PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Sumário

Se a licença de condução não se encontra apreendida no processo na altura do trânsito em julgado da sentença que condenou na pena acessória de proibição de conduzir, o cumprimento desta só se inicia com a entrega daquele título de condução.

Texto Integral

Acórdão elaborado no processo n.º 3.630/05 (4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto)

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Relatório
Do despacho de 18 de Fevereiro de 2.005 consta o seguinte:
“O arguido (identificado nestes autos) foi condenado, por sentença proferida e depositada a 22 de Maio de 2004 ..., entretanto transitada em julgado, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 5, e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor durante três meses.
O condenado não entregou a licença de condução de que é titular, nem a mesma foi apreendida nestes autos, sendo que tal foi agora promovido.
Face à douta promoção que antecede, importa analisar se o facto de o condenado não ter entregue a licença de condução de que era titular ou a falta de apreensão desta à ordem destes autos obsta a que se declare extinta a dita pena acessória que lhe foi aplicada. Sobretudo se se considerar o lapso temporal entretanto decorrido desde a prolação da sentença até ao presente momento, em concatenação com o lapso temporal de inibição de conduzir em que foi condenado.
Na verdade, as penas acessórias, ou os efeitos automáticos das penas, distinguem-se dos chamados efeitos automáticos dos crimes, como, aliás, foi referido na 25ª sessão da Comissão Revisora da Parte Geral do Código Penal, referente ao Projecto de 1963 (in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal – Parte Geral, edição da A. A. F. D. L., vol. II, págs. 96 e segs.). O autor do referido projecto afirmou, então, que « ( ... ) certos crimes podem implicar, automaticamente, certos efeitos », acrescentando que « isso ( ... ) nada tem que ver com o problema ( ... ) em ligar ou não de forma automática ( ... ) certos efeitos a determinadas penas », não hesitando em concluir que « pode-se ligar certos efeitos a certos crimes ( ... ) mas o que não se deve é ligar certos efeitos a certas penas » ( in obra citada, págs. 99/100 ), sendo o actual art. 65º, n.º 2, do C. Penal, a consagração desse pensamento.
Deste modo, toda a pena acessória tem como condição necessária, mas não suficiente, a condenação numa pena principal por força da prática de um crime, sendo sempre necessário que seja comprovado, no facto, um particular conteúdo de ilícito que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória.
Foi o Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que, no âmbito da ampla reforma operada no Código Penal, introduziu neste diploma legal a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Nos termos do art. 69º, n.º 1, do C. Penal, atenta a redacção introduzida por aquele Decreto-Lei, seria condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre um mês e um ano quem fosse punido por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras de trânsito rodoviário ou por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante.
No entanto, a Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, alterou a redacção ao referido preceito legal, passando o mesmo a estabelecer que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor, por um período a fixar entre três meses e três anos, quem for punido por crime previsto no art. 291º ou 292º do C. Penal ( cfr. art. 69º, n.º 1, al. a), do C. Penal ) ou por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante ( cfr. art. 69º, n.º 1, al. b), do C. Penal ).
Esta pena acessória encontra o seu fundamento na perigosidade do agente e destina-se a actuar psicologicamente sobre o imprudente condutor, visando, pela privação do uso do veículo ou da sua condução, influir, preventivamente, na conduta futura do infractor.
Na verdade, a proibição de conduzir veículos com motor constitui uma advertência, atendendo a razões de prevenção especial e geral, por um comportamento culposo e consideravelmente defeituoso no tráfico rodoviário, sem que, todavia, o arguido surja, no que se refere à sua personalidade, como inapto para conduzir veículos motorizados ( cfr. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal – Parte General, 4ª edición – Traducción de José Manzanares Samaniego, Editorial Comares – Granada, 1993, pág. 71 6 ).
Assim, à dita pena não deixa de estar ligado um efeito de prevenção geral de intimidação, que não será ilegítimo porque irá actuar dentro do limite da culpa, por forma a contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano ( Dias, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 165 ).
Suscita-se frequentemente nos tribunais a questão de saber se a execução da pena acessória em causa tem início logo com o trânsito em julgado da decisão ou, antes, com a efectiva entrega ou apreensão do título de condução.
A questão parece descabida, logo em confronto com a letra da lei, da qual resulta que os efeitos respectivos se produzem a partir do trânsito da decisão ( cfr. art. 69º, n.º 2, do C. Penal ) – cfr. acórdão da Relação de Porto, de 1 de Abril de 2002, in www.dgsi.pt.
Todavia, não falta quem sustente que a concatenação daquele preceito legal com o art. 500º, n.ºs 2 a 4, do C. de Processo Penal, impõe a conclusão oposta (cfr. ac. da Relação de Guimarães, de 8 de Julho de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVII, t. IV, pág. 282, ac. da Relação de Coimbra, de 26 de Março de 2003, in C. J., ano XXVIII, t. II, pág. 41). Essencialmente, tal posição funda-se em que este último preceito, na medida em que disciplina a execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, determinando a entrega desta, e, no limite, a sua apreensão coerciva com retenção dela pelo período da dita proibição, implica, necessariamente, a consideração de tal acto como termo inicial daquela reacção criminal.
Porém, um tal modo de perspectivar o problema eleva a entrega ou apreensão do título a uma qualidade que notoriamente não têm: a condição de execução da pena (cfr. Latas, António João Casebre, in A Pena Acessória de Proibição de Conduzir, Sub Judice, n.º 17, Janeiro/Março 2000, Maio de 2001, pág. 95 ).
Acresce que, embora constasse do anteprojecto de 1987 de revisão do Código Penal a regra do desconto no período de cumprimento da proibição do prazo ‘ ( ... ) decorrido entre a data do trânsito da condenação e a entrega da licença ( ... ), tal não passou para o texto final, tendo sido eliminada logo pela Comissão de Revisão, que introduziu aquela outra actualmente consagrada no art. 69º, n.º 2, do C. Penal, tudo isto após o Conselheiro Manso Preto ter proposto que ficasse claro que a medida se tornava eficaz com o trânsito em julgado da decisão ( cfr. in Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, pág. 75 ).
Ademais, aquele normativo, ao prescrever que a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão, quererá dizer, de forma inequívoca, que é a partir daquele momento que se inicia o lapso temporal da respectiva sanção acessória. Pois que, tais efeitos não são condicionados à entrega ou apreensão efectiva da carta de condução. Ou seja, a Lei desligou a produção do efeito da sanção acessória da efectiva entrega do título.
Nas palavras de Albergaria, Pedro Soares de, e Lima, Pedro Mendes, in Anotação ao Acórdão de 8 de Julho de 2002, da Relação de Guimarães, RPCC, ano 13, n.º 2, Abril – Junho de 2003, págs. 271 e segs., ‘em abono do que vimos dizendo não deixará de notar-se especialmente que o legislador, certamente sabendo exprimir-se, empregou expressamente o vocábulo proibição ( a própria pena ) e não decisão, do mesmo modo que utilizou a locução produz efeito e não é eficaz ( ou exequível )’.
O que vale por dizer que o actual regime legal consagrou que a execução da pena foi subtraída às contingências próprias do acto material de ser, ou não, entregue ou apreendido o título de condução. Aliás, se assim não fosse, qualquer agente dotado de maior perversidade e habilidade para a não entrega do respectivo título, furtando-se ao cumprimento da sanção acessória, sempre traduziria uma inexequibilidade insustentável daquela pena.
Nesta esteira, entendemos que o verdadeiro valor da entrega efectiva do título de condução se reconduz a uma mera natureza cautelar, cujo objectivo é o de permitir o melhor controlo da execução da pena acessória, não passando tal entrega por configurar o conteúdo material da própria natureza da mesma.
Já de outro prisma, não se evoque o art. 166º do C. da Estrada para sustentar a posição diversa da que estamos a tomar. Na verdade, este artigo traduz uma incongruência com o disposto no art. 5º do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, porquanto aqui se prescreve que « quando o tribunal condenar em proibição de conduzir veículo a motor ou em qualquer outra sanção por contra-ordenação grave ou muito grave, e determinar a cassação do título de condução ou a interdição de obtenção do referido título, comunica a decisão à Direcção-Geral de Viação, para efeitos de registo e controlo da execução da pena, medida de segurança ou sanção aplicada ».
Ou seja, o art. 166º do C. da Estrada não tem a virtualidade de se sobrepor ao art. 69º, n.º 2, do C. Penal. Tanto mais, que a própria legislação estradal configura a entrega da carta como controle de execução da pena acessória.
Ora, in casu, atendendo à data do trânsito em julgado da decisão condenatória, constata-se que já decorreu o período da proibição que aí foi aplicado ao condenado, pelo que nada obsta a que se declare extinta a dita pena acessória.
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art. 475º do C. de Processo Penal, declaro extinta a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor em que o arguido foi condenado nestes autos.
Notifique o condenado e informe a Direcção-Geral de Viação ( cfr. o art. 475º do C. de Processo Penal )”.
Ministério Público veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - Ao contrário do que se declara no douto despacho recorrido, é a interpretação coordenada dos arts. 69º do C. Penal e 500º do C. de Processo Penal que permite deduzir que o início da contagem do período de inibição de conduzir veículos a motor não depende, apenas, do trânsito em julgado da decisão, sendo igualmente necessário que o arguido entregue voluntariamente o seu título de condução ou o mesmo lhe seja apreendido.
2ª - Da conjugação dos dois artigos, resulta que:
- Se a licença de condução do condenado já se encontra apreendida no processo, o cumprimento da pena acessória inicia-se, por força do art. 69º, n.º 2, do C. Penal, e 500º, n.º 2 ( última parte ), e 467º, n.º 1, ambos do C. de Processo Penal, a partir do momento em que a sentença transita em julgado;
- Se, pelo contrário, a licença de condução não se encontrar apreendida nos autos, o cumprimento da pena acessória inicia-se a partir do momento em que aquele documento deixa de estar na posse do condenado e passa a ficar à ordem do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição, após o que será devolvida àquele. De referir que o documento deixa de estar na posse do condenado quando ele o entrega voluntariamente, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, ou quando a mesma lhe é apreendida por ordem do tribunal, face à não entrega voluntária.
3ª - Por conseguinte, não tendo a arguida procedido à entrega da carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, é manifesto não se poder considerar que a pena acessória aplicada se tenha extinto pelo cumprimento, quando tal cumprimento ainda nem teve início.
4ª - Não se pode confundir entre eficácia das penas e a sua execução. Com o trânsito em julgado, todas as penas produzem efeitos, sendo o mais evidente a possibilidade de a pena poder ser executada. Contudo, tal não significa que a execução se inicie sempre no dia seguinte ao trânsito em julgado.
5ª - Ao contrário do que se defende na decisão recorrida, o regime legal consagrado não subtraiu à execução efectiva da pena acessória as contingências próprias do acto material da apropriação, tanto mais que, ao fazê-lo, o legislador estaria a permitir que o agente infractor pudesse, sem grande esforço, furtar-se à entrega da carta de condução e, desta forma, quase que legitimamente, continuar a conduzir veículos a motor, por se encontrar na posse de documento que legalmente o habilitaria para tal.
6ª - O entendimento do M.mo Juiz a quo permitiria a execução simultânea de penas acessórias, mesmo que o arguido tivesse procedido à entrega da sua carta de condução num dos processos em que tivesse sido condenado, o que, para além de contrariar os fins das penas, porquanto o arguido sairia incólume do cumprimento de uma das sanções acessórias, resultaria numa desresponsabilização do agente e alheamento perante as regras estradais.
7ª - A aceitar-se a posição assumida pelo M.mo Juiz a quo, seria então de esperar que a lei previsse expressamente a necessidade de efectuar a dedução ao período de apreensão de carta do tempo decorrido entre o trânsito em julgado e a recepção da carta pelo tribunal, ou que explicitasse os pressupostos da sua não realização, mas não o fez, restringindo-se a afirmar, no n.º 4 do art. 500º do C. de Processo Penal, que a licença de condução ficava retida na secretaria do tribunal « pelo período de tempo que durar a proibição », sem mais explicitar quanto à duração efectiva.
8ª - A visão preconizada na sentença recorrida que reconduz o acto de entrega da carta ‘a uma mera natureza cautelar, cujo objectivo é o de permitir o melhor controlo da execução da pena acessória, não passando tal entrega por figurar o conteúdo material da própria natureza da mesma’, leva-nos a questionar a legitimidade da aplicação ao arguido de uma sanção penal pela falta de entrega da carta de condução, quando o arguido é notificado para tal, pois conforme vem sendo entendido, comete o crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º, n.º 1, al. b), do C. Penal, o arguido que, notificado, não entrega o seu título de condução.
9ª - Ao contrário do defendido na aludida sentença, parece-nos que presumir em cumprimento de pena sem que o mesmo seja sujeito a uma verificação mínima, consubstanciada numa efectiva apreensão da carta de condução, não se mostra a forma mais adequada de responder às necessidades de prevenção geral e especial invocadas na decisão do Tribunal a quo, quer na perspectiva do arguido, que não garante ter sentido um efeito de inibição, quer na perspectiva comunitária, que seguramente questionará a real eficácia de um sistema montado em bases tão frágeis, especialmente numa área tão sensível para a consciência social.
10ª - Inexiste qualquer incongruência entre o disposto no art. 167º do C. da Estrada e o art. 5º do Dec.-Lei n.º 2/98.
11ª - Não concordamos com a posição assumida pelo Juiz a quo, quando aceita que o legislador previu a apreensão da carta de condução para o cumprimento das sanções acessórias aplicadas pela Direcção-Geral de Viação e não o previu para o cumprimento das sanções acessórias aplicadas pelo Tribunal, as quais revestem uma qualidade superior, atendendo aos valores e interesses que tutelam penalmente. Tal incoerência levaria a que se considerasse a entrega da carta ou a sua apreensão um mero procedimento cautelar, adquirindo, contudo, no âmbito do Código da Estrada, um vaoor superior, determinante na contagem do prazo de inibição.
12ª - Foram violados os arts. 69º, n.º 2, do C. Penal, e 500º, n.º 2, do C. de Processo Penal”.
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Fundamentação
O objecto do recurso é parametrizado pelas conclusões ( resumo das razões do pedido ) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, de C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. de S. T. J., de 15 de Dezembro de 2.004, C. J., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, t. III/2.004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação e que é a seguinte: o termo inicial do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor ocorre com o trânsito em julgado da decisão que a aplicou ou com a entrega, pelo condenado, ou apreensão do título de condução?
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Eis os elementos ( de facto ) que, por relevantes, estão assentes:
“Por sentença de 22 de Maio de 2004, transitada em julgado, foi o arguido B…… condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez ( art. 292º, n.º 1, do C. Penal ), na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.
O arguido, apesar de notificado para o efeito, não procedeu à entrega do pertinente título de condução”.
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Apreciemos, então, agora, a questão que o recurso suscitou e que acima se definiu.
Há que, em primeiro lugar, convocar a norma que regula a proibição de conduzir veículos com motor, que é a do art. 69º do C. Penal e que, no seu n.º 2, diz: « a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão ... ».
Nesta norma prevê-se, como nos parece claro, o efeito do trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória ( por outras palavras, o efeito do caso julgado ).
E um desses efeitos ( para o que, aqui, releva ) é o que se prende com a força executiva dessa mesma decisão, como com palmar evidência se colhe do art. 467º, n.º 1, do C. de Processo Penal: « as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva ... ».
Ora, como nos parece, igualmente, indiscutível, a força executiva de uma decisão não impõe, qual consequência necessária, que o seu cumprimento, tratando-se, designadamente, da pena que na mesma se fixou, se inicie com aquele ( trânsito em julgado ), o que está limpidamente previsto, por exemplo, no art. 489º, n.ºs 1 e 2, do C. de Processo Penal.
Daí que, assim sendo, e para a pena ora em enquadramento, o termo inicial do respectivo cumprimento não tivesse, necessariamente, que ter lugar com o trânsito em julgado da decisão que a havia cominado.
Mas se assim é, como estabelecer o momento desse termo inicial?
Parece impressionar aquela norma ( a do art. 69º, n.º 2, do C. Penal ) se perspectivada num preciso sentido, qual seja o de que esse termo inicial coincide com o momento em que a pena passou a produzir efeito ( o do trânsito em julgado da atinente decisão ).
O certo, porém, é que esse mesmo art. 69º, mas agora no seu n.º 3 (em consonância substancial, plena, com o que dispõe o art. 500º, n.º 2, do C. de Processo Penal), vem estatuir que «no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo», o que pode trazer perturbação para o que aquela primeira norma demonstrava.
Ou seja, não podia, então, esse preciso termo inicial do cumprimento daquela pena acessória corresponder ao momento da entrega do referido título de condução?
Temos por mais fundada a resposta positiva.
Em primeiro lugar, não vemos que qualquer dos sentidos possíveis contidos naquelas normas faça, sem mais, prevalecer, em termos de exclusão, um deles sobre o outro, ainda que, convenhamos, o primeiro deles pudesse ter a vantagem de uma maior certeza e segurança, quando releva, para a produção do efeito da pena em causa, o trânsito em julgado da decisão, ainda que, pelo que acima dissemos, a produção de efeitos de uma decisão penal condenatória transitada em julgado não tenha de coincidir com a sua execução.
Em segundo lugar, não podemos deixar de perceber que aquela primeira norma traz, sim, uma certeza: essa pena jamais pode produzir efeitos como que, permita-se-nos assim dizer, antecipadamente (por via de um mecanismo similar ao do desconto, tal como se prevê no art. 80º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal; nos dizeres expressos do art. 69º, n.º 3, do C. de Processo Penal, o título de apreensão pode já se encontrar apreendido no processo ).
Em terceiro lugar, também não podemos deixar de perceber que a referida segunda norma estipula uma ordem, um inciso impositivo, quando determina que o condenado entrega o título de condução, afastando uma letra similar à que se acolheu no art. 499º, n.ºs 2 e 3, do C. de Processo Penal, em que essa imposição se transmuda em possibilidade (« a decisão que decretar a proibição ou a suspensão de exercício de profissão ou actividade que dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública é comunicada, conforme os casos, ao organismo profissional em que o condenado esteja inscrito ou à entidade competente para a autorização ou homologação»; «o tribunal pode decretar a apreensão, pelo tempo que durar a proibição, dos documentos que titulem a profissão ou actividade»), como que patenteando uma diversidade de fundamentos que levam a que se tenha de ver que, contrariamente àquela, corresponde esta a uma espécie de intervenção cautelar ou de um mais apertado acompanhamento da execução.
Em quarto lugar, há que ter presente a natureza específica dessa pena acessória, e isto porque a detenção, pelo habilitado legalmente para conduzir, do respectivo título equivale, em termos de certeza quase absoluta, à legitimidade formal para exercer a condução (v. o que de útil nos dá a conhecer os arts. 121º, n.º 1, e 122º, n.º 2, al. b), do C. da Estrada), designadamente perante quem tem a obrigação de levar a cabo a sua fiscalização, para mais quando não está sistematizado um esquema de natureza, na essência, não pessoal; neste conspecto, então, o cumprimento da mesma pena acessória como que se postava na disponibilidade do condenado, o que, parece-nos razoável, não estaria na mente do legislador.
Em quinto lugar, e porque critério ponderoso se tem de haver, sempre, aquele que apela à unidade da ordem jurídica, à intervenção da lei noutros domínios, maxime, quando eles com o exercício da condução de veículos com motor têm relação, com maior significado, ainda, quando é historicamente posterior.
É aqui que intercede o que, no atinente, consta do Código da Estrada.
Assim, destacam-se, deste mesmo Código, os arts. 160º, n.º 1 ( anterior art. 166º, n.º 1; à redacção dada pelo art. 1º do Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro ) - « os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da ... proibição ... de conduzir » -, e 182º, n.ºs 1 e 2, al. a) ( aditado pelo art. 3º do Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro; de todo o modo, na versão anterior, o art. 167º, n.º 1, não divergia na previsão ) - « a coima e as custas são pagas no prazo de 15 dias úteis a contar da data em que a decisão se torna definitiva ... »; «sendo aplicada sanção acessória, o seu cumprimento deve ser iniciado no prazo previsto no número anterior, do seguinte modo: tratando-se de inibição de conduzir efectiva, pela entrega do título de condução à entidade competente».
Ora, e se é indiscutível que estas normas estão sistematicamente inseridas em diploma que, em termos de ilícitos, se estrutura na contra-ordenação, temos por certo que se não compreenderia (o que é bastante para se aquilatar da razoabilidade das coisas, neste domínio) que essa sanção acessória, naturalisticamente equivalente à daquela pena acessória, tivesse execução diversa, substancialmente e, mesmo, paradoxal, já que teria maior rigor quando na sua base estava infracção de menor gravidade.
Nestes termos, não é o art. 5º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro (entretanto revogado pelo art. 22º, al. b), do Dec.-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro), que alguma vez pôde oferecer dificuldades interpretativas inultrapassáveis (para o entendimento que vimos procurando demonstrar), nomeadamente quando o n.ºs 1 e 2 estatuem no sentido de que a entrega do título de condução era efectuada para efeitos de registo e controlo da execução da pena.
É que estes efeitos não se confundem com a execução da pena ( nem podia, dizemos nós, pois somente um tribunal – quando a decisão por ela for proferida, naturalmente – tem competência para a execução das penas, e, daí, para a declaração da sua extinção, como o impõem os arts. 470º, n.º 1, e 475º do C. de Processo Penal ), configurando-se, em relação a ela, numa perspectiva de registo e controlo, e, portanto, possibilitando, em coerência, conjugá-los com aquela, de forma a que ambos se efectivem com esta e quando esta se iniciar ( se assim não fosse, ou não pudesse ser, qual a razão para o dever de informação imposto nesse n.º 3?; e qual o sentido do tempo de apreensão, reportado ao da proibição, plasmado no n.º 5? ).
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Eis, por tudo o que se entendeu dizer, a conclusão: o recurso merece provimento.
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3. Dispositivo
Concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o despacho sob recurso, determina-se que se elabore despacho que aprecie e decida (com diversos fundamentos dos apreciados neste recurso) a promoção sobre que aquele recaiu.

Porto, 14 de Junho de 2006
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Arlindo Martins Oliveira
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob