DIREITOS DE PERSONALIDADE
REPOUSO
SONO E TRANQUILIDADE
EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE ECONÓMICA
COLISÃO DE DIREITOS
Sumário


I- Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física; à proteção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana.
II- Em caso de colisão entre o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade, num ambiente ecologicamente equilibrado, e o direito de propriedade (direito ao uso e fruição que o proprietário tem sobre a coisa que lhe pertence) ou o direito da livre iniciativa privada (direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial), deve prevalecer o primeiro, pois que aquele direito, implicando com a integridade física e moral do indivíduo, isto é, afetando os direitos de personalidade de uma pessoa, deve preponderar sobre o direito de propriedade ou direito da livre iniciativa privada.
III- Porém, importará sempre aquilatar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, quando é certo que o sacrifício e compressão do direito inferior (no caso o direito da livre iniciativa privada) apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante.
IV- Assim, estando em causa o conflito efetivo e relevante entre direitos de personalidade (de repouso, sono e tranquilidade) em contraposição com o direito do livre exercício da iniciativa privada (de exploração de atividade económica), caberá sempre ao tribunal, designadamente à luz do disposto no art. 335º, do C. Civil, avaliar, em concreto, a solução mais razoável e proporcional à coexistência dos direitos em conflito.
V- O ruído que impeça o sono constitui violação do direito de personalidade (direito ao repouso), ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no Regulamento Geral do Ruído (D.L. n.º 9/2007, de 17.01).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

J. M., M. P., M. T. e M. S. intentaram a presente ação declarativa comum contra J. G., pedindo a condenação do réu:

a) a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre os prédios que identificam;
b) a cessar, de imediato, a utilização do espaço denominado Quinta ... para a realização de eventos, batizados, casamentos, festas, festas de aniversário, passagens de ano, convívios e outros;

ou, subsidiariamente,
c) a cessar, de imediato, a utilização do espaço denominado Quinta ... para a realização de eventos, baptizados, casamentos, festas, festas de aniversário, passagens de ano, convívios e outros, entre as 22:00 horas e as 07:00 horas do outros dia ou outro período que se repute adequado;
E, sempre,
d) a abster-se de produzir ruídos que sejam audíveis a partir dos prédios dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, ventilação/ar condicionado, som do fogo de artifício e artefactos pirotécnicos semelhantes, som dos veículos ligeiros e autocarros provenientes de qualquer um dos componentes, interiores ou exteriores, do espaço denominado Quinta ...;

ou, subsidiariamente,
e) a absterem-se de produzir quaisquer ruídos que atinjam os prédios dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, ventilação/ar condicionado, som do fogo de artifício e artefactos pirotécnicos semelhantes, som dos veículos ligeiros e autocarros provenientes de qualquer um dos componentes, interiores ou exteriores, do espaço denominado Quinta ... e que gerem incomodidade e/ou que excedam os valores-limite definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

Ainda, e sempre,
f) a pagar a sanção pecuniária compulsória, de € 2.500,00 para cada um dos 1ºs e 2ºs autores, por cada dia em o réu viole a obrigação emergente desses pedidos, ou seja, por cada infração diária;
g) a pagar aos autores a quantia de € 15.000,00, sendo € 10.000.00 para os 2ºs autores e € 5.000.00 para os 1ºs autores, a título de danos não patrimoniais por estes sofridos devido à descrita conduta do réu (cfr. retificação efetuada em ata da primeira sessão de julgamento).

Para tanto, e em suma, alegaram que o réu é proprietário de um prédio contíguo a prédios pertencentes aos autores, aí desenvolvendo atividade relacionada com eventos festivos, produzido barulhos e fumos que contendem com direitos de personalidade dos autores, tendo-lhes, ademais, provocado danos não patrimoniais, do qual pretendem ser ressarcidos.

O réu contestou, impugnando, no essencial, os factos alegados pelos autores, tendo concluindo, pela improcedência da ação.

Foi elaborado despacho saneador, com a identificação do objeto do litígio, seguida de seleção da matéria de facto dada como assente por prova documental plena e da que constituiria os respetivos temas de prova, a qual não foi objeto de qualquer reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência final.

Na sequência, por decisão de 29 de Outubro de 2019, veio a presente ação julgar-se parcialmente procedente e, em consequência (transcrevendo-se a parte final do item Dispositivo):

“i) Reconhece-se o direito de propriedade dos autores, nos termos requeridos na alínea a) do petitório;
ii) Determina-se ao réu J. G. a total proibição de lançamento de foguetes e artefactos pirotécnicos que impliquem explosão audível na Quinta ....
iii) Determina-se que a Quinta ... só poderá colocar música a partir das 21.00 horas depois providenciar pela insonorização efectiva do salão onde passa música durante a noite.
iv) Determina-se que a música tocada e/ou passada no exterior durante o dia só possa ocorrer até às 21.00 horas. A partir de então, apenas no interior do salão poderá ser tocada/passada música, com as condições de insonorização referidas em iii).
v) Determina-se que o réu crie condições para que a saída das viaturas e dos convidados a partir das 22.00 horas se faça pelo portão que não implica a passagem junto da casa dos autores M. T. e M. S., que dá acesso à rua e tem servido para a entrada dos noivos e das excursões.
vi) Condena-se o réu no pagamento de uma indemnização no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) aos autores J. M. e M. P..
vii) Condena-se o réu no pagamento de uma indemnização de € 10.000,00 (dez mil euros) aos autores M. T. e M. S..
viii) Condena-se o réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 (quinhentos euros) por cada dia em que mantenha a Quinta ... aberta ao público fora das condições estipuladas na presente decisão – art. 829º-A do CC.

O réu recorreu desta sentença, tendo, na sequência, sido proferido acórdão por esta Relação, a 20 de Fevereiro de 2020, de acordo com o qual se decidiu: “ (…) anular a decisão proferida, a fim do tribunal a quo suprir as deficiências acima assinaladas, ampliando a matéria de facto nos termos supra expostos, com produção e/ou renovação de novos meios de prova que repute por convenientes, seguida da correspondente fundamentação de facto e de direito que ao caso couber.”

Neste aresto, no que se refere à referida ampliação da matéria de facto, foi considerada relevante a factualidade alegada pelos autores sob os arts. 36º, 46º, 47º, 48º e 49º da petição inicial.
As partes indicaram prova.

Foi reaberta a audiência de julgamento, tendo, na sequência, sido proferida nova sentença a 19 de Outubro de 2020, na qual se julgou a ação parcialmente procedente, nela se podendo ler, na sua parte final, sob o item Dispositivo:

i) Reconhece-se o direito de propriedade dos autores, nos termos requeridos na alínea a) do petitório;
ii) Determina-se ao réu J. G. a total proibição de lançamento de foguetes e artefactos pirotécnicos que impliquem explosão audível nas casa dos autores.
iii) Determina-se que a Quinta ... só poderá colocar música a partir das 21.00 horas depois providenciar pela insonorização efectiva do salão onde passa música durante a noite.
iv) Determina-se que a música tocada e/ou passada no exterior durante o dia só possa ocorrer até às 21.00 horas. A partir de então, apenas no interior do salão poderá ser tocada/passada música, com as condições de insonorização referidas em iii).
v) Determina-se que o réu crie condições para que a saída das viaturas e dos convidados a partir das 22.00 horas se faça em termos que não impliquem a passagem junto da casa dos autores M. T. e M. S., podendo ser a que dá acesso à Rua ... e tem servido para a entrada dos noivos e das excursões, ou qualquer outra que o réu prefira, desde que cumpra o objectivo de evitar que as vozes de quem abandona a festa perturbem o sono daqueles.
vi) Condena-se o réu no pagamento de uma indemnização no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) aos autores J. M. e M. P..
vii) Condena-se o réu no pagamento de uma indemnização de € 10.000,00 (dez mil euros) aos autores M. T. e M. S..
viii) Condena-se o réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 (quinhentos euros) por cada dia em que mantenha a Quinta ... aberta ao público fora das condições estipuladas na presente decisão – art. 829º-A do C. Civil (…)”

Inconformado com o assim decidido, veio, de novo, o réu J. G. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. Ao abrigo do art.º 644.º, n.º 1, al. a), do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 25/10/2019, que julgou a ação parcialmente procedente.
2. O Apelante impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 9, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos julgados provados, que enfermam de relevantes erros de julgamento, com origem numa deficiente análise crítica das provas produzidas;
3. Funda a discordância:
a. Na deficiente apreciação dos documentos juntos na petição inicial sob os n.os 8, 9 e 10 e a fls. 30 verso, 31, 32 e 33v, e nos juntos com as Ref.as Citius 10427048, 10427068 e 10427133, de onde não é possível extrair a prova de nenhum dos pontos impugnados;
b. Na deficiente apreciação conjugada dos primeiros depoimentos das testemunhas dos AA. M. N., M. C., M. M., E. R., M. H., J. R., A. N., V. N., S. F., e do Réu Maria, M. F., B. G., M. A., R. C., M. L., J. C., A. R., F. F. e A. J., uma vez que todas as testemunhas arroladas pelos AA. e pelo Réu, aquelas interessadas no desfecho da causa, ofereceram no essencial, e em singelo, as suas perceções e opiniões subjetivas sobre o ruído produzido pela atividade desenvolvida pelo Réu na Quinta ...;
c. Na deficiente apreciação conjugada dos segundos depoimentos (no âmbito da reabertura da audiência de discussão e julgamento) de V. N., M. C., J. T., S. V., A. G., M. L., B. G., R. C., J. C., A. R. e A. J., posto que, uma vez mais, todas as testemunhas arroladas pelos AA. e pelo Réu, aquelas interessadas no desfecho da causa, ofereceram no essencial, e em singelo, as suas perceções e opiniões subjetivas sobre o ruído produzido pela atividade desenvolvida pelo Réu na Quinta ....
4. Do conjunto dos documentos e das “perceções” e “opiniões” (e disso mesmo não passam: meras opiniões e perceções subjetivas) transmitidas ao Tribunal pelas testemunhas, é totalmente impossível formar uma convicção minimamente segura sobre um conjunto de circunstâncias essências e indispensáveis para a decisão a proferir sobre a matéria de facto, a saber:
- Qual o ruído residual produzido nas imediações da denominada “Quinta ...” nos períodos diurno (período de referência das 07h às 20h), entardecer (período de referência das 20h às 23h) e anoitecer (período de referência das 23h às 07h)?
- Qual o ruído de atividade permanente produzido na “Quinta ...” nos períodos diurno (período de referência das 07h às 20h), entardecer (período de referência das 20h às 23h) e anoitecer (período de referência das 23h às 07h)?
- O ruído produzido na “Quinta ...” naqueles três períodos legais de referência, cumpre o critério de incomodidade, considerado como a diferença entre o ruído residual (ruído ambiente) determinado durante a ocorrência do ruído particular da atividade ou atividades em avaliação?
- Designadamente, excede os valores previstos no artigo 13.º do Regulamento Geral do Ruído e no anexo I do mesmo diploma, mormente, em 5 dB(A) no período diurno? Em 4 dB(A) no período do entardecer? E em 3 dB(A) no período noturno?
- Qual o tipo de fogo de artifício utilizado na Quintas …? Qual a sua natureza e calibre? Quais os seus efeitos? Calorífico? Luminoso? Sonoro? Gasoso? Fumígeno? É fogo preso (em caixa ou fixado em suporte)? É foguete com vara?
- Em que concreto local da Quinta ... é despoletado o fogo de artifício.
- A que distância é despoletado de cada um dos prédios dos AA.?
- São, ou não, respeitadas a área de segurança e o raio de segurança legalmente previstos?
- Em que concreto local da Quinta ... são recebidos os convidados?
- Em que concreto local da Quinta ... são os convidados servidos?
- A que distância se situam aqueles locais de cada um dos prédios dos AA.?
- Em que concreto local da Quinta ... se situa o salão onde é servido o “copo de água”?
- Esse salão está, ou não, insonorizado?
- A que distância se situa aquele salão de cada um dos prédios dos AA.?
- Qual o ruído medido no interior de cada uma daquelas casas dos AA., durante o funcionamento da Quinta ... nos referidos períodos diurno, entardecer e anoitecer?
- Esse ruído respeita, ou não, o critério de incomodidade legalmente previstos no artigo 13.º e anexo I do Regulamento Geral do Ruído?
5. São os próprios AA. que, definindo a causa de pedir e o pedido, peticionaram subsidiariamente a condenação do Réu a abster-se de produzir ruído que gere incomodidade e exceda os limites definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis [pedido e-)];
6. O Tribunal mais não tem do que os relatos, perceções e opiniões subjetivas das dezoito testemunhas inquiridas, todas elas residindo a diversas distâncias da Quinta ... (a 10 m, a 15m, a 20m, a 50m, a 100m, a 150m, a 300m, a 500m, a distâncias superiores) e produzindo depoimentos absolutamente incompatíveis e inconciliáveis:
a. As que residem a 10m, 15m e 20m, umas dizem que o ruído produzido não incomoda enquanto só duas, sendo uma neta dos 2ºs AA., afirmam que até faz tremer as casas!...
b. As que residem a 400, 500 e mais metros, umas dizem que o ruído é praticamente impercetível enquanto outras afirmam que é impossível descansar;
7. O Tribunal a quo não valorou suficientemente que as habitações dos AA. em causa nos autos confinam com a Estrada Municipal conhecida como Rua ..., que faz a ligação das freguesias de … e de … (do concelho de Fafe) à Estrada Nacional 311, que liga a Cabeceiras de Basto, e à Via Circular (Estrada Nacional 206) que liga à Zona Industrial do Socorro, à cidade Fafe, à Auto-Estrada A7 e a Guimarães;
8. Face às inúmeras contradições de todas as testemunhas inquiridas, cujos depoimentos são absolutamente inconciliáveis, e à total ausência de prova objetiva sobre o ruído produzido na Quinta ..., designadamente, se aquele “gera incomodidade e/ou excede os limites definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis” (tal qual peticionado pelos AA.), não tinha o Tribunal a quo à sua disposição suficientes meios probatórios suscetíveis de, com o mínimo de segurança, tomar como mais verosímil uma das duas versões em confronto nos autos;
9. A decisão da matéria de facto enferma de relevantes erros, cuja origem e razão se prende com a total ausência de meios de prova objetivos que permitissem, com o mínimo de certeza e segurança, tornar mais verosímil uma das duas versões em conflito, designadamente a realização de perícia, através de ensaios acústicos realizados no interior dos prédios dos AA. e seguindo uma metodologia sigilosa, isto é, sem o conhecimento do Réu, durante o período que nos autos se verificou ser o mais relevante: o mês de Agosto;
10. Por opção, os AA. não requereram tal meio de prova (nem mesmo depois da anulação da douta sentença de 29/10/2019, e dos reparos constantes do douto acórdão de 20/02/2020), apesar do pedido que formularam na alínea e) do petitório, pelo que não restava ao Tribunal a quo, senão aplicar o princípio contido nos artigos 346.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil.
11. Repetido o julgamento e proferida nova douta sentença, nenhuma das dúvidas colocadas pelos Venerandos Desembargadores, no douto acórdão de 20/02/2020, foi solucionada:
a. Não se mostra alegada pelos AA. e nem provada factualidade atinente às concretas características acústicas do salão;
b. Não se mostra alegado pelos AA. e nem provada factualidade atinente ao cumprimento ou incumprimento, pelo Réu, dos valores limite de ruído definidos nas disposições legais regulamentares aplicáveis.
c. Nada nos é dito na douta sentença recorrida quanto à circunstância de estarmos perante uma estrada de circulação pública;
d. Não se mostra alegado pelos AA. e nem provada factualidade que concretize o tipo de densidade de incomodidade alegadamente provocado pelo trânsito de viaturas e dos autocarros em que os clientes da Quinta ... se fazem transportar, por comparação à incomodidade gerada pela passagem de viaturas na estrada municipal que confina com as habitações dos AA.; e
e. Não temos como alegado pelos AA., nem tal resulta dos factos provados, qual a configuração da Quinta ..., nomeadamente em termos de acesso à mesma, se existe só um portão para o acesso / saída das viaturas aos parques de estacionamento e/ou se a alteração de acesso e saída das mesmas viaturas se possa realizar, sem necessidade de obras avultadas, por um outro qualquer acesso e que do mesmo resulte vantagem para os autores.
12. Pelo que a decisão que se pretende ver proferida, mediante a procedência da presente impugnação da decisão da matéria de facto, é a seguinte:
9 – Provado apenas que em alguns casamentos são deflagrados artefactos pirotécnicos;
11 – Não provado;
12 – Não provado;
13 – Não provado;
15 – Não provado;
16 – Não provado;
17 – Não provado;
18 – Não provado;
19 – Não provado;
20 – Não provado;
21 – Não provado;
22 – Não provado;
23 – Não provado;
24 – Não provado;
25 – Não provado;
26 – Não provado.
13. Não tendo os AA. logrado provar um único comportamento ou atividade objetivamente ilícita do Réu, sequer a violação de qualquer direito de propriedade ou de personalidade, outra não poderá ser a sorte da presente ação, que não a improcedência.
14. Sem prescindir, e por mera cautela, as emissões provenientes do prédio do Réu apenas são suscetíveis de causar aos AA. um simples incómodo e aborrecimento, e não propriamente um atentado ao seu descanso, sossego e saúde, pelo que não se justifica que o Direito do Réu à propriedade privada (uso da sua propriedade para os fins que entende levar a cabo, em conformidade com as regras administrativas), à iniciativa económico-empresarial (direito de estabelecimento) e ao trabalho, sejam pura e simplesmente cerceados;
15. Não ignorando os AA. e nem podendo ignorar que ao longo de um período de pelo menos 15 anos, foram sempre realizados eventos na Quinta ..., mormente casamentos, passagens de ano e outros, com música, com convidados, com vozes, com passagem de veículos, com fogo de artifício e todas as demais atividades normais neste tipo de eventos, e nunca tendo reagido e nem manifestado qualquer descontentamento (senão agora), criaram no Réu a convicção de que consideravam a sua atividade perfeitamente normal, exercida em pleno respeito pelos direitos de propriedade e de personalidade dos AA. e sem causar lesão de qualquer tipo;
16. O exercício tardio por parte dos AA. dos seus direitos de personalidade, acarreta uma desvantagem injustificada para aqueles, ao mesmo tempo que ficaria agora o Réu privado do uso e fruição pleno da Quinta ..., em condições que, como infra melhor se demonstrará, impedem o Réu de competir com os seus congéneres, com a consequentemente perda de clientela e de lucros provenientes da exploração da Quinta ..., pelo que os AA. agem com abuso de direito, enquadrando-se o seu comportamento numa das manifestações típicas daquela figura jurídica: a supressio.
17. Com as limitações impostas pela douta sentença recorrida, não podendo o Réu deflagrar artefactos pirotécnicos que impliquem explosão audível; não podendo colocar música no exterior após as 21:00, nem sequer durante o corte do bolo e nem sequer durante 1 ou 2 minutos que sejam; e não podendo providenciar aos convidados um parque de estacionamento disponível após as 22h00, por absoluta impossibilidade in loco de realização da obra imposta pelo Tribunal a quo, não é possível ao Réu concorrer em igualdade com aqueles operadores económicos do mesmo sector de atividade;
18. O caminho em causa, de acesso e de saída dos convidados à Quinta ..., tem natureza pública, na parte que confina com o prédio dos 2.os AA., é totalmente do domínio público, pelo que não pode o Apelante impedir e limitar a sua utilização pelo público e, designadamente, pelos convidados;
19. Porque a ciência ainda não conhece artefactos pirotécnicos sem explosão audível, a condenação do Réu na “total proibição de lançamento de foguetes e artefactos pirotécnicos que impliquem explosão audível na Quinta ...” corresponde, na prática, à total supressão do direito do Réu;
20. Ao determinar que “a Quinta ... só poderá colocar música a partir das 21.00 horas depois de providenciar pela insonorização efetiva do salão onde passa música durante a noite”, além de ir além do pedido formulado pelos AA., o Tribunal a quo fá-lo sem quaisquer factos provados de suporte, uma vez que não foi alegado e nem se encontra provado que o “salão” não esteja insonorizado, careça de insonorização ou ainda que seja por falta de insonorização que o ruído se propaga para os prédios dos AA.;
21. Ao condenar o Réu a criar “condições para que a saída das viaturas e dos convidados a partir das 22:00 horas se faça pelo portão que não implica a passagem junto da casa dos autores M. T. e M. S., podendo ser a que dá acesso à rua e tem servido para a entrada dos noivos e das excursões, ou qualquer outra que o réu prefira”, além de ir além do pedido formulado pelos AA., o Tribunal a quo fá-lo sem quaisquer factos provados de suporte, uma vez que não foi alegado e nem se encontra provado qualquer facto atinente a tal acesso dos noivos ou, sequer, que seja objetivamente possível realizar outro acesso;
22. Tal condenação explica-se, no entanto, pelo desconhecimento da realidade do local (o Tribunal a quo optou por não realizar a inspeção judicial), pois não é possível ligar a zona de acesso dos noivos aos parques de estacionamento, que se localizam na zona diametralmente oposta da Quinta ..., sem destruir e demolir a parte mais antiga e histórica da Quinta ..., que lhe confere o seu valor turístico e a caracterizam como um espaço rural de referência; e ainda sem demolir as várias edificações muito antigas, existentes de permeio, e inutilizar o espaço exterior de receção, circulação e convívio dos convidados, que é precisamente o local onde o acesso dos Noivos desemboca;
23. E como o Réu não o pode fazer e nem irá fazer em circunstância alguma, tal condenação implica a inutilização dos parques de estacionamento, só suprível com a ocupação da via pública, onde os convidados irão ter de estacionar as suas viaturas e onde continuarão a ser audíveis, na casa dos AA., os ruídos das vozes e dos veículos que o Tribunal a quo pretende evitar (pois os prédios dos AA. confinam com a via pública).
24. Não estando comprovada nos autos matéria factual que permita suficientemente apurar a intensidade da pretensa lesão causada (desconhece-se, designadamente, quantas vezes foram os AA. perturbados no seu descanso, tranquilidade e sono, e quantas vezes tal alegada perturbação impediu um repouso reparador), mas sendo evidente que durante mais de 15 anos não houve por parte dos AA. qualquer reação à atividade desenvolvida pelo Réu na Quinta ..., é curial presumir uma lesão de intensidade reduzida, pelo que é manifestamente excessiva a condenação do Réu no pagamento das indemnizações de € 5.000,00 para os 1.os AA. e de € 10.000,00 para os 2.os AA.;
25. Não se conhecem os critérios objetivos que presidiram à determinação da sanção pecuniária compulsória, pelo que a douta sentença recorrida, nesta parte, é nula por violação do art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, por ser obscura e não permitir a inteligibilidade da decisão.
26. Sem prescindir, é manifestamente desproporcional a fixação da sanção pecuniária compulsória de € 500,00, sendo que em situação análoga à dos presentes autos e de onde, aliás, os AA. transcreveram ipsis verbis grande parte da factualidade alegada na petição inicial, o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão 17/11/2016, no proc. 117/13.1TBMLG.G1 (www.dgsi.pt), decidiu aplicar a sanção pecuniária compulsória de € 200,00 por cada dia de cumprimento.
27. A douta sentença recorrida viola os arts. 414.º e 615.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC, o arts. 346.º e 1305º do Código Civil, o artigo 13.º do Regulamento Geral do Ruído (e a Directiva 2002/49/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Junho de 2002) e os direitos constitucionais à propriedade privada (art.º 62.° da CRP) e de livre iniciativa económica privada (art.º 61.º, n.º 1 da CRP) e princípio da proporcionalidade (art.º 18.º, n.º 2 da CRP);
28. A douta sentença recorrida viola ainda o art.º 17.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e o art.º 25.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Finaliza, pugnando pela prolação de acórdão que revogue a sentença recorrida, julgando a ação totalmente improcedente.

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Os autores apresentaram contra-alegações, concluindo pela manutenção da sentença apelada nos seus precisos termos.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pelo recorrente.
- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida, desde logo quanto à decretada limitação do exercício da atividade comercial do réu.
- Saber se se mostra excessiva a indemnização fixada pelo tribunal recorrido, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
- Saber se se mostra excessivo o montante fixado a título de sanção pecuniária compulsória.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. Mostra-se inscrita em nome dos autores J. M. e M. P., pela AP. 2300 de 2011/05/10, a propriedade do prédio sito na Rua ..., n.º …, freguesia de ..., do concelho da Fafe, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo ….
2. Mostra-se inscrita em nome dos autores M. T. e M. S., pela AP. 6 de 1994.03.28, a propriedade do prédio sito na Rua ..., n.º …, freguesia de ..., do concelho da Fafe, composto de casa de habitação, com área coberta de 65 m2, de dois andares, tendo no 1º andar duas divisões e no 2º andar três divisões com um terreno de logradouro com 72 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … e inscrita na matriz sob o artigo ….
3. Mostra-se inscrita na matriz, em nome do réu J. G., a propriedade dos prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … (este, inscrito na matriz urbana sob o artigo …) e n.º … (inscrito na matriz urbana sob o artigo …).
4. Os prédios referidos em 3) compõem a Quinta ..., explorada pelo réu J. G..
5. A Quinta ... é integrada por um espaço destinado a festas – casamentos, batizados, aniversários, convívios, passagens de ano –, que se realizam no seu interior, que é composto por jardins, salas de aperitivos, museu, bar, lagos com chafariz, ruas internas empedradas, lagar e forno a lenha antigo.
6. A Quinta ... tem um salão com capacidade até 400 pessoas, jardim interior, chão em madeira, bar, esplanada, ar condicionado (cujos aparelhos se encontram no exterior), salas antigas com capacidade para 100 pessoas.
7. E ainda tem dois parques de estacionamento interiores empedrados.
8. Todos os espaços podem laborar de forma funcionalmente integrada, já que a disposição dos espaços permite a fácil circulação interior dos clientes entre as diversas salas, o jardim e o salão.
9. Nos eventos é deflagrado fogo-de-artifício e outros artefactos pirotécnicos semelhantes, que explodem no ar, provocando vibrações, ruído e atroadas audíveis a mais 200 metros de distância.
10. Os prédios referidos em 1) e 3) são confinantes.
11. As casas de habitação implantadas nos prédios referidos em 1) e 2) são afetadas pelo funcionamento do espaço Quinta ... quando se realizam eventos, mormente casamentos, ouvindo-se, na casa dos autores, até às 3, 4 horas da manhã, música, vozes e passagem de viaturas.
12. Na Quinta ... são usados e lançados artefactos pirotécnicos que provocam barulhos muito audíveis na casa dos autores, por vezes depois da meia-noite.
13. A luz dos artefactos pirotécnicos referidos em 12) penetra nas habitações dos autores, através das frinchas das portas e das janelas.
14. Os autores M. T. e M. S. utilizam os seus prédios para habitação própria e permanente, com eles vivendo uma filha e uma neta.
15. Na residência dos autores M. T. e M. S., quer estes, quer a neta, vêm o seu sono prejudicado com os foguetes e artefactos lançados pela Quinta ....
16. Durante o funcionamento da Quinta ..., os autores mantêm as portas e janelas totalmente fechadas, para minimizar os ruídos.
17. Por causa dos ruídos provenientes da Quinta ..., os autores J. M. e M. P. deixaram de habitar permanentemente a casa implantada no seu prédio descrito em 1) e foram residir para uma outra, sita na freguesia de ..., em Fafe.
18. A neta dos autores M. T. e M. S. sofre de um quadro depressivo e é acompanhada em consulta de psicologia e psiquiatria, sendo o desgaste provocado no seio familiar com a falta de descanso que, pelo menos, potencia esse estado de saúde.
19. A autora M. S. padece de insónias e ansiedade, com repercussões negativas na sua saúde.
20. O ânimo, disposição, qualidade de vida e alegria de viver dos autores é prejudicada com o referido em 11) a 13) e 22) a 26) –, tornando-os pessoas mais tristes, taciturnas e nervosas.
21. Por vezes há drones a sobrevoar as casas dos autores J. M. e M. P., em dias de eventos na Quinta ....
22. O funcionamento do espaço Quinta ..., mormente quando se realizam casamentos, costuma iniciar-se pelas 15/16 horas, com música em som audível na casa dos autores, e prolonga-se, habitualmente, para além da 1 hora da madrugada (artigo 36º da p.i.).
23. Os utentes/convidados dos ditos eventos fazem-se transportar, maioritariamente, em veículos automóveis, formando filas no acesso ao caminho por onde se acede aos parques de estacionamento referidos em 7), o que provoca ruídos de motores e algumas buzinas, estas últimas audíveis na moradia dos autores e a mais de 30 metros de distância – artigo 46º da p.i.
24. Os eventos/casamentos acarretam o estacionamento de dezenas de veículos nos parques referidos em 7) - artigo 47º da p.i. 25. Em algumas festas, os convidados fazem-se transportar de autocarros, para os quais regressam, no final, descendo a pé pelo caminho que passa junto da casa dos segundos autores, sendo as conversas, quer destes convidados, quer dos que se deslocam nos e para os veículos ligeiros parqueados, por vezes audíveis pelos autores M. T. e M. S., no interior da sua casa - artigo 48º da p.i.
26. O som da música referido em 11) faz-se ouvir na casa dos segundos autores, ora porque, durante o dia, os equipamentos colocados no exterior potenciam o som, ora porque, quando toca no salão, o som, ainda assim, não fica contido entre as paredes do salão, fazendo-se ouvir, mesmo no interior a habitação, quando estes estão a dormir – artigo 49º da p.i.
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FACTOS NÃO PROVADOS

Por seu turno, o tribunal a quo considerou que, com pertinência para o mérito da causa, não se provaram os demais factos alegados, designadamente que:

a) Os sistemas de exaustão de fumos dotados de ventiladores e de ar condicionado gerem ruído audível, com muita intensidade, nos prédios dos autores, e que estes ouçam com intensidade o barulho com talheres, pratos e copos.
b) As luzes e holofotes que iluminam a Quinta ... penetrem nas habitações dos autores através das frinchas das portas e das janelas.
c) Seja habitual a presença de drones a sobrevoar as casas dos autores nos dias de eventos.
d) Atualmente, os autores J. M. e M. P. tenham o seu sono prejudicado com os ruídos provenientes da Quinta ....
e) Aquando da chegada às festas realizadas na Quinta ..., os carros dos convidados passem no caminho referido em 24) em aceleração, com música de rádio alta, aos gritos e gargalhadas – artigo 46º da p.i.
f) Os carros dos convidados fiquem estacionados no caminho de acesso aos parques referidos em 7), impedindo os segundos autores de acederem ao prédio referido em 2) – artigo 47º da p.i.
g) O trabalhar/funcionamento dos autocarros referidos em 25) seja audível no interior da casa dos autores - artigo 48º da p.i.
h) Qual o tipo de isolamento existente no salão e a categoria técnica dos equipamentos usados, quer no interior do salão, quer no espaço exterior – artigo 49º da p.i.
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IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da impugnação da matéria de facto

A questão que importa dirimir, em primeiro lugar, em face das conclusões de recurso do réu apelante, refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.
Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação (1), sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo”. (2)

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).
Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.
Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).
Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.
Assim, como salienta Abrantes Geraldes (3), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto.” (4)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.
Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos.” (5)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, o réu recorrente, cumprindo, no essencial, os apontados requisitos formais, pretende a alteração da factualidade dada como assente sob os números 9, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26, propondo que a mesma factualidade seja dada como não provada.
Em síntese, defende que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com origem numa deficiente análise crítica das provas produzidas, identificando os meios de prova com que funda a sua discordância.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelo recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.
Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (6), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.
Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.
Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (7), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (8)
Com efeito, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (9), a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.”
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.
Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.
Deste modo, chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o Tribunal da Relação considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (10)
Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.” (11)

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pelo recorrente.

O tribunal a quo considerou como provado, sob os apontados pontos impugnados, a seguinte factualidade:

9. Nos eventos é deflagrado fogo-de-artifício e outros artefactos pirotécnicos semelhantes, que explodem no ar, provocando vibrações, ruído e atroadas audíveis a mais 200 metros de distância.
11. As casas de habitação implantadas nos prédios referidos em 1) e 2) são afetadas pelo funcionamento do espaço Quinta ... quando se realizam eventos, mormente casamentos, ouvindo-se, na casa dos autores, até às 3, 4 horas da manhã, música, vozes e passagem de viaturas.
12. Na Quinta ... são usados e lançados artefactos pirotécnicos que provocam barulhos muito audíveis na casa dos autores, por vezes depois da meia-noite.
13. A luz dos artefactos pirotécnicos referidos em 12) penetra nas habitações dos autores, através das frinchas das portas e das janelas.
15. Na residência dos autores M. T. e M. S., quer estes, quer a neta, vêm o seu sono prejudicado com os foguetes e artefactos lançados pela Quinta ....
16. Durante o funcionamento da Quinta ..., os autores mantêm as portas e janelas totalmente fechadas, para minimizar os ruídos.
17. Por causa dos ruídos provenientes da Quinta ..., os autores J. M. e M. P. deixaram de habitar permanentemente a casa implantada no seu prédio descrito em 1) e foram residir para uma outra, sita na freguesia de ..., em Fafe.
18. A neta dos autores M. T. e M. S. sofre de um quadro depressivo e é acompanhada em consulta de psicologia e psiquiatria, sendo o desgaste provocado no seio familiar com a falta de descanso que, pelo menos, potencia esse estado de saúde.
19. A autora M. S. padece de insónias e ansiedade, com repercussões negativas na sua saúde.
20. O ânimo, disposição, qualidade de vida e alegria de viver dos autores é prejudicada com o referido em 11) a 13) e 22) a 26) –, tornando-os pessoas mais tristes, taciturnas e nervosas.
21. Por vezes há drones a sobrevoar as casas dos autores J. M. e M. P., em dias de eventos na Quinta ....
22. O funcionamento do espaço Quinta ..., mormente quando se realizam casamentos, costuma iniciar-se pelas 15/16 horas, com música em som audível na casa dos autores, e prolonga-se, habitualmente, para além da 1 hora da madrugada (artigo 36º da p.i.).
23. Os utentes/convidados dos ditos eventos fazem-se transportar, maioritariamente, em veículos automóveis, formando filas no acesso ao caminho por onde se acede aos parques de estacionamento referidos em 7), o que provoca ruídos de motores e algumas buzinas, estas últimas audíveis na moradia dos autores e a mais de 30 metros de distância – artigo 46º da p.i.
24. Os eventos/casamentos acarretam o estacionamento de dezenas de veículos nos parques referidos em 7) - artigo 47º da p.i. 25. Em algumas festas, os convidados fazem-se transportar de autocarros, para os quais regressam, no final, descendo a pé pelo caminho que passa junto da casa dos segundos autores, sendo as conversas, quer destes convidados, quer dos que se deslocam nos e para os veículos ligeiros parqueados, por vezes audíveis pelos autores M. T. e M. S., no interior da sua casa - artigo 48º da p.i.
26. O som da música referido em 11) faz-se ouvir na casa dos segundos autores, ora porque, durante o dia, os equipamentos colocados no exterior potenciam o som, ora porque, quando toca no salão, o som, ainda assim, não fica contido entre as paredes do salão, fazendo-se ouvir, mesmo no interior a habitação, quando estes estão a dormir – artigo 49º da p.i.

Realce-se, desde já, que a exposição dos motivos que levou o tribunal a quo a decidir pela verificação da factualidade dada como provada, em contraponto com aquela que resultou não provada, é bastante completa e adequada, seguindo sempre um raciocínio consistente e estruturado.
Segundo aqueles princípios de imediação, oralidade e livre apreciação da prova, o tribunal a quo expôs, de forma clarividente, a sua convicção, conjugando e sopesando assertivamente toda a prova produzida, muito em especial a prova testemunhal que se lhe afigurou mais convincente, coerente e objetiva, analisando-a criticamente, de acordo com as regras da experiência e da verosimilhança dos factos, em conjugação com a prova documental produzida.

Insurge-se, desde logo, o réu apelante contra a apreciação que foi realizada à prova documental resultante dos documentos pelos autores, sob os nºs 8, 9 e 10 e a fls. 30 verso, 31, 32 e 33 verso, e nos juntos com as referências citius 10427048, 10427068 e 10427133, concluindo que não é possível extrair dos mesmos a prova de nenhum dos pontos de facto impugnados.

Enfatize-se, desde já, que esta mesma impugnação genérica realizada pelo recorrente, impede-nos de descortinar a factualidade que o tribunal recorrido deu como assente com base em tal prova documental e que o réu apelante pretende antes que se dê como não provado.
Nem tal resulta do corpo das alegações de recurso, com exceção dos documentos de fls. 30 verso, 31 e 32 juntos pelos autores, de acordo com os quais o recorrente defende que não se poderá dar como assente o ponto 18 dos factos provados.
Quanto aos demais documentos não sabemos a que factualidade impugnada pelo recorrente se referem, inclusivamente o documento de ref.ª citius 10427133, junto pelo próprio réu.
De qualquer modo, sempre se dirá que o teor dos documentos/fotografias de fls. 22 a 24 (doc. 8) juntos pelos autores foram confirmados pela testemunha A. R.; sendo certo ainda que a questão da existência de fogo de artifício na Quinta das (doc. 9) e, ocasionalmente, de drones sobrevoando a zona (doc. 10), também resulta à evidência do conjunto da prova testemunhal produzida, tudo conforme melhor consta da sentença recorrida, sob o item da motivação sobre a decisão da matéria de facto.
Mais resulta do mesmo segmento da sentença recorrida que os documentos juntos pelos autores e réus, após a anulação da sentença determinada por este tribunal ad quem, mesmos documentos foram convenientemente valorados pelo tribunal recorrido, designadamente dando-se conta que:
“ (…) As fotografias juntas com o requerimento probatório apresentado em 01.09.2020 nada acrescentaram ou retiraram ao que se sabia já a propósito do lançamento de foguetes e/ou artefactos pirotécnicos e da proximidade à casa dos autores.
Os vídeos, na medida em que, a mais da imagem, comportam uma parte áudio bastante expressiva, corroboraram a emissão dos sons para as casas da vizinhança.
É de notar que, apesar do teor da impugnação do artigo 6º do requerimento com a ref. 10469732, não ficaram dúvidas de que se trata da Quinta ..., como foi, de resto, confirmado, quer por V. N., quer por A. R..
As fotografias apresentadas pelo réu no requerimento probatório de 02.09.2020, relativas à Quinta …, à Quinta … e a outras que não ficam na área de residência dos autores, são totalmente irrelevantes para esta acção, onde se cuida dos direitos de personalidade destes e não da igualdade de oportunidades entre quintas de eventos. A compatibilização dos direitos e interesses em causa, atendíveis na definição do direito, não carece destes elementos probatórios.
O mesmo se diga do atestado de residência do réu emitido pelo presidente da Junta de Freguesia. Ainda que com ele se pretendesse demonstrar – e o certo é que nem isso se demonstra – que o réu usa essa casa quando há festas na Quinta ..., não é dos seus direitos de personalidade que aqui se cuida. Qualquer pessoa pode querer coexistir com ruídos. Pode até nisso ter vantagem, designadamente patrimonial. Questão diversa é a de saber até que ponto pode impor essa coexistência a terceiros. E é dessa questão que aqui se cuida.
Quanto ao caminho usado para aceder à Quinta ..., não vislumbro sequer a relevância da sua natureza pública ou privada para o que importa ao mérito desta acção. Não se pede na acção – nem foi determinado na sentença – a vedação do caminho. E o facto de ser e natureza pública não conduz à desnecessidade de o réu prover por um caminho alternativo, já que tal lhe é, manifestamente possível, se isso for necessário à preservação de direitos que se sobreponham.
É, aliás, de sublinhar, que se todo o caminho que o réu pintou de vermelho na imagem de fls. 261 fosse transitável, não haveria necessidade de a saída se fazer junto da casa dos autores M. T. e M. S.. Os carros poderiam descer pelo caminho paralelo a esse por onde ascendem. O problema é que tal caminho não é transitável (senão por tractores), facto que até a testemunha A. R. confirmou.
São também irrelevantes para o mérito os documentos juntos com o requerimento ref. 10501789, apresentado em 21.09.2020.
Quanto às imagens que exibem o acesso dos noivos, servem à confirmação da existência desse acesso, relativamente ao qual já não havia quaisquer dúvidas.
Os documentos relativos a 16 de Agosto de 2020 e às licenças relativas aos foguetes a que alude o requerimento com a ref. 10469733, a mais de nenhuma relação terem com os factos aditados, são irrelevantes para a presente acção.”

Não encontramos razões para se pôr em causa esta apreciação realizada pelo tribunal a quo, sendo certo igualmente que o réu apelante nada de relevante, em contrário, refere, neste particular, mormente para efeitos de impugnação da matéria de facto dada como assente.
Já no que se refere aos documentos/faturas de fls. 30 a 32, juntos com a petição inicial, o tribunal recorrido deu conta que o seu teor “ (…) coadjuvou na prova da necessidade, por parte da neta dos autores M. T. e M. S., de se sujeitar a acompanhamento psicológico e psiquiátrico, a partir de Outubro de 2018. Como a própria referiu em julgamento, a necessidade mantém-se, mas as consultas terão que ser retomadas noutro local, uma vez que a mesma deixou de estudar naquela área geográfica [artigo 18)].”
No fundo, o tribunal a quo limitou-se a valorar o depoimento da testemunha V. N., de acordo com o referido princípio da livre apreciação da prova, em conjugação com os apontados documentos/faturas, justificando globalmente as necessidades de tratamento psicológico derivados da situação vivenciada pela mesma testemunha causados pela atividade desenvolvida pelo réu na Quinta ..., retirando igualmente qualquer sentido valorativo ao alegado, neste âmbito, pelo réu, sob os arts. 34º a 36º da contestação; sendo certo igualmente que, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a factualidade provada sob o ponto 18 não foi desmentida por esta mesma testemunha.
Por último, o documento de fls. 33 verso (imagem retirada do Google Maps) unicamente foi tido em consideração pelo tribunal recorrido para efeitos de se “perceber qual o enquadramento da Quinta ...”, sendo certo que o réu, na sua contestação, apenas põem em causa a sinalização/demarcação realizada pelos autores nessa mesma imagem.

No que se refere à prova testemunhal, o recorrente faz a sua análise ao depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência final, de acordo com a sua versão dos factos, após o transcreve parcialmente os depoimentos das mesmas testemunhas na parte que considerou relevante.
Desde já se diga que a respetiva interpretação que o recorrente faz do depoimento das testemunhas sequer encontra suporte na transcrição descontextualizada que faz dos mesmos depoimentos (veja-se, a título de exemplo, a análise que faz ao depoimento da testemunha V. N. e aquilo que de relevante transcreve do seu depoimento).
Uma vez operada a transcrição dos apontados depoimentos, o apelante conclui que todas as testemunhas arroladas pelos autores e pelo réu ofereceram, no essencial, as suas perceções e opiniões subjetivas sobre o ruído produzido pela atividade desenvolvida pelo réu na Quinta ..., pelo que é totalmente impossível tomar uma convicção minimamente segura sobre um conjunto de circunstâncias essenciais e indispensáveis (que enumera) para a decisão a proferir sobre a matéria de facto.
Conclui ainda que, face às inúmeras contradições de todas as testemunhas inquiridas, cujo depoimento são totalmente inconciliáveis, e à total ausência de prova objetiva (prova pericial) sobre o ruído produzido na Quinta ..., não tinha o tribunal a quo à sua disposição suficientes meios probatórios suscetíveis de, com o mínimo de segurança, tomar como mais verosímil umas das duas versões em confronto nos autos, impondo-se assim a aplicação do disposto nos arts. 346º, do C. Civil, e 414º, do C. P. Civil, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto, nos moldes que reclama.

Aqui chegados, cumpre desde logo enfatizar que, como é consabido, o cumprimento do enunciado ónus impugnatório primário da al. b) do n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, não se basta com a indicação, em bloco, dos concretos meios probatórios, que alegadamente imporão o julgamento de provado ou não provado da totalidade da facticidade que o apelante entende dever ser julgada provada ou não provada, respetivamente.
No caso em apreço, o réu apelante não concretizou quais os concretos documentos e depoimentos testemunhais que impõem o julgamento de facto de não provado em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver julgados não provados, limitando-se a indicar essa prova documental e testemunhal inconcretizada e genérica, em bloco, em relação à totalidade da facticidade que pretende ver julgada não provada (com exceção da prova documental e testemunhal indicada no que se refere ao facto provado n.º 18).
Por assim dizer, com exceção do indicado ponto 18 dos factos provados, ficamos sem saber em que medida é que a prova documental e/ou testemunhal indicada impunha respetivamente (e não genericamente) a alteração da decisão incidente sobre a matéria de facto impugnada com referência aos concretos pontos de facto provados que o apelante pretende ver dados como não provados.
Acontece que, conforme é entendimento pacífico na jurisprudência, semelhante sindicância, em bloco, da matéria julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, com a menção, em bloco, dos meios de prova em relação a toda aquela matéria que o apelante impugna, pretendendo-a ver como não provada (com exceção do facto provado n.º 18), não cumpre o ónus impugnatório previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, por consubstanciar clara impugnação genérica do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª instância. (12)

De qualquer modo, revisitada toda a prova produzida, em especial os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, concluímos que o tribunal a quo, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, não incorreu, no essencial, em qualquer infidelidade no que se refere ao conteúdo dos mesmos depoimentos, tendo-os analisado criticamente de acordo com os apontados princípios de imediação, oralidade e de livre apreciação da prova.
A descredibilização que o recorrente pretende dar aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores, indicando-as como partes interessadas no desfecho da causa, por si só, não comporta a alteração da facticidade dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido, sendo certo que este justificou plenamente a credibilidade que o depoimento das mesmas testemunhas lhe ofereceram.

Por seu turno, não partilhamos da conclusão a que chega o recorrente de que a mesma prova testemunhal, porque inconciliável no seu conjunto e desacompanhada de prova objetiva (prova pericial), não é bastante para a decisão que incidiu sobre a matéria de facto provada, ora impugnada, designadamente em termos de apreciação do ruído provocado pela atividade desenvolvida pelo réu na Quinta ....
Mais uma vez, sublinhamos que não sabemos quais os concretos pontos de facto impugnados a que o réu apelante se pretende referir, sendo certo que ao mesmo se lhe impunha a respetiva indicação, nos termos sobreditos.
De qualquer modo, o tribunal a quo, que poderia determinar a realização da indicada prova pericial, a requerimento da parte interessada ou oficiosamente (art. 467º, n.º 1, do C. P. Civil), ao que tudo indica, entendeu a mesma como desnecessária, sendo certo que as partes também não requereram tal prova, nem, em momento algum, invocaram o não cumprimento do princípio do inquisitório por parte do juiz (art. 411º, do C. P. Civil).
Na sequência, perante a prova testemunhal produzida, o tribunal recorrido, apreciando-a livremente segundo a sua prudente convicção, e de acordo com as regras de experiência comum e da verosimilhança dos factos, concluiu fundamentadamente pela veracidade da factualidade dada como provada, em contraponto com aquela que considerou como não provada, sendo certo igualmente que a facticidade em causa não depende de formalidade especial imposta por lei (art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil).
Outrossim, a prova testemunhal produzida não se pode considerar insuficiente, só pelo simples facto de a mesma revelar versões antagónicas dos factos (nuns casos reveladores dos ruídos provenientes da Quinta ... e noutros negando a sua existência ou desvalorizando-os completamente), quando é certo que assiste sempre ao tribunal o poder/dever de apreciar livremente essa mesma prova testemunhal, formando a sua firme convicção daí resultante, assim sendo inaplicável o disposto no art. 414º, do C. P. Civil.
Foi o que sucedeu, no caso em análise, em que uma vez ouvidas as diversas testemunhas, que relataram os factos por si diretamente presenciados, o tribunal concluiu, fundamentadamente, sem necessidade de produção de prova suplementar, pela veracidade dos factos ora impugnados pelo recorrente.
Outrossim, conforme infra iremos referir, a averiguação de que os ruídos em causa ultrapassam ou não os limites de poluição sonora fixados no Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo D.L. n.º 9/2007, de 17.01) não são imprescindíveis para a decisão em causa, mormente para efeitos de decisão sobre a matéria de facto, atento aos valores que pela presente causa se pretende salvaguardar.

Não obstante, tendo em atenção ao alegado pelos autores, mormente sob o art. 48º da petição inicial, afigura-se-nos que se deverá dar uma redação mais restritiva ao facto provado n.º 25 (que se refere expressamente a esse mesmo art. 48º da p.i.)
Na realidade, no art. 48º da petição inicial refere-se ao transporte dos convidados em autocarros, dando conta dos ruídos, pelas 2, 3 ou 4 horas da manha, causados pelo trabalhar/funcionamento dos autocarros e as conversas e os gritos das pessoas que saem a pé e percorrem o caminho de acesso, desde a Quinta ... até à estrada municipal, onde se encontram esses autocarros à sua espera.
Não é feita qualquer referência pelos autores quanto às conversas das pessoas “que se deslocam nos e para os veículos ligeiros parqueados”, pelo que tal matéria deverá ser retirada do facto provado n.º 25.
De igual modo, se atentarmos ao facto provado n.º 23, os ruídos de motores e de algumas buzinas, estás últimas audíveis na moradia dos autores e a mais de 30 metros de distância, ocorre aquando a chegada dos veículos automóveis, altura em que se formam filas no acesso ao caminho por onde se acede aos parques de estacionamento referidos em 7.
A ser assim, por forma a evitar qualquer contradição factual, teremos que retirar do ponto 11 dos factos provados que os autores ouvem na sua casa, até às 3/4 horas da manhã, “a passagem de viaturas”, sendo certo igualmente que essa mesma matéria não foi alegada pelos autores.
Realce-se ainda que, pelo depoimento da testemunha V. N. (neta dos 2ºs autores) foi percetível que a mesma não se queixa do barulho da saída das viaturas da Quinta ..., até porque afirma que as mesmas não saem todas ao mesmo tempo e assim não se formam filas no caminho onde os veículos acedem/saem da Quinta .... O que a mesma se queixa é do barulho que as pessoas fazem no referido caminho, a pé, ou então, nos carros junto ao parque onde se encontram: “O maior problema é que, às vezes, as pessoas vem por lá abaixo a passear … Ou vão para o parque e metem o rádio … música alta, buzinam …” (cfr. 10,15 m do seu depoimento gravado na sessão de julgamento de 16.10.2020).

Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto impugnada, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida, com exceção dos pontos de facto infra considerados.

Assim, nos termos do disposto no art. 662º, n.º 1, do C. P. Civil, nos termos supra expostos, cumpre alterar os factos provados nºs 11 e 25, os quais passarão a ter o seguinte teor:

11. As casas de habitação implantadas nos prédios referidos em 1) e 2) são afetadas pelo funcionamento do espaço Quinta ... quando se realizam eventos, mormente casamentos, ouvindo-se na casa dos autores, até às 3/4 horas da manhã, música e vozes provenientes da mesma Quinta.
25. Em algumas festas, os convidados fazem-se transportar em autocarros, para os quais regressam, no final, descendo a pé pelo caminho que passa junto da casa dos segundos autores, sendo as conversas destes convidados por vezes audíveis pelos autores M. T. e M. S., no interior da sua casa - artigo 48º da p.i.

No mais, soçobra a pretensão recursiva de alteração da decisão sobre a matéria de facto apresentada pelo recorrente.
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B) Do abuso de direito

Nas suas alegações de recurso, o recorrente veio, mais uma vez, invocar a exceção do “abuso de direito”, na modalidade de suppressio, porquanto os autores não poderão ignorar que, ao longo de um período de pelo menos 15 anos, foram sempre realizados eventos na Quinta ..., mormente casamentos, passagens de ano e outros, com música, com convidados, com vozes, com passagem de veículos, com fogo de artifício e todas as demais atividades normais neste tipo de eventos, sendo que nunca os autores reagiram ou manifestado qualquer descontentamento, criando assim no réu a convicção de que consideravam a sua atividade perfeitamente normal, exercida em pleno respeito pelos direitos de propriedade e de personalidade dos autores e sem causar lesão de qualquer tipo.

Nesta medida, o exercício tardio por parte dos autores dos seus direitos de personalidade acarreta uma vantagem injustificada para aqueles, ao mesmo tempo que ficaria agora o réu privado do uso e fruição pleno da Quinta ..., em condições que o impedem de competir com os seus congéneres, com a consequente perda de clientela e de lucros provenientes da exploração da Quinta ....

No entanto, conforme já havíamos aludido anteriormente, no acórdão proferido a 20.02.2020, não decorre do teor da contestação apresentada pelo réu, qualquer defesa por exceção, designadamente com a invocação da exceção de “abuso de direito”, pelo que a factualidade que agora o mesmo invoca, neste conspecto, sequer foi levada aos temas de prova, tal como não resulta da matéria de facto provada (mais concretamente que o réu explora a Quinta ... há, pelo menos, 15 anos, nos moldes acima alegados, e que os autores nunca antes haviam manifestado oposição ao modo como o réu vinha desenvolvendo tal atividade).

De todo o modo, conforme resulta do disposto no art. 334º, do C. Civil, o abuso de direito traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual.” (13)
Para Vaz Serra, o ato abusivo é, em regra, o exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na coletividade social. Só excecionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede. (14)
Noutra perspetiva, para Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.” (15)
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante. (16)
O instituto do abuso de direito visa “obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa específica situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.” (17)
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido. (18)
No entanto, aceitamos que para a verificação do abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo; basta que, objetivamente, esses limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido tenham sido exercidos de forma evidente, sendo esta a conceção objetivista do abuso do direito adotada pelo legislador. (19)

Isto não significa, porém, que ao conceito de abuso do direito sejam alheios fatores subjetivos, como por exemplo a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes fatores pode relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito. (20)

O abuso de direito tem sido analisado sobretudo nas modalidades de “venire contra factum proprium”, de “inalegabilidades formais”, de “suppressio”, de “tu quoque” e de “desequilíbrio entre exercício do direito e os efeitos dele derivados.” (21)

No caso em apreço, o recorrente entende ser aqui de aplicar o instituto do abuso de direito, na modalidade da suppressio (supressão).

Como ensina Menezes Cordeiro, a suppressio traduz-se-, no fundo, numa “forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito.” (22)

O mesmo Autor, depois de estabelecer diferenças entre esta figura e a do venire contra factum proprium, entende que a suppressio, exatamente por não dispor da precisão facultada pelo factum proprium, requer circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário, afirmando: “Em suma, teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as preposições seguintes:

- um não-exercício prolongado;
- uma situação de confiança;
- uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação da confiança ao não-exercente.”

Esclarecendo:

“O não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objetiva.” (23)

Para, mais à frente, concluir: “a suppressio manifesta-se porque, mercê da confiança legítima, uma pessoa adquiriu (por surrectio) uma posição que se torna incompatível com um exercício superveniente, por parte do exercente.” (24)

Em termos jurisprudenciais, saliente-se o Ac. STJ de 19.10.2000 (25), no qual, designadamente, se relevou para a verificação do abuso de direito, nesta modalidade (da suppressio), a necessidade de se demonstrar:

a) que o titular se comporte como se não tivesse o direito e não mais o queira exercer;
b) a contraparte confiar em que não será exercido;
c) o exercício acarretar para a outra parte uma desvantagem injusta. (vide sumário)

Ora, no caso em apreço, conforme já referimos supra, não temos sequer como assente há quanto tempo é que o réu explora a Quinta ... e o modo como vem desenvolvendo tal exploração desde o seu início.
De igual modo, o réu não alegou e, como tal também não se demonstrou, qual o comportamento anterior dos autores que fundadamente geraram no réu a confiança de que aqueles sempre agiram como se nunca se tivessem importado com os ruídos provenientes da Quinta … e que o seu direito ao descanso e ao repouso jamais seria exercido contra o réu (26), para além de que o atual exercício desse mesmo direito acarretaria para o réu uma desvantagem manifestamente injusta ou iníqua.

Como já afirmámos, o abuso de direito visa sancionar comportamentos clamorosamente ofensivos da boa fé, do fim económico e social do direito ou dos bons costumes: comportamentos clamorosos no sentido de intoleráveis, inadmissíveis, chocantes do sentido de justiça, que o direito e a ética negocial não podem tolerar.
Pelo que fica dito, é por demais evidente que tal situação não ocorre no caso em análise.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se julga improcedente, neste segmento, a pretensão recursiva do réu apelante.
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B) Da tutela da personalidade

Conforme dispõe o n.º 1 do art. 25º, da Constituição da República Portuguesa (CRP) a integridade moral e física das pessoas é inviolável.
Assim, a todos são reconhecidos os direitos ao desenvolvimento da personalidade e, igualmente, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, n.º 1, da CRP).
Por sua vez, a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei, tendo em conta o interesse geral (art. 61º, n.º 1, da CRP). (27)
De igual modo, a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição (art. 62º, n.º 1, da CRP).
Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover; assim como todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (arts. 64, n.º 1 e 66º, n.º 1 da CRP).
Nos termos do disposto no art. 24º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres…”
De igual modo, nos termos da lei civil, dispõe o art. 70º, do C. Civil, (sob a epígrafe “Tutela geral da personalidade”) que: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.” (n.º 1). Pelo que: “Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.” (n.º 2).
Assim, nos termos da lei processual civil, dispõe o art. 878º, do C. P. Civil que: “Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida.”
Concretiza-se, deste modo, o comando constitucional de que: “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caraterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” (art. 20º, n.º 5, da CRP).

De igual modo, no que se refere à matéria das relações de vizinhança, o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art. 1346º, do C. Civil).

Neste particular, Vaz Serra (28) considera que a expressão “prejuízo substancial para o uso do imóvel” poderá ser interpretada de modo que englobe igualmente as lesões dos direitos de personalidade dos habitantes do imóvel, entendimento que igualmente sufragamos. (29)

Na Lei n.º 19/2014, de 14.04, que define as bases da política do ambiente, dispõe o seu art. 5º (sob a epígrafe “Direito ao ambiente”) que:

1- Todos têm direito ao ambiente e à qualidade de vida, nos termos constitucional e internacionalmente estabelecidos.
2- O direito ao ambiente consiste no direito de defesa contra qualquer agressão à esfera constitucional e internacionalmente protegida de cada cidadão, bem como o poder de exigir de entidades públicas e privadas o cumprimento dos deveres e das obrigações, em matéria ambiental, a que se encontram vinculadas nos termos da lei e do direito.

Neste particular, como se resumiu no Ac. do STJ de 03.05.2018 (30):

“No tema da produção ou emissão de ruídos, lesivas de direitos individuais ou coletivos, tem a jurisprudência deste tribunal, consistentemente e desde há vários anos, convocado uma tríplice tutela jurídica (entre outros, ASTJ de 17.1.2002 e de 2.12.2013, disponíveis em www.dgsi.pt): (i) a da tutela do direito de propriedade, designadamente no domínio das relações de vizinhança (art. 1346º do CC); (ii) a do direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado (art. 66.º, da CRP e Lei 19/2014, de 14 de Abril – anteriormente Lei 11/87, de 7 de Abril) e (iii) a dos direitos fundamentais de personalidade, o direito à integridade moral e física, ao livre desenvolvimento da personalidade (arts. 25º, 26º, n.º 1 da CRP e art. 70º do CC).” (31)

Aqui chegados, torna-se ingente concluir que “o direito ao repouso e ao sono” e, concomitantemente, à tranquilidade da vida familiar, constituem direitos que se mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica do indivíduo, nomeadamente nas situações de vida quotidiana na sua própria casa e que têm como principal escopo a prossecução de tais fins, constituindo-se, por esse motivo, tais direitos em emanação do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, sendo certo que tais direitos se mostram acolhidos nas disposições legais acima mencionadas.

Por assim dizer, o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade inscrevem-se nesse conjunto de direitos imprescindíveis à existência de qualquer cidadão, desde logo porque indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo, no fundo, uma componente dos direitos de personalidade.

Como afirma Pedro Pais de Vasconcelos (32) “também as práticas não intencionalmente dirigidas à lesão da integridade física ou psíquica, mas que a tenham como resultado são ilícitas. Tal sucede no caso de ruídos intensos produzidos durante a noite por obras ou estabelecimentos de diversão, que sejam de molde a impedir o sono (…)
Os tribunais têm-se pronunciado numa orientação jurisprudencial constante, no sentido de que o ruído que impeça o sono constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento.” (33) (34) (sublinhámos)

Casos há, porém, que os mencionados direitos de personalidade conflituam com outros direitos como sejam o “direito de propriedade privada” e o “direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial.”
Neste caso, cumpre chamar à colação o disposto no n.º 1 do art. 335º, do C. Civil, de acordo com o qual “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”
Porém, se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalecer-se-á o que deva considerar-se superior (art. 335º, n.º 2 do C. Civil).
Por conseguinte, em caso de conflito, deverão, em princípio, os apontados direitos de personalidade (neles se incluindo o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade) sobreporem-se aos apontados direitos de propriedade privada e de exercício de uma atividade comercial ou industrial. (35)

Neste âmbito, como se escreve no já citado Ac. do STJ de 29.11.2016:

“A dignidade da pessoa humana constitui, evidentemente, o valor constitucional supremo em torno do qual gravitam os demais direitos fundamentais porquanto se refere às exigências básicas, no sentido de que a todos os seres humanos sejam oferecidos os recursos, materiais ou espirituais, para uma existência digna, bem como sejam propiciadas as condições para o desenvolvimento das suas potencialidades.
Todavia, uma das principais características dos direitos fundamentais, enquanto princípios que são, é a sua relatividade, ou seja, não se revestem de caráter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.
Realmente, são frequentes as colisões entre direitos fundamentais: os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão-de ser solucionados pelo poder judicial mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.
A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: - i) a sua adequação ao fim em vista; - ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade); - iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens.
Por fim, nessa ponderação, para além da máxima otimização e do menor sacrifício dos valores em confronto, também não pode olvidar-se que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir, ainda, um instituto norteador da solução do caso concreto.” (sublinhámos). (36)

Destarte, importará, pois, ter em atenção que nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se ajuíza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores, nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial, o tribunal avaliará, em concreto, a solução mais razoável e proporcional à coexistência dos direitos em conflito. O sacrifício de um deles apenas deverá ocorrer numa situação limite.

Com efeito, como escreve Capelo de Sousa, (37) “no caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo (v.g. um direito real, um direito de crédito, um direito familiar ou um direito público da Administração), face sobretudo à ainda mais acentuada diversidade dos bens tutelados e à frequente ocorrência de contraposições entre bens pessoais e bens patrimoniais, verifica-se normalmente um diferente peso jurídico em tais direitos. A respetiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores ínsitos nas proposições normativas referentes aos direitos conflituantes, adentro (…) do conjunto de bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo. Assim, quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda.”

De qualquer modo como conclui o mesmo Autor, nesse mesmo juízo ponderativo deverá ter-se em atenção que “mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível, apenas devendo ser limitado na exata proporção em que isso é exigível pela tutela razoável do conjunto principal de interesses. Inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário.” (38)

Sublinhamos, pois, que em caso de colisão entre o direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade, num ambiente ecologicamente equilibrado, e o direito de propriedade (direito ao uso e fruição que o proprietário tem sobre a coisa que lhe pertence) ou o direito da livre iniciativa privada (direito ao exercício de uma atividade comercial ou industrial), deve prevalecer aquele. É que aquele direito, implicando com a integridade física e moral do indivíduo, isto é, afetando os direitos de personalidade de uma pessoa, deve preponderar sobre o direito de propriedade ou direito da livre iniciativa privada.

Porém, importará sempre aquilatar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, quando é certo que o sacrifício e compressão do direito inferior (no caso o direito da livre iniciativa privada) apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante. (39)

De facto, como é bom de ver, a vida em sociedade implica necessariamente limitações à plena liberdade de cada um e, por isso, a tutela jurídica dos bens de personalidade só é admissível quando, face à consciência jurídica dominante, esses bens mereçam tutela autónoma e a ofensa, pela sua gravidade ou anormalidade, se deva considerar excluída dos riscos próprios da vida em comunidade. (40)

Aqui chegados, cumpre desde já salientar que a presente situação envolve a ponderação de direitos de personalidade (de repouso, sono e tranquilidade) dos autores em contraposição com o direito do livre exercício da iniciativa privada do réu (de exploração de atividade económica), sendo patente que ocorre conflito efetivo e relevante entre tais direitos.
De facto, conforme resulta dos factos provados, temos como demonstrado que os autores J. M. e M. P., e autores M. T. e M. S. são proprietários dos prédios urbanos referidos em 1 e 2 dos factos provados, respetivamente.
Os autores M. T. e M. S. utilizam tal prédio (cfr. n.º 2) como habitação própria e permanente (conjuntamente com uma filha e uma neta).
Por sua vez, o réu é proprietário de um prédio confinante ao prédio dos autores J. M. e M. P., no qual explora a denominada Quinta ....
Esta Quinta é integrada por um espaço destinado a festas – casamentos, batizados, aniversários, convívios, passagens de ano –, que se realizam no seu interior, que é composto por jardins, salas de aperitivos, museu, bar, lagos com chafariz, ruas internas empedradas, lagar e forno a lenha antigo.
A Quinta ... tem um salão com capacidade até 400 pessoas, jardim interior, chão em madeira, bar, esplanada, ar condicionado (cujos aparelhos se encontram no exterior), salas antigas com capacidade para 100 pessoas.
E ainda tem dois parques de estacionamento interiores empedrados.
Todos os espaços podem laborar de forma funcionalmente integrada, já que a disposição dos espaços permite a fácil circulação interior dos clientes entre as diversas salas, o jardim e o salão.
Sucede que, nos eventos é deflagrado fogo-de-artifício e outros artefactos pirotécnicos semelhantes, que explodem no ar, provocando vibrações, ruído e atroadas audíveis a mais 200 metros de distância.
As casas de habitação implantadas nos prédios dos autores são afetadas pelo funcionamento do espaço Quinta ... quando se realizam eventos, mormente casamentos, ouvindo-se, na casa dos autores, até às 3/4 horas da manhã, música e vozes provenientes da mesma Quinta.
Na Quinta ... são usados e lançados artefactos pirotécnicos que provocam barulhos muito audíveis na casa dos autores, por vezes depois da meia-noite.
A luz destes artefactos pirotécnicos penetra nas habitações dos autores, através das frinchas das portas e das janelas.
Assim, na residência dos autores M. T. e M. S., quer estes, quer a neta, vêm o seu sono prejudicado com os foguetes e artefactos lançados pela Quinta ....
Durante o funcionamento da Quinta ..., os autores mantêm as portas e janelas totalmente fechadas, para minimizar os ruídos.
Por causa dos ruídos provenientes da Quinta ..., os autores J. M. e M. P. deixaram de habitar permanentemente a casa implantada no seu prédio e foram residir para uma outra, sita na freguesia de ..., em Fafe.
A neta dos autores M. T. e M. S. sofre de um quadro depressivo e é acompanhada em consulta de psicologia e psiquiatria, sendo o desgaste provocado no seio familiar com a falta de descanso que, pelo menos, potencia esse estado de saúde.
A autora M. S. padece de insónias e ansiedade, com repercussões negativas na sua saúde.
Por vezes há drones a sobrevoar as casas dos autores J. M. e M. P., em dias de eventos na Quinta ....
O funcionamento do espaço Quinta ..., mormente quando se realizam casamentos, costuma iniciar-se pelas 15/16 horas, com música em som audível na casa dos autores, e prolonga-se, habitualmente, para além da 1 hora da madrugada.
Os utentes/convidados dos ditos eventos fazem-se transportar, maioritariamente, em veículos automóveis, formando filas no acesso ao caminho por onde se acede aos parques de estacionamento, o que provoca ruídos de motores e algumas buzinas, estas últimas audíveis na moradia dos autores e a mais de 30 metros de distância.
Os eventos/casamentos acarretam o estacionamento de dezenas de veículos nos parques atrás referidos.
Em algumas festas, os convidados fazem-se transportar de autocarros, para os quais regressam, no final, descendo a pé pelo caminho que passa junto da casa dos segundos autores, sendo as conversas destes convidados por vezes audíveis pelos autores M. T. e M. S., no interior da sua casa.
O som da música referido faz-se ouvir na casa dos segundos autores, ora porque, durante o dia, os equipamentos colocados no exterior potenciam o som, ora porque, quando toca no salão, o som, ainda assim, não fica contido entre as paredes do salão, fazendo-se ouvir, mesmo no interior a habitação, quando estes estão a dormir.
O ânimo, disposição, qualidade de vida e alegria de viver dos autores é prejudicada com o atrás referido (cfr. nºs 11 a 13 e 22 a 26 dos factos provados), tornando-os pessoas mais tristes, taciturnas e nervosas.

Ora, em face de tal factualidade, e contrariamente ao alegado pelo réu apelante, que defende que os ruídos provenientes da Quinta ... são unicamente suscetíveis de significar simples incómodos ou aborrecimentos para os autores, teremos que concluir que o direito ao repouso e descanso dos autores (mormente dos 2ºs autores que vivem permanentemente no seu prédio atrás identificado) se encontra significativamente posto em crise.
Na realidade, é inegável que os autores têm na sua residência (permanente ou não) direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade da vida familiar, o que é tradução prática do seu direito à integridade física e moral e a um ambiente de vida sadio, e que, no caso em análise, está em claro conflito com o direito que o réu igualmente tem em desenvolver livremente uma atividade comercial no seu prédio, onde explora a Quinta ....
Como assim, tal como se propôs o tribunal recorrido, importa agora cuidar de compatibilizar os direitos de personalidade dos autores com o direito do réu a desenvolver a sua atividade comercial, convocando para o efeito os apontados critérios de proporcionalidade.
Nesta medida, uma vez demonstrados ambos os direitos em conflito, caberá sempre ao tribunal, designadamente à luz do disposto no art. 335º, do C. Civil, avaliar, em concreto, a solução mais razoável e proporcional à coexistência dos direitos em conflito.
Tal desiderato alcançar-se-á, pois, mediante a ponderação a ter lugar, concreta e casuisticamente, entre os fins perseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em confronto, devendo sempre o tribunal, em termos de decisão final, definir a solução que, em concreto, se revele mais adequada e proporcional ao “thema decidendum”, dentro dos elementos de facto que disponha.

O tribunal recorrido, após concluir que o encerramento total da Quinta ..., peticionado a título principal, assim como o encerramento entre as 22,00 h e as 07,00 h, “excede a justa medida”, acabou por considerar razoável, adequado e proporcional impor-se ao réu a total proibição de lançamento de foguetes e artefactos pirotécnicos que impliquem explosão audível; justificando-o, em seguida, designadamente dando conta que os autores vivem em sobressalto e ansiosos com o barulho causado por tais elementos pirotécnicos, o que ocorre quer durante o dia, quer durante a noite, sendo certo que tal proibição “não contende desproporcionadamente com o direito do réu a realizar ali as festas de casamento, que podem perfeitamente realizar-se sem esse adereço, tão poluente e perturbador do ponto de vista sonoro.”
Concordamos igualmente com esta solução adotada pelo tribunal a quo.
Ademais, não colhe a argumentação do apelante de que a ciência ainda não conhece artefactos pirotécnicos sem explosão audível, quando é certo que nada resulta dos autos que assim seja, tudo indicando, aliás, que os artifícios pirotécnicos ilustrados no doc. de fls. 24, não comportam qualquer efeito sonoro significativo – que é aquilo que, no fundo, se pretende evitar.

Concluiu-se igualmente que caberá ao réu providenciar pela afetiva insonorização do salão onde passa música durante a noite, prevenindo que o som não se alastre quando os convidados abrem as portas.
Deu-se ainda conta que, se necessário for, poderá recorrer-se à colocação de uma antecâmara da porta de saída ou de qualquer outra solução adequada à mesma insonorização, tudo de forma a não comprometer o direito dos autores à tranquilidade e sossego.
Assim, quanto à musica que é tocada e/ou passada no exterior, colocou-se uma limitação de horário, até às 21 horas, após o que somente no interior do salão poderá ser tocada/passada música, com as condições de insonorização asseguradas.
Insurge-se o recorrente quanto a esta solução, mormente porque não está provado nos autos que o salão em causa não esteja insonorizado, careça de insonorização ou ainda que seja por falta de insonorização que o ruído se propaga para o prédio dos autores.
Porém, como é bom de ver, dos factos provados resulta que, por via dos eventos existentes na Quinta ..., mormente casamentos, a música que é tocada/passada em tais eventos é audível na casa dos autores, pela noite dentro, mesmo quando tocada no interior do dito salão (cfr. facto provado n.º 26), o que evidencia a necessidade de dotar este salão de uma adequada insonorização que não permita a expansão do som para junto da casa dos autores, tal como se definiu na sentença recorrida, o que aqui se sufraga igualmente.

Por fim, o tribunal a quo determinou que o réu crie condições para que a saída das viaturas e dos convidados a partir das 22 horas se faça em termos que não impliquem a passagem junto da casa dos autores M. T. e M. S., podendo ser a que dá acesso à Rua ... e tem servido para a entrada dos noivos e das excursões, ou qualquer outra que réu prefira, desde que cumpra o objetivo de evitar vozes de quem abandona a festa perturbem o sono daqueles.
De igual modo, o réu apelante não concorda com esta solução adotada pelo tribunal recorrido, designadamente porque o caminho de acesso e de saída dos convidados à Quinta ... tem natureza pública, na parte que confina com o prédio dos 2ºs autores pelo que não pode o apelante impedir ou limitar a sua utilização pelo público, designadamente pelos convidados da Quinta ....
Enfatize-se, desde já, que o facto de estarmos perante um caminho de natureza pública (o que, contudo, sequer se mostra assente) não impede que se determine, nos termos acima delineados, que se faça uma restrição na saída de pessoas e de viaturas nesse mesmo caminho, provenientes da Quinta ..., conquanto tal solução se mostre viável e vá de encontro com a solução mais adequada e razoável na compatibilização dos direitos em conflito. (41)
Contudo, se temos como suficientemente demonstrado que as conversas das pessoas que, no final, quando regressam para junto dos autocarros onde se fizeram transportar para a Quinta ..., são, por vezes, audíveis no interior da habitação dos autores M. T. e M. S. (cfr. facto provado n.º 25), o mesmo já não sucede com a passagem de viaturas pelo mesmo caminho, à noite, no final dos eventos.
Com efeito, se atentarmos à factualidade dada como provada sob o n.º 23 (e igualmente à restrição supra operada no n.º 11 dos factos provados), verificamos que os veículos automóveis onde os convidados se fazem transportar só formam filas, provocando ruídos de motores e algumas buzinas (sendo que só estas últimas é que são audíveis na moradia dos autores e a mais de 30 metros de distância) aquando da sua chegada à Quinta ...; ou seja, em pleno dia, por volta das 15/16 horas (cfr. facto provado n.º 22).
Por outro lado, se é certo que se nos afigura simples e perfeitamente possível impedir que os convidados saiam, a pé, da Quinta ..., por via do dito caminho que passa junto à casa dos autores, o mesmo já não sucede com a criação de saídas alternativas para as viaturas automóveis, as quais, a serem possíveis, poderão originar despesas avultadas para o réu, o que já se nos afigura desadequado e desrazoável para a salvaguarda dos direitos dos autores, quando é certo que os segundos autores, por via do referido caminho que passa em frente à sua casa, só se sentirão incomodados, durante o dia, com as buzinas dos carros ao acederem aos parques existentes na Quinta ....
Nesta medida, cumpre em restringir o decidido pelo tribunal a quo, sob o item v. do Dispositivo, de modo que apenas seja imposto ao réu que a saída dos convidados, a pé, a partir das 22 horas, se faça por uma entrada/saída da Quinta ..., que não implique a passagem desses mesmos convidados junto da casa dos autores M. T. e M. S., tudo de modo a evitar que as vozes desses convidados não perturbem o sono daqueles.
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C) Da indemnização por danos não patrimoniais

O tribunal a quo decidiu fixar em € 5.000,00 e € 10.000,00 os valores indemnizatórios devidos aos primeiros e segundos autores, respetivamente, a título de danos não patrimoniais.
O recorrente considera estes montantes indemnizatórios excessivos, tanto mais que dos autos inexiste matéria factual suficiente que nos permita apurar a intensidade da pretensa lesão causada (desconhece-se, designadamente, quantas vezes foram os autores perturbados no seu descanso, tranquilidade e sono), sendo certo ainda que, durante mais de 15 anos, não houve por parte dos autores qualquer reação à atividade desenvolvida pelo réu na Quinta ..., sendo curial presumir uma lesão de intensidade reduzida.

Como é consabido, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, sejam merecedores da tutela do direito, conforme decorre do art. 496º, n.º 1, do C. Civil, consequência do princípio geral da tutela geral da personalidade previsto no art. 10º, do mesmo Código.
A gravidade mede-se por um padrão objetivo, de normalidade, de bom senso prático, de criteriosa ponderação das realidades da vida, o que afastará, à partida, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais decorrentes de sensibilidades particularmente embotadas ou especialmente requintadas, ou seja anormais ou incomuns.
Por outro lado, ainda, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que, em face das circunstâncias concretas do caso, justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
No caso em apreço, não existem dúvidas que a atividade desenvolvida pelo réu na Quinta ... tem vindo a perturbar significativamente o sono, tranquilidade, saúde e bem-estar dos autores, atentando ainda contra o direito à sua privacidade, sendo que tais lesões nos direitos dos autores assumem evidente gravidade, justificativas, assim, do seu ressarcimento, a título de danos não patrimoniais.
O que está em discussão é, assim, “apenas” a sua fixação em termos de quantitativo pecuniário.
Nesta matéria, em primeiro lugar, é de notar que, estando em causa a lesão de interesses imateriais (isto é que não atingem de forma direta ou imediata o património do lesado), o objetivo, em termos de ressarcimento, não é (nem pode ser), face à sua evidente impossibilidade, a reconstituição natural da situação anterior ao sinistro, ou, face à insusceptibilidade da sua avaliação pecuniária, a fixação de um montante pecuniário equivalente ao «mal» sofrido, mas será apenas atenuar, minorar ou, de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado.
Neste sentido, refere Antunes Varela, que “ao lado [dos] danos pecuniariamente avaliáveis, há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.” (42)
A indemnização pelo dano em apreço não é uma verdadeira indemnização no sentido de repor, reconstituir as coisas no estado anterior à lesão. Com a indemnização pretende-se dar ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe situações ou momentos de prazer e alegria que neutralizem, tanto quanto possível, a intensidade da dor física e psíquica. (43)
Com efeito, nestas hipóteses, e conforme é posição pacífica da doutrina e da jurisprudência, o que está em causa é a fixação de um benefício material/pecuniário (único possível) que se traduza, pelas utilidades, prazeres ou distrações que proporciona – porventura, de ordem espiritual –, numa compensação ou atenuação pelos bens imateriais antes referidos da pessoa humana (o lesado), atingidos pelo evento.
Nesta conformidade, a compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, não pode – por definição – ser feita através da teoria ou fórmula da diferença prevista no art. 566º, n.º 2, do C. Civil.
Ao invés, o montante da indemnização, nos termos do disposto no arts. 496º, n.º 4 e 494º do Cód. Civil, deverá ser fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante, à situação económica do lesante e do lesado, às demais circunstâncias do caso, nomeadamente, por assim o imporem os princípios da proporcionalidade e igualdade, aos critérios e valores usualmente acolhidos na jurisprudência em casos similares. (44)
Com efeito, como se refere no Ac. STJ de 18.06.2015, (45) “não podendo apurar-se o valor exacto de tais danos, atenta a sua natureza, o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade (…), fazendo apelo a todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (…) e tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigos 496º, n.º 3, 1ª parte [agora n.º 4, 1ª parte] e 494º do Código Civil).” (sublinhado nosso).
E, ainda, prossegue o referido douto aresto, “nos parâmetros gerais a ter em conta considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. n.º 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt) serem ainda de destacar a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496º, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar.” (sublinhámos).
No entanto, como se adverte no Ac. STJ de 17.12.2015 (46) (e nos variadíssimos arestos ali elencados), a utilização de critérios de equidade não deve impedir que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto.
Por outro lado, ainda, é de referir que, conforme se colhe da mesma jurisprudência do Supremo, o recurso à equidade não pode, nem deve conduzir à arbitrariedade, não devendo os tribunais “…contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito civil que a afirmação destes vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.” (47)
Por último, é ainda de referir, nesta sede, que à obrigação indemnizatória, a título de danos não patrimoniais, se deve reconhecer, não só um papel de reparação ou compensação, mas também um papel de censura ou punitivo do agente do facto lesivo.
Com efeito, como se refere no Ac. STJ de 30.10.96, BMJ 460, pág. 444 (citado no Ac. STJ de 26.01.2016, relator Fonseca Ramos, já citado), “no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização tem uma natureza acentuadamente mista, pois visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; não lhe sendo, porém, estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.”
Outrossim, no nosso caso em particular, cumpre sublinhar, conforme, entre outros, resulta do citado Ac. do STJ de 29.06.2017 (relator Lopes do Rego) que: “Existindo uma relação de concausalidade, sendo a lesão do direito de personalidade e os consequentes danos resultado, quer de um facto imputável ao próprio réu, por ocorrido em espaço por ele controlado, quer do impacto ambiental negativo global, associado a comportamentos no exterior de terceiros/utentes, pode o lesante ser chamado a responder – na medida dessa concausalidade – pela indemnização devida aos lesados, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais.”

Tendo presentes as considerações que antecedem, o tribunal a quo “considerando os ruídos, a perturbação do sono e o prejuízo para a saúde, bem como a perturbação do direito de privacidade e ainda o facto dos primeiros autores terem condicionado a escolha da sua residência em Portugal”, considerou adequados os valores indemnizatórios peticionados, a este título, de € 5.000,00 para os primeiros autores e de € 10.000,00 para os segundos autores.

Consideramos, porém, que, pelo menos parcialmente, assiste razão ao recorrente.
De facto, se é certo que, como já frisámos, não podemos ter em consideração o período de tempo em que o réu desenvolve a sua atividade na Quinta ... (pois que o mesmo não resulta dos factos assentes), isso igualmente nos limita no que toca a saber desde quando é que os autores se sentem prejudicados na sua tranquilidade e repouso e na sua privacidade.
De todo o modo, sempre resulta dos factos provados que esses danos morais assumem maior gravidade para os autores M. T. e M. S., em face de, contrariamente ao que sucede com os autores J. M. e M. P., residirem permanentemente na sua habitação, sita no prédio identificado em 2 e, igualmente, da nova factualidade dada como provada sob os nºs 22 a 26 (introduzida no facto provado n.º 20); sem que, contudo, nos possamos olvidar que estes últimos autores deixaram de residir na sua habitação instalada no prédio referido em 1, como consequência direta dos ruídos provenientes da Quinta ....
De igual modo, o apontado quadro depressivo da neta dos segundos autores não é aqui de tomar em consideração, sendo, porém, patente que está demonstrado um desgaste familiar derivado da falta de descanso (cfr. facto provado n.º 18).

Nesta medida, tudo visto e ponderado, em juízo de equidade, e ponderando casos similares ao dos presentes autos e os valores arbitrados pela nossa jurisprudência (48), afigura-se-nos justo e equilibrado, no caso, fixar a indemnização por danos não patrimoniais, a favor dos autores J. M. e M. P. no valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros); e a favor dos autores M. T. e M. S. no montante de € 7.000,00 (sete mil euros).
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D) Da sanção pecuniária compulsória

Insurge-se ainda o apelante contra o montante fixado, por parte do tribunal a quo, a título de sanção pecuniária compulsória, considerando-o manifestamente desproporcional em relação a outras decisões jurisprudenciais incidentes sobre situações análogas à dos presentes autos, sendo certo igualmente que, na mesma fixação, a sentença recorrida é, nesta parte, nula, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. c), do C. P. Civil, por se desconhecerem os critérios objetivos que presidiram à determinação da mesma sanção pecuniária compulsória.
Julgamos, porém, que não assiste razão ao apelante.
Senão vejamos.

Prescreve o disposto no art. 829º-A, do C. Civil, que: “Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.” (n.º 1)
Tal sanção pecuniária compulsória “será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.” (n.º 2).

Calvão da Silva, em sede de definição da mesma, afirma que “a sanção pecuniária compulsória é a condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, um meio de constrangimento judicial que exerce pressão sobre a vontade lassa do devedor, apto para triunfar da sua resistência e para determiná-lo a acatar a decisão do juiz e a cumprir a sua obrigação, sob a ameaça ou compulsão de uma adequada sanção pecuniária, distinta e independente da indemnização, susceptível de acarretar-lhe elevados prejuízos.”
É, assim, “um meio indirecto de constrangimento decretado pelo juiz, destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial.” (49)

No caso em presença, não há dúvidas que o réu apelante, mercê da presente ação e nos termos supra expostos, ficará compelido ao exercício da sua atividade de exploração da Quinta ... em moldes bem mais restritos do que acontecia anteriormente, designadamente no que se refere à utilização de artefactos pirotécnicos audíveis e à música tocada/passada na mesma Quinta, quer no exterior quer no interior de um salão aí utilizado para os respetivos eventos, estando ainda vinculado a realizar obras de insonorização do mesmo salão e a impedir que os convidados das festas circulem, após as 22 horas, no caminho de acesso aos parques de estacionamento existentes na mesma Quinta e que passa junto à habitação dos segundos autores.
Estamos, pois, perante uma prestação de facto infungível, que é, simultaneamente, positivo e negativo, tanto quanto é certo que está obrigado a cumprir as determinações do tribunal e a não desrespeitar as mesmas, tudo de forma a não ser violado o direito fundamental de personalidade dos autores, conforme supra se reconheceu. (50)

Neste particular, caberá ainda dizer que a sanção pecuniária compulsória, designadamente a fixar nos termos das disposições conjugadas dos arts. 829º-A, do C. Civil, e 879º, n.º 4, do C. P. Civil, não está dependente de desrespeito anterior por parte dos obrigados à prestação de facto infungível, pois que tal sanção pecuniária compulsória tem igualmente como finalidade prevenir eventuais incumprimentos no futuro daqueles obrigados. (51)
De facto, Calvão da Silva (52), neste âmbito, afirma que: “E porque os direitos de personalidade são direitos pessoais, de conteúdo e função não patrimonial, a sua adequada e eficaz tutela passa pela prevenção do acto ilícito lesivo e não pela repressão e remedeio da violação.
Por isso, é imprescindível a condenação inibitória, a injunção de cessação do facto ilícito perdurante e de prevenção de facto ilícito futuro, isto é, noutra formulação, a ordem judicial de condenação no cumprimento futuro do dever de abstenção. Injunção a que o titular do direito de personalidade ofendido ou ameaçado tem o direito (…), como o juiz tem o poder-dever de a pronunciar, a fim de impedir a consumação da ameaça ilícita, a continuação da lesão ou a repetição do ilícito no futuro (…)
Tem de reconhecer-se que a tutela preventiva dos direitos de personalidade não pode ser realizada através da execução in natura – já que o dever de abstenção, de não interferência por parte de terceiros nos valores inerentes à pessoa, é por natureza e definição infungível -, mas já pode ser perseguida pela técnica coercitiva da sanção pecuniária compulsória (art. 829º-A).”

Em termos de fixação da respetiva sanção pecuniária compulsória, o tribunal recorrido decidiu fixar a mesma, segundo critérios de equidade, em € 500,00 por cada dia, dando conta previamente que “o montante a fixar deve constituir um factor dissuasor do incumprimento.” Não obstante, salientou que o montante proposto pelos autores (€ 2.500,00, por cada infração diária) é excessivo, por comparação com os demais casos similares tratados na jurisprudência e, assim, fixou a mesma sanção pecuniária compulsória em € 500,00 por cada dia em que o réu mantenha a Quinta ... aberta ao público fora das condições estipuladas na sentença recorrida.

Em termos comparativos com as demais decisões jurisprudenciais, designadamente com a decisão proferida neste âmbito no referido Ac. RG de 26.09.2019 (53), afigura-se-nos perfeitamente ajustada e adequada equitativamente a sanção pecuniária compulsória fixada na sentença recorrida, sobretudo tendo em atenção que a atividade comercial desenvolvida pelo réu na dita Quinta ..., em cada dia que promove eventos, como sejam casamentos, é seguramente bem mais rentável do que o montante fixado a título de sanção pecuniária compulsória, mostrando-se, assim, a mesma equitativamente fixada, mormente como elemento dissuasor pelo não cumprimento das injunções impostas ao réu na decisão em causa e para efeitos de salvaguarda dos referidos direitos de personalidade dos autores.

No que se refere à apontada nulidade da sentença recorrida, neste particular, por ser obscura ou ininteligível (art. 615º, n.º 1, al. c), do C. P. Civil,), a fixação da referida sanção pecuniária compulsória, a mesma, ao invés, mostra-se devidamente fundamentada e perfeitamente inteligível, indo de encontro com decisões jurisprudenciais proferidas neste âmbito, tal como se referiu supra.
É assim de manter o valor fixado pelo tribunal a quo a título de sanção pecuniária compulsória.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação apresentada pelo réu, nos termos sobreditos, e, consequentemente, decide-se:

- Alterar os factos provados sob os nºs 11 e 25 nos moldes acima consignados em A);
- Revogar a sentença recorrida no item v. da sua parte dispositiva, condenando o réu a providenciar no sentido de que a saída dos convidados, a pé, a partir das 22 horas, se faça por uma entrada/saída da Quinta ..., que não implique a passagem desses mesmos convidados junto da casa dos autores M. T. e M. S..
- Revogar a sentença recorrida sob o item vi., condenando o réu a pagar aos autores J. M. e M. P., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
- Revogar a sentença recorrida sob o item vii., condenando o réu a pagar aos autores M. T. e M. S., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros).

No mais, mantem-se a decisão recorrida.

Custas em ambas as instâncias pelos autores e pelo réu, na proporção de 1/4 e de 3/4, respetivamente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil).
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Guimarães, 18.03.2021

Este acórdão contem a assinatura digital eletrónica dos Desembargadores:
Relator: António Barroca Penha.
1º Adjunto: José Manuel Flores.
2º Adjunto: Conceição Sampaio.




1. Por todos, neste sentido, vide Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 6626/09.0TVLSB.L1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, 2017, pág. 159.
3. Ob. citada, pág. 164.
4. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
5. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
6. Ob. citada, págs. 274 e 277.
7. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, pág. 570, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
8. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
9. In Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
10. Vide, neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 03.11.2009, proc. 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
11. Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 609.
12. Por todos, cfr. neste sentido, Ac. STJ de 20.12.2017, proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2, relator Ribeiro Cardoso; Ac. STJ de 05.09.2018, proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S1, relator Gonçalves Rocha; Ac. STJ de 20.02.2019, proc. 1338/15.8T8PNF.P1.S1, relator Chambel Mourisco; Ac. STJ de 08.10.2019, proc. 3138/10.2TJVNF.G1.S2, relatora Maria João Vaz Tomé; e Ac. STJ de 06.11.2019, proc. 1092/08.0TTBRG.G1.S1, relator Chambel Mourisco, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
13. Teoria Geral das Obrigações, Almedina, 3ª edição, págs. 63-64.
14. Abuso de Direito, BMJ n.º 85, pág. 253.
15. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 5ª edição, pág. 499.
16. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 299.
17. Cfr. Ac. STJ. de 15.01.2013, proc. 600/06.5TCGMR.G1.S1, relator Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
18. Manuel de Andrade, ob. citada, pág. 63.
19. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298.
20. Neste sentido, cfr. Antunes Varela, ob. cit. pág. 499.
21. Cfr. desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais realizados por António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, 2015, págs. 295 a 381.
22. Ob. citada, pág. 354.
23. Ob. Citada, pág. 355.
24. Ob. Citada, pág. 356.
25. CJ, Acs. STJ, 2000, Tomo III, págs. 83-84.
26. Ainda assim, conforme se defende no Ac. STJ de 22.03.2018, proc. 184/13.8TBTND.C1.S2, relatora Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt: “Estando em causa a afectação, de forma continuada, de um direito de personalidade da autora não poderá, em princípio, atribuir-se relevância à conduta desta para efeitos de renúncia ao direito ao repouso e ao descanso; não poderá certamente atribuir-se tal relevância para efeitos de renúncia definitiva a esse direito.
27. Vida ainda art. 80º, al. c), da CRP, que confere o direito à liberdade de iniciativa e de organização empresarial, no âmbito de uma sociedade mista. 28. In RLJ ano 103º, págs. 374 e segs.
29. No mesmo sentido vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 178.
30. Proc. 2115/04.7TBOVR.P3.S1, relator Cabral Tavares, acessível em www.dgsi.pt.
31. Neste particular, cfr. igualmente Ac. do STJ de 07.04.2011, proc. 419/06.3TCFUN.L1.S1; e Ac. do STJ de 29.06.2017, proc. 117/13.1TBMLG.G1.S1, ambos relatados por Lopes do Rego, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
32. In Direito de Personalidade, Almedina, 2006, pág. 71.
33. Por todos, cfr. Ac. STJ de 29.11.2016, proc. 7613/09.3TBCSC.L1.Si, relator Alexandre Reis, acessível em www.dgsi.pt.
34. Em anotação a este mesmo Ac. STJ de 29.11.2016, vide Juíza Desembargadora Cecília Agante, in Cadernos do CEJ, A tutela geral e especial da personalidade humana, págs. 54-55, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_TutelaP2017.pdf, a qual, com referência ao Regulamento Geral do Ruído (D.L. n.º 9/2007, de 17.01) refere, designadamente, que: “Embora este Regulamento estabeleça limites para a poluição sonora, entende-se que ele apenas tem efeitos dentro da atividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir com a salvaguarda dos direitos de personalidade, cuja proteção se não esgota no limite do ruído estabelecido no diploma. A significar que a consagração de um valor máximo de nível sonoro do ruído vincula a administração a não autorizar a instalação de equipamentos nem conceder licenciamento de atividades que não respeitem aquele limite máximo, e o desrespeito desse limite faz incorrer o infrator em ilícito de mera ordenação social.
35. Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 08.04.2010, proc. 1715/03.7TBESP.G1.S1; e o Ac. do STJ de 29.06.2017, proc. 117/13.1TBMLG.G1.S1, ambos relatados por Lopes do Rego; Ac. STJ de 22.03.2018, já citado; e Ac. STJ de 07.11.2019, proc. 1386/15.8T8PVZ.P1.S1, relator Ilídio Sacarrão Martins, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
36. No mesmo sentido, cfr. Ac. do STJ de 18.10.2018, proc. 3499/11.6TJVNF.G1.S2, relatora Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt.
37. In O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 547.
38. Ob. citada, pág. 549.
39. Neste sentido, cfr., por todos, Ac. do STJ de 01.03.2016, proc. 1219/11.4TVLSB.L1.S1, relator Garcia Calejo, acessível em www.dgsi.pt.
40. A este propósito, vide Ac. da RG de 07.06.2011, proc. 4860/05.0TBBCL.G1, relatora Ana Cristina Duarte, acessível em www.dgsi.pt, onde designadamente se refere que: “Na convivência social em núcleos populacionais densos, impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente limitados. Daí que não baste falar-se in abstracto na prevalência ou preponderância de uma espécie de direitos fundamentais em relação a outra, antes se exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em conta os referidos princípios.
41. Neste sentido, cfr. Ac. do STJ de 29.06.2017, relator Lopes do Rego, já citado, onde se sumariou designadamente que: “Ao ajuizar sobre o modo de compatibilização dos direitos em confronto, tutelando de forma efectiva o direito de personalidade dos residentes nas imediações de estabelecimento de diversão nocturna, gerador de ruido para o exterior, - fixando nomeadamente o período possível de funcionamento - pode e deve o tribunal ter em consideração o impacto ambiental negativo global que está necessariamente associado ao tipo de actividades nele exercidas, incluindo comportamentos incívicos ocorridos no exterior do estabelecimento, desde que quem o explora com eles pudesse razoavelmente contar, por serem indissociáveis da natureza da actividade exercida, sem que tal traduza uma imputação de responsabilidade civil por facto de terceiro.” (nosso negrito)
42. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina 7ª edição, pág. 595. No mesmo sentido, ainda, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2ª edição, págs. 316-318; e, ao nível jurisprudencial, por todos, vide Ac. STJ de 07.06.2011, proc. 160/2002.P1.S1, relator Granja da Fonseca; Ac. STJ de 04.06.2015, proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Ac. STJ de 26.01.2016, proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1, relator Fonseca Ramos; e Ac. STJ de 16.06.2016, proc. 1364/06.8TBBCL.G1.S2, relator Tomé Gomes, in www.dgsi.pt.
43. Neste sentido, cfr. Vaz Serra, BMJ 78, pág. 83; e BMJ 278, pág. 182.
44. Vide, neste sentido, Ac. STJ de 04.06.2015, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, já citado; Ac. STJ de 18.06.2015, proc. 2567/09.9TBABF.E1.S1, relatora Fernanda Isabel Pereira; Ac. STJ de 26.01.2016, proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1, relator Fonseca Ramo; Ac. STJ de 28.01.2016, proc. 7793/09.8T2SNT.L1.S1, relatora Maria da Graça Trigo; e Ac. STJ de 22.02.2017, proc. 5808/12.1TBALM.L1.S1, relator Lopes do Rego, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
45. Proc. 2567/09.9TBABF.E1.S1, relatora Fernanda Isabel Pereira, acessível em www.dgsi.pt.
46. Proc. 3558/04.1TBSTB.E1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
47. Vide, ainda, neste sentido, Ac. STJ de 07.04.2016, proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1, relatora Maria da Graça Trigo; e Ac. STJ de 18.06.2015, já citado, e, ainda, Ac. STJ de 31.01.2012, proc. 875/05.7TBILLH.C1.S1, relator Nuno Cameira, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
48. Por todos, cfr. os valores indemnizatórios por danos não patrimoniais sufragados nos Ac. do STJ de 29.06.2017 e Ac. STJ de 18.10.2018, ambos já citados e acessíveis em www.dgsi.pt.
49. In Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Almedina, 4ª edição, págs. 355 e 393.
50. No mesmo sentido, cfr Ac. RP de 14.12.2017, proc. 24541/16.9T(PRT.P1, relator Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt. 51. Neste sentido, cfr. Ac. RG de 26.09.2019, proc. 1935/18.0T8CHV.G1, do ora relator, disponível em www.dgsi.pt.
52. Ob. citada, págs. 466-467.
53. Onde se fixou uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 300,00, por cada dia de infração, no que se refere a desrespeito de horários fixados em estabelecimentos de café.