JUIZ
IMPEDIMENTO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário


1 - O Juiz que no decurso de um julgamento a que preside determina a extracção de certidão relativamente a uma testemunha por entender que o teor do respectivo depoimento pode constituir um crime de falsidade de depoimento, detém a qualidade de testemunha nos termos do artº 128º, nº 1, do C.P.P., independentemente de não ter sido ouvido nessa qualidade.

2 - Ocorre, pois, a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 39.º do Código de Processo Penal, estando o Juiz que determinou a extracção de certidão impedido de posteriormente presidir ao julgamento dessa testemunha (aqui na qualidade de arguido).
3 - Tendo-o feito, ocorre violação das regras legais relativas ao modo de composição do Tribunal, o que constitui a nulidade insanável prevenida na alínea a) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, tornado inválido o julgamento, nos termos do artº 122º, nº 1, do mesmo Código.

Texto Integral




Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 806/18.4T9STC do Juízo de Competência Genérica de Santiago do Cacém [Juiz 1] da Comarca de Setúbal, o Ministério Público acusou
(…),
pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punível pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.

Não foi apresentada contestação escrita.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida em 6 de fevereiro de 2020 e depositada no dia 13 seguinte, foi, entre o mais, decidido:
«julgo a acusação totalmente procedente, e, consequentemente, decido:
a) Condenar o arguido (...) pela prática de 1 (um) crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, na pena, especialmente atenuada nos termos do artigo 364.º, al. a) do mesmo diploma legal, de 6 (seis) meses de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada em a) pelo período de 2 (dois) anos, sujeita a regime de prova – nos termos dos artigos 50.º, 51.º, 52.º e 53.º do Código Penal – sob a condição de o Arguido:
i) Responder às convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
c) Condenar o Arguido no pagamento das custas do processo (513.º e 514.º do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) Unidade de Conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de fevereiro [Regulamento das Custas Processuais], e demais encargos.»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. O presente recurso visa a apreciação do acórdão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto e de direito – consequente aplicação da pena;

O recorrente (...), foi condenado:
a) Condenar o arguido (...) pela prática de 1 (um) crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, na pena, especialmente atenuada nos termos do artigo 364.º, al. a) do mesmo diploma legal, de 6 (seis) meses de prisão;
b) Suspender a execução das penas de prisão aplicada em a) pelo período de 2 (dois) anos, sujeita a regime de prova – nos termos dos artigos 50.º, 51.º, 52.º e 53.º do Código Penal – sob a condição de o Arguido:
i) Responder às convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
c) Condenar o Arguido no pagamento das custas do processo (513.º e 514.º do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) Unidade de Conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de fevereiro [Regulamento das Custas Processuais], e demais encargos.
2. O recorrente encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente;
3. O arguido (...), apenas se encontrava a assistir ao julgamento do processo 59/18.4GGSTC quando foi chamado a prestar depoimento nesse mesmo julgamento;
4. Prestou juramento e falou com verdade quando disse que tinha estado a fumar na porta principal do edifício do tribunal na companhia da testemunha (...), mas que não tinha falado sobre o julgamento, mas sim sobre um jogo de futebol que iria decorrer nesse fim de semana;
5. O facto é que não ficou provado em sede de audiência de discussão e julgamento que o ora recorrente tivesse falado com a testemunha (...) sobre o processo 59/18.4GGSTC como é dado como provado pelo tribunal a quo.
6. O arguido, nunca negou ter falado com a testemunha (...), aliás tanto no julgamento do processo 59/18.4GGSTC, como no seu próprio julgamento o arguido confirmou logo ter estado a fumar e a conversar com a testemunha (...), apenas nega ter falado com o mesmo sobre o julgamento que se encontrar a decorrer e do qual apenas se encontrava a assistir por ter vindo de boleia com a testemunha (...).
7. O depoimento do ora arguido enquanto testemunha do processo 59/18.4GGSTC, foi exatamente o mesmo das suas declarações enquanto arguido, não havendo qualquer discrepância nos mesmos.
8. O ora arguido não pode ser condenado por factos que não praticou, nem tão pouco ser condenado pela conduta da testemunha (...).
9. Não entende o aqui recorrente como pode ter sido julgado e condenado pelo mesmo tribunal que julgou o processo 59/18.4GGSTC, uma vez que sendo o mesmo juiz, este já tinha a convicção que o arguido tinha praticado o crime de falsidade de testemunho e o arguido já sabia no início do julgamento que seria condenado.

Nestes termos, nos melhores de Direito e de Justiça e com o sempre Mui Douto Suprimento de V, Exas., deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida – e absolver o ora recorrente por o mesmo não ter praticado e não haver qualquer prova que tenha praticado o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1 - Sempre que a Recorrente impugne a matéria de facto, deve cumprir os requisitos insertos no art.º 412, do C. P. Penal.
2 - Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não sucede no caso sub judice.
3 - A prova é valorada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, em nome do princípio da livre apreciação, inserto no art.º 127, do C. P. Penal.
4 – O Recorrente limita-se a discutir o processo lógico do julgamento baseado no princípio da livre apreciação de prova.
5 – O Mm. º Juiz julgou valorando as provas corretamente, conjugando-as e analisando-as à luz das regras da experiência e das normas legais, pelo que observadas estas premissas outro resultado não pode ser obtido que não seja a justeza da condenação do arguido.
6 - Na determinação da medida da pena foram tidos em conta os princípios da adequação e da proporcionalidade.

Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, negando provimento ao recurso e, em consequência mantendo a d. sentença recorrida, V. Excelências, agora, como sempre, farão
JUSTIÇA.»

û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, revelando concordar com a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões (i) da incorreta valoração da prova produzida em julgamento e (ii) da imparcialidade do Senhor Juiz que presidiu ao julgamento e elaborou a sentença recorrida.
û
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 06 de abril de 2018, no Tribunal Judicial de Santiago do Cacém, ocorreu a audiência de discussão e julgamento do Processo Sumário, com intervenção de tribunal singular e com o n.º 59/18.4GGSTC, no âmbito do qual os arguidos (…) estavam acusados, cada um, da prática de um crime de furto simples.
2. No decurso da referida audiência o ora arguido (...) foi chamado a prestar depoimento como testemunha e, após a sua identificação, respondeu aos “costumes” dizendo conhecer (…) e (...), prestou juramento legal e foi advertido que incorreria na prática de um crime caso faltasse à verdade.
3. Antes de o aqui arguido ser inquirido como testemunha, havia sido inquirido como testemunha (...), patrão de (…) e arrolado como sua testemunha de defesa.
4. Durante a aludida audiência, o arguido (...) assistiu às declarações prestadas pelos arguidos (em separado) e pelas restantes testemunhas, ausentando-se, momentaneamente, da sala de audiências após as declarações prestadas pelos arguidos.
5. Aquando da sua inquirição como testemunha, o arguido admitiu ter estado (...) enquanto decorria a dita audiência de julgamento.
6. Contudo, negou sempre ter falado com (...) sobre o julgamento ou sobre as declarações dos arguidos, mesmo após as insistências do Meritíssimo Juiz.
7. No entanto, resultou claro no decurso daquela audiência de discussão e julgamento que os ali arguidos (…) resolveram criar uma versão dos factos em sua defesa, delineando os seus traços gerais.
8. Versão essa que viria a ser corroborada pela testemunha de defesa (...).
9. O arguido (...) não prestou depoimento com verdade, uma vez que, naquele dia 06.04.2018, no decurso da referida audiência de discussão e julgamento, após as declarações prestadas pelos ali arguidos (…), o aqui arguido (...) relatou a (...) os pormenores das declarações prestadas por aqueles arguidos, designadamente o local onde foi mantida a conversa com (…).
10. O arguido tinha consciência que prestava depoimento em audiência de julgamento que não correspondia à verdade, o que quis, apesar de estar ciente que tinha prestado juramento, que estava obrigado a falar com verdade, sob pena de incorrer na prática de um ilícito criminal, e que esta conduta obstruía a ação da justiça.
11. O arguido agiu, também, de modo livre e deliberado, com o intuito de iludir a atividade probatória daquela audiência de julgamento, a fim de evitar que (…) fossem condenados pela prática do crime de furto de que iam acusados e que cometeram.
12. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei penal e tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
*
13. O Arguido nasceu a 10 de março de 1975.
14. É trabalhador rural, encontrando-se a trabalhar para o (…)INF, na área florestal de (…), auferindo 1.400,00 (mil e quatrocentos) a 1.500,00 € (mil e quinhentos euros), por mês.
15. Vive em casa dos seus progenitores, com estes e o seu irmão.
16. O seu pai encontra-se reforma, auferindo cerca de 400,00 € (quatrocentos euros), de pensão de reforma, sendo ainda empresário na área de comércio por grosso.
17. A sua mãe trabalha como empregada de limpeza, auferindo ordenado próximo do ordenado mínimo.
18. O seu irmão é trabalhador rural.
19. Não despende qualquer quantia com a habitação.
20. Tem duas filhas de 22 e 9 anos de idade, que vivem com a respetiva progenitora.
21. Não paga uma prestação de alimentos fixa, mas ajuda nas despesas.
22. Estudou até ao 9.º ano de escolaridade.
*
23. O Arguido foi condenado:
a) No processo comum coletivo nº 10/06.4GAGDL do antigo Tribunal Judicial da comarca de Alcácer do Sal o arguido, por acórdão datado de 10.10.2008 e transitado em julgado em 10.11.2008 foi condenado na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período, pela prática em 02.05.2006, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, a qual foi declarada extinta em 24.02.2011;
b) No processo sumário nº 30/12.0GTSTB da antiga Comarca do Alentejo Litoral, Juízo de Instância Criminal de Grândola, o arguido, por sentença datada de 09.02.2012 e transitada em julgado em 29.02.2012 foi condenado na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, pela prática em 01.02.2012, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de desobediência, previsto e punido, pelo artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, a qual foi declarada extinta em 18.07.2012;
c) No processo sumário nº 46/14.1GBSTC do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Santiago do Cacém, Competência Genérica, Juiz 1, por sentença datada de 04.05.2017 e transitada em julgado em 05.06.2017 foi condenado na pena 240 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática em 08.03.2014, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de falsificação de boletins, atas ou documentos, previsto e punido, pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal;
d) No processo comum coletivo nº 1/15.4GAGDL do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Criminal, Juiz 2, o arguido, por acórdão datado de 12.11.2019 e transitado em julgado em 12.12.2019 foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período, pela prática em 2014, em autoria material e na sua forma consumada de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 25.º, al. a), por referência 21.º do Decreto-lei nº 15/93 de 22 de Janeiro.»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, nomeadamente:
a) Quanto à materialidade dada como provada na vertente objetiva na certidão da sentença condenatória proferida no proc. 59/18.4GGSTC, de fls. 7 a 22 e respetiva ata de fls. 3 a 6, complementada com o CD com as gravações das declarações prestadas em audiência, constante de fls. 24, constando as transcrições de fls. 30 a 34 e da certidão imediatamente antecedente, cuja junção foi ordenada em audiência, estas últimas no que respeita a (...).
Com efeito, da análise das declarações dos intervenientes naquele processo e da leitura da sentença verifica-se que os ali Arguidos (…) tentam apresentar uma versão que ilida a sua responsabilidade, na qual entra (...). Todavia, como se notou naquela sentença, com exceção dos traços gerais (enganaram-se no terreno e tinham autorização e (...) para outro terreno), não conseguem dar duas respostas consentâneas entre si. Os Arguidos mostram-se surpreendidos com as perguntas laterais e acessórias e respondem atabalhoadamente. De facto, qualquer pessoa inquirida sobre o local de uma conversa ocorrido há algum tempo, em que período do dia, se no interior se no exterior de um espaço tem de parar para pensar, porquanto são factos laterais que não permitem uma resposta imediata, mostrando-se normalmente surpreendida, embora, após um esforço de rememoração consigam reconstruir o aludido momento.
A verdade é que, inquirido (...) sobre o local da conversação o mesmo respondeu de pronto, não conseguindo deixar de sorrir, como se não conseguisse esconder o seu contentamento por responder “acertadamente” (em conformidade com as declarações atabalhoadas de um dos anteriores Arguidos) às perguntas que lhe foram colocadas, transparecendo a ideia que, não só já sabia que a pergunta iria ser feita, como sabia a resposta que tinha sido dada.
Foi no seguimento do depoimento em que (...) não conseguia deixar de mostrar o seu contentamento com a sua prestação, apesar de ser aparentemente um terceiro completamente alheio ao processo, que se determinou a inquirição de (…), a única pessoa que este durante a inquirição dos Arguidos na sala e durante a maior parte do julgamento e que se ausentou da sala, várias vezes, por alguns momentos, tendo também mexido no telemóvel, como consta da sentença.
Todavia, tal não foi feito sem questionar (...) sobre a sua relação com o ora Arguido. (...) respondeu que aquele era um seu trabalhador, que tinham vindo juntos para o Tribunal, porquanto aquele precisava de boleia.
Inquirido se “teve algum contacto com aquele senhor (ora Arguido) durante o julgamento?”, (...) respondeu perentoriamente “não”. Inquirido novamente, desta vem com a pergunta “nenhum?”, respondeu “não tive”. Após nova insistência “nem verbalmente, nem por telefone?”, “não, não senhor. E que necessidade é que tinha de ter contacto?”.
A verdade é que, inquirido o ora Arguido, naquele processo na qualidade de testemunha, o mesmo confirmou que esteve com (...), tendo-se dirigido para o exterior do Tribunal para fumarem um cigarro. Negou, contudo, que tivesse contado, algum pormenor relevante do julgamento, embora referisse que disse ao (...) que (…) falava muito, “não sei porque é que ele não se resume aos factos”. Afirma que falou de forma genérica sobre o julgamento, embora ache que não referiu as partes que diziam respeito à intervenção de (...), utilizando a expressão “penso que não”, repetidamente e terminando com um “não”.
Ora, do cotejo de tais declarações com toda a dinâmica do julgamento, a única conclusão possível de retirar é que o Arguido informou (...) das respostas que os Arguidos tinham dado às perguntas que lhe diziam respeito, para que aquele pudesse apresentar a mesma versão, especialmente nos pontos laterais, de modo a credibilizar o depoimento. O modo como (...) prestou depoimento, não permite outra explicação, sendo que tão pouco é crível que, tais pormenores tivessem sido combinados previamente, uma vez que os próprios Arguidos naquele processo (pai e filho), foram incapazes de apresentar uma versão consentânea.
Essa é também a única explicação para o facto de (...) ter negado, naquele julgamento, de forma ostensiva, o óbvio, que efetivamente esteve a conversar com (...).
É certo que inquirido agora como testemunha afirma que não percebeu a pergunta, que achava que estava a ser-lhe perguntado se tinham falado um com o outro dentro da sala de audiências, à frente de advogados, juiz, magistrado do Ministério Público e Arguidos. A explicação não faz qualquer sentido, ademais porquanto uma das perguntas foi se tinham tido contacto por telefone, sendo que carecia de qualquer sentido a nova interpretação de (...), de que achava que lhe estava apenas a ser perguntado se manteve contacto dentro da sala de audiências.
Deste modo, entendemos que toda a matéria que consta da acusação se encontra provada.
A versão negatória do Arguido, de (...) e o facto de (…) negarem que tentaram criar uma versão alternativa dos factos, em conjunto, para evitar a sua responsabilidade penal não merece qualquer credibilidade e não pode ser acolhida.
Deste modo, torna-se forçoso concluir que, com tais declarações o Arguido quis relatar factos inverídicos sobre os quais possuía conhecimento direto, tendo agiu de forma livre, com o propósito concretizado de prestar declaração falsa quanto ao seu conhecimento dos factos, o que representou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida como ilícito criminal.
Deve dizer-se que se procedeu à correção do nome do Arguido, uma vez que aquele padecia de manifesto lapso, nalguns pontos da acusação, quando se referia a (…).
b) No que respeita às condições socioeconómicas teve-se em consideração as declarações do próprio Arguido, inexistindo razões para as censurar, nesta matéria
c) Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o certificado de registo criminal constante eletronicamente do processo.»
û
Conhecendo.
(i) Da (im)parcialidade de quem julgou
Expressou o Recorrente o desconforto de ter sido julgado pelo Senhor Juiz que presidiu ao julgamento no processo n.º 59/18.4GGSTC, que não poderia deixar de ter uma convicção de condenação prévia ao julgamento realizado nestes autos.

Importa determinar o valor desta alegação.
Efetivamente, o Senhor Juiz que elaborou a sentença agora em recurso e presidiu à audiência de julgamento que a antecedeu também presidiu ao julgamento realizado no âmbito do processo comum n.º 59/18.4GGSTC, em que foi ouvido como testemunha o ora Arguido e Recorrente (…).
Na parte decisória da sentença proferida no processo comum n.º 59/18.4GGSTC, o Senhor Juiz que a elaborou ordenou a extração de certidão para instauração de procedimento criminal contra (...), por se lhe afigurar ter o mesmo mentido, após juramento, no decurso da inquirição a que foi sujeito.

A independência dos Juízes e o seu dever de obediência à lei, que encontram consagração no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, não bastam para a preservação da objetividade de uma decisão judicial.
É, ainda, indispensável que não possa colocar-se em dúvida a imparcialidade do Juiz que a profere em virtude de especiais relações que o liguem ao caso que julgou.
«A exigência de imparcialidade implica, desde logo, que o juiz não seja parte no conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a alguma das “partes” nele envolvidas (…), mas vai muito mais longe, postulando uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral e isenta.
São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no exercício da sua função; o que aqui interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de , a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-la da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados.
(…)
Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o processo penal de acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o legislador ordinário estabeleceu um conjunto de impedimentos (arts. 39.º e 40.º) e suspeições (art.º 43.º), fundados em dúvida de diversa ordem sobre a imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos (,,,).»[[3]]

Diz-nos o artigo 39.º do Código de Processo Penal que
«1 — Nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal:
a) Quando for, ou tiver sido, cônjuge ou representante legal do arguido, do ofendido ou de pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil ou quando com qualquer dessas pessoas viver ou tiver vivido em condições análogas às dos cônjuges;
b) Quando ele, ou o seu cônjuge, ou a pessoa que com ele viver em condições análogas às dos cônjuges, for ascendente, descendente, parente até ao 3.º grau, tutor ou curador, adotante ou adotado do arguido, do ofendido ou de pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil ou for afim destes até àquele grau;
c) Quando tiver intervindo no processo como representante do Ministério Público, órgão de polícia criminal, defensor, advogado do assistente ou da parte civil ou perito; ou
d) Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha.
2 — Se o juiz tiver sido oferecido como testemunha, declara, sob compromisso de honra, por despacho nos autos, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão da causa. Em caso afirmativo verifica-se o impedimento; em caso negativo deixa de ser testemunha.
3 — Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges.»

E o artigo 40.º do Código de Processo Penal, a pretexto de impedimento por participação em processo, estabelece que:
«Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.»

Às suspeições, que podem assumir a forma de recusa e de escusa, reporta-se o artigo 43.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
«1 — A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 — Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º
3 — A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 — O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.»

O instituto dos impedimentos abrange situações concretas que, por si só e automaticamente, constituem motivo para que se arrede o juiz do processo.
Este afastamento deve ser assumido pelo próprio juiz e por ele imediatamente declarado no processo, por decisão não recorrível.
Se tal não acontecer, a declaração de impedimento do juiz pode ser requerida pelos intervenientes processuais [Ministério Público, arguido, assistente ou partes civis]. Requerimento que o juiz aprecia e decide e que é suscetível de recurso se não for reconhecido o impedimento invocado.
As circunstâncias enunciadas nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal não esgotam as causas de impedimento, não obstante estarmos perante exceções à regra da competência do juiz – aí não cabem situações em que é manifesto o risco de falta de imparcialidade, como aquela em que o juiz é o próprio ofendido.
Ora, sendo mais lata a previsão do artigo 115.º do Código de Processo Civil, será adequado que com ela se integre, desde que aplicável, o disposto na lei processual penal quanto a impedimentos de juiz.

O instituto das recusas e escusas tem por referência situação genericamente definida que, gerando suspeição sobre a imparcialidade do juiz, é suscetível de conduzir ao seu afastamento mediante pedido dirigido ao Tribunal competente – o imediatamente superior – pelo próprio [escusa] ou através de requerimento formulado pelos intervenientes processuais [recusa].

Esta diversidade de regime tem pressuposto o que se intui do que se deixou dito.
Enquanto o impedimento afeta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afetar essa imparcialidade e essa independência.
Resta deixar expresso que enquanto o impedimento pode ser conhecido em qualquer estado do processo, a escusa e a recusa só são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, sendo que só o serão posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate – artigos 41.º, n.º 2 e 44.º do Código de Processo Penal.

Isto posto, e de regresso ao processo, no que importa, a intervenção do Senhor Juiz, nos termos já referidos, nos presentes autos e nos autos de processo comum n.º 59/18.4GGSTC, não constitui qualquer das situações prevenidas no artigo 40.º do Código de Processo Penal, e em concreto na da alínea d) do seu n.º 1, como de impedimento.
«I – O artigo 40.º do Código de Processo Penal tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção.
(…)
III – Tendo em conta todas as causas de impedimento taxativamente previstas na lei (alíneas a) e e) do artigo 40.º), certo é constituir elemento comum a todas elas a intervenção anterior do juiz no processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo.
(…)»
Ora, os presentes autos e os de processo comum n.º 59/18.4GGSTC não são o mesmo processo, mas sim processos distintos.

Todavia, é inequívoco que o Senhor Juiz que julgou no processo comum n.º 59/18.4GGSTC tem conhecimento de factos que influem na decisão que proferida nos presentes autos.
A sua avaliação do desempenho da testemunha (…) no processo comum n.º 59/18.4GGSTC determinou a extração da certidão que deu origem aos presentes autos. Porque, no seu entender, a testemunha faltou à verdade.
E tendo o Senhor Juiz, como então disse [no processo n.º 59/18.4GGSTC], observado a prática de um crime, não resta senão concluir que detém a qualidade de testemunha dele – porque possui conhecimento direto de factos que constituem objeto da prova [cfr. previsão do n.º 1 do artigo 128.º do Código de Processo Penal].

Assim sendo, deveria o Senhor Juiz que julgou no processo comum n.º 59/18.4GGSTC ter sido ouvido como testemunha nos presentes autos.
O conhecimento direto que o Senhor Juiz que julgou nos presentes autos possui de factos que neles constituem objeto da prova a produzir e que foi produzida, decorrente de ter sido quem também julgou no processo comum n.º 59/18.4GGST, pode comprometer irremediavelmente a sua capacidade para conhecer da(quela) causa sem um juízo prévio sobre o sentido da decisão a tomar, assim ficando imediatamente em risco a garantia da imparcialidade.
Impõe-se acentuar a mesma pessoa não pode, simultaneamente e num mesmo processo, ser denunciante, porque testemunha de crime que se convenceu ter sido cometido, e juiz.
Ocorre, pois, a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 39.º do Código de Processo Penal – o impedimento do Senhor Juiz que julgou nos presentes autos.

Resta extrair conclusões do que se deixa dito.
Em tese geral deve dizer-se que a imperfeição do ato processual pode apresentar cambiantes diversas consoante a gravidade do vício que lhe está na génese e que se poderá situar entre a irregularidade e a inexistência.
Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade.
Esta, por sua vez, subdivide-se em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.
O nosso Código de Processo Penal adotou um sistema de nulidades taxativas.
Princípio que se encontra consagrado, de forma inequívoca, no artigo 118.º do referido diploma legal e que é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição

A violação das regras legais relativas ao modo de composição do Tribunal constitui a nulidade insanável prevenida na alínea a) do artigo 119.º do Código de Processo Penal.
Nulidade que se declara e que torna inválido o julgamento realizado nos autos – artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Resta dizer que a declaração de nulidade prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se anular o julgamento realizado nos autos e todos os termos subsequentes ao mesmo, ordenando que seja levada a cabo nova audiência de julgamento;

Sem tributação.
û
Évora, 2020 dezembro 17
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
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(Renato Amorim Damas Barroso)

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[1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] ] Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal”, págs. 12 a 14.