CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
Sumário


A circunstância de terem decorrido duas horas e vinte e oito minutos entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido.

Texto Integral



Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Lagos, foi o arguido (...) submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu:

“1. Absolver o arguido (...) do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, p. e p. pelo Art.º 292º, n.º 2 ,do Código Penal, por que vinha acusado.

2. Condenar o arguido (...), pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo Art.º 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de setenta dias de multa, à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de trezentos e cinquenta euros e a que correspondem quarenta e seis dias de prisão subsidiária.

3. Condenar o arguido (...) na pena acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado, pelo período de quatro meses.

4. Condenar o arguido no pagamento de custas criminais, cfr. artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, com a taxa de justiça fixada em três unidades de conta.


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Deverá o arguido proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da presente decisão - cfr. Art.º 69º, n.º 3 e Art.º 500º, n.º 2, ambos, do Código Penal - sob pena de, não o fazendo, cometer um crime de desobediência, ficando advertido de que o período de proibição de conduzir se inicia no dia seguinte ao trânsito em julgado da presente sentença.

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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A- O recorrente foi condenado pelo Tribunal “a quo”, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de setenta dias de multa, à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de trezentos e cinquenta euros e a que correspondem quarenta e seis dias de prisão subsidiária, na pena acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado, pelo período de quatro meses, e no pagamento de custas processuais com a taxa de justiça fixada em três unidades de conta.

B- Todavia, afigura-se ao recorrente, sem razão,

C- pois, entre a colheita de sangue para exame efectuada às 22h18 minutos do dia 21-09-2019 que deu taxa de álcool no sangue de 2,24 g/l, e a ocorrência do acidente às 19h50m daquele dia, o intervalo de tempo é de 2h28m, sendo desconhecida a taxa aquando da hora da condução.

D- No caso concreto, são desconhecidas e deveriam ter sido consideradas, as seguintes variáveis atinentes ao recorrente, no seu humilde entendimento: o que é terá bebido e quando, estado de saúde, temperatura, peso, se teria ingerido alimentos, ao tempo da ocorrência.

E– Isto porque, a taxa de alcoolemia não se mantém estável nas horas que se seguem à ingestão de bebidas alcoólicas e o tempo de absorção do álcool ingerido pode variar entre os cinco e os quinze minutos depois da ingestão, se não há alimentos no estômago, e os trinta a sessenta minutos depois da ingestão, se for ingerido durante a refeição (cfr. http://www.cras.min-saude.pt/Brochura.pdf) , e o tempo que leva a absorção necessária para a taxa de álcool no sangue atingir o seu valor máximo pode variar entre a meia hora e as duas horas, e chegar até às seis horas.

F- A colheita de sangue deve ser efectuada “no mais curto prazo possível” (cfr. Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio), por ser considerado menos fiável porque não está sujeito a controlo metrológico como sucede com os alcoolímetros, e não é medida instantaneamente no momento da fiscalização, sendo que, entre o teor de álcool no ar expirado e o teor de álcool no sangue existe, geralmente, um grau de concordância razoável “desde que o tempo decorrido entre a medição do TAE e do TAS não seja superior a ½ hora” – cfr. “A alcoolemia e o Controlo Metrológico dos Alcoolímetros”, fls 4 e 5, http://www.ipq.pt/backFiles/CONTROLO_ALCOOLEMIA_08402.pdf).

G- No caso presente, os testes qualitativos deram “amostra contaminada”.

H- A taxa de álcool e o estado de embriaguez não foram demonstrados por prova testemunhal.

I- Quanto à alegada situação de a condução do veículo pelo recorrente não ter sido feita em condições de segurança, de relevar o facto de a participação de acidente de viacção, a folhas 7 dos autos, relatar que na data e hora do acidente: 2019-09-21, 19:50h, a indicação quanto à Estrada Municipal 537 era de: “Aderência pavimento – Molhado”.

J- O recorrente exerceu um direito que lhe assiste, que é o direito ao silêncio.

K- Em face do exposto, o recorrente impugna expressamente a matéria de facto dada como provada nos pontos 2., 3., 4., 5., 6., e 7, a qual deverá ser reapreciada e alterada pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, procedendo à fixação em sentido negativo.

L- E, entende o recorrente que não se tem por preenchido o elemento objectivo “conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l” e o elemento subjectivo “pelo menos por negligência”, do tipo do ilícito previsto no artigo 292.º do Código Penal.

M- Não foi este, todavia, o entendimento do Tribunal “a quo”, que deu o crime de condução de veículo em estado de embriaguez por praticado pelo recorrente.

N - Por isso, violou o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 292.º do Código Penal.

O- Em face do que vem dito, o recorrente deverá ser absolvido do crime de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Termos, em que, concedendo-se provimento ao presente recurso, deverá a Sentença do Tribunal “a quo” ser revogada/alterada e o recorrente ser absolvido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e da pena acessória.

DECIDINDO na linha do exposto, farão V/Excelências, JUSTIÇA!

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O recurso foi admitido.

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O Ministério Público respondeu ao recurso nos seguintes termos:

“ (…)

O cerne do recurso interposto pelo recorrente centra-se no argumento de que, realizada a recolha sanguínea cerca de duas horas e meia após o acidente, terá de se concluir pelo efectivo desconhecimento da taxa de álcool que portava o arguido, aquando do exercício da condução.

A esta questão elabora o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” pertinente e acertada argumentação, que acompanhamos na íntegra, e somente aproveitamos o ensejo para acrescentar que, a nível da jurisprudência superior, tal entendimento tem sido acolhido:

No Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo com o nº408/09.6GAMMV.C1, refere-se que “os estudos realizados revelam que a alcoolemia afecta as capacidades físicas e psíquicas do condutor quase logo a seguir à ingestão da bebida alcoólica, atingindo um valor máximo no intervalo de 1/2 a 2 horas conforme as circunstâncias do momento. Quando se consome uma bebida alcoólica, o álcool passa em pouco tempo para o sangue: 15 a 30 minutos se ingerido fora da refeição, 30 a 60 minutos se a passagem é retardada pela presença de alimentos. Em face de tal, numa situação como a vertente, e mesmo considerando que o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas minutos antes da ocorrência do acidente, certo é que quando foi feita a colheita de sangue (três horas depois) já estava em curso o processo de metabolização e, como tal, quanto mais se retardasse a realização do teste de alcoolemia mais beneficiado era o arguido. (…)”. Idêntico entendimento é seguido no Douto Acórdão da Relação de Évora, com o nº 407/12.0GEALR.E1, relatora Exma. Desembargadora Maria Isabel Duarte.

Refere-se no ponto F do recurso interposto pelo recorrente que “a colheita de sangue deve ser efectuada “no mais curto prazo possível” (cfr. Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio), por ser considerado menos fiável porque não está sujeito a controlo metrológico como sucede com os alcoolímetros, e não é medida instantaneamente no momento da fiscalização, sendo que, entre o teor de álcool no ar expirado e o teor de álcool no sangue existe, geralmente, um grau de concordância razoável “desde que o tempo decorrido entre a medição do TAE e do TAS não seja superior a ½ hora” – cfr. “A alcoolemia e o Controlo Metrológico dos Alcoolímetros”.

A conclusão alcançada pela recorrente, de menor fiabilidade do exame de sangue para quantificação da taxa de álcool, merece reservas, tanto mais que nos termos do disposto no nº 5 do art. 6º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas “o resultado do exame de sangue para quantificação da taxa de álcool prevalece sobre o resultado do teste no ar expirado realizado em analisador quantitativo”.

Acresce, o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro (que consagrava no seu art. 6º um prazo máximo para efectuar a colheita sanguínea, nos seguintes termos: “A colheita do sangue deve ser efectuada no prazo máximo de duas horas a contar da ocorrência do acidente ou, nos restantes casos, após o acto de fiscalização) foi expressamente revogado pelo artigo 2° da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio (lei que aprovou em anexo o regulamento que terá que se levar em consideração).

Ora o artigo 5º do referido regulamento, preceitua, actualmente, que a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente, pelo que efectivamente não prevê a lei qualquer prazo para a colheita de sangue. Já quanto aos procedimentos a seguir, para a obtenção do resultado do teste no ar expirado realizado em analisador quantitativo, o legislador consagra expressamente um período temporal “quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos”.

Em conclusão, seguimos o entendimento expresso pelo Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, de que o relatório de exame toxicológico, junto aos autos, é prova válida, legal e atendível e que é prova de que o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas e que apresentava uma taxa de álcool no sangue, de, pelo menos, 2,24 g/l.

Concluindo, dir-se-á, pois, que nos afigura ser de manter a douta sentença recorrida.

Porém, Vossas Excelências decidirão, como sempre, como for de lei e de JUSTIÇA.

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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.


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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., o arguido/recorrente apresentou resposta ao Parecer, renovando os fundamentos apresentados no recurso.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, as questões suscitadas pelo arguido/recorrente são:

- validade do relatório de exame;

- erro de julgamento;

- não preenchimento do tipo legal de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

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É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):

“FUNDAMENTAÇÃO

A) DE FACTO

Factos Provados

Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 21.09.2019, pelas 19:50 horas, na estrada municipal 537, em Budens, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula (…), tendo aí entrado em despiste, ao efectuar uma curva para a esquerda.

2. O arguido havia consumido álcool e não se encontrava em condições de conduzir com segurança.

3. Devido ao álcool consumido, o arguido não conseguiu controlar o veículo automóvel e entrou em despiste quando exercia a condução da viatura automóvel.

4. O arguido exercia a condução sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 2,24 g/l.

5. Sabia o arguido que havia ingerido bebidas alcoólicas e que tal ingestão lhe poderia determinar, como determinou, a referida taxa de álcool no sangue, que ultrapassou a taxa de álcool no sangue legalmente permitida e, não obstante, decidiu conduzir na via pública nas referidas circunstâncias, bem sabendo que o não podia fazer naquelas condições.

6. O arguido, sabendo que tinha consumido recentemente álcool e que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, decidiu conduzir um veículo automóvel, acabando por se envolver num acidente.

7. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

8. O arguido é técnico de manutenção de profissão, auferindo quinhentos euros mensais.

9. Mora com a sua companheira, que se encontra desempregada e duas crianças, em casa arrendada, pela qual despende duzentos e cinquenta euros mensais.

10. Encontra-se a frequentar um curso de patrão local, pelo qual irá despender setecentos euros.

11. Possui como habilitações literárias, o 9º Ano de Escolaridade.

12. Não tem antecedente criminais registados.


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Factos Não Provados

Não se provou que:

a. Na circunstância descrita em 2., o arguido havia consumido estupefacientes.

b. O descrito em 3., foi devido ao produto estupefaciente consumido.

c. Conduzia ainda sob o efeito de produto estupefaciente que havia consumido, tendo sido verificada a presença de:

• D9 - Tetrahidrocanabinol, na quantidade de 2,0 ng/ml (nanogramas por mililitro).

• Metabolito de marijuana, THC-COOH: Ácido 11-nor-delta 9 - tetrahidrocanabinol, na quantidade de 19 ng/ml (nanogramas por mililitro).

• Ácido 11 – hidroxi – delta 9 - D9 - Tetrahidrocanabinol, na quantidade de 0,8 ng/ml (nanogramas por mililitro).

d. Mais sabia que havia consumido produto estupefaciente, produto esse que sabia que o impedia de conduzir com a devida segurança, atenção e previdência, diminuindo a capacidade de reacção e reflexo e, não obstante, decidiu conduzir o veículo automóvel na forma descrita. bem sabendo que o não podia fazer naquelas condições.

e. Na circunstância descrita em 6., o arguido sabia que tinha consumido recentemente produtos estupefacientes.

Nem ficaram por provar quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.


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MOTIVAÇÃO

A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma, partindo das regras da experiência, assim como da prova escrita e oral que foi produzida, aferindo-se quanto a esta o conhecimento de causa e isenção dos depoimentos prestados, conforme se passa a explicitar.

Na senda da afirmação da ocorrência histórica do facto vertido em 1., amparou-se o Tribunal na menção que de mesmo foi feita por (…), militar da Guarda Nacional Republicana que o presenciou, verbalizando tal matéria em audiência de modo sereno, equilibrado e seguro, afigurando-se credível.

No que se atém com a determinação da taxa de álcool apresentada pelo arguido – a que se alude em 4. – valorou-se o teor do exame toxicológico junto ao processo, que a evidencia.

Estatui o Art.º 118º do Código de Processo Penal, que a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei – vd. n.º 1 – nos casos em que esta não seja cominada, sendo o acto ilegal irregular – vd. n.º 2 – não prejudicando o regime das nulidades, as normas relativas a proibições de prova.

São nulas e não podem ser utilizadas, segundo impõe o Art.º 126º, da Lei Adjectiva Penal, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas – perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganoso; perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; utilização da força, fora dos casos e limites permitidos pela lei; ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; promessa de vantagem legalmente inadmissível.

Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei – Art.º 125º, do Código de Processo Penal.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – cfr. Art.º 127º, do Código de Processo Penal.

Evola, pois, do transcrito regime legal, a existência de duas categorias distintas de nulidades: as do processo e as da prova e sua obtenção.

Claramente que a questão que ora nos ocupa a sciencia, se atém com esta categoria.

Dos meios de obtenção de prova e, com especial acuidade, dos exames, regem o Título III do Código de Processo Penal e Artº 171º e seguintes.

No que se atém especificamente com o exame de pesquisa de álcool, no âmbito da fiscalização da condução sob a influência desta substância, dispõe o Art.º 153º, do Código da Estrada, que “o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito” e, “se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”.

Nos termos estatuídos no Art.º 5º, da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, “a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou da ocorrência do acidente”.

Ora, alegou a Ilustre Defensora do arguido, no sentido de, em sendo a colheita efectuada mais de duas horas depois da ocorrência, não se pode quantificar a taxa de álcool de que era este portador.

Para que uma pessoa possa apresentar vestígios de álcool, necessário é que o ingira, sendo consabido que a ingestão de bebidas alcoólicas provoca alterações de consciência e reflexos – que o próprio sente e nota.

O processo de absorção do álcool leva sessenta a setenta minutos a completar-se, atingindo um valor máximo no intervalo de uma hora após a última ingestão, sendo eliminado pelo corpo a uma média de 0,14g/l por hora – vd. ficha técnica “álcool, medicamentos e substâncias psicotrópicas”, disponível em www.imtt.pt.

Conjugando os dados expostos, resulta evidente que o arguido ingeriu álcool em quantidade necessariamente apta a elevar a taxa que ao final de duas horas, após a ocorrência do acidente – e sabendo-se, como será bom de ver, que em tal período não mais ingeriu bebidas alcoólicas e o conceito de “no mais curto prazo possível” não encerra qualquer barreira ou limite temporal – apresentava, de pelo menos 2,24 g/l.

Tudo visto, considerou-se, por válido e livremente apreciado, o relatório de exame toxicológico, que evidencia a taxa de álcool mínima então apresentada pelo mesmo e que, como tal se fixou.

Na esteira de quanto se vem dizendo, se firmou a factualidade inscrita em 2. e 3..

“O álcool é um dos factores que põem em risco a aptidão do condutor, através das perturbações que causa a nível das três áreas intervenientes na aptidão para conduzir (atitudes, percepção e motricidade). Na prática corrente da condução, estes efeitos traduzem-se em atitudes erradas e perigosas, na euforia da velocidade, da ultrapassagem, da sobrestima da máquina e das capacidades do “eu”, por interpretações erradas de uma informação sensorial alterada (diminuição do campo visual, da visão estereoscópica, da cor ...), por deficiente coordenação de movimentos, atraso dos tempos de reflexos, etc...” – cfr. Maria Lucília Mercês de Mello, José Barrias e João Breda, in Álcool e Problemas Ligados ao Álcool em Portugal, Edição Direcção Geral da Saúde, ISBN 972-9425-93-0, pág. 78.

Um condutor com uma taxa de álcool no sangue compreendida entre 1,5 a 3, gr de álcool, segundo os aludidos autores, ob. loc. cit., apresenta perturbação da marcha, diplopia [visão dupla], embriaguez nítida.

Em se conhecendo tais premissas, constatadas a partir de factos objectivos – v.g., a taxa em concreto apresentada e os cientificamente documentados efeitos do álcool – é permitido ao Tribunal, por via indirecta, inferir e afirmar que o mesmo sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas lhe poderia determinar taxa de álcool superior à legal, ainda assim decidindo conduzir, sabendo que não o poderia fazer, em tais circunstâncias.

A prova indirecta assenta no concurso de circunstâncias concordantes, revelando os factos conhecidos, factos íntimos, insusceptíveis de perscrutar directamente, mas que se podem validamente inferir.

Por quanto se vem de dizer, se firmou a factualidade inscrita em 5., 6. e 7..

Teve-se, ainda, em atenção o declarado pelo arguido que tange às suas condições pessoais e económicas – descritas em 8., 9., 10. e 11. – mencionadas que foram, por este, de modo que se afigurou coerente e, nessa medida, credível.

Para demonstração da ausência de antecedentes criminais – a que se alude em 12. – teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.

Por banda dos factos não provados, a prova produzida em audiência não permitiu a sua afirmação.

Com base no relatório toxicológico, sabe-se que na amostra de sangue colhida ao arguido, foi detectada a presença de estupefacientes.

Ao mesmo passo, sabe-se, que o mesmo apresentava uma taxa de alcoolemia assaz elevada.

Natural, em tais circunstâncias, é que o seu comportamento e reacção geral, se encontre alterado.

Pomo da questão é a detecção do estado de influenciado por estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, sabendo-se que o processo de eliminação das mesmas é demorado.

Nos termos do Art.º 81º, n.º 5, do Código da Estrada, considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.

Por força do disposto no Art.º 10º, da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, a detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

Face ao que estatui o Art.º 11º, da aludida sede legal, o exame de rastreio é efectuado através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas sendo que, por força do Art.º 12º, o exame de confirmação é realizado numa amostra de sangue, após exame de rastreio com resultado positivo e, face ao que estatui o seu n.º 5, só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação.

In casu, existe apenas um teste realizado, que apenas pode ser tido como de rastreio, destinado apenas a indiciar a presença de substâncias psicotrópicas mas não a determinar o estado de influenciado pelas mesmas.

Assim, impôs-se a recondução dos factos a., b., c., d. e e., à factualidade não provada.


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Apreciando

Insurge-se o recorrente relativamente ao valor probatório respeitante ao exame obtido através da análise ao sangue, atento o lapso temporal de duas horas e vinte e oito minutos decorrido entre o momento do acidente e a recolha de sangue, e concretamente, como alega na conclusão D, por serem “ (…) desconhecidas e deveriam ter sido consideradas, as seguintes variáveis atinentes ao recorrente, no seu humilde entendimento: o que é terá bebido e quando, estado de saúde, temperatura, peso, se teria ingerido alimentos, ao tempo da ocorrência..”.

Vejamos.

O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado nos artigos 152.º, n.º 1, a), 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre, a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores e peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.

O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, sendo apenas admissível nos casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível.

Nos termos do nº 8 do artigo 153º “Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”, dispondo o artigo 156.º que os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado ( nº1); quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas (nº2); se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas (nº3).

Revertendo ao caso sub judice, embora não resulte da matéria de facto provada o porquê de o exame de pesquisa de álcool no ar expirado não ter sido realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, e do motivo de não ter possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, tendo o examinando sido submetido a colheita de sangue para análise, e de que o arguido tenha dado o seu consentimento para a colheita de sangue, o certo é que igualmente se não vislumbra, nem tão pouco é invocado, ter o arguido, em momento algum, manifestado vontade de recusa à sua realização ou que a mesma tenha ocorrido contra a sua vontade.

Ademais, da legislação que regula esta matéria e a que supra se fez referência, não é exigido o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue.

No caso em apreciação, como já se disse, não resulta ter sido manifestada qualquer oposição pelo arguido, não obstante não poder o mesmo desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool nem o regime normativo que desencadeia a recolha de sangue quando não é possível proceder ao exame através do método do ar expirado.

Alega o recorrente que o exame não pode ser valorado pelo tribunal, padecendo de nulidade, por terem decorrido 2:28 minutos após o acidente, sendo que o teste de alcoolemia deverá ser feito no mais curto tempo possível, mais invocando serem “ (…) desconhecidas e deveriam ter sido consideradas, as seguintes variáveis atinentes ao recorrente, no seu humilde entendimento: o que é terá bebido e quando, estado de saúde, temperatura, peso, se teria ingerido alimentos, ao tempo da ocorrência..”.

Ora, dispõe o artigo 5º nº 1 da Lei nº 18/2007 de 17 de maio que “A colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente.”

Referindo-se a lei ao mais curto prazo possível, não estipula contudo qualquer prazo máximo para proceder à recolha de sangue, sendo certo que existe uma curva ascendente numa determinada altura do processo de absorção do álcool pelo organismo, certo sendo também que tal curva, atingido o pico, passa a ser descendente.

Com efeito "o álcool ingerido sob a forma de bebida alcoólica é absorvida pela mucosa gástrica para a corrente sanguínea, sendo depois distribuído por todo o organismo. Durante a absorção e distribuição aumenta a concentração do álcool no sangue segundo a curva ascendente, cujo pico máximo é alcançado cerca de 45 minutos a 90 minutos após a última ingestão. Atingida a concentração máxima, inicia-se uma curva descendente menos acentuada, que corresponde à metabolização e eliminação e que demora várias horas” – cfr. Apontamentos sobre Toxicologia Forense, edição CEI Novembro 2000.

Deste modo, a circunstância de terem decorrido duas horas e vinte e oito minutos entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido.

Termos em que se conclui que a prova de verificação de taxa de álcool no sangue efetuada ao arguido não padece de qualquer nulidade, sendo absolutamente válida como meio de prova nos termos em que foi considerada.


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Alega o recorrente nas conclusões I a L: “ I- Quanto à alegada situação de a condução do veículo pelo recorrente não ter sido feita em condições de segurança, de relevar o facto de a participação de acidente de viacção, a folhas 7 dos autos, relatar que na data e hora do acidente: 2019-09-21, 19:50h, a indicação quanto à Estrada Municipal 537 era de: “Aderência pavimento – Molhado”.

J- O recorrente exerceu um direito que lhe assiste, que é o direito ao silêncio.

K- Em face do exposto, o recorrente impugna expressamente a matéria de facto dada como provada nos pontos 2., 3., 4., 5., 6., e 7, a qual deverá ser reapreciada e alterada pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, procedendo à fixação em sentido negativo.

L- E, entende o recorrente que não se tem por preenchido o elemento objectivo “conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l” e o elemento subjectivo “pelo menos por negligência”, do tipo do ilícito previsto no artigo 292.º do Código Penal.”

Ora, quer as declarações do arguido (quando as presta), quer o depoimento das testemunhas, só assumem relevância em relação aos factos que sejam do conhecimento daquele que os relata. Outro entendimento seria suscetível de conduzir a que a descoberta da verdade material, fim perseguido em processo penal, pudesse ser escorada em confissão de factos não verdadeiros ou cuja veracidade o arguido não tivesse capacidade para afirmar por ultrapassarem aquilo que é capaz de apreender.

Conhecimento direto de um facto só se verifica em relação a factos que foram apreendidos através de perceção sensorial. Como assim, só se pode confessar o que, efetivamente, é suscetível de ser confessado.

No caso de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, como ocorre no caso vertente, ainda que o arguido preste declarações, confessando, não pode, obviamente, confessar que conduzia com uma concreta taxa de álcool no sangue, porquanto a mesma não é percecionável direta e pessoalmente, pelo arguido, em termos quantitativos.

A prova da concreta taxa de álcool no sangue, nos termos legais, só pode ser efetuada através de uma medição metrológica por recurso a instrumentos tecnológicos ou mediante análise ao sangue, nos termos impostos pelo artigo 152º e seguintes do Código da Estrada, e não de um concreto e preciso conhecimento do arguido, pois que lhe falta, para o efeito, razão de ciência. Daí a irrelevância, no caso, da não prestação de declarações pelo arguido, e do exercício do direito ao silêncio, que lhe assiste, sem dúvida.

No caso sub judice, o recorrente põe em causa os factos 2 a 7 indicados como provados, tecendo as suas próprias considerações quanto à prova produzida e olvidando que “conhecimento direto dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos próprios sentidos. No testemunho indireto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos” (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, editorial Verbo 2008, pág. 180), e que consta na motivação da decisão.

A prova do facto típico e ilícito juspenalmente pertinente tanto pode resultar de uma perceção imediata decorrente dos sentidos como derivar de ilações que o julgador retira de meras circunstâncias conhecidas em função de um raciocínio lógico assente nas regras da experiência comum – a denominada prova indireta. ---

«Na prova indireta a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção. A prova direta faz-se por perceção, a indireta por perceção e presunção» Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III volume, edição de 1999, páginas 93 e 94. ---. ---

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2010, in www.dgsi.pt, «o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova direta do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta, só por si, conduzir à sua convicção.

Com efeito, quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade do factum probandum, pois que, em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, não podendo ser excluída a prova por presunções, em que se parte de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido recorrendo a um juízo de normalidade alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.

Em sede de apreciação, a prova pode, pois, ser objeto da formulação de deduções ou induções, bem como da correção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.

E, quanto ao silêncio do arguido, invocado pelo arguido, dir-se-á que o silêncio não prejudica o arguido deixando a cargo da acusação o ónus da prova de todos os elementos do crime. No entanto, como silêncio que é não pode dele ser retirado qualquer efeito probatório. Nem para prova da acusação nem do seu contrário.

“Se o arguido exerce o seu direito ao silêncio, ele renuncia (faculdade que lhe é reconhecida), a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em discussão, nessa medida vinculando o tribunal à valoração exclusiva dos demais meios de prova disponíveis no processo” (cfr.Costa Andrade (in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 129).

Prevê o artigo 344º, n.º1 do CPP a confissão do arguido quanto aos “factos que lhe são imputados”, isto é, quanto aos factos descritos na acusação, como tal constitutivos do crime ou crimes aí imputados, como tais “desfavoráveis” ao arguido, a quem assiste o direito à não auto-incriminação.

Daí que, além do silêncio não constituir meio de prova, qualquer efeito probatório nunca poderia ser a favor do “confitente”.

E, tendo-se remetido o arguido ao silêncio, esse silêncio nem pode, sequer, ser invocado como suporte de uma qualquer outra versão alternativa dos factos capaz de suscitar a dúvida sobre outros elementos de prova da matéria da acusação, sendo certo que a sentença recorrida nenhum efeito probatório retira do aludido silêncio.

Assim, como cristalinamente resulta da motivação da decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido considerou provados os factos constantes da acusação (elencados nos factos provados nos pontos 1 a 7), na análise crítica assim exposta:

“Na senda da afirmação da ocorrência histórica do facto vertido em 1., amparou-se o Tribunal na menção que de mesmo foi feita por (…), militar da Guarda Nacional Republicana que o presenciou, verbalizando tal matéria em audiência de modo sereno, equilibrado e seguro, afigurando-se credível.

No que se atém com a determinação da taxa de álcool apresentada pelo arguido – a que se alude em 4. – valorou-se o teor do exame toxicológico junto ao processo, que a evidencia.

(…)

São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei – Art.º 125º, do Código de Processo Penal.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – cfr. Art.º 127º, do Código de Processo Penal.

Evola, pois, do transcrito regime legal, a existência de duas categorias distintas de nulidades: as do processo e as da prova e sua obtenção.

Claramente que a questão que ora nos ocupa a sciencia, se atém com esta categoria.

Dos meios de obtenção de prova e, com especial acuidade, dos exames, regem o Título III do Código de Processo Penal e Artº 171º e seguintes.

No que se atém especificamente com o exame de pesquisa de álcool, no âmbito da fiscalização da condução sob a influência desta substância, dispõe o Art.º 153º, do Código da Estrada, que “o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito” e, “se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool”.

Nos termos estatuídos no Art.º 5º, da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, “a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou da ocorrência do acidente”.

Ora, alegou a Ilustre Defensora do arguido, no sentido de, em sendo a colheita efectuada mais de duas horas depois da ocorrência, não se pode quantificar a taxa de álcool de que era este portador.

Para que uma pessoa possa apresentar vestígios de álcool, necessário é que o ingira, sendo consabido que a ingestão de bebidas alcoólicas provoca alterações de consciência e reflexos – que o próprio sente e nota.

O processo de absorção do álcool leva sessenta a setenta minutos a completar-se, atingindo um valor máximo no intervalo de uma hora após a última ingestão, sendo eliminado pelo corpo a uma média de 0,14g/l por hora – vd. ficha técnica “álcool, medicamentos e substâncias psicotrópicas”, disponível em www.imtt.pt.

Conjugando os dados expostos, resulta evidente que o arguido ingeriu álcool em quantidade necessariamente apta a elevar a taxa que ao final de duas horas, após a ocorrência do acidente – e sabendo-se, como será bom de ver, que em tal período não mais ingeriu bebidas alcoólicas e o conceito de “no mais curto prazo possível” não encerra qualquer barreira ou limite temporal – apresentava, de pelo menos 2,24 g/l.

Tudo visto, considerou-se, por válido e livremente apreciado, o relatório de exame toxicológico, que evidencia a taxa de álcool mínima então apresentada pelo mesmo e que, como tal se fixou.

Na esteira de quanto se vem dizendo, se firmou a factualidade inscrita em 2. e 3..

“O álcool é um dos factores que põem em risco a aptidão do condutor, através das perturbações que causa a nível das três áreas intervenientes na aptidão para conduzir (atitudes, percepção e motricidade). Na prática corrente da condução, estes efeitos traduzem-se em atitudes erradas e perigosas, na euforia da velocidade, da ultrapassagem, da sobrestima da máquina e das capacidades do “eu”, por interpretações erradas de uma informação sensorial alterada (diminuição do campo visual, da visão estereoscópica, da cor ...), por deficiente coordenação de movimentos, atraso dos tempos de reflexos, etc...” – cfr. Maria Lucília Mercês de Mello, José Barrias e João Breda, in Álcool e Problemas Ligados ao Álcool em Portugal, Edição Direcção Geral da Saúde, ISBN 972-9425-93-0, pág. 78.

Um condutor com uma taxa de álcool no sangue compreendida entre 1,5 a 3, gr de álcool, segundo os aludidos autores, ob. loc. cit., apresenta perturbação da marcha, diplopia [visão dupla], embriaguez nítida.

Em se conhecendo tais premissas, constatadas a partir de factos objectivos – v.g., a taxa em concreto apresentada e os cientificamente documentados efeitos do álcool – é permitido ao Tribunal, por via indirecta, inferir e afirmar que o mesmo sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas lhe poderia determinar taxa de álcool superior à legal, ainda assim decidindo conduzir, sabendo que não o poderia fazer, em tais circunstâncias.

A prova indirecta assenta no concurso de circunstâncias concordantes, revelando os factos conhecidos, factos íntimos, insusceptíveis de perscrutar directamente, mas que se podem validamente inferir.

Por quanto se vem de dizer, se firmou a factualidade inscrita em 5., 6. e 7.”.

O recorrente limita-se, pois, a expor a sua versão quanto à prova produzida e a contrapor a sua ponderação da prova produzida à ponderação tomada na matéria pelo Tribunal recorrido, o que se configura inócuo em termos de impugnação da matéria factual em sede de recurso.

Com efeito, analisando as motivações do recurso e confrontando-as com a motivação da sentença recorrida, conclui-se que o recorrente pretende substituir a convicção alicerçada pelo Tribunal recorrido na valoração que fez sobre determinados meios de prova pela sua própria convicção fundada na apreciação e valoração que fez dos mesmos meios de prova.

Pretensão do recorrente, porém, sem fundamento, pois que a convicção adquirida pelo tribunal a quo, clara e suficientemente fundamentada, mostra-se suportada pelos meios de prova que como relevantes e credíveis foram considerados na motivação, apresentando-se como plausível e conforme com as regras da experiência comum.

Em suma, não se encontram na decisão recorrida erros de julgamento no processo de formação da convicção do Tribunal recorrido que imponham decisão da matéria de facto diversa da por ele tomada.

A decisão recorrida explicita os diversos meios de prova produzidos, sem que o recorrente fundadamente impugne o referido nesse âmbito.

E, assim sendo, é manifesto que a prova produzida em audiência não impõe decisão diversa da recorrida, inexistindo fundamento para proceder às pretendidas alterações de matéria de facto.

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Alega o recorrente o não preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Vejamos:

Prevê o art. 292º do C.Penal:

“1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

Ora, o interesse protegido no crime de crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no artº 292º CP é a segurança da circulação rodoviária, das pessoas, da sua vida, da sua integridade física e dos seus bens.

Trata-se de um crime de perigo abstrato, cuja importância não pode, nem deve, ser escamoteada, tanto mais que, como é sabido, entre nós a sinistralidade rodoviária assume proporções preocupantes, sendo a condução sob o efeito do álcool uma das suas causas.

É elemento do tipo de crime do artº292º do Código Penal a condução de veículo em via pública ou equiparada.

Pressupostos da afirmação da tipicidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez são, assim, a condução, pelo menos por negligência, de veículo em via pública ou equiparada , com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Assim sendo, e atentando na matéria de facto assente como provada sob os nºs 1 a 7 é manifesto encontrarem-se preenchidos os elementos típicos do aludido crime.

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Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a sentença recorrida;

- condenar o recorrente em custas, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça .

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 23 de março de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares