REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
ACORDO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ACORDO DE PARTILHA DOS BENS
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Sumário

1 – No âmbito do procedimento de revisão e confirmação de sentença estrangeira, para efeitos do disposto no art. 980º, alínea a) do Código de Processo Civil, o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico vertido na decisão revidenda, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte aquela decisão.
2 – Constituindo o documento apresentado uma verdadeira sentença, correspondendo a uma cópia autêntica da sentença revidenda, devidamente apostilhada, esta é susceptível de ser submetida ao procedimento de confirmação e revisão em Portugal.
3 – O requisito de «inteligência da decisão» mencionado na segunda parte da alínea a) do Código de Processo Civil tem o significado de inteligibilidade. Uma decisão contida em sentença estrangeira deve, como condição para que possa ser confirmada, comportar um sentido de compreensibilidade, ou de conhecimento exacto, da vontade que nela se exprime.
4 - A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro
5 - À semelhança do que acontece no direito suíço, aplicado na sentença revidenda, por um tribunal suíço, também o nosso Código Civil prevê a possibilidade de os cônjuges sujeitarem a partilha dos bens decorrente da dissolução do casamento por divórcio a acordo que hajam alcançando nessa sede, limitando-se o tribunal a aferir se tal acordo acautela os interesses de ambas as partes.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
A, residente em Cité Vieusseux, …., Genève, Suíça intenta contra B, residente em Avenue Riant – parc 28, Genève, Suíça acção com processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira pedindo que seja revista e confirmada a sentença do Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção, da República e Cantão de Genebra, que decretou o divórcio entre o requerente e a requerida, com a consequente dissolução do casamento que celebraram em 7 de Fevereiro de 2003.
Alega que o requerente e a requerida contraíram casamento um com o outro a 7 de Fevereiro de 2003, no Registo Civil de Vernier, Suíça e que por sentença de 13 de Junho de 2019, proferida pelo aludido Tribunal foi decretado o divórcio entre ambos, decisão que transitou em julgado.
Regularmente citada, a requerida deduziu oposição com a seguinte ordem de fundamentos (requerimento de 31-08-2020 com a Ref. Elect. 493773):
Ø A certidão de divórcio é insuficiente para a sentença poder ser revista e confirmada em Portugal porque não consubstancia uma verdadeira sentença, não sendo inteligível, nem permite aferir se a motivação do divórcio é contrária ou não à lei portuguesa;
Ø O requerente pede apenas a revisão da sentença que decretou o divórcio, pelo que não pode ser proferida decisão que incida sobre o acordo quanto aos seus efeitos, sob pena de o tribunal condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido;
Ø Ainda que se entenda que a sentença abrange o acordo quanto aos efeitos do divórcio, então está-se perante uma situação de ininteligibilidade da sentença e do acordo, nomeadamente por não se compreender o sentido e alcance do artigo 6º deste último, que se refere à liquidação do regime matrimonial, pois o acordo respeita tão-só à posse dos imóveis, o que não consubstancia a sua partilha; e se se entender que o acordo ao referir-se a posse quer referir-se à propriedade, fica-se sem perceber qual o regime de propriedade a que os bens do casal ficam sujeitos após a partilha;
Ø De acordo com o Direito suíço, a divisão entre os cônjuges é feita pela metade, devendo os bens ser avaliados, o que não aconteceu;
Ø Aquando da subscrição do acordo a requerida não foi assistida por advogado;
Ø Existem outros bens e dívidas a terceiros que não foram referidos no acordo, pelo que não se percebe o ponto 8 da sentença onde se refere que as partes liquidaram o seu regime matrimonial e se o que sucedeu foi a constituição de compropriedade sobre todo o património comum do casal, pelo que a sentença é ininteligível;
Ø Mas se se entender que o ponto 6º do acordo estabelece a partilha dos imóveis sitos em Portugal, tal acordo e sentença são contrários aos princípios de ordem pública portuguesa e violam o privilégio da nacionalidade, pois do reconhecimento da sentença advirá um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;
Ø O art. 1714º, n.º 1 do Código Civil consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o que implica a proibição da modificação da situação dos bens dos cônjuges, para além do que a transferência da propriedade para o património exclusivo de um deles, sem verificar o seu valor, viola a ordem pública internacional do Estado Português, pois que ao atribuir um bem de valor superior, sem direito a tornas conduz a um enriquecimento injustificado de um dos cônjuges à custa do outro;
Ø A sentença revidenda violou o artigo 8º da Convenção de Haia sobre o reconhecimento dos divórcios e das separações de pessoas, porque a situação económica da requerida aquando do divórcio não lhe permitiu contratar um advogado, não tendo podido fazer valer os seus direitos.
Concluiu no sentido da improcedência da acção ou, assim se não entendendo, pela concessão da revisão e confirmação apenas na parte que decretou o divórcio, sendo excluído o acordo acerca dos respectivos efeitos ou, assim se não entendendo, excluída a parte do acordo que procede à liquidação do património.
Através de requerimento de 10 de Setembro de 2020, o requerente solicitou o desentranhamento da oposição, por extemporânea, considerando que tendo a requerida sido citada em 20-05-2020, o prazo de quinze dias para apresentar a oposição, acrescido de dilação, terminou a 6-07-2020; aproveitou ainda para asseverar que os documentos juntos são suficientes para sustentar o seu pedido e que os factos invocados pela requerida poderiam sustentar um recurso extraordinário da sentença, junto dos tribunais suíços, sendo que a constituição de mandatário é facultativa e não basta a mudança de opinião sobre o acordo para colocar em causa a sentença proferida por um tribunal competente e já transitada em julgado (cf. Ref. Elect. 494983)
Em 11 de Setembro de 2020, a requerida respondeu pugnando pela tempestividade da oposição face ao estatuído no art. 7º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e suspensão dos prazos dele decorrente, que apenas terminou em 3 de Junho de 2020 (cf. Ref. Elect. 495175).
Em 19 de Setembro de 2020 foi proferido despacho em que a relatora concedeu às partes a oportunidade de virem aos autos informar se a decisão de divórcio comporta qualquer outro texto ou fundamentação e, bem assim, convidou o requerente a esclarecer o âmbito e alcance do pedido formulado quanto à revisão e confirmação da sentença, face ao conteúdo da oposição deduzida (cf. Ref. Elect. 16028826).
Por requerimento de 28 de Setembro de 2020, o requerente veio dar conta que o documento que juntou constitui a sentença revidenda, na íntegra, tal como emitido pelo Tribunal do Cantão de Genebra e mais esclareceu que aquilo que pretende é a revisão e confirmação dessa sentença qua tale, ou seja, sem distinguir a decisão do divórcio da atinente aos seus efeitos (cf. Ref. Elect. 497420).
A requerida veio dizer que necessitava de contactar o Tribunal suíço para esclarecer a integralidade do documento e refere que do requerimento apresentado pelo requerente resulta que este aceita todos os efeitos da sentença, “excluindo os efeitos patrimoniais que ficam na dependência e na iniciativa das partes”, como referido no ponto 6., e que assim sendo nada tem a opor à revisão (cf. Ref. Elect. 497824).
Em 6 de Outubro de 2020 foi proferido despacho que concedeu à requerida prazo para aferir da integralidade da sentença revidenda (cf. Ref. Elect. 16094811).
Em 19 de Outubro de 2020 a requerida veio informar que não conseguira contactar aquele tribunal, pelo que pretendia que fosse esta Relação a diligenciar pela obtenção de informações quanto à regularidade/integralidade da sentença (cf. Ref. Elect. 500416).
Em 27 de Outubro de 2020 foi proferido despacho através do qual se entendeu que, competindo a este Tribunal verificar oficiosamente o pressuposto previsto na alínea a) do art. 980º do Código de Processo Civil[1], não se vislumbrava utilidade na realização das diligências propostas, assim como não tinha como indispensável a tomada de declarações e inquirição das testemunhas arroladas, ordenando a notificação das partes e Ministério Publico para apresentação de alegações (cf. Ref. Elect. 16190576).
O Ministério Público apresentou as suas alegações em 29 de Outubro de 2020 considerando reunidos os requisitos legais para ser concedida a revisão e confirmação da sentença em causa (cf. Ref. Elect. 501987).
Ambas as partes apresentaram as suas alegações reiterando o já previamente aduzido nos respectivos articulados (cf. Ref. Elect. 503756 e 503998).
                                                   *
Questão Prévia – Tempestividade da Oposição
Por requerimento de 10 de Setembro de 2020, o requerente solicitou o desentranhamento da oposição, por extemporânea, considerando que o prazo para a sua apresentação, tendo em conta que a requerida foi citada em 20-05-2020, terminou a 6-07-2020.
A requerida pugnou pela tempestividade do articulado de oposição face ao estatuído no art. 7º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e suspensão dos prazos dele decorrente.
A citação da requerida ocorreu, efectivamente, a 20 de Maio de 2020, conforme aviso de recepção junto aos autos assinado pela própria (cf. Ref. Elect. 485821).
Nos termos do art. 981º do CPC a requerida dispunha de quinze dias para deduzir oposição.
Além disso, porque foi citada no estrangeiro (na Suíça), a tal prazo acresce a dilação de trinta dias, nos termos do art. 245º, n.º 3 do CPC.
Sucede que, em 20 de Maio de 2020, tal como realça a requerida, estava em vigor o art. 7º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que aprovou medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, com produção de efeitos, para tal artigo, a 9 de Março de 2020, de acordo com o qual “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.”
Não estando os presentes autos abrangidos pelas situações descritas nos números seguintes de tal normativo legal, o prazo para a dedução da oposição, à data da citação da requerida, fico suspenso.
Tal suspensão veio a cessar apenas com a publicação da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, com entrada em vigor em 3 de Junho, que revogou aquele art. 7º.
Como tal, o início da contagem do prazo de oposição ocorreu no dia 3 de Junho de 2020, pelo que terminou no dia 17 de Junho de 2020. Contudo, a tal prazo acresce a dilação de trinta dias, pelo que apenas cessou em 2 de Setembro de 2020, face à interrupção decorrente das férias judiciais, entre 16 de Julho e 31 de Agosto (cf. art.ºs 138º, n.º 1 e 142º do CPC e art. 28º da Lei Orgânica do Sistema Judiciário).
A oposição é, assim, tempestiva.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
Não existem vícios que anulem todo o processo.
As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade.
Não se verificam outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer.
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QUESTÕES A DECIDIR
Face às questões suscitadas pela requerida na sua oposição, para efeitos de verificação da reunião dos requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada, importará apreciar as seguintes questões:
a) Existência de uma sentença passível de ser submetida ao procedimento de revisão e confirmação;
b) Da inteligência da decisão;
c) Observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes;
d) Violação dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português;
e) O privilégio da nacionalidade.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
                                                  *
II - FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se documentalmente provado nos autos o seguinte:
1. A e B casaram um com o outro no dia 7 de Fevereiro de 2003, no Registo Civil de Vernier, Suíça, conforme assento de casamento n.º ... do ano de 2015 da Conservatória do Registo Civil de Albufeira.
2. O Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção, da República e Cantão de Genebra, proferiu sentença, no âmbito do processo com o n.º C/27868/2018, no dia 13 de Junho de 2019, transitada em julgado em 2 de Julho de 2019, em que, tendo comparecido pessoalmente B, residente em avenue de Riant-Parc 28,1209 Genebra e A, residente em cité Vieusseux 11, 1203 Genebra, e deliberando mediante pedido comum, decidiu:
1. Dissolve por divórcio o matrimónio contraído em 7 de fevereiro de 2003 em Vemier (GE) pelas partes B, apelido de solteira …., nascida em 21 de janeiro de 1978 em Sé (Faro/Portugal), de nacionalidade portuguesa, e A, nascido em 10 de julho de 1977 em Albufeira (Portugal), de nacionalidade portuguesa.
2. Mantém o exercício conjunto do poder paternal sobre a criança Orianna, nascida em 15 de outubro de 2007. Declara que o domicílio legal de Orianna será na residência da mãe.
3. Atribui a guarda de Orianna a B.
4. Reserva um direito de visita a A em relação a Orianna de um a cada dois fins-de-semana e metade das férias escolares.
5. Fixa o valor razoável para os alimentos devidos a Orianna em CHF 1370 por mês, com base nas despesas efetivas e deduzidos os abonos de família, que revertem a favor de B.
6. Notifica A da sua obrigação de pagar a B, por mês e antecipadamente, excluindo os abonos de família, CHF 700, como contribuição para o sustento de Orianna.
7. Notifica as partes de que estas renunciam a toda e qualquer contribuição para o sustento da outra parte após o divórcio.
8. Notifica as partes de que estas liquidaram o seu regime matrimonial e que já não há lugar a qualquer reclamação de parte a parte, seja a que título for, em cumprimento, de boa-fé, do art.° 6.° do seu acordo de divórcio assinado pelas partes em 13 de outubro de 2018.
9. Declara que os ativos da pensão profissional acumulados durante o casamento pelas partes serão partilhados em partes iguais.
Consequentemente, ordena à AXA Vie SA, General-Guisan-Strasse 40, case postale 300, 8401 Winterthur, que transfira da conta de A (N.° de segurado 756.0069.8058.91/Apólice n.° 2/73714/AA) para a conta de B junto da Swiss Risk & Care, Passage St. Antonius 7, 1800 Vevey, (Fondation de prévoyance Prevemss) o valor de CHF 16658.
10. Atribui os direitos e obrigações relacionados com o contrato de arrendamento da residência da família, localizada em ... Genebra, a A.
11. Atribui a B a totalidade dos subsídios para tarefas educativas nos termos do artigo 52f-A do Regulamento do Seguro de Velhice e Sobrevivência (Règlement sur 1'assurance-vieillesse et survivants - RAVS).
12. Ratifica as restantes disposições do acordo de divórcio assinado pelas partes em 13 de Outubro de 2018, não alterado pela presente decisão, que fazem parte integrante da presente decisão, e encontrando-se o referido acordo também anexado à presente decisão.
13. Fixa as custas judiciais em CHF 600, valor ao qual deverá ser subtraído o pagamento antecipado dos custos já efetuado pelas partes.
O remanescente ficará a cargo das partes em partes iguais.
Declara que não são atribuídas compensações por despesas incorridas.
14. Condena as partes a executarem, na medida necessária, as disposições da presente sentença.
15. Rejeita qualquer outro pedido ou pretensão das partes.
3. O Acordo quanto aos efeitos do divórcio que faz parte integrante da sentença foi subscrito, com data de 13 de Outubro de 2018 e depositado na secretaria do Tribunal em 28 de Novembro de 2018, por B, não representada por advogado e por A, não representado por advogado, com o seguinte teor:
Art.º 1º - Poder paternal e cuidados parentais
O poder paternal sobre a filha menor Orianna ……., nascida em 15.10.2007, é atribuído conjuntamente a ambos os pais.
Os pais acordam quanto a uma guarda alternada, de acordo com o seguinte calendário: os pais ficam, alternadamente, com a guarda da criança de domingo à tarde até sexta-feira à noite.
A alternância da guarda da criança, de acordo com o horário acima, terá início quando a Senhora B encontrar alojamento. Os cônjuges concordam que a filha residirá, entretanto, com o pai, A em Cité Vieusseux 11,1203 Genebra.
Art.º 2º - Contribuição para os alimentos da filha
Cada um dos pais suportará as despesas diretas da criança durante cada semana em que a criança esteja à sua guarda.
Os pais comprometem-se a suportar conjuntamente (em partes iguais) as despesas extraordinárias, separadamente do acordo acima referido, a menos que essas despesas estejam cobertas por um seguro ou similar. Estas despesas incluem, nomeadamente, o prémio do seguro de saúde obrigatório e o prémio do seguro complementar dentário.
Art.º 3º - Atribuição da residência de família
Os direitos e obrigações decorrentes da última residência comum, situada em Cité Vieusseux 11, 1203 Genebra, devem ser atribuídos ao Senhor A, em conformidade com o artigo 121.º do CC.
Anexo: Contrato de arrendamento relativo à residência da família.
Art.º 4º - Alimentos após o divórcio
Os cônjuges renunciam mutuamente ao direito a pensão de alimentos após o divórcio, nos termos do artigo 125.º do CC, encontrando-se cada um deles em condições de garantir o seu próprio sustento.
B:
Rendimento: Fr. 4.580 mensal bruto Necessidades financeiras: Fr. 4.300 (sem impostos)
A:
Rendimento: Fr. 6.600 mensal bruto Necessidades financeiras: Fr. 6.300 (sem impostos)
Anexos (cônjuge mulher): recibo de vencimento com contribuições; certificado de prémios de seguro de saúde; fatura de prémio de seguro de pensão profissional facultativa (Generali).
Anexos (cônjuge marido): recibo de vencimento com contribuições; certificado de prémios de seguro de saúde; fatura de prémio de seguro de pensão profissional facultativa (Generali); contrato de crédito “cashgateCREDIT n.º 383992-9002”; contrato de crédito (Portugal) “Millennium BPC” (montante do crédito 145.000 EUR, mensalidade paga pelo marido). Cada cônjuge recebe metade das prestações de cessação do regime de pensões profissionais de ambos os cônjuges, calculadas para a duração do casamento, de acordo com o art.° 122.° do CC.
Anexo: declaração escrita do fundo de pensão referente aos ativos acumulados durante o casamento; declaração do fundo de pensão quanto à viabilidade da solução escolhida.
Art.º 5º - Partilha das prestações de pensão profissional
Cada cônjuge recebe metade das prestações de cessação do regime de pensões profissionais de ambos os cônjuges, calculadas para a duração do casamento, de acordo com o art.º 122.º do CC.
Anexo: declaração escrita do fundo de pensão referente aos ativos acumulados durante o casamento; declaração do fundo de pensão quanto à viabilidade da solução escolhida.
Art.° 6° - Regime matrimonial
Os cônjuges, casados em regime geral de comunhão de adquiridos, nos termos do artigo 181.° do CC, procedem à liquidação do regime matrimonial de acordo com as seguintes modalidades:
A posse do imóvel sito em Rua Ataíde …., 8000-218 Faro, Portugal, é transferida gratuitamente para a Senhora B.
A posse do imóvel sito em Rua Júdice Fialho …2, Montenegro 8005-146 Faro, Portugal, é entregue ao Senhor A. Este último é o único responsável pelos encargos relacionados com o imóvel (juros hipotecários, etc.).
Art.° 7o - Custas judiciais
As custas judiciais são suportadas em partes iguais pelos cônjuges.
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O facto descrito em 1. – casamento entre o requerente e a requerida – mostra-se comprovado, com a respectiva transcrição mediante o assento mencionado e que constitui o documento n.º 1 junto com a petição inicial (cf. Ref. Elect. 483692).
Os pontos 2. e 3. – sentença que dissolveu o casamento e ratificou as disposições do acordo de divórcio não alteradas pela decisão e acordo assinado pelas partes em 13 de Outubro de 2018 – basearam-se no conteúdo da sentença revidenda e acordo que o integra, com a respectiva tradução, que constituem o documento n.º 2 junto com a petição inicial (cf. Ref. Elect. 483692).*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras assenta no sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o Tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o Tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais – cf. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II – Reimpressão, 1982, pág. 141; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011, relator Paulo Sá, processo n.º 987/10.5YRLSB.S1 disponível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt[3].
Trata-se de um processo especial de simples apreciação.
Nos termos do art. 980º do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Dispõe o art. 983º, nº 1 do mesmo diploma legal que “O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.”
Por sua vez, o art.º 984º determina que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”
O requerente está dispensado de fazer prova directa e positiva dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do art. 980º do CPC.
Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a sua falta, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não.
A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, processo n.º 05B4168 e de 30-11-2010, relator Manuel Capelo, processo n.º 50/10.9YRCBR – “[…] como decorre da 2ª parte do art. 1101º, era sobre o requerido que recaía o ónus da prova da não verificação dos requisitos da confirmação estabelecidos nas alíneas b) a e) do art. 1096º, que a lei presume que existem, sendo ao requerido que incumbia provar a inexistência de trânsito em julgado segundo a lei do país em que a sentença revidenda foi proferida - al. b), a incompetência do tribunal sentenciador, nos termos indicados na al. c), a litispendência arguida - al. d), e a inobservância do princípio do contraditório e da igualdade das partes no processo que levou à decisão em causa - al. e), tendo-se esses requisitos por verificados em caso de dúvida a esse respeito.”
O requerente intentou a presente acção visando alcançar a revisão e confirmação da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, 11ª Secção, da República e Cantão de Genebra, que decretou o divórcio entre ele e a requerida, com a consequente dissolução do casamento celebrado em 7 de Fevereiro de 2003.
Juntou, para o efeito, a sentença proferida na sequência da apreciação do requerimento apresentado por ambos os cônjuges junto do tribunal suíço, onde são enunciadas as diversas determinações emitidas pela autoridade judiciária em referência, tal como se deixou transcrito no ponto 2. da matéria de facto provada, sendo que delas consta, entre o mais, que o acordo sobre os efeitos do divórcio celebrado entre os requerentes, que está anexado, faz parte integrante da decisão – cf. ponto 12. da sentença.
A requerida, na sua oposição, suscitou a insuficiência do documento junto aos autos, designando-o de “certidão de divórcio”, para constituir uma verdadeira sentença, sem, porém suscitar quaisquer dúvidas quanto à autenticidade do documento onde consta a decisão e que foi devidamente traduzido para língua portuguesa.
Foi concedida às partes a oportunidade para, querendo, juntarem aos autos quaisquer outros elementos que entendessem «completar» o documento e integrar a sentença revidenda.
O requerente sustentou que o documento apresentado contém a integralidade da sentença e a requerida declarou pretender obter informações junto do tribunal suíço, o que não logrou efectuar apesar do prazo concedido para tanto.
Independentemente disso, a mera análise do documento que incorpora a decisão revidenda permite constatar que nele se menciona a prolação de sentença (que não qualquer “certidão de divórcio”) no âmbito do processo identificado, pelo Tribunal de Primeira Instância em referência e sobre pedido formulado em conjunto pelos requerentes B e A.
Compulsado o documento junto aos autos, verifica-se que é composto pelo original e tradução da “Sentença do Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção de quinta-feira, 13 de Junho de 2019”, do Cantão de Genebra, que decretou o divórcio do requerente e da requerida, regulou o exercício das responsabilidades parentais da filha menor e liquidou o regime matrimonial.
A sentença consta de um documento assinado pela secretária e pela presidente junto daquele Tribunal (Nancy Bisin e Elena Sampedro) e tem aposto um carimbo onde constam os dizeres, em francês, «République et Canton de Genève» (República e Cantão de Genebra), pelo que corresponde, assim, no âmbito do direito português, a uma certidão judicial (documento autêntico) da sentença proferida naquele Tribunal (cf. art. 365º, n.º 1 do Código Civil).
A convenção ou acordo sobre os efeitos do divórcio, assinado pelas partes, contém no canto superior direito um carimbo que atesta, em francês: “Déposé au Greffe le 28 Nov. 2018 Rép. Et Canton de Genève Tribunal de Premiére Instance” (Depositado na Secretaria em 28 Nov 2018 Rep. e Cantão de Genebra Tribunal de Primeira Instância).
Segue-se o certificado que contém no canto superior esquerdo o brasão da République et canton de Genève Tribunal Civil, que atesta o trânsito em julgado da decisão.
Acompanha a decisão o certificado de tradução, emitido no Cartório Notarial em Faro, a cargo da Notária Cristina Cunha Silva Gomes, que atesta que a sentença foi traduzida de francês para português por Sónia Maria Santos Costa, que declarou tê-la traduzido fielmente e estar conforme o original.
Na decisão, para além da dissolução por divórcio do matrimónio, são estipuladas determinações sobre o exercício das responsabilidades parentais, sobre os alimentos devidos à filha menor, sobre os alimentos entre os cônjuges e ainda sobre a liquidação matrimonial, contendo, a final, a ratificação das disposições do acordo de divórcio assinado pelas partes, na parte não alterada, a fixação das custas judiciais e a condenação das partes a executarem, na medida necessária, as disposições da sentença proferida.
No que respeita ao requisito da alínea a) do art. 980º do CPC, o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico vertido na decisão revidenda, ainda que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte aquela decisão, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2011, relator Fonseca Ramos, processo n.º 214/09.8YRERVR.S1.
Quanto à amplitude do conceito de decisão mencionado no art. 978º, n.º 1 do CPC, Luís de Lima Pinheiro refere que “por “decisão” entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado, havendo que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem força de caso julgado – apud acórdão de 21-03-2019, relator Ilídio Sacarrão Martins, processo n.º 559/18.6YRLSB.S1.
Nos termos do art. 152º, n.º 2 do CPC, a sentença é o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa. A sentença decide a causa principal, quer conheça do mérito (absolvendo ou condenando o réu no pedido), quer se abstenha desse conhecimento (absolvendo o réu da instância).
Ora, a mera leitura da decisão revidenda, ao contrário do propugnado pela requerida, evidencia de modo cristalino que se trata de acto emitido por um tribunal – o Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção da República e Cantão de Genebra -, nela contendo uma específica apreciação da pretensão que os requerentes, em conjunto, dirigiram àquela instância judicial, assim como diversas estipulações sobre as consequências do divórcio que requereram.
Constitui, como é evidente, uma verdadeira sentença e, como tal, é passível de ser objecto do presente processo de revisão e confirmação.
Acresce que não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a sua autenticidade, encontrando-se o documento devidamente apostilhado.
Portugal subscreveu a Convenção Relativa à Supressão da Exigência de Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros (Convenção de Haia de 05 de Outubro de 1961, ratificada através do Decreto-Lei n.º 48 450, de 24-06-1968, Diário do Governo, Iª Série, n.º 148, de 24-06-1968), que se encontra em vigor no nosso país desde 04-02-1969.
Também a Suíça ratificou tal Convenção e encontra-se em vigor naquele país desde 11-03-1973[4].
A Convenção regula a supressão de exigências de legalização de actos públicos (leia-se de documentos públicos) que provenham, nomeadamente de «uma autoridade ou de um funcionário dependentes de qualquer jurisdição do Estado, compreendidos os provenientes do Ministério Público, de um escrivão de direito ou de um oficial de diligências» (artigo 1.º, alínea a) da Convenção), ou seja, a Convenção regula a legalização de sentença proferida por um Estado subscritor da Convenção para ser apresentada noutro Estado contratante, através da aposição de uma Apostilha, sendo essa «a única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto» (artigo 3.º, 2.º parágrafo). Sendo que a Apostilha pode ser «aposta sobre o próprio acto ou numa folha ligada a ele» («alongue») e deve ser conforme ao modelo anexo à Convenção (artigo 4.º).
Tratando-se o documento em referência de uma verdadeira sentença e não resultando da sua análise que seja questionável que corresponde a uma cópia autêntica da sentença revidenda, devidamente apostilhada, esta é susceptível, como se disse, de ser submetida ao procedimento de confirmação e revisão em Portugal, tendo o requerente logrado demonstrar a existência (sentença proferida no processo n.º C/27868/2018-11) e conteúdo (dissolução do casamento por divórcio e efeitos subsequentes) da decisão revidenda.
Mas entende ainda a requerida que o documento não permite aferir da inteligência da decisão por não ser compreensível o seu objecto e alcance, não se percebendo se a motivação do divórcio é contrária ou não à lei portuguesa.
Do conteúdo do documento junto resulta que o requerente e a requerida se apresentaram a juízo a formular um pedido comum, tendo subscrito um acordo quanto aos efeitos do divórcio, sobre os quais o tribunal se pronunciou.
Não consta, com efeito, de tal documento o fundamento do divórcio.
Apesar de, como se referiu, o sistema de revisão de sentenças estrangeiras português ser meramente formal, não implicando uma revisão de mérito, a circunstância de não ser indicado o fundamento do divórcio poderia contender com a viabilidade da revisão se impedisse o preenchimento do segundo dos requisitos fundamentais estabelecidos na primeira parte do art.º 984º do CPC, ou seja, em que o reconhecimento, conduzindo a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, obrigasse à negação da confirmação (cf. art.º 980º, f) do CPC).
No entanto, se se atentar no conteúdo da decisão e, bem assim, no acordo celebrado entre os cônjuges relativamente aos efeitos do divórcio, tendo em conta que ambos dirigiram um mesmo pedido ao tribunal e que na sequência disso o tribunal dissolveu o respectivo matrimónio, pode aceitar-se que as partes terão acordado entre si pôr fim ao seu casamento, o que, note-se, em nada contende com a ordem pública internacional do Estado português (tanto mais que o divórcio por mútuo consentimento é reconhecido na ordem jurídica interna – cf. art.º 1775º e seguintes do Código Civil).
Ademais, conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-07-2019, relator Rijo Ferreira, processo n.º 2330/18.6YRLSB-1:
“Não obstante nada se conhecer quanto aos fundamentos do divórcio, a indagação oficiosa a levar a cabo haverá de se adaptar, segundo critérios de razoabilidade e de probabilidade próprios do standard probatório civil, aos contornos do caso, atendendo à necessidade de respeitar o direito probatório do Estado de origem da decisão, as tradições jurídicas e culturais desse mesmo Estado, os ensinamentos do Direito Comparado, e as ilações que se podem retirar quer do evidenciado nos autos quer das posições assumidas pelas partes.
Em matéria de dissolução do casamento por divórcio apenas se vislumbra a possibilidade de incompatibilidade dos seus fundamentos com a ordem pública internacional do Estado português nos casos de divórcio contratual (“Khul”) ou repúdio (“Talaq”) da lei islâmica situação essa cuja possibilidade de verificação no caso concreto se mostra fundadamente afastada em função quer da tradição jurídica do Estado Australiano quer em função do tipo de casamento das partes (casamento católico celebrado perante o reverendo Joseph Ruys em St. Olivier Plunket Church, segundo a certidão de casamento). Pelo que poderemos com segurança concluir pela inexistência de qualquer incompatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português no caso de procedência da acção.”
Assim, estando em causa, por um lado, dois países europeus ocidentais, que, ainda que possuam tradições distintas e pontos específicos na sua cultura, como é evidente, não se afastam dos valores jurídico-normativos essenciais reconhecidos nos diversos ordenamentos jurídicos da Europa e, por outro, tratando-se de um casamento civil celebrado numa Conservatória do Registo Civil da Suíça, é de aceitar que não se esteja em presença de qualquer motivo de incompatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português, nomeadamente, no que diz respeito à liberdade de constituição de família e igualdade dos cônjuges.
A requerida veio sustentar também que esta Relação está condicionada pelo pedido deduzido pelo requerido, pelo que a decisão a rever apenas pode ser aquela parte da decisão que decretou o divórcio, não abrangendo o acordo quanto aos efeitos do divórcio, porque o requerente não o peticionou.
O requerente concluiu a sua petição inicial pedindo que fosse revista e confirmada a sentença do Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção – da República e Cantão de Genebra, que decretou o divórcio, com a consequente dissolução do casamento celebrado entre as partes.
Na sequência do despacho proferido em 19 de Setembro de 2020, o requerente veio esclarecer que a sentença revidenda reflecte um conjunto de acordos, assunção de direitos, compensações e obrigações assumidos pelas partes e homologados por sentença e que, não obstante, no imediato, querer ver a sua situação matrimonial regularizada em Portugal, não faria sentido que tal sentença fosse revista parcialmente, pois que nela está reflectido um conjunto de vontades interligadas e interdependentes, sendo que o seu pedido é de revisão da sentença, não a seccionando, tendo em conta que os efeitos civis da decisão são oficiosamente comunicados à Conservatória do Registo Civil e daí que tenha referido “consequente dissolução do casamento”, e os outros efeitos, como os patrimoniais, estão na dependência e na iniciativa das partes (ponto 6º do requerimento), pelo que pretende a revisão e confirmação da sentença na sua totalidade.
Em face do conteúdo deste requerimento de 28 de Setembro de 2020, torna-se claro que não tem a requerida qualquer razão quando pretende retirar do alegado no ponto 6º do requerimento uma qualquer posição do requerente no sentido de que visaria apenas obter a revisão da sentença na parte em que dissolveu o casamento celebrado entre requerente e requerida.
Como bem refere o requerente, não teria qualquer sentido um pedido de revisão da sentença revidenda que a seccionasse consoante as diversas questões nela resolvidas, o que conduziria à abstrusa necessidade de serem intentados tantos procedimentos de revisão e confirmação quantas as questões/assuntos apreciados e decididos na sentença revidenda, em manifesta e clara violação do princípio da economia processual.
Mas ainda que assim não fosse, o esclarecimento prestado pelo requerente na sequência do convite que lhe foi dirigido pelo tribunal não legitima quaisquer dúvidas quanto à abrangência do pedido por ele formulado, qual seja a revisão e confirmação da sentença revidenda, in totum.
Resolvido este ponto e admitindo a requerida que a apreciação venha a incidir sobre a totalidade da sentença revidenda, suscita novamente a falta de inteligência da decisão por não serem inteligíveis algumas das suas determinações, designadamente, o sentido e o alcance do artigo 6º do acordo quanto aos efeitos do divórcio, que apenas se refere à posse dos imóveis, o que não consubstancia qualquer partilha; além disso, se se entender que se quer referir à propriedade, então não se percebe qual o regime de propriedade a que os bens do casal ficam sujeitos após a partilha, tudo indicando que se trata de constituição de compropriedade.
O requisito da inexistência de dúvidas sobre a inteligência da decisão referido na segunda parte da alínea a) do art. 980º do CPC, significa que o conteúdo da decisão deve ser facilmente apreensível pelo órgão jurisdicional português, sendo que tendo em conta o sistema regra de revisão formal, não que há analisar da coerência lógica entre o segmento decisório e os fundamentos fáctico-jurídicos, seu pressuposto, constantes da sentença revidenda – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2004, relator Salvador da Costa, processo n.º 03B4263.
Como refere o Prof. José Alberto dos Reis, in Processos Especiais, Volume II – Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, pág. 161:
“A palavra «inteligência» significa aqui o mesmo que inteligibilidade. O tribunal não pode confirmar uma decisão de conteúdo ininteligível, uma decisão cujo sentido não pode apreender-se. […]
Mas não basta a inteligibilidade formal […] é necessária, além dela, a inteligibilidade real, isto é, o conhecimento exacto do acto de vontade incorporado na decisão. É necessário que a Relação possa aperceber-se do que o tribunal estrangeiro decidiu e determinou. É essencial que a decisão seja compreensível […] a Relação não tem que examinar se a decisão é justa ou injusta, se a lei foi bem ou mal aplicada; também não tem de preocupar-se com as dificuldades que a execução da sentença possa, porventura, suscitar: isso é com o tribunal da execução. Só lhe cumpre assegurar-se da clareza da decisão.”
Assim, a inteligência de uma decisão contida em sentença estrangeira, como condição para que possa ser confirmada, comporta um sentido de compreensibilidade, ou de conhecimento exacto, da vontade que naquela se queira exprimir – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-06-2012, relator Luís Lameiras, processo n.º 1130/11.9YRLSB-7.
No ponto 8. da sentença revidenda, o tribunal notifica as partes de que liquidaram o seu regime matrimonial e que já não há lugar a qualquer reclamação de parte a parte, seja a que título for, em cumprimento daquilo que acordaram, de boa fé, no artigo 6º do seu acordo de divórcio, de 13 de Outubro de 2018.
No artigo 6º do acordo as partes consignaram o seguinte:
Art.° 6° - Regime matrimonial
Os cônjuges, casados em regime geral de comunhão de adquiridos, nos termos do artigo 181.° do CC, procedem à liquidação do regime matrimonial de acordo com as seguintes modalidades:
A posse do imóvel sito em Rua Ataíde …, 8000-218 Faro, Portugal, é transferida gratuitamente para a Senhora B.
A posse do imóvel sito em Rua …., Montenegro 8005-146 Faro, Portugal, é entregue ao Senhor A. Este último é o único responsável pelos encargos relacionados com o imóvel (juros hipotecários, etc.).
Na sua redacção original, em francês, o texto do artigo 6º contempla o seguinte:
Art. 6 – Régime matrimonial
Les époux, mariés sous le régime ordinaire de la participation aux acquêts au sens de P art. 181 CC, procèdent à la liquidation du régime matrimonial selon les modalités suivantes :
La propriété du bien immobilier sis à 8000-218 Faro, Portugal, Rua ... est remise libre de toute charge à Madame B.
La propriété du bien immobilier sis à ... 8005-146 Faro, Portugal, Rua ... est remise à Monsieur A. Celui-ci répond seul des charges relatives à ce bien (intérêts hypothécaires etc).
Ora, perante a redacção original do artigo 6º do acordo resulta evidente que as partes estipularam sobre o direito de propriedade incidente sobre aqueles bens que integravam o património conjugal, pois que a alusão a posse constante da tradução só pode ter ficado a dever-se a uma incorrecção da transposição da palavra “propriété” para a língua portuguesa, sendo que o termo “posse” corresponde, em francês, a “possession”[5].
É sabido que a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges ocorre como consequência da dissolução do casamento por morte ou por divórcio – cf. art. 1688º do Código Civil.
Cessadas as relações patrimoniais, importa proceder à liquidação da situação patrimonial anterior, em função do regime jurídico matrimonial que vigorou entre o casal, sendo que, estando em causa um regime de comunhão de bens, haverá que proceder à partilha, para que a quota de que cada (ex-)cônjuge é titular no património comum possa ser concretizada.
No artigo 6º do acordo os cônjuges, casados que eram segundo o regime de comunhão de adquiridos, procederam à liquidação do regime matrimonial nos termos que aí enunciaram, ou seja, a propriedade do imóvel sito em Rua Ataíde …., 8000-218 Faro, Portugal, é transferida gratuitamente para a senhora B e a propriedade do imóvel sito em Rua Júdice Fialho …, Montenegro 8005-146 Faro, Portugal, é entregue ao senhor A, que fica como único responsável pelos encargos relacionados com o imóvel (juros hipotecários, etc.).
No ponto 8. da sentença revidenda o tribunal ratificou o acordado pelas partes nessa parte, pois que as notificou de que o seu regime matrimonial resultava liquidado nos termos por eles acordados.
Daqui se retira que a sentença revidenda, nesta parte, não padece de qualquer ininteligibilidade, sendo claramente compreensível o seu conteúdo e alcance.
Pelo contrário, não se percebe a referência da requerida no sentido de que teria sido constituída uma compropriedade entre os ex-cônjuges que incidiria sobre todo o património comum do casal, pois que no artigo 6º as partes, fazendo apenas menção ao facto de que estiveram casados segundo o regime da comunhão de adquiridos, partilham os bens imóveis comuns, ali concretamente identificados, atribuindo cada um deles a cada um dos cônjuges e determinando quem fica responsável pelos seus encargos.
Mas para além da ininteligibilidade suscitada, a requerida convoca ainda a circunstância de existirem outros imóveis no património do casal, não considerados no acordo, assim como a de existirem dívidas a terceiros não mencionadas, pelo que a decisão também seria ininteligível por referir que não há lugar a reclamação.
Ora, como acima se referiu, o sistema de revisão de sentença estrangeira, estabelecido nos artigos 978º e seguintes de CPC, é um sistema que se orienta por um reconhecimento facilitado das sentenças estrangeiras, dependente da mera verificação de determinados pressupostos simples, de ordem formal ou quase formal.
Como tal, o tribunal nacional não tem que examinar o processo estrangeiro no qual foi proferida a sentença revidenda e, achando-a conforme, confirmá-la, dando-lhe o exequatur, o que implicaria maior morosidade e, em última instância, inutilizaria a sentença estrangeira, obrigando à repetição de todo o processo, no foro nacional. Isto é, não tem o tribunal português de examinar se a decisão é ou não justa, se a lei foi bem ou mal aplicada e se a sua execução pode suscitar dificuldades, por não ser esse o nosso paradigma legal – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2017, relator Oliveira Vasconcelos, processo n.º 93/16.9YRCBR.S1; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-10-2014, relator Canela Brás, processo n.º 117/10-3TREVR.E1.
Logo, para as finalidades do presente procedimento é irrelevante se existiam outros bens no património conjugal não abrangidos pelo acordo celebrado pelos, agora, ex-cônjuges, ou outras dívidas não consideradas na partilha efectuada, dado que não compete a este Tribunal ajuizar do bem ou mal fundado da partilha ratificada, mas, tão-somente, aferir da autenticidade e inteligibilidade da decisão e da não ofensa da ordem pública internacional, sem entrar na apreciação do mérito.
Por outro lado, não é a circunstância de, eventualmente, existirem outros bens a partilhar ou dívidas a imputar que torna ininteligível a decisão, pois que, conforme se referiu, resulta perfeitamente compreensível a amplitude e significado da liquidação matrimonial ratificada pela sentença revidenda.
A requerida não suscitou qualquer violação atinente à apreciação efectuada na sentença sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, mas, ainda assim, sempre se dira que não se verifica qualquer violação nesse âmbito.
Na verdade, tem sido entendido, de modo prevalecente, que no que concerne à partilha de bens imóveis, situados em Portugal, decidida em sentenças de divórcio proferidas por tribunais estrangeiros não existe reserva de jurisdição dos tribunais portugueses, porquanto a acção de divórcio não pode ser qualificada, para o efeito, como acção real, ainda que nela se proceda à partilha de bens situados em território português.
Efectivamente os tribunais portugueses são exclusivamente competentes “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português” – cf. art.º 63.º, a) do CPC. No entanto, a sentença revidenda homologou um acordo entre os ex-cônjuges que versava o destino a dar a dois imóveis localizados em Portugal, o que não visou produzir efeitos no ordenamento jurídico, quanto ao estatuto real de tais imóveis. Apenas homologou um acordo produtor de efeitos obrigacionais, ou seja, um negócio jurídico vinculativo apenas para os respectivos outorgantes – como, aliás, se ressalvou no ponto 8. da decisão revidenda – no sentido da estabelecida modificação da situação jurídica do imóvel, quanto à titularidade do direito de propriedade.
Logo, o tribunal suíço não proferiu decisão em matéria de direitos reais quanto aos imóveis localizados em Portugal, nada obstando, nessa sede, à revisão e confirmação da sentença, para produzir os respectivos efeitos jurídicos em Portugal – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-06-2016, relator Jorge Leal, processo n.º 154/16.4YRLSB-2; do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-02-2003, relator Amílcar Andrade, processo n.º 619/03-1; do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011, relator Paulo Sá, processo n.º 987/10.5YRLSB.S1; e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-03-2009, processo n.º 237/07.1TRCBR, este último acessível em http://bdjur.almedina.net/juris.php?field=doc_id&value=93152.
Invoca ainda a requerida que aquando da subscrição do acordo não foi assistida por advogado, pelo que a sentença revidenda teria violado o artigo 8º da Convenção de Haia sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de pessoas, sendo que a sua situação económica aquando do divórcio era muito débil e não teve possibilidades para contratar um advogado, não tendo podido fazer valer os seus direitos.
Depreende-se que a requerida, invoca, deste modo, a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, que o art. 980º, e) do CPC impõe que tenham sido observados para poder ser confirmada a decisão estrangeira.
Tal como esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II – Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, 2020, pág. 428:
“Os princípios da igualdade e do contraditório […] reportam-se ao exercício de atos processuais, não se referindo às diferenças de natureza processual e às qualidades de desempenho dos intervenientes no processo […]. O princípio da igualdade das partes reclama que seja assegurado “um equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, particularmente no que toca à apresentação das respectivas teses e na perspectiva dos meios processuais de que para o efeito disponham (embora sem que isso implique uma identidade formal absoluta desses meios), exigindo-se, ainda, a identidade dos direitos processuais das partes e a sujeição de ambas a ónus e cominações idênticos, sempre que a sua posição no processo for equiparável (o que nem sempre se verificará) ” (António P. Pinto Monteiro, O Princípio da Igualdade e a Pluralidade de Partes na Arbitragem, p. 90).”
A requerida invoca uma alegada impossibilidade de fazer valer os seus direitos por impossibilidade económica de constituir advogado quando subscreveu o acordo sobre os efeitos do divórcio.
Da sentença revidenda consta que as partes compareceram pessoalmente em juízo, assim como no acordo sobre os efeitos de divórcio foi consignado que qualquer das partes não estava representada por advogado, pelo que se tratou de uma situação comum a ambas, em que as partes, por si próprias, estabeleceram os termos do divórcio, da regulação do exercício das responsabilidades parentais e da liquidação do património conjugal, conforme verteram no acordo que apresentaram ao tribunal suíço e que o ratificou.
Não se vislumbra – nem a requerida o explicou – de que modo o acordo alcançado e a que a requerida deu o seu beneplácito afectou o exercício dos seus direitos processuais.
Note-se que não basta para efeitos de oposição à revisão que se alegue que não foi respeitado no Estado de origem, o princípio da defesa ou da oportunidade do contraditório, sendo necessário que se lobrigue alguma consistência probatória em tais afirmações. Ora, a mera alegação de insuficiência económica para constituir mandatário que a representasse no processo de divórcio não envolve, por si só, uma impossibilidade do exercício do contraditório, sendo que os elementos carreados para os autos não revelam que a requerida não tenha estado em condições de poder exercer os seus direitos – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-10-2004, relator Neves Ribeiro, processo n.º 04B2879.
Acresce que a requerida nem esclareceu se, de algum modo, estava impedida de obter assistência jurídica gratuita em função das suas alegadas dificuldades económicas ou se o ordenamento jurídico do Estado de origem não a concede de todo.
Além do mais, está em causa uma pretensão dirigida ao tribunal suíço de comum acordo por parte dos ex-cônjuges que, por sua vez, apresentaram o acordo referido em 3., por si subscrito, não estando qualquer um deles representado por advogado, o que significa que não estavam em causa interesses contrapostos ou em litígio, existindo antes consenso sobre a vontade relativa à dissolução conjugal, à regulação das responsabilidades parentais e à liquidação do regime matrimonial.
Seguro é que, os elementos revelados neste processo não mostram que a requerida não esteve colocada em condições de poder exercer em tempo útil os direitos que pretendia fazer valer, não se apurando, assim, que se imponha a recusa do reconhecimento por verificação da parte final do artigo 8º[6] da Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas, concluída em Haia em 1 de Junho de 1970, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/84, de 27/11, publicada no Diário da República I, n.º 275, de 27/11/1984, com início de vigência em Portugal em 9 de Julho de 1985.
Mais invoca a requerida que a sentença revidenda, a ser confirmada, redundaria num “resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português”, porquanto a transferência da propriedade dos imóveis para o património exclusivo de um dos cônjuges, sem se verificar o valor de cada um deles e se existe ou não desproporção, o que é o caso dos imóveis em referência, leva a que um dos cônjuges se locuplete à custa do outro, em violação do direito de propriedade.
Relativamente ao requisito da alínea f) - ordem pública internacional do Estado Português -, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder. Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos – cf. neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, pág. 483 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-05-2015, relator Gabriel Catarino, processo n.º 657/13.2YRLSB.S1 – “[…] não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja. Ao invés, pode a lei em que se apoiou a decisão não ofender, considerada abstractamente, a ordem pública, mas a sua aplicação concreta assentar em motivos inaceitáveis.”
A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro. De modo que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-11-2008, relatora Sílvia Pires, processo 03/08 em www.colectaneadejurisprudencia.com; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, acima referido; de 26-06-2009, relator Paulo Sá e de 23-10-2014, processo n.º 1036/124YRLSB.S1, relator Granja da Fonseca.
Em reforço do assim explanado adita-se a seguinte passagem esclarecedora do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1:
“A ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o Estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do Estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” […]
Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua […] imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências […] pela excepcionalidade […] pela flutuação e pela actualidade […] e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português.
[…] é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado […]
O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional.”
Assim, apenas quando estejam causa interesses fundamentais do Estado ou da comunidade local será de rejeitar a confirmação da sentença, designadamente, quando dela decorra a aplicação de soluções que repugnam intrinsecamente à índole do nosso sistema jurídico, de que são exemplo, a poligamia, o repúdio da mulher, a negação de direitos sucessórios aos filhos ilegítimos, a discriminação étnica, o trabalho forçado, entre outros – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-01-2012, relatora Isabel Fonseca, processo n.º 389/11.6YRLSB.L1-1.
Ora, neste caso, a decisão a rever, pelo resultado a que chegou quanto à partilha dos bens, não contém em si mesma qualquer violação afrontosa ou intolerável de valores essenciais da nossa ordem jurídica, quer porque os dois bens imóveis foram atribuídos, cada um deles, a cada um dos cônjuges, ficando o requerente não só com o imóvel em referência, mas também com os respectivos encargos, não se aferindo, por si só, face ao conteúdo da decisão, que o direito de propriedade de qualquer um deles tenha sido beliscado, para além do que não colhe sequer aplicação o princípio da imutabilidade do regime de bens pois do que se trata é, precisamente, de liquidar um património, ou as relações patrimoniais, que cessaram por força da dissolução do casamento, para além do que tal princípio não integra a ordem pública internacional como esta deve ser entendida.
Acresce que, a lei ordinária permite que na acção de divórcio as partes acordem quanto aos termos da partilha do património comum do casal, podendo tal partilha ser efectuada no âmbito do processo de divórcio, como ocorre no divórcio por mútuo consentimento realizado na conservatória do registo civil – cf. art.º 1175.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, com a redacção introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro e art.ºs 272.º-A a 272.º-C do Código do Registo Civil, na redacção dada pelo DL n.º 247-B/2008, de 30 de Dezembro.
Não existe, assim, qualquer obstáculo, ao nível da ordem pública internacional do Estado português, para a confirmação da aludida sentença proferida pelo tribunal suíço.
Por fim, invoca a requerida o privilégio de nacionalidade portuguesa, nos termos do art. 983º, n.º 2 do CPC, referindo que sendo ambos os cônjuges de nacionalidade portuguesa, as relações entre eles são reguladas pela lei nacional, nos termos do art. 52º, n.º 1 do Código Civil, e, bem assim, a substância e efeitos do regime legal de bens, daí que, atento o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento, a partilha tinha de respeitar a regra da metade, não podendo ser atribuído ao requerente um bem de valor superior àquele que foi atribuída à requerida.
Estipula o artigo 983.º, n.º 2 do CPC o seguinte: “Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflito da lei portuguesa.”
São três os requisitos decorrentes do normativo em apreço:
i. a sentença revidenda tem de ser proferida contra pessoa de nacionalidade portuguesa;
ii. a aplicação do direito material português ser competente atentas as regras do direito internacional português;
iii. o resultado da acção teria sido mais favorável à pessoa de nacionalidade portuguesa se o tribunal tivesse sido aplicado o direito material português.
O preceito radica no denominado privilégio da nacionalidade que tem como fim a defesa dos interesses dos portugueses contra as sentenças proferidas no estrangeiro que contenham decisão menos favorável do que aquela a que conduziria a aplicação do direito material português.
Nesta situação a confirmação e revisão da sentença revidenda está submetida a um controlo de mérito, embora restringindo à decisão de direito e não de facto, encontrando-se o tribunal da revisão sujeito à decisão de facto apurada pelo tribunal estrangeiro. O tribunal revisor não pode alterar a decisão, só pode conhecer ou negar a confirmação.
As normas de conflito estabelecidas no nosso ordenamento jurídico preceituam que o estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões são, ressalvadas as restrições especificamente previstas, regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos - cf. art.º 25º do Código Civil.
A lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo – cf. artigo 31.º, n.º 1, do Código Civil).
Estando em causa uma acção de divórcio, a regulação do exercício das responsabilidades parentais, a obrigação de alimentos e a partilha do património conjugal, em que o requerente e a requerida têm nacionalidade portuguesa, as normas de conflitos portuguesas dos artigos 52.º, 55.º, n.º 1 e 57.º do Código Civil, remetem para a lei nacional comum, ou seja, a lei portuguesa.
Note-se que a Convenção sobre a lei aplicável para regimes de bens matrimoniais celebrada em 14 de Março de 1978, foi assinada por Portugal mas nunca foi ratificada, dela também não fazendo parte a Suíça – cf. informação disponível em https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/status-table/?cid=87.
Sendo aplicável à partilha dos bens subsequentes ao divórcio a lei portuguesa, importa ter presente o estatuído no art. 1689º, n.º 2 do Código Civil de acordo com o qual, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
Nos termos do art. 1730º do Código Civil “Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.”
Por sua vez, o art. 1790º do mesmo diploma legal estatui: “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”
Sucede que tal como a lei suíça, a lei portuguesa permite que os cônjuges acordem quanto ao divórcio e quanto aos seus efeitos, designadamente, no que à partilha dos bens diz respeito – cf. art. 1775º, n.º 1 a) do Código Civil; art. 111º do Código Civil Suíço, que prevê o divórcio a pedido conjunto dos cônjuges, com acordo completo sobre os seus efeitos[7].
A decisão revidenda limitou-se a conferir a vontade dos cônjuges e a assegurar que estes celebraram o acordo de livre vontade, tendo ratificado o que dele consta, conforme se retira do seu ponto 12..
Assim, também à luz do direito nacional, impor-se-ia ao juiz nacional aferir se o acordo alcançado entre os cônjuges acautela os interesses de algum deles ou dos filhos – cf. art. 1778º-A do Código Civil.
Estando em causa a celebração conjunta e de comum acordo do pedido de divórcio e dos efeitos dele decorrentes, sem que se tenha enveredado pela partilha judicial dos bens, não resultando evidente a discrepância dos valores dos bens tal como invocada pela requerida, desde logo porque não foi esse o critério seguido na decisão mas, tão-somente, o de ratificar a vontade das partes, não se vislumbra que a aplicação da lei nacional in casu tivesse conduzido a um resultado mais favorável para a requerida, pelo que não está demonstrada a excepção do privilégio da nacionalidade, prevista no n.º 2 do art. 983º do CPC.
Verificam-se, assim, todos os requisitos necessários para a confirmação da sentença, pelo que importa conceder procedência à pretensão do requerente.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar procedente a pretensão do requerente e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância – 11ª Secção, da República e Cantão de Genebra, no âmbito do processo com o n.º C/27868/2018, no dia 13 de Junho de 2019, transitada em julgado em 2 de Julho de 2019, que dissolveu o casamento celebrado entre A e B em 7 de Fevereiro de 2003 e regulou o exercício das responsabilidade parentais relativamente à criança Orianna, fixou os alimentos devidos e considerou liquidado o regime matrimonial, nos exactos termos que dela constam transcritos no ponto 2. da matéria de facto provada, e que passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Valor da causa - € 30 000,01.
Face ao estatuído no art. 14º-A, d) do Regulamento das Custas Processuais, não há, neste caso, lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça.
Oportunamente, cumpra o disposto no art. 78º, n.º 1 do Código de Registo Civil.
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Lisboa, 15 de Dezembro de 2020
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[3] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[4] Acessível na página da Internet do Ministério Público em https://www.hcch.net/en/instruments/conventions/status-table/print/?cid=41.
[5] Cf. Dicionário Francês-Português|tradução Português|Reverso acessível em https://dicionario.reverso.net/frances-portugues/possession/forced.
[6]Pode ser recusado o reconhecimento do divórcio ou da separação de pessoas se, tendo em conta o conjunto de circunstâncias, não foram realizadas as diligências adequadas para que o demandado fosse informado do pedido de divórcio ou de separação de pessoas ou se ao mesmo demandado não foram asseguradas condições de fazer valer os seus direitos.”
[7] Art. 111º A. Divorce sur requête commune
I. Accord complet
Lorsque les époux demandent le divorce par une requête commune et produisent une convention complète sur les effets de leur divorce, accompagnée des documents nécessaires et de leurs conclusions communes relatives aux enfants, le juge les entend séparément et ensemble. L’audition peut avoir lieu en plusieurs séances.
Le juge s’assure que les époux ont déposé leur requête en divorce et conclu leur convention après mûre réflexion et de leur plein gré et que la convention et les conclusions relatives aux enfants peuvent être ratifiées; il prononce alors le divorce. – disponível em https://www.droit-bilingue.ch/rs/lex/1907/00/19070042-a111-fr-it.html consultado em 25-22-2020.