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CASSAÇÃO DE CARTA DE CONDUÇÃO
Sumário
I - A cassação da carta pelo presidente da ANSR tem natureza administrativa e funda-se na perda de pontos resultantes da prática das infracções que lhe estão subjacentes. É uma decisão administrativa automática. Nada tem a ver com a cassação a que se refere o art.º 101.º, do Código Penal, essa sim aplicada pelo tribunal no âmbito de um processo crime e que constitui uma medida de segurança. Esta não é automática, requer ponderação e dever fundamentação. II – A cassação da carta pela perda de pontos pune a inidoneidade, a perigosidade, a ineptidão para a condução de veículos com motor, reveladas pelas anteriores condenações por crimes rodoviários. Não há qualquer violação do princípio ne bis in idem. III – A condenação por tais crimes constitui até um pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
No Juiz 1 do Juízo Local Criminal da Amadora, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida sentença com a seguinte parte decisória:
Manter a decisão administrativa que aplicou ao recorrente a cassação da carta de condução aplicada ao arguido, devendo este proceder à entrega da sua carta de condução na Secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
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Inconformado, o arguido AA interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões: “ 1. Vem o presente recurso interposto da sentença que julga totalmente improcedente a impugnação deduzida, mantendo a decisão da ANSR, de cassação do título de condução do recorrente, nos termos do 148º, nº 2 e 4, al. c) do Código da Estrada, e nas custas processuais. 2. Porquanto, conforme a sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida, o arguido sofreu duas condenações pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em multas e em penas acessórias de condução de veículos automóveis, nomeadamente no processo nº 187/16.0PTSNT do Juízo local Criminal da Amadora, Juiz 1 e Proc. 200/18PDAMD do Juízo Local Criminal da Amadora, penas acessórias que foram declaradas extintas pelo cumprimento e que, 3. “ …antes da condenação o recorrente tinha sido atribuído 12 pontos; que o arguido carece da carta de condução para o exercício da actividade profissional… 4. O recorrente impugnou judicialmente a decisão da cassação da carta de condução, da ANSR, por considerá-la injusta e ilegal, 5. 6. Na medida em que a determinação da cassação da carta deviria ter sido imposta pelo tribunal judicial, eventualmente, como consequência da perda dos referidos 12 pontos e, não da ANSR, a qual se consubstanciou numa dupla condenação. 7. Com as respectivas penas acessórias de inibição de conduzir veículos automóveis, o recorrente havia ficado ciente de que não veria a sofrer nova sanção pelas mesmas condutas, 8. até porque, aquando da atribuição da carta de condução pela ANSR não estava prevista na Lei essa determinação, sendo certo que essa autoridade jamais o informou dessa nova imposição legal. 9. Sendo certo que a entrada em vigor da lei que atribui os pontos as cartas de condução de veículos automóveis, aconteceu depois do trânsito em julgado da 1ª condenação do recorrente, pelo que não deveria ser-lhe aplicada a pena de cassação da carta; Além do mais o requerente cumprira já a pena acessória de inibição de conduzir, a que fora condenado. 10. Ainda que assim não se considere, a sentença recorrida não é de todo exemplar, porquanto carece de fundamentação legal, designadamente porque nela não se vislumbre como é que se chegou á conclusão de que “nem a sua punição o facto de a cassação comportar sérios transtornos pessoais, profissionais e/ou familiares “para o recorrente (nº 2 do artº 374º do CPP). 11. Posto que em direito não basta dizer, mas antes é mister dizer fundadamente, porquê é que decidiu duma determinada forma e não doutra. 12. Acresce que o artº 148º/2 do CE interpretado que o foi, no sentido de que além da pena acessória de inibição de conduzir, aplicada pelo tribunal, o arguido ainda enfrentaria novo julgamento e nova pena, a de cassação de carta de condução, viola o disposto no artº 29º/5 da CRP segundo o qual, ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime. 13. Até porque aquando da atribuição da carta pela ANSR, inexistia tal comando normativo, sendo jamais lhe foi informado pela mesma autoridade dessa mesma imposição legal, pelo que foi violado o disposto no artº 20º/2 da CRP. 14. De modo que, salvo o devido respeito, que é muito, deve/deveria se ter em conta o principio in dúbio pró reo, absolvendo o arguido, ora recorrente, com a consequente revogação da “sentença” de cassação da carta de condução imposta pela ANSR”.
O Ministério Público apresentou Resposta, concluindo do seguinte modo: “ I. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou correctamente o direito aos factos dados como provados. II. A competência para a cassação da carta de condução ao arguido cabe ao presidente da ANSR, pelo que a decisão de cassação dos autos não se encontra ferida de ilegalidade (d. artigo 169.º, n.ºs 2 e 3, do Código da Estrada). III. A decisão que retirou 12 pontos da carta de condução ao arguido e a decisão que lhe retirou a carta de condução não são duas condenações pelo mesmo facto, ou seja, não existe qualquer violação do princípio non bis in Idem, previsto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. IV. Não existe qualquer obrigação de informar o aqui recorrente das alterações legislativas vigentes, seja para a sua validade, seja para a sua eficácia ou para que aquele esteja obrigado ao seu cumprimento, pelo que a ignorância da lei não o desobriga do seu cumprimento, segundo os artigos 5.º, 6.º e 12.º, n.ºs 1 e 2 in fine, do Código Civil. V. O Tribunal deu como provada a matéria de facto que suficiente para a condenação mantida, afastando assim a existência do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP. VI. A decisão recorrida não merece, por isso, qualquer reparo, devendo manter-se nos seus precisos termos”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
II – A) Factos Provados
2.1.1. No âmbito dos processos 187/16.0PTSNT e 200/18.7PGAMD foi aplicado ao recorrente a pena acessória de inibição de conduzir, por o arguido ter conduzido em ambas as situações após ter ingerido bebidas alcoólicas que determinaram uma TAS superior a 1,2.
2.1.2. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
2.1.3. Tal teve como consequência a perda de 12 pontos ao recorrente.
2.1.4. O arguido é divorciado, tem 2 filhos e mora sozinho.
2.1.5. Está de baixa médica recebendo €260 mensais.
2.1.6. Mora em casa dos pais.
2.1.7. Não tem carro.
2.1.8. Tem a 4ª classe.
2.1.9. O recorrente necessita da sua carta de condução para ir ao Hospital e tratamentos.
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Inexistem Factos não Provados.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
O recurso tem os seguintes fundamentos: (i) a cassação da carta deveria ter sido imposta pelo tribunal judicial, eventualmente, como consequência da perda dos referidos 12 pontos e não da ANSR (ii) a sentença recorrida não é de todo exemplar, porquanto carece de fundamentação legal, designadamente porque nela não se vislumbra como é que se chegou á conclusão de que “nem a sua punição o facto de a cassação comportar sérios transtornos pessoais, profissionais e/ou familiares “para o recorrente (nº 2 do artº 374º do CPP); (iii) o artº 148º/2 do CE interpretado que o foi, no sentido de que além da pena acessória de inibição de conduzir, aplicada pelo tribunal, o arguido ainda enfrentaria novo julgamento e nova pena, a de cassação de carta de condução, viola o disposto no artº 29º/5 da CRP segundo o qual, ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime; (iv) aquando da atribuição da carta pela ANSR, inexistia tal comando normativo, sendo jamais lhe foi informado pela mesma autoridade dessa mesma imposição legal, pelo que foi violado o disposto no artº 20º/2 da CRP; (v) violação do princípio in dubio pro reo.
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IV – Fundamentação
(A cassação da carta deveria ter sido imposta pelo tribunal judicial, eventualmente, como consequência da perda dos referidos 12 pontos e não da ANSR)
O presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária tem competência para ordenar a cassação da carta de condução – cfr. art.º 169.º, n.º 3, do Código da Estrada.
A cassação da carta pelo presidente da ANSR tem uma natureza administrativa e funda-se na perda de pontos resultantes da prática das infracções que lhe estão subjacentes. É uma decisão administrativa automática.
Nada tem a ver com a cassação a que se refere o art.º 101.º, do Código Penal, essa sim aplicada pelo tribunal no âmbito de um processo crime e que constitui uma medida de segurança. Não é automática, requer ponderação e dever fundamentação.
Improcede, sem mais, este fundamento do recurso.
* (A sentença recorrida não é de todo exemplar, porquanto carece de fundamentação legal, designadamente porque nela não se vislumbre como é que se chegou á conclusão de que “nem a sua punição o facto de a cassação comportar sérios transtornos pessoais, profissionais e/ou familiares “para o recorrente (nº 2 do artº 374º do CPP)
Não se vislumbra na sentença recorrida a passagem assinalada pelo recorrente (“nem a sua punição o facto de a cassação comportar sérios transtornos pessoais, profissionais e/ou familiares”).
Decai este argumento do recurso.
* (O artº 148º/2 do CE interpretado que o foi, no sentido de que além da pena acessória de inibição de conduzir, aplicada pelo tribunal, o arguido ainda enfrentaria novo julgamento e nova pena, a de cassação de carta de condução, viola o disposto no artº 29º/5 da CRP segundo o qual, ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime)
Da análise do quadro legal resulta com nitidez que, com o sistema da carta por pontos, teve o legislador o propósito de incutir no espirito dos condutores uma mais completa percepção sobre as consequências das infrações de trânsito, incluindo, agora, para efeitos de cassação do título de condução, não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves, como outrossim os crimes rodoviários, entre eles a condução de veículo em estado de embriaguez, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor, o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo tribunal pelo cometimento do crime rodoviário – cfr. acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 16.11.2019, processo n.º 4289/18.0T8PBL.C1, dgsi.pt.
A questão é, por conseguinte, a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, ou seja, como refere o acórdão do TRP de 06.10.2004 (proc. n.º 0345913), “O que está em causa não é um novo sancionamento pela prática daquelas contraordenações (concretas), mas, pelo contrário, o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da condução (…). Existe um mais, que não foi nem podia ser considerado e é, precisamente, esse mais (inidoneidade) a causa da cassação da carta de condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. Às coimas e sanções acessórias já aplicadas acresce agora uma outra sanção que já não pune os factos (as concretas contraordenações) praticados, mas a perigosidade, a ineptidão, a inidoneidade entretanto reveladas. Com a sua conduta, o arguido demonstrou que as sucessivas condenações em coima (multa, no caso dos autos) e em sanção acessória não foram suficientes para o afastar da prática de infrações estradais e, por isso, que é incapaz de conduzir com observância dos preceitos estabelecidos na lei. Em resumo: que é inidóneo para o exercício da condução”.
Como salienta ainda o citado acórdão do TRP de 06.10.2004: “Os factos não são os mesmos (…), as normas aplicáveis não são as mesmas (…) e o pedaço de vida também não é o mesmo (…)”. O facto de o arguido já ter sido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir por cada um dos dois crimes de condução em estado de embriaguez não impede a aplicação da cassação, por esta não violar o princípio ne bis in idem, consagrado na Constituição e aplicável por força do art.º 41.º do D.L. n.º 433/82, de 27/10.
Aliás, a condenação por tais crimes constitui até um pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor.
Em conclusão, não há qualquer violação do princípio ne bis in idem.
* (Aquando da atribuição da carta pela ANSR, inexistia tal comando normativo, sendo jamais lhe foi informado pela mesma autoridade dessa mesma imposição legal, pelo que foi violado o disposto no artº 20º/2 da CRP)
No âmbito dos processos 187/16.0PTSNT e 200/18.7PGAMD foi aplicado ao recorrente a pena acessória de inibição de conduzir, por o arguido ter conduzido em ambas as situações após ter ingerido bebidas alcoólicas que determinaram uma TAS superior a 1,2 gm/l de álcool no sangue.
As condenações do recorrente são relativas a factos ocorridos já na vigência do DL n.º 116/2015(que alargou aos crimes rodoviários o sistema de pontos. Por isso, podem ser valoradas.
Não é, nem podia ser, factor de aplicação da lei no tempo a data em que o recorrente obteve a carta de condução. Relevante é que as infracções subjacentes à cassação de carta tenham ocorrido – como sucedeu no caso concreto – depois da entrada em vigor do sistema de pontos que lhe foi aplicado.
E é óbvio que inexiste qualquer violação do art.º 20.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Tal preceito - todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade – não se mostra minimamente beliscado. Seria totalmente descabido pretender-se que a ANSR informasse pessoalmente o recorrente e todas as pessoas do País com carta de condução e, claro, sabemos todos, o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.
O DL n.º 116/2015 foi publicado em Diário da República. Se o não tivesse sido, seria juridicamente ineficaz (cfr. art.º 119.º, n.º 1, al. c) e 2, da CRP). A edição eletrónica do Diário da República constitui um serviço público de acesso universal e gratuito, de modo a que a pesquisa dos atos jurídicos, dos documentos, das informações, das imagens e dos demais conteúdos publicados no Diário da República seja livre, rápida e facilmente acessível ao utilizador, permitindo a sua fácil identificação e consulta.
O recorrente não tem razão.
* (Da violação do princípio in dubio pro reo)
O Tribunal a quo não violou a presunção da inocência do recorrente.
Dando como assente apenas o que fundada e justificadamente ficou provado, o Tribunal a quo mais não fez do que garantir a presunção da inocência do recorrente. Só se considerou provado o que resultou certo e seguro. O raciocínio do Tribunal a quo foi lógico e coerente. Deste modo conseguiu certeza e segurança na decisão de facto.
Nada mais há a dizer sobre esta matéria porque, como refere o acórdão desta Relação de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, dgsi.pt, “o princípio in dubio pro reo é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica; traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”.
A aplicação do princípio in dúbio pro reo incide apenas sobre a matéria de facto, e é certo que o objecto do presente recurso está limitado à matéria de direito.
Decai este fundamento do recurso.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.
Lisboa, 16 de Março de 2021
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira