do recorrente não ser expressamente dirigida contra a sociedade ré, mas sim contra os seus administradores, que não têm a qualidade de réus na presente ação. Este aspeto, porém, não chega a assumir relevo decisório autónomo, porquanto, como antes referido, esta nova pretensão do recorrente não pode ser atendida.
3.2. Quanto à primeira questão, ou seja, a única que, verdadeiramente, integra o objeto da revista, há que apurar: se deve ser declarada a anulação da deliberação tomada sobre o ponto d) da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da Ré, realizada em 20.06.2017, pela qual foram reeleitos os Administradores BB e CC. A resposta a esta questão pressupõe saber se os administradores, judicialmente destituídos com base na prática de atos de gestão danosa para a sociedade, podiam voltar a ser eleitos.
3.2.1. A 1.ª instância, julgando a ação procedente, anulou a supra referida deliberação. Entendeu, em síntese, que o comportamento dos acionistas que votaram a eleição dos administradores contrariava o dever de lealdade, por aplicação analógica do art. 58º, n. 1, al. b), do CSC, articulado com o art. 334º do CC e com o art. 450º, n. 4, do CSC, dado que a reeleição dos administradores, anteriormente destituídos com justa causa, afetava a confiança dos acionistas ou de parte deles.
No acórdão recorrido entendeu-se que não se mostravam preenchidos os pressupostos enunciados no art. 58º, n. 1, al. b), do CSC que determinariam a anulação da deliberação, porquanto os factos que fundaram a destituição ocorreram em 2001 e 2002, sem que tenha ficado provado que, após a destituição, os ex-administradores tenham continuado a exercer funções ou que, na vigência da sociedade anónima, tenham praticado qualquer ato em prejuízo desta, e ainda que a reeleição fosse apropriada para satisfazer vantagem para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou dos acionistas.
Considerou também que a proibição enunciada no art. 450º, n. 4, do CSC (de as pessoas destituídas não poderem desempenhar cargos na sociedade, da qual foram destituídos, por um período de cinco anos, a contar da prática dos factos que justificaram a destituição) tem o seu campo de aplicação limitado ao abuso de informação, constante do art. 449º do mesmo Código, o que não se verifica no caso concreto. E concluiu-se que as circunstâncias subjacentes ao inquérito judicial, que previamente correu termos, não assumiam relevância nos presentes autos, não estando, portanto, preenchidos os requisitos suscetíveis de conduzir à anulação da deliberação, nos termos do art. 58º, n. 1, al. b), ou do art. 450º, n. 4, do CSC.
3.2.2. Há que apurar se o acórdão em revista fez a correta aplicação da lei quando entendeu que a deliberação não é anulável.
Na tese do recorrente, existiria falta de idoneidade dos administradores para voltarem a ser eleitos, dado o facto de terem sido judicialmente destituídos com base na prática de atos de gestão danosa para a sociedade. Consequentemente, verificar-se-ia a ilegitimidade do voto dos acionistas que elegeram esses administradores, os quais violariam o dever de lealdade para com a sociedade. Entende o recorrente que, nos termos do art.64º do CSC, só podem ser eleitos administradores aqueles que reúnam as qualidades e competências de um gestor criterioso e ordenado. E entende que, do dever de lealdade dos acionistas para com a sociedade decorre o dever de não votar a eleição de administradores que não reúnam as qualidades e competências de um gestor criterioso e ordenado. Os administradores eleitos não reuniriam estas caraterísticas por antes terem praticado atos de gestão danosa, que justificaram a sua destituição judicial.
Entende o recorrente que os atos de gestão danosa são mais graves do que os de abuso de informação (previsto no art.449º do CSC), que são sancionados com o impedimento para o desempenho de cargos de administração pelo período de 5 anos, nos termos do art.450º, n.4 do CSC, pelo que, por maioria de razão, não deveriam os administradores em causa voltar a exercer cargos de administração, nos 5 anos a contar do transito em julgado da anterior decisão (15.05.2017) ou por período mais longo, podendo até ser definitivamente. Entende, em resumo, que o acórdão recorrido teria violado o art.58º, n.1, alíneas a) e b) do CSC e o art.334º do CC.
3.2.3. Existirá algum impedimento legal a que sejam reeleitos administradores anteriormente destituídos, nomeadamente por decisão judicial e com fundamento em justa causa?
O art.21º, n.1, alínea d) do CSC estabelece a regra segundo a qual todo o sócio tem direito: “A ser designado para os órgãos de administração e de fiscalização da sociedade, nos termos da lei e do contrato”.
Isto não significa ser atribuído “um direito necessário dos sócios a integrar o órgão de administração, mas antes um direito de poder ser designado ou ser elegível, nem que estejamos perante um direito universal de todos os sócios serem designados. Nem que seja um direito irrestrito a ser designado independentemente das regras previstas na lei e/ou no contrato de sociedade”[2]; “semelhante direito só pode assim ter um conteúdo essencialmente negativo. A nenhum sócio pode, à partida, ser-lhe retirada a aptidão para desempenhar cargos sociais”[3].
Quanto à designação de administradores de sociedades anónimas, em geral, o único requisito (positivo) de elegibilidade de um administrador, nos termos do art.390º, n.3 do CSC, é o de ser pessoa singular com capacidade jurídica plena. E como requisito (negativo) adianta-se a inexistência de incompatibilidades originárias. O que implica que, como afirma Ricardo Costa[4]: “A comprovação da incapacidade de exercício ou de incompatibilidade originária é causa de nulidade da designação por violação de norma injuntiva, que, se assim for, não produzirá quaisquer efeitos, mesmo que em causa esteja a vontade unânime dos sócios. Como regra, vemos que o CSC não demanda expressamente requisitos particulares de caráter técnico, de qualificação, de idoneidade e de experiência para o cargo, nomeadamente assentes em habilitações específicas, qualificações académicas ou determinado grau de experiência profissional para se designar ou ser elegível administrador de SA. Assim se deve interpretar a contrario o n.3 do art.390º. Tal não significa que o CSC seja indiferente a determinadas qualidades; entendo, ao invés, que é o próprio CSC – quando se refere, no art.64º, n.1, al. a), à aferição da diligência do administrador através da bitola do “gestor criterioso e ordenado” – que aponta para um tipo legal de administrador qualificado; esta qualificação pressupõe uma certa dedicação (ou, noutras palavras, profissionalização) e especialização próprias da classe dos gestores, uma competência basicamente assente em habilitações técnicas e profissionais. (…) Todavia, estas qualidades legais não são condições de validade da designação do administrador. Antes surgem como medidas de apreciação do cumprimento dos deveres gerais do administrador (mais intensamente no dever geral de cuidado do que no dever geral de lealdade), que farão concretizar ou não a ilicitude do seu comportamento e a imputabilidade a título de culpa do acto ilícito ao administrador. Ou seja, são requisitos atendíveis na avaliação objetiva e subjetiva da execução (ou omissão) das tarefas concretas de administração.”
Existindo destituição de administradores por via judicial, no caso específico de inquérito fundado no art.449º, ns.1 e 2, do CSC, esta regra conhece a exceção legal prevista no art.450º, n.4 do CSC, nos termos da qual: “Durante cinco anos a contar da prática dos factos justificativos da destituição, as pessoas destituídas não podem desempenhar cargos na mesma sociedade ou noutra que com ela esteja em relação de domínio ou de grupo”[5]. Todavia, esta norma tem de ser conjugada com o artigo 449º do CSC, da qual se concluiu que está em causa uma previsão legal especificamente destinada à hipótese de abuso de informação.
Para além do âmbito de aplicação desta norma, não se identifica na lei outra proibição de designação de gerentes ou administradores que tenha por base a existência de uma anterior destituição por via judicial (ou, ainda que fosse, pela via dos sócios ou órgão social).
Suscita-se, então, o problema de saber se a norma do art.450º, n.4 poderá ter aplicação a outras hipóteses de eleição de administradores que, previamente, tenham sido destituídos por via judicial.
Embora pela interpretação conjugada do art.449º e do art.450º se conclua que os interesses tutelados por aquela proibição extravasem os interesses patrimoniais dos sócios (o que pode justificar a consagração específica de tal solução), não deixa de estar em causa uma sanção de natureza legal automaticamente aplicável a quem foi judicialmente sancionado (com a destituição) por ter violado os seus deveres (máxime consagrados no art.64º do CSC: deveres legais gerais). Nesta medida, não é descabido questionar se uma inibição equiparável devia ser admitida face a outras hipóteses de destituição (pelo menos) judicial.
Tal hipótese é ponderada por Coutinho de Abreu, o qual, admitindo a reeleição de quem tinha sido destituído com base em justa causa “objetiva” (como uma doença, entretanto superada, ou falta de conhecimentos de gestão, entretanto suprida), afirma: “(…) a reeleição já será impugnável se o administrador havia sido destituído há relativamente pouco tempo por causa de violação grave dos deveres respetivos (…)”[6], e admite (em nota de rodapé) que essa limitação temporal possa ser de 5 anos. E concluiu o autor que, em tal hipótese, “(…) os votos a favor da eleição contrariam o dever de lealdade dos sócios, tornando a deliberação anulável (art.58º, n.1, al. a) ou al. b), consoante as circunstâncias)”[7].
O facto de termos administradores judicialmente destituídos, com justa causa subjetiva (relativa à violação grave, com dolo ou negligência grosseira, dos deveres dos administradores)[8], não significa, em termos absolutos, que não tenham a aptidão para mudar o seu comportamento, aproveitando essa segunda oportunidade para passarem a ser administradores criteriosos e ordenados, com plena observância dos deveres que lhes são impostos pelo art.64º do CSC. A sua reeleição, assente na regra da maioria (nos termos do art.386º do CSC), poderá, eventualmente, significar que os acionistas acreditaram que aqueles administradores não voltariam a violar os seus deveres.
Caso assim não aconteça, os acionistas minoritários terão sempre o poder de requerer a destituição dos administradores que vierem a ser reeleitos, nos termos do art.403º, n.3 do CSC.
Poderá pensar-se que, caso os administradores reeleitos voltem a praticar factos que conduzam a uma nova destituição judicial, sempre poderão voltar a ser eleitos pela maioria, entrando-se numa espécie de “ciclo vicioso” de destituição-reeleição, com prejuízo para o interesse da sociedade e da minoria. Esta parece ser a ideia subjacente à sentença que foi revogada pelo acórdão recorrido. Porém, esse já será um cenário distinto daquele a que respeita o caso decidindo, no qual o fator da reiteração de comportamentos ilícitos poderá ter um relevo específico e ser alvo de valoração própria.
Em todo o caso, deveremos ser particularmente cuidadosos nessa eventual inibição e não nos afastarmos do cenário (já por si fortemente condicionante e limite, nomeadamente para o sócio administrador) da aplicação analógica do art. 450º, n.4, do CSC. E só esse nos interessa.
Inserindo o caso concreto neste contexto, assume particular importância a circunstância de, entre a prática dos factos que conduziram à sua destituição e a reeleição dos dois administradores, terem passado 15 anos. Assim, caso se admitisse a aplicação analógica do art.450º, n.4, sempre o prazo de 5 anos se encontraria largamente ultrapassado, tendo, por isso, desaparecido o obstáculo legal (por analogia, recorde-se) à reeleição dos administradores antes destituídos.
3.2.4. O recorrente entende que o acórdão recorrido, ao não declarar a anulação da deliberação, violou o art.58º, n.1, alíneas a) e b) do CSC e ainda o art.334º do CC.
Estabelece o art.58º do CSC:
1- São anuláveis as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.
Não havendo impedimento legal (como se viu) à possibilidade de as pessoas supra referidas serem administradores, não se pode concluir à partida que o comportamento dos acionistas que assim votaram foi desleal perante a sociedade e entre si (sócios), o que, por essa razão, evita que, sem mais indagações, os votos inquinados fossem invalidados e se conduzisse à anulação da deliberação por falta dos votos necessários para formar a maioria exigida (alínea a) do art.58º)[9].
Na verdade, para além da limitação temporal estabelecida no art.450º, n.4, para o caso de aplicação analógica, nenhum outro requisito negativo de elegibilidade é legalmente identificável e essa realidade obriga a que o dever de lealdade do sócio votante perante o interesse social seja desconvocado para uma aplicação acrítica. Já o caso seria diferente se esse requisito existisse: a sua preterição conduziria, provavelmente, à nulidade da deliberação, nos termos do art.56º, n.1, alínea d), por violação de uma norma imperativa, insuscetível de derrogação por vontade dos sócios.
Já quanto à alínea b) do art. 58º, n.1, do CSC (deliberações abusivas), importa notar que emerge da factualidade provada apenas um dado objetivo: foi votada a eleição de dois administradores que, 15 anos antes (quando a sociedade tinha a forma de uma sociedade por quotas), praticaram atos de gestão danosa que conduziram à sua destituição por via judicial. Nada consta na factualidade provada nos presentes autos que autonomamente habilite a questionar o comportamento dos acionistas que votaram pela eleição daqueles dois administradores, nem sobre as suas motivações para tal, pelo que quer a hipótese prevista na alínea b) do n.1 do art.58º (nos dois “propósitos” aí referidos, incluindo o das chamadas deliberações “emulativas”), quer uma eventual hipótese de abuso de direito de voto dos acionistas, se encontrariam manifestamente afastadas por ausência de base factual. Na realidade, não se identificam na factualidade provada quaisquer circunstâncias que pudessem demonstrar uma deliberação apropriada para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios ou para satisfazer o propósito tão-só de prejudicar a sociedade ou sócios.
Por fim, nenhuma factualidade exige a ponderação da existência de abuso de direito de voto dos acionistas. Não se vê, assim, em que medida o exercício desse direito pudesse ser ilegítimo nos termos do art.334º do CC. Além do mais, esse fundamento não será de admitir em face da disciplina societária especial e dos seus pressupostos: «estabelecendo o CSC (desde 1986) regime pormenorizado das deliberações inválidas, é pouco curial continuar a recorrer ao art. 334º do CCiv. – preceito sincrético e largamente indefinido, inclusive quanto às consequências jurídicas»[10].
3.2.5. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos na dos últimos anos, não se encontra qualquer decisão proferida sobre a questão específica de saber se um administrador judicialmente destituído poderá ser reeleito e, consequente, se a deliberação que o reelege deve ser considerada anulável, nos termos do art.58º do CSC.
Todavia, podem apontar-se alguns acórdãos que espelham o entendimento que o STJ tem adotado a propósito do preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação daquela norma, bem como da sua relação com o abuso do direito previsto no art. 334º do CC. Concluindo-se facilmente que no caso concreto tais pressupostos não se encontrariam demonstrados.
Vejam-se, por exemplo:
-Ac. do STJ de 07.11.2017 (relator Fonseca Ramos), no processo n.1919/15.0T8OAZ.P1.S1:
« - O CSC distingue entre deliberações nulas e deliberações anuláveis, sendo a anulabilidade o regime regra por se entender que o dinamismo da vida societária ficaria embaraçado com a multiplicação de invocações de nulidade.
- A previsão da al. b) do n.º 1 do art. 58.º do CSC visa os casos em que a deliberação não serve o interesse social mas apenas o propósito do sócio em colher para si ou para terceiros vantagens lesivas da sociedade ou de outros sócios.
- O abuso do direito de voto detecta-se quando, a partir da ponderação das concretas circunstâncias em que aquele é emitido e da real situação societária (que implicaria, à luz da boa fé e dos bons costumes que a deliberação não fosse tomada), se conclui que a deliberação social é totalmente estranha ao escopo da sociedade e ao seu benefício e é escandalosamente ofensivo do sentido ético-jurídico, importando demonstrar que aquela visa alcançar um proveito exclusivo a favor dos votantes e um concomitante prejuízo da sociedade ou de terceiros. »
- Ac. do STJ de 22.09.2015 (relator Nuno Cameira), no processo n. 2055/13.9TBLRA.S1:
«Não se tendo provado factualidade da qual se pudesse inferir que as deliberações impugnadas tiveram por finalidade, através do exercício de voto da recorrida, prejudicar o autor, não se verifica o pressuposto da anulabilidade a que alude o art. 58.º, n.º 1, al. b), do CSC.»
- Ac. do STJ, de 19.05.2015 (relator Fonseca Ramos), no processo n. 477/03.2TBVNO.C3.S1:
«- A deliberação social abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa acautelar os direitos da sociedade, mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, almejando satisfazer o interesse egoísta do sócio ou sócios, que assim através do voto, colhe (m) para si, ou para terceiros, vantagens que prejudicam a sociedade ou outros sócios.
- No art. 58.º, al. b), do CSC, sanciona-se com a anulabilidade a deliberação social em que o direito de voto é exercido com fins alheios ao interesse social prosseguindo vantagens especiais para o votante ou terceiro, em prejuízo do ente societário ou de outros sócios ou de ambos.»
- Ac. do STJ, de 10.01.2011 (relator Sebastião Póvoas), no processo n. 801/06.6TYVNG.P1.S1:
«- Como “species” do “genus” abuso de direito está previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicando-se para integração de eventuais lacunas interpretativas o artigo 334.º do Código Civil.
- Caracteriza-se não só pela tomada de uma deliberação social, como também pelo pedido de anulação, quando o sócio exerce o direito de voto para obter vantagens especiais para si ou para terceiros com prejuízo (ou apenas com o propósito de prejudicar) para a sociedade ou outros sócios, independentemente da regularidade formal da mesma.
- A deliberação é, então, consequência, do sócio ter conduta não compatível com os deveres de lealdade e de prosseguimento do interesse social, a que está vinculado.»
-Ac. do STJ de 08.06.2010 (relator Salreta Pereira), no processo n. 1026/07.9TYLSB.L1.S1:
«O facto de uma sociedade anónima, com cinco accionistas, integrar dois blocos familiares (…) e dos accionistas maioritários terem votado as deliberações aprovadas numa determinada assembleia geral, não se tendo provado qualquer facto susceptível de indiciar o exercício do voto viciado, com objectivo de obter vantagens especiais para o votante ou terceiros, em prejuízo da sociedade ou outro sócio, ou simplesmente com o objectivo de prejudicar aquela ou este, não é suficiente para concluir que o voto dos mesmos accionistas foi viciado, de molde a preencher a hipótese do art. 58.º, n.1, al. b), do CSC.
- A relação de parentesco entre os accionistas que aprovaram as deliberações impugnadas judicialmente, não se tendo provado qualquer facto que indicie a viciação do seu voto, não constitui fundamento bastante para anular aquelas deliberações.»
Em resumo, concluiu-se que o acórdão recorrido não fez errada aplicação da lei, face à factualidade provada, pelo que não merece censura.
DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas: pelo recorrente.
Lisboa, 23.02.2021
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
António Barateiro Martins
* A relatora declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Conselheiros adjuntos
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_______________________________________________________
[1] Como resulta da certidão da Conservatória do Registo Comercial, junta com a petição inicial (como documento n.1), à data em que o autor adquiriu a sua participação social, bem como à data em que a sociedade deixa de ser uma sociedade por quotas e passa a ser uma sociedade anónima, BB e FF também eram sócios, sendo o primeiro destes gerente dessa sociedade.
[2] Ricardo Costa, Os administradores de facto das sociedades comerciais, 2014, pág. 482.
[3] Oliveira Ascensão, Direito comercial, Volume IV, Sociedades comerciais. Parte geral, Lisboa, 2000, p. 353.
[4] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. VI (2ª ed.), pág.207 e seguintes.
[5] Na pendência de uma ação judicial, nos termos do art.75º, n.2 do CSC, também não podem voltar a ser designados os gerentes ou administradores que a assembleia considere responsáveis.
[6] Código das Sociedades em Comentário, Vol.VI (2ª ed.), 2019, pág. 417.
[7] Op. cit., loc.cit.
[8] V. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol.II, Das Sociedades (6ª ed.), 2019, págs. 577-578.
[9] V. Coutinho de Abreu, Curso… cit., págs. 289, 498-499.
[10] Coutinho de Abreu, Curso… cit., págs. 507-508.