MAIOR ACOMPANHADO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
TESTAMENTO
ADMISSIBILIDADE
Sumário

I. Reconhecida judicialmente a incapacidade da Requerida, com a prolação de sentença de interdição (agora, acompanhamento de maior), em que lhe foi aplicada uma medida de substituição da sua vontade, nomeadamente, para o exercício dos seus direitos pessoais, e fixada a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, ali se declarando também a proibição de a mesma testar a partir daquela data, apenas se têm como válidos os actos por aquela praticados anteriormente à  fixação de tal medida.
II. Tendo a Requerida anteriormente à data da fixação desta incapacidade, ou seja, quando se encontrava no pleno exercício dos seus direitos, outorgado testamento e disposição de última vontade, em que declarou o destino que pretendia dar aos seus bens, nada nos pode fazer supor que a vontade da Requerida, se pudesse ser hoje expressa e validamente manifestada, fosse distinta daquela que validamente manifestou e que perdurou durante mais de quarenta anos.
III. Por se tratar de acto pessoalíssimo e “insuscetível de ser exercido por terceiros, mesmo que pelo representante do titular dos bens e direitos a testar”, não é legalmente admissível o deferimento de autorização judicial, apresentada pelo acompanhante de um maior acompanhado, para testar em nome daquele - artigos 2179.º, n.º 1, 2181.º e 2182.º, n.º 1, do Código Civil.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
A intentou, na qualidade de acompanhante, a presente ação de autorização judicial com vista à obtenção de autorização para, em nome da beneficiária B , fazer testamento dos bens, direitos e ações de que esta seja titular à data do seu óbito.
Alegou para o efeito que foi nomeado nos autos principais como acompanhante da beneficiária com quem é casado no regime de comunhão de adquiridos, que lhe foram atribuídos poderes de representação geral, que se determinou que a beneficiária está impedida, para além do mais, de testar e que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes desde o início do segundo trimestre de 2014.
Disse ainda que a beneficiária outorgou em 26 de fevereiro de 1969 testamento e disposição de última vontade no 5° Cartório Notarial de Lisboa onde declarou que deixava todos os bens, direitos e ações de que tivesse livre disposição à data da sua morte, ao seu marido e ora requerente, A, que por sua vez o requerente também outorgou testamento nessa mesma data, deixando todos os seus bens, à data da sua morte, à sua esposa, testamento este que veio a revogar e a substituir por outro que outorgou no dia 21 de março de 2019, o qual juntou aos autos.
Mais alegou que estando a beneficiária impedida de testar e entendendo que tal direito pessoal está englobado nos atos ou categorias de atos para cuja prática pelo acompanhante é necessário, previamente, autorização judicial para a sua realização, que reúne os pressupostos para, em seu nome e representação, outorgar testamento dos seus bens à data da sua morte, acrescentando ainda que quer ele, quer a beneficiária não têm descendentes, nem ascendentes vivos, nem outros herdeiros que possam concorrer à sucessão de cada um deles, pelo que pretende que os bens do casal seja deixados a pessoas singulares e/ou instituições religiosas ou de solidariedade social e não ao Estado, como último sucessível.
Submetida a apreciação, o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância proferiu despacho em que indeferiu liminarmente o peticionado, por manifesta improcedência do pedido.
Inconformado com o assim decidido, o Requerente interpôs recurso de Apelação no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:
1. O M.e Juiz a quo, na douta sentença sob recurso, indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada nestes autos de autorização judicia! (art.º 1017.º do CPC) com os fundamentos seguintes:
a) Que o testamento é um ato pessoalíssimo e insuscetível de ser feito por meio de representante ou de ficar ao arbítrio de outem; e
b) Que não está previsto na lei que o Tribunal possa autorizar terceira pessoa a fazer testamento, em nome e representação do titular de direito de testar.
- O apelante não se conforma com essa decisão, adiantando que, excecionalmente e em certos casos de incapacidade do titular do direito de testar, poderá este direito ser exercido por terceira pessoa desde que o Tribunal o autorize previamente.
2. Na petição inicial, o requerente invocou os factos seguintes:
1. Por douta sentença proferida nos autos principais, já transitada em julgado (processo de interdição/acompanhamento de maior) que correram termos por este Tribunal, o requerente foi nomeado acompanhante da requerida (art.º 1 da p.i.)
2. Nessa douta sentença foi ainda consignado o seguinte:
- Atribui-se ao acompanhante poderes de representação geral, que segue o regime de tutela;
- Determina-se que a beneficiária está impedida de contrair novo matrimónio, constituir união de facto, perfilhar ou adotar, exercer as responsabilidades parentais, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência e de testar;
- Declara-se que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes desde o início do segundo semestre de 2014;
- Designam-se como vogais do Conselho de Família, José ……. que exercerá as funções de protutor e Manuel ……….;
-  Fixa-se o prazo de revisão das medidas em 5 anos;
- Declara-se que a beneficiária não outorgou testamento vital ou procuração para os cuidados de saúde (art.º 2.º da p.i.).
3. Na parte final dessa douta sentença ficou ainda consignado que em 26/02/1969, a beneficiária outorgou testamento e disposição de última vontade no 5.º Cartório Notarial de Lisboa que se encontra junto aos autos (principais) a fls. 40-42 Verso (art2. 3e da p.i.).
4. Nesse testamento feito pela requerida, esta declara que faz o seu testamento e disposição de última vontade pela maneira seguinte:
"Deixa todos os bens, direitos e ações de que ela testadora tenha livre disposição, à data da sua morte, a seu marido A.
Assim o disse e outorgou"(art.º 4.º da p.i.)
5. O ora requerente e marido da requerida, nessa mesma data (26/02/1969), fez testamento e disposição de última vontade a favor da requerida, nos mesmos termos, deixando todos os bens, direitos e ações de que ele testador tenha livre disposição, à data da sua morte, a sua esposa, B ….(art.º 5.º da p.i.)
6. Na douta sentença proferida nos autos principais ficou determinado que a beneficiária, ora requerida, está impedida de contrair novo matrimónio, constituir união de facto, perfilhar ou adotar, exercer as responsabilidades parentais, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência e de testar (art.º 6.º da p.i.).
7. Tal determinação significa que à requerida foi aplicada uma medida de integral substituição da sua vontade, na qual não lhe é reconhecida qualquer autonomia ou direito de participação nas situações que lhe digam diretamente respeito, designadamente, no exercício dos seus direitos pessoais (art.º 7.º da p.i.)
8. De entre os direitos pessoais da requerida de que esta ficou inibida de exercer, encontra-se o direito de testar (art.º 8.º da p.i.).
9. O requerente e a requerida nasceram, respetivamente, no dia 12/06/1929 e no dia 12/07/1933, como consta dos assentos de nascimento constantes dos autos principais (art.º 17.º da p.i.).
10. O requerente e a requerida não têm descendentes, nem ascendentes vivos (art.º 18.º da p.i.).
11. O requerente e a requerida são filhos únicos, não tendo, por esse motivo, irmãos ou descendentes destes que possam concorrer á sucessão de cada um deles ou herdeiros colaterais até ao 4.º grau (art.º 19.º da p.í.).
12. O requerente não conhece que a requerida tenha qualquer herdeiro sucessível que, salvo ele próprio, se possa habilitar à sucessão como herdeiro da requerida (art.º 20.º da p.i.).
13. O requerente recorda-se que há cerca de 40 a 45 anos, a requerida lhe apresentou dois familiares desta, muito afastados, dos quais o requerente desconhece os nomes, moradas ou mesmo se são vivos (art.º 21.º da p.i.).
14. O requerente e a requerida nunca mais, até á presente data, tiveram com esses parentes afastados qualquer contacto, nem relação de convivência, de amizade ou de afeto (art.º 22.º da p.i.).
15. O património do requerente e da requerida é constituído por uma fração autónoma para habitação, correspondente ao 2.º andar direito do prédio urbano sito na Rua Dr. Miguel Bombarda, n.º …., em Queluz e por algum dinheiro depositado, na sua quase totalidade, em nome do requerente e da requerida, na Caixa Geral de Depósitos (art.º 23.º da p.i.).
16. O requerente, já no decurso dos autos principais, alterou o testamento que havia realizado a favor da requerida, no dia 26/02/1969, substituindo-o pelo testamento feito no dia 21/03/2019 no Cartório Notarial sito na Avenida Fontes Pereira de Melo, n.º 21, 3.º andar, em Lisboa, do Notário Frederico Soares Franco, testamento esse que já foi junto a estes autos.
17. Na sentença proferida nos autos principais (de interdição/acompanhamento de maior) ficou determinado que, entre outros direitos pessoais da requerida, esta ficou impedida de testar, sendo que essa determinação significa que à requerida foi aplicada uma medida de integral substituição da sua vontade, na qual não lhe é reconhecida qualquer autonomia ou direito de participação nas situações que lhe digam diretamente respeito, designadamente, no exercício dos seus direitos pessoais, sendo que, com essa determinação, a requerida ficou inibida de exercer, entre outros e direito de testar, ou seja, de acordo com a sentença proferida nos autos principais a requerida perdeu, em toda a sua amplitude, o exercício dos seus direitos pessoais.
18. Dispõe o n.º 1 do art.º 2182.º do Código Civil que o testamento é ato pessoal, insuscetível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem...
Esta disposição, porém, aplica-se apenas às pessoas que estejam em condições de exercer o direito pessoal de testar, ou seja, às pessoas que não estejam por lei ou por decisão judicial impedidas de exercer esse direito.
19. O art.º 2189.º al. b) do Código Civil dispõe que são incapazes de testar os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine, o que acontece, no presente caso concreto, onde se determina que a beneficiária está impedida de testar.
20. No art.º 1472 n.º 2 do Código Civil são enumerados alguns dos direitos pessoais do acompanhado, entre os quais figura o direito de testar, direito este que a requerida está impedida de exercer pessoalmente, por decisão judicial, o que significa que o direito de testar da requerida poderá ser exercida por terceira pessoa, no caso concreto pelo requerente, o qual foi nomeado, nessa sentença, seu acompanhante, desde que para isso tenha a competente autorização judicial.
21. No n.º 1 do art.º 1452 do Código Civil determina-se que o acompanhamento limita- se ao necessário.
E no n.2 2 desse mesmo preceito estabelece-se que em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o Tribunal pode conceder ao acompanhante algum ou alguns dos regimes aí enumerados nas alíneas a) a e).
22. O apelante entende que nessa enumeração, atento o teor da alínea d) (autorização prévia para a pratica de determinados atos ou categoria de atos) está incluído o direito de testar. Aliás, dispondo o n.º 3 desse preceito que os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia específica, o mesmo regime se deve aplicar, por analogia, ao direito de testar, razão pela qual,
23. O apelante, na qualidade de acompanhante e marido da requerida, tendo presente que a autorização judicial pedida na parte final da p.i. sob recurso é apenas para o caso de a requerida lhe sobreviver, entende que reúne os pressupostos previstos na lei para pedir ao Tribunal autorização especifica, dada a incapacidade da requerida, constante da sentença proferida nos autos principais, de exercer pessoalmente o direito de testar, para requerer tal autorização, tendo ainda em conta que o requerente e a requerida são casados no regime de comunhão de adquiridos e não têm sucessíveis até ao 4.º grau da linha colateral.
24. O despacho do M. Juiz a quo, sob recurso que indeferiu liminarmente a petição inicial, violou diversas normas do Código Civil entre as quais, os art.ºs. 145.º, 147.º, 2182.º, 2188.º n.º 1 e 2189.º n.º 2, por errónea interpretação dessas normas, o que constitui um erro de julgamento, que se invoca
Conclui, assim, pelo provimento do recurso e, em consequência, pela revogação do despacho sob recurso, substituindo-o por outro que receba a petição inicial e ordene o prosseguimento dos demais termos processuais.
Também o Ministério Público contra-alegou sustentando a manutenção da decisão proferida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. FACTOS PROVADOS
1. AB são casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos.
2. Por sentença já transitada em julgado (processo de interdição/acompanhamento de maior), a que este processo se encontra apenso, o aqui Requerente foi nomeado acompanhante da Requerida, tendo sido fixado o início do segundo trimestre de 2014 como data das medidas de acompanhamento que se lhe tornaram convenientes.
3. Ali forma designados como vogais do Conselho de Família, José ……, para exercer as funções de protutor e Manuel ……..;
4. A beneficiária outorgou em 26 de fevereiro de 1969 testamento e disposição de última vontade no 5° Cartório Notarial de Lisboa onde declarou que deixava todos os bens, direitos e ações de que tivesse livre disposição à data da sua morte, ao seu marido e ora requerente, A, tendo também o requerente outorgado testamento nessa mesma data, deixando todos os seus bens, à data da sua morte, à sua esposa (aqui Requerida), testamento que o Requerente veio a revogar e a substituir por outro que outorgou no dia 01 de Março de 2019.
5. Neste testamento de 01 de Março de 2019, o Requerente legou todos os seus bens a instituições de caridade e/ou a entidades de ajuda social e religiosa, assim como, na eventualidade da Requerida lhe sobreviver, bens ali indicados por conta da sua quota disponível.
6. Requerente e Requerida nasceram, respetivamente, no dia 12/06/1929 e no dia 12/07/1933.
7. O Requerente e a Requerida não têm descendentes, nem ascendentes vivos.
8. São filhos únicos, não tendo irmãos ou descendentes destes que psosam concorrer à sucessão deles ou herdeiros colaterais até ao 4.º grau.
9. Por decisão de 12 de Julho de 2020, o senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância indeferiu liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, a petição inicial, com os seguintes fundamentos:
 “(…) Ora, analisando e interpretando a causa de pedir em que o requerente fundamenta a sua pretensão, importa desde já apreciar da respetiva viabilidade.
A noção de testamento é-nos dada pelo artigo 2179°, n°. 1, do Código Civil, ao estipular que “diz-se testamento o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles”.
É entendimento pacífico na nossa doutrina que o mesmo constitui um negócio jurídico unilateral e pessoal (por excelência porque é nele que a vontade do seu autor, o testador, atinge o máximo possível de relevância), o qual se rege e está subordinado a regras próprias e específicas, designadamente do direito sucessório. O testamento é, assim, um ato pessoal ou pessoalíssimo quer quanto à vontade, quer quanto à declaração.
Dispõe por sua vez o artigo 2182.°, n° 1, do Código Civil, sob a epígrafe “Carácter pessoal do testamento” que “O testamento é um ato pessoal, insuscetível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, quer pelo que toca à instituição de herdeiros ou nomeação de legatários, quer pelo que respeita ao objeto da herança ou do legado, quer pelo que pertence ao cumprimento ou não cumprimento das suas disposições”.
Acresce ainda que o artigo 2188.° do Código Civil estatui que podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer, sendo que, de acordo com o artigo 2189.° do mesmo código, são incapazes de testar os menores não emancipados (incapacidade esta que apenas é ultrapassada através da figura da substituição pupilar e quase pupilar, em que é conferido aos progenitores tal faculdade mas que fica sem efeito assim que o menor perfaça os dezoito anos, ou se falecer deixando descendentes, ascendentes ou cônjuge) e os maiores acompanhados apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.
Pretende o requerente na qualidade de acompanhante, como vimos, autorização para, em nome e em representação da beneficiária, outorgar testamento de todos os bens, direitos e ações de que esta seja titular à data do seu óbito.
Acontece, porém, que não só foi decretado por sentença transitada em julgado o acompanhamento da beneficiária e ali determinado que as respetivas medidas se tornaram convenientes desde o início do segundo semestre de 2014, ficando a mesma, para além do mais, impedida de testar, como a beneficiária já em momento anterior (ou seja, antes de se verificar tal impossibilidade absoluta do exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos) outorgou um testamento.
Ora, tratando-se o testamento de um ato pessoalíssimo e insuscetível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, não estando igualmente previsto como ato que possa ser autorizado pelo tribunal (crf. artigos 145.°, 1938.°, n° 1 e 1889.°, n° 1, todos do Código Civil, “a contrario”), temos por certo que independentemente dos motivos que determinaram o requerente a solicitar tal autorização, a mesma não poderá ser concedida, por não ser legalmente admissível, até porque determinaria a revogação do ato de disposição livre e válido dos bens que foi efetuado pela própria beneficiária quando não estava impossibilitada de o fazer.
Pelo exposto, mais não resta do que indeferir liminarmente a petição inicial, nos termos do artigo 590.°, n° 1, do Código de Processo Civil, em virtude do pedido ser manifestamente improcedente”.
III. FUNDAMENTAÇÃO
O conhecimento das questões por parte deste Tribunal de recurso encontra-se delimitado pelo teor das conclusões ali apresentadas salvo quanto às questões que são de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto.
O conteúdo de tais conclusões deve obedecer à observância dos princípios da racionalidade e da centralização das questões jurídicas objeto de tratamento, para que não sejam analisados todos os argumentos e/ou fundamentos apresentados pelas partes, sem qualquer juízo crítico, mas apenas aqueles que fazem parte do respetivo enquadramento legal, nos termos do disposto nos artigos 5.º e 608.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil Revisto.
Excluídas do conhecimento deste Tribunal de recurso encontram-se também as questões novas, assim se considerando todas aquelas que não foram objeto de anterior apreciação pelo Tribunal recorrido.
A única questão de Direito colocada pelo Requerente/Apelante à consideração deste Tribunal de recurso é a de saber se este pode, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos no processo de interdição (acompanhamento de maior), enquanto acompanhante nomeado, e em que é Requerida a sua esposa, outorgar testamento e disposição de última vontade dos bens, direitos e ações de que esta beneficiária (maior acompanhada) seja titular à data do seu óbito.
Atendendo à sensibilidade do Tema, desde já se deixa expresso que a análise jurídica da causa não pretende pôr em crise os nobres intentos do aqui Requerente no que se reporta ao destino a dar aos bens da Requerida, na sequência do destino que o mesmo deu já aos seus.
Compreende-se também que a pretendida atuação do Requerente não busca qualquer benefício para si próprio, mas sim, para outras entidades que ali indica e que, incontornavelmente, gozam de prestígio social e religioso. Diga-se ainda que, no caso de o aqui Requerente sobreviver à Requerida, e tendo em conta o teor do último Testamento já feito pelo primeiro (a 01 de Março de 2019), a pretensão aqui deduzida sempre será satisfeita sem qualquer intervenção por parte deste Tribunal.
A questão jurídica coloca-se apenas para a situação de a Requerida sobrevier ao Requerente, acompanhante nomeado daquela, na posição em que a Requerida se encontra atualmente, ou seja, de maior acompanhada e sem capacidade própria para testar.
Vejamos, antes de mais, o conteúdo do pedido formulado pelo Requerente/Apelante:
“Autorização para, em nome e representação pessoal da requerida, fazer testamento dos bens, direitos e ações de que esta seja titular à data do seu óbito, fixando-se nessa autorização judicial, as condições para a realização desse testamento que salvaguardem a estabilidade do património da requerida”.
Ora, e como acima já deixamos expresso, e salvo o devido respeito e compreendendo as razões humanitárias que lhe subjazem, a verdade é que não podemos deixar de concordar e subscrever a decisão proferida pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, com os fundamentos jurídicos que ali são aduzidos.
Com efeito, parece-nos ser pacífico que o testamento é um acto pessoalíssimo e “insuscetível de ser exercido por terceiros, mesmo que pelo representante do titular dos bens e direitos a testar”, conforme decorre do teor dos artigos 2179.º, n.º 1, 2181.º e 2182.º, n.º 1, do Código Civil.
Acresce que, estabelecendo a lei o conjunto de actos a serem praticados pelo acompanhante, limitando-os “ao necessário”, e referindo expressamente aqueles em relação aos quais o acompanhante deve solicitar a prévia autorização judicial para o efeito, certo é que neles não encontramos o pretendido direito a testar – artigos 145.º, 1938.º, n.º 1 e 1889.º, n.º 1, do Código Civil.
Para além destas razões jurídicas, certo é que há cerca de cinquenta anos atrás, e quando se encontrava no pleno exercício dos seus direitos, a Requerida outorgou testamento e disposição de última vontade, em que declarou o destino que pretendia dar aos seus bens. Apenas com a prolação de sentença de interdição (agora, acompanhamento de maior), é que foi reconhecida a incapacidade da Requerida e fixada a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, data que foi reportada ao segundo semestre de 2014. Nessa mesma decisão ficou expressamente declarado que a Requerida não podia, entre o mais, testar, ou seja, foi-lhe aplicada uma medida de substituição da sua vontade, nomeadamente, para o exercício dos seus direitos pessoais.
Como podemos verificar, durante mais de quarenta anos a Requerida manteve o Testamento, enquanto disposição da sua última vontade, tal como também o fez o aqui Requerente, que apenas alterou o seu Testamento (de conteúdo igual ao da sua esposa, aqui Requerida), há cerca de um ano. Ora, com todo o respeito, nada nos faz supor que a vontade da Requerida, se pudesse ser hoje expressa e validamente manifestada, fosse aquela que o aqui Requerente aqui propõe.
Concordando-se com as demais razões jurídicas expressas pelo senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância na decisão proferida e aqui em apreciação e que, por isso mesmo, aqui se reproduzem por correspondem à interpretação legal dos dispositivos ali convocados, certo é que no presente recurso não foi avançado qualquer outro fundamento legal que mereça nova reapreciação da questão.
Concluindo, entende-se que o direito a testar, enquanto acto pessoal e intransmissível, não pode ser exercido por terceiro, nomeadamente pelo acompanhante de um maior acompanhado, ainda que com prévio pedido de autorização judicial para o efeito, uma vez que tal autorização não é legalmente admissível.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, julga-se improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão do senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2020
Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
Isabel Salgado