I - O art. 400.º, n.º1, al. c) do CPP dispõe: “Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso pelas relações, que não conheçam a final do objeto do processo”. Alude este normativo apenas a “acórdãos”. A fortiori, assim será quando se tratar de um mero despacho.
II - Nem todas as decisões são objeto de recurso, e em particular para o STJ. É o caso de decisões interlocutórias. Cf. v.g., o Acórdão deste STJ no Proc.º n.º 195/18.7GDMTJ.L1, de 30/09/2020, Sumário: “VII. As decisões interlocutórias caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP).”. Cf. Ainda Acórdão deste STJ de 14/10/2020, no Proc.º n.º 387/18.9GGSNT-D.L1.S1.
III - Um despacho judicial recorrido, proferido por juiz singular, que não conhece de forma final, do objeto do processo (cf. art. 400, n.º 1, al. c) e, por conseguinte, não conhece da causa, antes se referindo a questões processuais que não são o quid essencial da lide, não pode ser admitido (cf. ainda 432, n.º 1, al. b), pelo STJ.)
IV - Assim, é de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, conforme arts. 400, nº 1, al. c), art. 432.º, n.º1, al. b), do art. 414.º, n.º 2, e do 420, n.º 1, al. b), todos do CPP.
Relatório
1. AA, não se conformando com despacho proferido a 04/05/2020 pela Relação … (Secção Criminal – …. Subsecção), veio para este Supremo Tribunal de Justiça interpor recurso, nos termos do artigo 399 e 432 n.° l al. b) do Código de Processo Penal, extraindo da sua Motivação as seguintes Conclusões:
“1. A arguida foi condenada, como autora material de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 205.° n.°s 1 e 4 alínea a), por referência ao artigo 202.° alínea a), ambos do Código Penal, numa pena de 2 anos de prisão; um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.°, 218.° n.° 2 alínea a), por referência ao artigo 202.° alínea b), todos do Código Penal, numa pena de 4 anos de prisão; um crime de burla simples, previsto e punido pelos artigos 26.° e 217.° n.° 1 do Código Penal numa pena de 10 meses de prisão; resultando na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos sob condição de proceder ao pagamento das quantias devidas a título de indemnizações atribuídas pelo Tribunal, no prazo de dois anos e seis meses.
2. A arguida não satisfeita com tal decisão interpôs recurso no dia 06 de Janeiro de 2020 para o Supremo Tribunal de Justiça.
3. Por Despacho do Tribunal da Relação …, datado do 17 de Janeiro de 2020, não foi admitido o recurso interposto.
4. No dia 4 de Fevereiro de 2020, a arguida interpõe Reclamação sobre o Despacho de não admissão de recurso, e no próprio faz menção de que se junta pagamento de multa de primeiro dia útil seguinte ao término do prazo.
5. A multa de primeiro dia útil seguinte foi liquidada no montante de €10,20 (dez euros e vinte cêntimos).
6. A 07 de Fevereiro de 2020, é a mandatária notificada para proceder ao pagamento da multa no montante de €63,75 (sessenta e três euros e setenta e cinco cêntimos) até à data limite de 20 de Fevereiro de 2020, que por lapso não foi tal guia paga atempadamente.
7. Mas a verdade é que foi paga multa, é certo se reconhece a sua insuficiência em termos legais, mas será tal o bastante para se recusar a apreciação do acto em si (a Reclamação), isto porque pela própria natureza do processo penal, não é devida taxa de justiça inicial.
8. O legislador português quis beneficiar o processo penal em termos de custas e até multas, cós contrário não teríamos neste processo custas à final e aceitação de redução ou dispensa de multa em certos casos específicos.
9. Note-se que o valor pago, seguiu tão somente a norma prevista no 139.° n.° 5 alínea a), "70 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC" , por referência à tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
10. Ora atenta a natureza do processo penal e as normas da regra de custas a final, somos a defender que tal Reclamação deveria ter sido admitida e não rejeitada.
11. Assim sendo, violou o Douto Despacho o disposto nos artigos 8.° n.° 8 do Regulamento das Custas Processuais, art.° 13.° e 32.°, n.° 1 da Constituição de República Portuguesa.”
2. Na sua resposta, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal “a quo” apresentou as seguintes Conclusões:
“1 - O disposto no art.° 8º, n.° 8, do Regulamento das Custas Processuais, pretensamente violado pelo despacho recorrido, não tem aplicação ao caso vertente, nem tão pouco se percebe a alusão à Tabela li, anexa àquele Regulamento, que se reporta aos números 1, 4, 5 e 7 do art° 7º do mesmo;
A própria recorrente admite que deu entrada à reclamação no primeiro dia útil subsequente ao término do prazo, que foi notificada para o pagamento da multa conforme emissão de guia tempestivamente emitida e o não pagamento da multa "por lapso" ...;
Apesar disso, vem invocar considerações doutrinárias sobre eventuais benefícios consignados pelo legislador no processo penal, em termos de custas, para colmatar aquele lapso expressamente admitido;
O despacho ora recorrido aplicou o Direito em conformidade, sendo a rejeição da reclamação apresentada a cominação legal exigível ao "lapso" verificado.
Termos em que, negando-se provimento ao recurso, e mantendo-se o despacho recorrido se fará JUSTIÇA.”
3. A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta, neste Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se pela rejeição do recurso.
4. Foi cumprido o art. 417, n.º 2 do CPP.
A recorrente não respondeu.
5. O teor do despacho recorrido é o seguinte:
“A arguida apresentou reclamação do despacho que não admitiu o seu recurso, interposto relativamente ao acórdão proferido neste Tribunal da Relação e para o S.T.J..
Fê-lo, como decorre do requerimento, no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo para o efeito, o que motivou a emissão de guia para pagamento da multa devida, nos termos dos arts. 107.ª-A do Cod. Proa Penal (CPP) e 139.°, n.° 6, do Cod. Proc. Civil.
Na sequência, foi notificada para proceder ao pagamento.
Decorrido o prazo para tanto, constata-se que não pagou o valor em causa.
Outra solução não resta senão não admitir a reclamação, por intempestiva (art. 405.°, n.° 2, do CPP), o que se decide.”
Prescindido de vistos dada a situação de vigência de “estado de emergência”, e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
2. Das Conclusões apresentadas se conclui que o que está em causa é a admissibilidade de uma reclamação do despacho que não admitiu o recurso da arguida ora recorrente, estando em causa (mais remota e substancialmente) um problema de interpretação sobre pagamento de custas (implicando, no caso, a intempestividade da diligência). Porém, coloca-se uma questão prejudicial: será o presente recurso admissível?
3. Afigura-se, com efeito, que nem sequer se poderá entrar no conhecimento da questão colocada, porquanto se esbarra com a incompetência deste Supremo Tribunal de Justiça para julgar a questão agora suscitada.
4. O art. 400 n.º 1, al. c) do CPP é claríssimo: “Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso pelas relações, que não conheçam a final do objeto do processo”. E fala o referido normativo apenas de “acórdãos”. A fortiori, como é óbvio (e já expresso pelo Parecer do Ministério Público neste Tribunal), quando se tratar de um mero despacho.
5. Nem todas as decisões podem ser objeto de recurso, e em particular para o STJ. É o caso de decisões interlocutórias. Cf. v.g., o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça no Proc.º n.º 195/18.7GDMTJ.L1, de 30/09/2020, Sumário: “VII. As decisões interlocutórias caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP).”.
6. Releva ainda (obviamente, sempre mutatis mutandis), dentro do pano de fundo jurisprudencial, v.g. ainda esta douta ponderação, do Acórdão deste STJ de 14/10/2020, no Proc.º n.º 387/18.9GGSNT-D.L1.S1 (Relator: Conselheiro Gabriel Catarino):
“Podendo, como ficou demonstrado no apartado antecedente, as decisões judiciais ser objecto de impugnação, visando a sua alteração, modificação ou revogação, por parte de quem tendo intervindo numa lide judicial estime ter sido lesado a sua esfera de interesses pessoais, o facto é que a lei não expande esse direito de modo a conferir um ilimitado nível de graus de impugnação das diversas decisões que se tenham formado quanto caso que foi objecto de apreciação num determinado processo judicial.
No caso sob apreciação, a questão apreciada no recurso interposto do despacho judicial (...) deriva de um acto judicial que decidiu uma questão incidental, ou seja de uma questão que se pronuncia sobre incidências processuais ocorridas durante o processo, mas que cujo objecto não versa sobre o mérito da causa. Podem, é um facto, influir sobre o mérito da causa, porquanto versam sobre temas adjectivos ou de regulação sistémica do processo, com é o caso dos meios de obtenção de prova, mas que não se mostram e prefiguram decisivos para a apreciação de meritis que uma causa judicial comporta e impõe. Com a decisão de um incidente ocorrido na fase de regulação, ou preparação, do processo para que o tribunal, a final, possa ter à sua disposição todos os elementos para apreciar o caso que lhe vai submetido a julgamento, o tribunal limita-se a aceitar, ou refluir, conforme entenda ser a regra processual ajustada e adequada (legalmente), um acto que reputa, ou estima, ser, ou não, regular ou consonante com o cânone processual estabelecido para o acolhimento da prática (praxis) de determinado acto que deve (ou teve) que ser praticado para que a consolidação de elementos factuais, e/ou probatórios; se torne firme para o epítome final, ou seja o julgamento e sequente decisão do caso.
As decisões que recaiam sobre os incidentes processuais não adquirem o mesmo alçado (poder-se-á absoluto ou definitivo) jusprocessual, a mesma valia e decisividade, tanto endoprocessual como para os próprios destinatários e/ou sujeitos involucrados no processo, do que a decisão que, julgando, a final, a causa, se pronuncia sobre a questão essencial e axial de que depende a sorte do imputado, no caso de um procedimento judicial por responsabilidade criminal, ser o sujeito ser considerado responsável ou não pela prática dos factos (ilícitos) que lhe foram imputados na acusação. Poder-se-á repontar que, se um sujeito, por via de um procedimento processual (adjectivo) ínvio, pervertido ou desasado da regulação legalmente estabelecida, é acusado (por imputação de factos (decisivos ou não) que não cometeu, então o incidente adquire, ou toma, uma decisividade que reverte fundamental no juízo que deva ser formulado para a assumpção de uma determinada decisão (seja a dedução de uma acusação, de uma decisão instrutória ou, por ende, a decisão final).
Se a objecção não deixa de ser pertinente, o facto é que a legislação adjectiva não permite o conhecimento de recursos de despachos interlocutórios, num terceiro grau de recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, isto porque aos recursos é imposto, ou estipulado, um regime de subida. O recurso interposto, em nosso juízo, não deveria ter subido imediatamente – cfr. artigo 407º do Código de Processo Penal – pelo que ao ter subido e ter sido apreciado, em segundo grau de jurisdição, o que poderia não ter acontecido, se a condenação, a final, permitisse recurso para o Supremo, a decisão interlocutória obteria cognoscibilidade por este Supremo.
O recurso interposto do despacho interlocutório e decidido pelo tribunal de 2ª Instância não é passível de nova reapreciação, por obediência ao comando estabelecido na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal.” (itálicos nossos).
6. O despacho judicial recorrido, proferido por juiz singular, não conhece de forma final, conclusiva, do objeto do processo (cf. art. 400, n.º 1, al. c) ou, por outras palavras, não conhece da causa, mas refere-se a questões processuais que não são o quid essencial da lide. Portanto, não pode ser admitido (cf. ainda 432, n.º 1, al. b), que, no caso, reforça a solução).
Dispositivo
Custas pelo recorrente, fixando-se, de acordo com o preceituado no art. 420, n.º 3 do CPP, em 4 UCs a taxa de justiça.
Supremo Tribunal de Justiça, 13 de janeiro de 2021.
Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)
Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)
Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.