I. - O TDH tem desenvolvido uma doutrina, actualmente consolidada. Que já plasmou no caso Pirsack STEDH, de 1.10.1982, em que se referiu, em termos resumidos, ao que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque (“así porque”) tenha exteriorizado relativamente ao demandante juízos antecipados desfavoráveis, ou, já no processo, por haver emitido decisões prévias nas quais se manifeste um juízo antecipado de culpabilidade (instrução com processamento, adopção de meios cautelares, etc.);
II. - “[A]s virtudes rectoras do comportamento ético do Juiz podê-las-íamos (“podríamos”) reduzi-las à independência, imparcialidade, profissionalidade, relativamente às pessoas que actuam no processo, e actualização. Deste quinteto de exigências éticas – que desenvolveremos mais adiante – surge um tipo de Juiz, próprio da nossa época, que, consequentemente, há-de ter em conta uma serie de deveres mais concretos a cumprir.
Com efeito, o “bom Juiz” não é o juiz formalista (a norma positiva antes d tudo) que se dedica, em grande medida, a «echar balones fuera» e a resolver, estritamente, com a norma ou normas que estima aplicáveis mas sim um juiz aberto á realidade social – art. 3.1 Cciv – que trata de superar os «formalismos enervantes» para entrar «en el fondo», recorrendo às normas positivas mas também aos valores e princípios constitucionais e do concreto sector jurídico em que opere, indagando soluções que podem não existir, para dar resposta a questões novas ou que se apresentam com enfoque duvidoso.” (Eduardo Urbano Castrillo, Consejo General del Poder Judicial – Escuela Judicial, “Ética do Juez y garantias procesales”, Manuales de Formación Continuada 24, 2005, Madrid, pág. 425);
III.- “A imparcialidade, deve ser entendida aqui como independência do juízo que não é parcial, que procede com falta de prevenção em favor ou em contra das partes. (Para el concepto de imparcailidad: Plácido Fernandez-Viagas Bartolomé, El Juez Imparcial, Comares, Granada, 1997, p. 1-5).”
IV. - Recortando o sentido hermenêutico que deve ser conferido ao conceito-valor da imparcialidade, vincou-se na sentença 162/1999, de 27 de Setembro, do tribunal constitucional espanhol, que “a separação e alheamento das partes em litígio e dos seus interesses permite ao juiz «situar-se por cima das partes acusadoras e imputadas, para decidir justamente a controvérsia determinada pelas suas pretensões em relação com a culpabilidade ou inocência» (SSTC1985, fundamento jurídico 6º, e 225/1988, fundamento jurídico 1º). Esta obrigação de ser alheio ao litígio, de não se julgar nada nele, de não ser «Juiz e parte» nem «juiz da causa própria», pode resumir-se em duas regras: segundo a primeira, o juiz não pode assumir processualmente funções de parte; a segunda, o juiz não pode realizar actos nem manter com as partes relações jurídicas ou conexões de facto que possam pôr a descoberto ou exteriorizar uma prévia tomada de posição anímica a favor ou contra (Sentenças do TEDH, de 22 de Junho de 1989, caso Langborger; de 25 de Novembro de 1995, caso Holm, y 20 de Maio de 1998, caso Gautrin e outros).
O método de apreciação destas exigências empregado pelo TEDH, cuja jurisprudência constitui uma obrigação e um valioso meio hermenêutico para configurar o conteúdo e alcance dos direitos fundamentais (art. 10. CE), caracteriza-se por distinguir duas perspectivas – subjectiva e objectiva – desde as quais se pode valorar se o juiz no caso concreto pode ser considerado imparcial (Sentenças do TEDH proferidas nos casos Piersack e de Cuber (…). A perspectiva subjectiva trata de apreciar a convicção pessoal do juiz, o que pensava no seu foro interno na referida ocasião, a fim de excluir aquele que internamente haja tomado partido previamente, ou vá basear a sua decisão em pré-juízos indevidamente adquiridos. Desde esta perspectiva, a imparcialidade do juiz há-de presumir-se, e as suspeitas sobre a idoneidade hão-de ser provadas: A perspectiva objectiva, sem embargo, dirige-se a determinar se, pese não ter exteriorizado convicção pessoal alguma nem tomada de partido prévio, o juiz oferece garantias suficientes para excluir toda a dúvida legitima relativamente ao caso; por isso, desde este ponto de vista, são muito importantes as considerações de carácter funcional e orgânico, pois determinam se pelas funções que cumprem no processo, o juiz pode ser visto como um terceiro no litigio, alheio aos interesses que nele se ventilam.”
V.- Não é susceptível de afectar, nem objectiva nem subjectivamente, a imparcialidade de um Magistrado, o facto de comparecer num litígio que lhe coube julgar, como mandatária de uma das partes (demandante), uma advogada que foi representante (judicial) do cônjuge num procedimento de habilitação de sucessores, numa pessoa colectiva afeita ao seu múnus profissional e em que figura acompanhado de mais 10 (dez) co-demandados.
§1. – RELATÓRIO.
“AA, Juíza Conselheira em exercício de funções no Supremo Tribunal de Justiça, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 43.°, nºs 1 e 4, e 45.° do Código de Processo Penal (CPP), apresentar pedido de escusa com os seguintes fundamentos:
1. No proc. n.° 454/05.6… do Tribunal Judicial da Comarca de … (Instância Central, Seção Criminal, Juiz …), o arguido BB foi condenado na pena única de 5 anos de prisão (resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares pela prática continuado de um crime de peculato e de um crime de falsificação de documentos), substituída pela pena de suspensão da execução da pena de prisão; o arguido foi absolvido do pedido de indemnização civil formulado pela demandante Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC).
Após recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra interposto pela demandante FCTUC, foi declarada, por acórdão de 25.06.2018, parcialmente nula a decisão recorrida na parte restrita à matéria civil, ficando definitivamente decidida a parte da decisão relativa à matéria penal.
Foi prolatado novo acórdão a 11.02.2019 que sanou a nulidade, e do qual foi novamente interposto recurso pela demandante, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12.02.2020, negado provimento ao recurso interposto pela demandante FCTUC e mantendo a decisão recorrida na parte civil.
É desta última decisão que a demandante FCTUC vem recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (ao abrigo do disposto nos arts. 4.°, 432.°, e 400.°, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP) e dos arts. 721.°, nº 1 e 723.°, do Código de Processo Civil (CPC), pedindo a revogação da decisão e outra que condene o arguido a pagar-lhe € 359 196, 44, a título de indemnização civil.
Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça foi o processo distribuído (a 14.07.2020) à Requerente deste pedido de escusa. De imediato foi aberta vista ao Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, que não emitiu parecer por o recurso ser apenas restrito a matéria cível. Foram os autos conclusos à Relatora a 01.09.2020.
Compulsados os autos, a agora Requerente verificou que a mandatária da demandante é a Ilustre Advogada Dra CC.
2. Ora, a ilustre Advogada Dra CC foi já advogada do meu marido — DD — no processo nº 163/06.1… (habilitação de sucessores; sociedade extinta) que correu termos no, então, Tribunal Judicial de …, 1º Juízo.
Nesses autos era Autora «…. - Empreendimentos Imobiliários, S.A.», e Réus, entre outros, os 11 associados fundadores (9 dos quais membros do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) da «P… - Centro de Estudos Processuais Civis e Jurisdição», e de entre aqueles DD. Ficou provado que nunca foram eleitos quaisquer corpos ou órgãos sociais da associação «P…», os associados nunca empossaram qualquer órgão de administração, direção ou fiscalização da associação, nem nunca foram investidos de qualquer cargo ou função no âmbito daquela associação, nunca desempenharam, de facto, qualquer atividade nem exerceram qualquer função da atribuição dos referidos órgãos, e para além de terem feito parte da assembleia constituinte, apenas participaram, como associados, na assembleia de dissolução da associação (a 19.01.2006).
A Requerente pretendia a declaração de nulidade, inexistência ou anulação de decisão arbitral, alegadamente proferida por entidade criada na dependência daquela associação sem fins lucrativos «P… - Centro de Estudos Processuais Civis e Jurisdição». Por decisão final de 10.10.2016, transitada em julgado em novembro de 2016, foi anulada a decisão em causa.
3. Ainda que a Requerente considere que questões do foro pessoal não a influenciarão na decisão a tomar nestes autos, designadamente no sentido de gerarem qualquer predisposição para beneficiar ou prejudicar qualquer pessoa na decisão, todavia, aparentemente, tendo sido a mandatária do Recorrente destes autos, igualmente, mandatária do meu marido naquele outro processo, considera (a aqui Requerente) que os factos referidos são de molde a gerar nos demandados e nos demandantes dúvidas sobre a imparcialidade do Tribunal que vai decidir o recurso.
Assim, ao abrigo do disposto no arguido 43.°, nº 1, do Código de Processo Penal, requeiro a Vossas Excelências que se dignem escusar-me de intervir na decisão do recurso interposto nestes autos.”
§1.(a). – QUESTÃO EM TELA DE JUÍZO PARA SOLUÇÃO DO PEDIDO.
A questão que emerge da pretensão de escusa colima com uma dimensão nuclear da função jurisdicional, qual seja a de o julgador se encontrar isento e liberto de escaras que empecem a sua disponibilidade cognitiva de julgar uma causa.
§2. – FUNDAMENTAÇÃO.
§2.1. - RECENSÃO FACTUAL DAS RAZÕES DE ESCUSA.
1. – A requerente exerce funções judiciais no Supremo Tribunal de Justiça;
2. – Na distribuição adrede foi-lhe atribuído para julgamento o processo n.° 454/05.6… do Tribunal Judicial da Comarca de … (Instância Central, Seção Criminal, Juiz …), em que figura como arguido BB e na posição de demandante civil a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC);
3. – “O arguido foi absolvido do pedido de indemnização civil formulado pela demandante Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC)” (em decisão de primeira (1ª) instância.”
4. – Após demandas, Tribunal da Relação de Coimbra, manteve a absolvição do arguido do pedido de indemnização cível que contra ele tinha sido deduzido;
5. – Da absolvição ditada pelo tribunal da Relação de Coimbra, recorre a demandante para o Supremo Tribunal de Justiça, com patrocínio da advogada, Drª CC;
8. – A requerente é casada com DD;
9. – O marido da requerente foi réu “entre outros” na acção nº 163/06.1… (habilitação de sucessores; sociedade extinta) que correu termos no, então, Tribunal Judicial de …, 1º Juízo;
10. – Na acção referida no tem antecedente, (sic): “era Autora «…. - Empreendimentos Imobiliários, S.A.», e Réus, entre outros, os 11 associados fundadores (9 dos quais membros do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) da «… - Centro de Estudos Processuais Civis …», e de entre aqueles DD”;
11. - A advogada, Drª CC, terá patrocinado o marido da requerente na acção mencionada no item 10..
§2.2. – APRESENTÇÃO E DISCUSÃO DO PEDIDO.
No século dezoito Cesar Beccaria escrevia que “o soberano, que representa a sociedade, pode unicamente formar leis gerais que obriguem todos os membros, mas não julgar, quando algum haja violado o contrato social, porque então a nação se dividiria em duas partes: uma representada pelo soberano que afirma a violação do Direito e outra pelo acusado que a nega. É, pois, necessário, que um terceiro julgue a verdade do facto.
Esta condição de terceiro, alheio ao litígio, que na concepção da imparcialidade no sentido se atribui ao Juiz, é a causa que determina que a violação da regra da imparcialidade pela sua parte pareça, «aos olhos da justiça e da razão, inclusivamente criminal», como dissera Bentham: pois quando o juiz se desvia da regra da imparcialidade, se converte em parte e utiliza os seus poderes de juiz ao serviço da sua ilegítima posição de parte, desequilibra a balança da justiça.”
Lapidarmente, o artigo 2.2 da Declaração Universal sobre a Independência da Justiça, Montreal, 10 de Junho de 1983, prescreve que: “os Juízes individualmente devem ser livres. A sua função consiste em decidir os assuntos a partir da sua imparcialidade e de acordo o seu conhecimento dos factos e do Direito, sem nenhuma restrição, influência, indução, pressão, ameaça ou interferência, directa ou indirecta, de qualquer instância ou por qualquer razão.”
“A conexão da imparcialidade com a ética tem sido posta em realce (“de manifesto”), de tal modo que «sem ética jamais existirá imparcialidade, de tal modo que a ética se erige em princípio e fim da actividade jurisdicional»
Sucede, sem embargo, que pode falar-se de uma imparcialidade em sentido subjectivo (interno) e de outra objectiva, externa, com diferentes possibilidades de apreciação, pois enquanto a primeira se alberga (“se residencia”) na consciência do julgador (abstenção ou não) a segunda conta com um arsenal de causa se recusa, nas mãos das partes.
Sem embargo ambas são anverso e reverso da mesma realidade pois a Justiça representa-se como uma balança em que ambas partes contam como um prato cada uma, para nele colocar as suas alegações e provas, que devem ser pesadas e julgadas por juízes e tribunais imparciais.
O TDH tem desenvolvido uma doutrina, actualmente consolidada. Que já plasmou no caso Pirsack STEDH, de 1.10.1982, em que se referiu, em termos resumidos, ao que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque (“así porque”) tenha exteriorizado relativamente ao demandante juízos antecipados desfavoráveis, ou, já no processo, por haver emtido decisões prévias nas quais se manifeste um juízo antecipado de culpabilidade (instrução com processamento, adopção de meios cautelares, etc.). (…)
Ainda que sabendo (“a sabiendas”) da dificuldade do tema, e do respeito à vida de que somos credores todos os juízes, a prudência, também neste terreno do estabelecimento e manutenção das relações com pessoas, instituições e interesses vários, contribuirá para um equilibrado e razoável posicionamento numa questão na qual o selfrestraint, joga um papel destacado.” (cfr. Consejo General del Poder Judicial – Escuela Judicial, “Ética do Juez y garantias procesales”, Manuales de Formación Continuada 24, 2005, Madrid, págs. 451-452)
Perorando acerca da Deontologia Judicial, escreveu Eduardo Urbano Castrillo, no Manual acabado de referir que “as virtudes rectoras do comportamento ético do Juiz podê-las-íamos (“podríamos”) reduzi-las à independência, imparcialidade, profissionalidade, relativamente às pessoas que actuam no processo, e actualização. Deste quinteto de exigências éticas – que desenvolveremos mais adiante – surge um tipo de Juiz, próprio da nossa época, que, consequentemente, há-de ter em conta uma serie de deveres mais concretos a cumprir.
Com efeito, o “bom Juiz” não é o juiz formalista (a norma positiva antes de tudo) que se dedica, em grande medida, a «echar balones fuera» e a resolver, estritamente, com a norma ou normas que estima aplicáveis mas sim um juiz aberto á realidade social – art. 3.1 Cciv – que trata de superar os «formalismos enervantes» para entrar «en el fondo», recorrendo às normas positivas mas também aos valores e princípios constitucionais e do concreto sector jurídico em que opere, indagando soluções que podem não existir, para dar resposta a questões novas ou que se apresentam com enfoque duvidoso.” (ibidem, pág.425)
Em sentido a ponto, escreveu Francisco Javier de la Torre Díaz, (“Ética y Deontologia Jurídica, Editorial Dykinson, 2000, p. 360), que “la imparcialidad está profundamente conectada com la ética ya que “sin ética jamás existirá imparcialidad, de tal manera que la ética se erige en principio y fin de actividad jurisdicional” (Enrique Ruiz Vadillo, “La ética y los jueces”, ICADE, Nº 33, 1994, P.42). Cada juez es el que tiene que ser imparcial pues cada juez es Poder Judicial. (De Castro afirma que “más que la organización, esla personalidad del juez el factor central para una sana vida fel Derecho). Por eso la imparcialidad parte de la pesonalidad de cada juez que es consciente de su mission. (Luis Martinez-Calcerrada, “Juez e Justicia independientes”, ABC, 13-01-1993). La imparcialidad, debe ser entendida aqui como independência del juicio que no es parcial, que procede con falta de prevención en favor o en contra de las partes. (Para el concepto de imparcailidad: Plácido Fernandez-Viagas Bartolomé, El Juez Imparcial, Comares, Granada, 1997, p. 1-5).”
Recortando o sentido hermenêutico que deve ser conferido ao conceito-valor da imparcialidade, vincou-se na sentença 162/1999, de 27 de Setembro, do tribunal constitucional espanhol, que “a separação e alheamento das partes em litígio e dos seus interesses permite ao juiz «situar-se por cima das partes acusadoras e imputadas, para decidir justamente a controvérsia determinada pelas suas pretensões em relação com a culpabilidade ou inocência» (SSTC1985, fundamento jurídico 6º, e 225/1988, fundamento jurídico 1º). Esta obrigação de ser alheio ao litígio, de não se julgar nada nele, de não ser «Juiz e parte» nem «juiz da causa própria», pode resumir-se em duas regras: segundo a primeira, o juiz não pode assumir processualmente funções de parte; a segunda, o juiz não pode realizar actos nem manter com as partes relações jurídicas ou conexões de facto que possam pôr a descoberto ou exteriorizar uma prévia tomada de posição anímica a favor ou contra (Sentenças do TEDH, de 22 de Junho de 1989, caso Langborger; de 25 de Novembro de 1995, caso Holm, y 20 de Maio de 1998, caso Gautrin e outros).
O método de apreciação destas exigências empregado pelo TEDH, cuja jurisprudência constitui uma obrigação e um valioso meio hermenêutico para configurar o conteúdo e alcance dos direitos fundamentais (art. 10. CE), caracteriza-se por distinguir duas perspectivas – subjectiva e objectiva – desde as quais se pode valorar se o juiz no caso concreto pode ser considerado imparcial (Sentenças do TEDH proferidas nos casos Piersack e de Cuber (…). A perspectiva subjectiva trata de apreciar a convicção pessoal do juiz, o que pensava no seu foro interno na referida ocasião, a fim de excluir aquele que internamente haja tomado partido previamente, ou vá basear a sua decisão em pré-juízos indevidamente adquiridos. Desde esta perspectiva, a imparcialidade do juiz há-de presumir-se, e as suspeitas sobre a idoneidade hão-de ser provadas: A perspectiva objectiva, sem embargo, dirige-se a determinar se, pese não ter exteriorizado convicção pessoal alguma nem tomada de partido prévio, o juiz oferece garantias suficientes para excluir toda a dúvida legitima relativamente ao caso; por isso, desde este ponto de vista, são muito importantes as considerações de carácter funcional e orgânico, pois determinam se pelas funções que cumprem no processo, o juiz pode ser visto como um terceiro no litigio, alheio aos interesses que nele se ventilam.” (Cfr. em sentido similar o que acórdão deste Supremo Tribunal de justiça, de 13 de Abril de 2016, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, se escreveu, a propósito da dupla vertente que a imparcialidade pode configurar: “A imparcialidade pode ser vista sob duas vertentes:
- subjectiva, consubstanciando-se na posição pessoal do juiz perante a causa, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou de prejudicar qualquer das partes;
- objectiva, traduzindo-se na ausência de circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tem um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais.
É notório que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Efectivamente, não basta o mero convencimento subjectivo por parte do Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição.
Por outro lado, como a própria lei impõe, não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo certo ser necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.
A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas]. Em todo o caso, certo é que o preceito do artigo 43º, n.º1, não se contenta com um «qualquer motivo», ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado (sério e grave), o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.”
Advertindo as dificuldades de recolher elementos no plano subjectivo – seria difícil adentrar-se dentro do íntimo do julgador, excepto se ele exteriorizasse algum aspecto que surpreendesse uma situação de suspeita – o autor, refere que a doutrina do TEDH vem matizando a exigência de uma imparcialidade subjectiva com a existência ou auscultação de «suspeita justificada», o que situaria a suspeita sustentada em dados objectivos. Daí que, o Autor, haja proposto a substituição das perspectivas em que se analisa a imparcialidade de um Juiz, em imparcialidade processual e pessoal e apresentando, hoje, uma proposta mais “tajante” “pois me parece que não há duas dimensões da imparcialidade; mas sim que a imparcialidade é única; e que pode legitimamente em dúvida, tanto por razões nascidas da função processual que o juiz haja desempenhado, como por relações ou actuações pessoais.” (Cfr. Tomás S. Vives Antón, “Fundamentos del Sistema Penal- Sobre la Imparcialidade del juez y la dirección de la investigación oficial del delito”, Tirant lo Blanch, 2ª edição, 2011, pág. 976-980-982.)
Adentrando-se na história da imparcialidade, ensina Paolo Tonini que “a imparcialidade para que seja «efectiva», deve estar fundada nos seguintes princípios: 1) a sujeição do juiz à lei; b) a separação das funções processuais; 3) a presença de garantias procedimentais que consintam expelir (“estromettere”) o juiz que seja (ou parece) parcial.
1) só a presença de leis que indiquem com precisão quais os factos que são crime (“reato”) e quais os poderes processuais que possam (ou devam) ser exercitados, impedem que o juiz seja influenciado do exterior (pelo poder político, económico, sindical) ou do interior (subjectivismo caracterológico e ideologia do próprio magistrado. (…)
2) a imparcialidade é fundada na base da separação das principais funções processuais de sujeitos distintos, isto é, a acusação, a defesa e o juiz. (…)
3) Ocorram garantias processuais que permitam assegurar a imparcialidade do juiz seja como pessoa física “o singolo magistrato”, seja como órgão judicante no seu complexo (que pode ser colegial ou monocrático. (…)”
Assevera este Autor que a imparcialidade pode ser definida somente de um ponto de vista negativo (não parcialidade, “non parzialità”) sobre uma base em dois critérios fundamentais, que podem ser expressos do seguinte modo: “a) existe imparcialidade num sentido objectivo quando está assente uma qualquer ligação entre o juiz e uma das partes, o entre o juiz e a questão a decidir; b) ocorre imparcialidade num sentido subjectivo quando o juiz aparece numa situação “impregiudicatezza” relativamente à questão a decidir.”
(…) O princípio da imparcialidade impõe que o juiz deva não só ser como parecer para o exterior com neutral”
Mais adiante, refere este autor “o juiz tem a obrigação de se abster (e as partes podem recusá-lo) se estivermos em presença de determinadas situações que o façam aparecer como parcial. Trata-se de casos nos quais aparece provável que alguma ocorrência pessoal (ligação com as partes ou com o objecto processual) possa ter sobrevindo sobre o dever de imparcialidade. Não é dito que em tal situação o juiz seja, em concreto, parcial; mas aparece “pouco credível” que um magistrado possa manter-se imparcial, porque nem sempre poderia conseguir dominar o próprio instinto ou pulsão inconsciente. Neste caso a lei obriga a solicitar imediatamente uma declaração de escusa (“astensione”). (Paolo Tonini, “Manuale di Procedura Penale”, Giuffrè Editore, 9ª edizione, p. 86.)
“Nos termos do artigo 43º, nº4 do Código de Processo Penal o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Consequentemente, constitui fundamento de escusa que:
- a intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
- por se verificar motivo, sério e grave;
- adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Estamos em face de circunstâncias específicas que contêm potencialidade para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos interessados e da comunidade.
É evidente que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só podem conduzir à sua recusa ou escusa quando objectivamente consideradas. Assim, o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar.
Falamos assim de uma razão séria e grave, do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro). Visa salvaguardar-se um bem essencial na Administração da justiça que é a imparcialidade ou seja a equidistância sobre o litígio a resolver de forma a permitir a decisão justa.
Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade.
É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto.
Na verdade do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litigio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual. A imparcialidade afasta-se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade. A partir do momento em que o juiz do processo recebe informação de qualquer tipo relacionada com o processo que lhe é transmitida por um dos intervenientes dificilmente a sua posição deixa de ser reconhecida como condicionada por tal ligação. Passa a interferir um elemento de conexão pessoal e extraprocessual num procedimento que se deve pautar pelo afastamento e pela objectividade.
Acresce que tal tipo de relação não é por natureza objecto de publicidade o que pode potenciar a dúvida dos restantes intervenientes processuais sobre o seu conteúdo
A isenção objectiva do julgador pode não estar comprometida e naturalmente não estará. Mas, objectivamente a dúvida ficara a pairar e por essa forma ficará afectada a imagem da justiça
Neste sentido se vem pronunciando este Tribunal referindo que:- A regra do n.º 2 do art.º 43.º do CPP, agora introduzida pelo DL 59/98, de 25-08, só adquire sentido, como do próprio contexto do artigo dimana, se o fundamento da recusa que nele se contempla se apoiar nos mesmos pressupostos - os da existência de motivo sério e grave - que alicerçam aquele que se define no n.º 1 do referido normativo. (5) - É precisamente a imprescindibilidade desse motivo sério e grave que faz não só avultar a delicadeza desta matéria, como leva a pressentir que, subjacente ao instituto da recusa, se encontra a necessidade (e a conveniência) de preservar o mais possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por lógica decorrência e inevitável acréscimo, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la. (6) - Por isso é que, determinados actos ou determinados procedimentos (quer adjectivos, quer substantivos) só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente - um propósito de favorecimento decerto sujeito processual em detrimento de outro. (7) - As meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa» (Ac. do STJ de 27-05-1999, proc. n.º 323/99); - O fundamento básico de recusa de juiz consiste em o mesmo poder ser considerado suspeito, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Para a sua correcta processualização, haverá, no entanto, que alegar sempre factos concretos que possam alicerçar tal desconfiança e indicar as normas legais aplicáveis que fundamentam a recusa» (Ac. do STJ de 29-06-2000, proc. n.º 943-B/98).
Por seu turno o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entende que a imparcialidade deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é, se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.
É esta jurisprudência da maior relevância no caminho, a um tempo construtor do princípio da imparcialidade objectiva do tribunal e da sua aplicação à diversidade dos casos concretos, que vem trilhando a jurisprudência da instância europeia. A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Fevereiro de 2016, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, disponível em www.dgsi.pt.)
Impressivamente doutrinou-se no acórdão do STJ de 13 de Abril de 2005, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar que: “O artigo 43º do Código de Processo Penal, ao dispor sobre recusa e escusa do juiz, estabelece um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz. Tem, como os impedimentos, uma função de garantia da imparcialidade, aliás assim expressamente referida na epígrafe do Capítulo VI do Título II, artigos 122º a 136º do Código de Processo Civil.
Concretizando esta finalidade, o artigo 43º do diploma de processo penal prevê modos processuais que o legislador considerou com aptidão para realizar a garantia de imparcialidade do tribunal, que constitui um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais; a imparcialidade do tribunal constitui um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental, ou, na linguagem dos instrumentos internacionais, com um dos direitos humanos - artigo 6º, par. 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa.
4. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. A perspectiva subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário. Neste aspecto, a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva.
Mas a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.
Na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.
Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.
A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é, a respeito da densificação do conceito de imparcialidade, de assinalável extensão (cfr., v. g., entre muitas outras referências possíveis, Renée Koering-Joulin, "La notion européenne de «tribunal indépendant et impartial» au sens de l’article 6º, par. 1 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme", in Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, nº 4, Outubro-Dezembro 1990, págs. 766 e segs.).
5. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.
O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do Código de Processo Penal - artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo diploma.
É nesta perspectiva de enquadramento que deve ser apreciado o caso sub specie.
O motivo de escusa vem suscitado pela Senhora Juíza desembargadora inteiramente no plano da imparcialidade objectiva: «para prevenir o perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita».
Para além dos motivos taxativamente enunciados na lei - e que constituem os impedimentos (artigo 39º do Código de Processo Penal), com a absoluta interdição de intervir, por revelarem situações em que a confluência de interesses ou circunstâncias pessoais são de tal modo que não permitem garantir a imparcialidade quer do ponto de vista subjectivo quer objectivo - a multiplicidade das situações submetidas a apreciação, em conjugação com a vivência dos magistrados podem fazer revelar casos em que a projecção externa da imparcialidade suscite reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários das decisões.
Dominam aqui as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser.
Os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, «sério» e «graves».
As noções, com a carga de relevância que lhes está inerente, no limite mesmo da meta-linguagem, supõem, pois, que não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («encarado com desconfiança», na expressão do pedido) e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade.
O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias.
A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão.” (Disponível em www.dgsi.pt.)
§2.2. – SOLUÇÃO DO CASO.
A requerente assenta a razão do pedido que formula, em resumidas contas, no facto de a mandatária que representa a demandante no processo que lhe foi distribuído para julgamento, haver sido mandatária do seu marido em um processo em que este figurava como demandado (com mais dez elementos de uma pessoa colectiva).
Uma razão pessoal-familiar ocasionada em raiz de um diferendo/litigio em que o seu marido terá sido demandado por questões do foro profissional-institucional (nesta qualificação compósita se nos prefigura a entidade de que o marido da requerente fazia parte.)
Em nosso juízo, ainda que não despeitemos o relacionamento familiar, afigura-se-nos que um litígio da natureza daquele que se prefigura numa habilitação de sucessores numa pessoa colectiva (de cariz ou feição profissional-institucional, como nos parece ser aquele que ressuma da exposição descritiva do requerimento inicial), não adquire uma densidade e profundidade de empenhamento que seja susceptível de colocar, racionalmente, alguém em predisposição de poder/querer beneficiar ou prejudicar seja quem quer. Trata-se de um litígio entre uma pessoa colectiva – a demandante – e um conjunto de pessoas – constituintes e membros de uma pessoa de composição colectiva – e em que a intensidade do litígio se mostra dispersa e delida pela partilha e fragmentação compósita do feixe de interesses em dissensão (ainda que, como é aposto numa legitimidade (processual e/ou substantiva) solidária, os interesses confluam e colimem num objectivo e desiderato final comum, no caso uma anunciada habilitação de sucessores).
A configuração do litígio em que a mandatária, que na acção a julgar se posiciona como mandatária da demandante, afigura-se-nos não ser de feição a perturbar/inquinar, ou fazer inclinar o prato da balança, de um julgador habituado a discernir entre interesses que, em juízo, de ordinário – ou quase sempre – assumem uma tensão e uma pulsão conflitiva e antinómica.
Cremos que quem esteja habituado a julgar não se permitirá o envolvimento emocional, e de passo tendencialmente parcial, porque “enturbiada” a razão pelo emotivo, num julgamento que lhe haja sido atribuído, por uma razão de características, permita-se-nos o termo trivial e corrente, como aquela que é descrita no requerimento inicial. Na verdade, trata-se de uma questão de habilitação de sucessores – se a questão foi devidamente qualificada – relativamente a um organismo constituído, organizado e orientado para divulgação de opiniões e estudos de feição científico, mormente de conhecimento relativa a uma área do Direito, em que o interesse a dirimir não assume, itera-se, uma intensidade e empenhamento de tal calado que importe, ou seja capaz de fazer deflectir uma assumpção (racional e despejada de tensões e pulsões emotivas) defectiva e descasada de um correcto e ajustado razoamento ponderativo de um julgador.
Em nosso juízo, a razão pessoal-familiar da requerente com o caso em que o marido se encontrou enfrascado, não será de molde a afectar a pauta e paradigma racional de imparcialidade no julgamento do caso que lhe foi distribuído.
Pelas razões sumariamente expostas, somos de entender que a categoria de valoração jurisdicional enucleada na imparcialidade não se mostra completa, ou totalmente densificada, na factualidade em que assenta o pedido formulado pela requerente, motivo por que se desestima e desatende o pedido formulado.
§3. – DECISÃO.
Na desinência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ªa secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:
- Indeferir o pedido de escusa formulado pela requerente;
- Sem custas.
Lisboa, 11 de Setembro de 2020
Gabriel Martim Catarino (Relator)
Manuel Augusto de Matos
(Declaração nos termos do artigo 15º-A da Lei nº 2072020, de 1 de Maio: O acórdão tem a concordância do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Adjunto, Dr. Manuel Augusto de Matos, não assinando, por o julgamento, em conferência, haver sido realizado por meios de comunicação à distância.)